4° Dossiê Temático (2025): Entre fardos coloniais e vozes ancestrais: tensionando a Afrodiáspora no século XXI
Prazo final de envio: 15 de setembro de 2025
Esta proposta de dossiê tem como objetivo oferecer uma visão aprofundada das múltiplas experiências na Afrodiáspora no século XXI, a fim de dar visibilidade ao encontro tensionado entre: o passado colonial em sincronia com o tempo presente em diversas estruturas e as diferentes possibilidades de empoderamento e resistência de sujeitos, grupos e comunidades negras e racializadas diante de suas conexões ancestrais com a Afrodiáspora. Compreendemos a Afrodiáspora não apenas como o deslocamento físico de pessoas africanas através do Atlântico e outras partes do mundo, mas também como as complexas experiências e redes de colaborações, de adaptações, de reinvenções, de negociações e de resistências cultivadas pelas comunidades afrodescendentes (Butler, 2020), cujas vidas convivem na tensão entre fardos coloniais e conexões ancestrais. A proposta dialoga com as demandas no campo das Ciências Humanas e Sociais por examinar criticamente como, no século XXI, os legados coloniais continuam determinando as estruturas sociais, políticas, culturais e econômicas, mediante antigos e novos modos de dominação sobre povos e comunidades africanas e seus descendentes dispersos pela/na Afrodiáspora. Assim, toma-se como parâmetro o impacto das relações de poder interétnicas, das desigualdades raciais interseccionadas em gênero, sexualidade e nacionalidade, e da colonialidade nas estruturas sociais, políticas e econômicas.
Partindo desse ângulo, abordagens contemporâneas comprometidas com o processo de descolonização e que questionam as categorias estabelecidas pela modernidade, tais como as epistemologias do Sul, os debates anti/contra/de-coloniais, a teoria crítica da raça, as afroperspectivas, as perspectivas pluriversais, afrocêntricas e afrorreferenciadas, e toda a produção de conhecimento não-alinhada com o eurocentrismo, têm demonstrado crescente atenção em compreender e discutir, sob uma leitura inter/transdisciplinar, as diferentes formas de ressignificação, de sobrevivência e de enfrentamento e luta que os sujeitos afrodiaspóricos empreendem em movimentos políticos, culturais e/ou epistêmicos para resistir aos sistemas de opressão, ao passo que reivindicam vozes ancestrais em suas identidades, memórias e práticas. Essas pesquisas promovem, ao mesmo tempo, uma crítica epistemológica aos programas hegemônicos de conhecimento consolidados na modernidade e um descentramento teórico na branquitude, uma vez que revisam a história mundial e o colonialismo que lhe serve de arcabouço, e restituem o papel histórico e político central dos sujeitos afrodiaspóricos na atualidade. Esse processo de revisão crítica resulta em uma revisitação e retificação do passado colonial e, simultaneamente, uma ressignificação e visibilização das imagens e compreensão de “outros” historicamente apagados.
A partir dessa mirada epistemológica, esta proposta ambiciona socializar o resultado de pesquisas concluídas e promover o diálogo entre pesquisas em andamentos, de distintas áreas do conhecimento (sociologia, antropologia, história, economia, ciência política, relações internacionais etc.), apoiadas em metodologias interseccionais e/ou transversais as quais centralizam a questão racial, e embasadas teoricamente por abordagens anti/contra/de-coloniais, afrocentradas, do feminismo negro e outras perspectivas do pensamento afrodiaspórico. Incentiva-se fortemente estudos que abordam contextos para além do Brasil. Em uma troca interdisciplinar, o dossiê busca estudos que se dediquem a alguma das seguintes linhas temáticas:
- Colonialidade, racismo e necropolítica: o entrelaçamento das múltiplas colonialidades (Maldonado-Torres, 2018), do racismo estrutural e das políticas de governança que impulsionam a gestão da morte de populações negras e racializadas (Mbembe, 2016);
- Capitalismo racial, neoliberalismo e economia política: as políticas econômicas e sistemas financeiros que se apoiam na contemplação contínua da raça para a dominação e expulsão de corpos considerados “descartáveis” e “excedentes” (Bhattacharyya, 2018);
- Racismo ambiental, mudanças climáticas e lutas por justiça ecológica/climática: os distintos processos que realizam a degradação ambiental em contextos racializados, cujas comunidades periféricas e negras são expostas desigualmente ao acesso a recursos naturais, ao despejo de resíduos tóxicos e poluentes e às mudanças climáticas (Pacheco e Faustino, 2013), bem como as lutas antirracistas e ecológicas que enfrentam a destruição do mundo e das pessoas racializadas (Ferdinand, 2022);
- Inteligência artificial, racismo algorítmico e agência política: as novas lógicas e tecnologias digitais que orientam padrões socialmente determinados mediante a codificação racializada para controlar a sociedade e potencializar as desigualdades (Faustino e Lippold, 2023), assim como as novas possibilidades de atuações políticas afrodiaspóricas no campo digital;
- Espacialidades afrodiaspóricas, territórios negros e migrações: as dinâmicas de ocupação, de transformação e de ressignificação de territórios negros e espacialidades afrodiaspóricas, moldadas por reivindicações identitárias, conexões ancestrais e/ou processos migratórios, as quais desafiam as fronteiras estabelecidas por modos racializados de expropriação e exploração do espaço;
- Feminismos negros, ativismos e redes transnacionais afrodiaspóricas: as articulações e estratégias políticas de movimentos e organizações negras, de mulheres negras, quilombolas etc., em nível local e global, com foco nas redes transnacionais de luta por direitos e justiça racial (Góes, 2022);
- Religiosidades de matrizes africanas: as práticas e os saberes constituídos pelas religiões de matriz africana, com centralidade na preservação de identidades afrodescendentes e no combate às opressões raciais (Bem, 2022);
- Políticas de afirmação, de reparação e de restituição: as políticas de ações afirmativas, de reparações históricas e de restituição de bens saqueados, especialmente em estudos comparativos de experiências internacionais, cujos processos abrangem desafios e conquistas;
- Arte, cultura e circulação de ideias afrodiaspóricas: a produção cultural, artística e epistêmica afrodiaspórica como campo de afirmação e resistência, com destaque na circulação de ideias, estéticas e narrativas que reconfiguram aparatos dominantes e constroem pontes entre tradições e inovações contemporâneas pelo Atlântico negro (Gilroy, 2012);
- Ancestralidades e memórias afrodiaspóricas: o papel das memórias e ancestralidades negras e afrodiaspóricas e sua relação com práticas de transmissão intergeracional e de preservação e ressignificação cultural frente ao apagamento imposto por narrativas hegemônicas.
Acreditamos ser inegável a relevância acadêmica e política da problemática dos legados coloniais no século XXI, sobretudo no que se refere ao imperativo de colocar em evidência e denunciar a persistência de desigualdades raciais que estão profundamente arraigadas na herança do colonialismo e da escravidão afroatlântica. Dessa forma, mostra-se promissora a presente proposta de gerar espaço acadêmico para a divulgação de pesquisas que assinalam a reinterpretação e adaptação contemporâneas das práticas, processos e estruturas de dominação em novas modalidades de exploração, subjugação e destruição de fazeres, saberes e maneiras de experienciar e vivenciar o mundo no contexto da Afrodiáspora. Pontuando como tais dinâmicas afetam diretamente tanto o sistema global contemporâneo quanto às práticas cotidianas, à medida que perpetuam as desigualdades e violências que configuram olhares, afecções e políticas dentro e entre nações, territórios e comunidades. Concentrar a atenção neste assunto possibilita questionar, ainda, visões tradicionais, eurocêntricas e brancocêntricas, conforme se incentiva análises críticas das relações e estruturas de poder. Ademais, posicionar a questão racial como eixo central permite compreender como o racismo, em suas diferentes gramáticas, influencia e determina as interações contemporâneas em contextos locais e globais.
Por outro lado, as múltiplas maneiras de sobrevivência, luta e resistência presentes na Afrodiáspora constituem um significativo contraponto às dinâmicas de dominação, ao passo que configuram um lócus de enunciação (Costa e Grosfoguel, 2016), mudança e agência. Iluminar esse potencial transformador, que engloba movimentos sociais, expressões culturais e religiosas, demandas e lutas por reparação histórica, ações educativas, ativismos digitais, modos outros de vida etc., auxilia na pluralização de narrativas e arquivos contra-hegemônicos (Kazanjian, 2016), no conhecimento de memórias apagadas sistematicamente, na potencialização de táticas e estratégias de enfrentamento e na expansão das possibilidades para a descolonização das estruturas do ser, da natureza e do poder. Afinal, as práticas, os métodos e a agência política cultivada na/pela Afrodiáspora são indicadores de inovação social e política, pois estão continuamente negociando, se transformando e se adaptando para contestar e enfrentar os distintos processos de racialização ao longo da história.
Referências
BEM, Daniel Francisco de. Tecendo o axé: uma abordagem antropológica da atual transnacionalização afro-religiosa nos países do Cone Sul. Doutorado em Antropologia. UFRGS: Porto Alegre, 2012.
BHATTACHARYYA, Gargi. Rethinking Racial Capitalism: Questions of Reproduction and Survival. Rowman & Littlefield, 2018.
BUTLER, Kim. Definições de diáspora: articulação de um discurso comparativo. In: BUTLER, K.; DOMINGUES, P. Diásporas imaginadas: Atlântico negro e histórias afro-brasileiras. São Paulo: Perspectiva, 2020, p. 1-36.
COSTA, Joaze Bernardino; GROSFOGUEL, Ramón. Decolonialidade e perspectiva negra. Soc. estado., v. 31, n. 1, Brasília, Jan./Apr. 2016, p. 15-24.
FAUSTINO, Deivison; LIPPOLD, Walter. Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana. São Paulo: Boitempo, 2023.
FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu Editora, 2022.
GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2012.
GÓES, Juliana. Du Bois and Brazil: Reflections on Black Transnationalism and African Diaspora. Du Bois Review: Social Science Research on Race, v. 19, n. 2, p. 293-308, 2022.
KAZANJIAN, David. Freedom’s surprise: two paths through slavery’s archives.
History of the Present, v. 6, n. 2, 2016, p. 133-145.
MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões básicas. In: BERNADINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES; GROSFOGUEL, Ramón. (orgs.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018, p. 27-53.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Temáticas, n. 32, 2016, p. 122-151.
PACHECO, Tania; FAUSTINO, Cristiane. A iniludível e desumana prevalência do racismo ambiental nos conflitos do Mapa. In: PORTO, M. F.; PACHECO, T.; LEROY, J. P. (comps.) Injustiça ambiental e saúde no Brasil: o Mapa de Conflitos. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2013, p. 73-114.
Proponentes:
- Maria da Conceição Francisca Pires. Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense. Professora associada do Departamento de História e professora permanente do Programa de Pós-graduação em História, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisadora do Núcleo de Documentação, História e Memória – NUMEM, da UNIRIO, e pesquisadora associada na Universidad Nacional de San Martin/Argentina e na Universidade Federal do ABC. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/9397370787594051. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8618-4151. Email: pires@unirio.br
- Jéser Abílio de Souza. Doutorando pelo Instituto de Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio). Pesquisador do Grupo de Estudos sobre Raça e América Latina – GERAL, da UFMG/CNPq, e do Núcleo de Estudos Linguísticos e Culturais – NELC, da UNESP/CNPq. Integrante da Comissão de Avaliação de Políticas Afirmativas e da Comissão de Equidade Étnico-Racial, ambas da Associação Brasileira de Relações Internacionais. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/6122076403503878. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8168-0682. Email: abilio@hotmail.com
- Adriano da Silva Denovac. Doutor em História pela Universidade Estadual de Santa Catarina. Professor Substituto na Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias, campus XVIII Eunápolis. Vinculado ao AYA – Laboratório de Estudos Pós-Coloniais e Decoloniais. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3899272406327464. ORCID: https://orcid.org/0009-0005-1175-6094. Email: denovac@gmail.com