A Educação Especial nos 25 anos da LDBEN/1996: avanços e retrocessos
Special Education in the 25 years of LDBEN / 1996: advances and setbacks
La Educación Especial en los 25 años de la LDBEN/1996: avances y retrocesos
Edson Francisco Andrade
Universidade Federal de Pernambuco, Pernambuco, Brasil
edsonfranciscodeandrade@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-7577-898X
Recebido em 6 de maio de 2021
Aprovado em 02 de julho de 2021
Publicado em 18 de fevereiro de 2023
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo analisar o movimento de marcha e de contramarcha na Política, nas Diretrizes e nas Bases da Educação Especial no Brasil, na intenção de realçarmos conquistas históricas ainda vigentes e que merecerem ampla defesa, assim como os riscos iminentes de perdas de direitos presentes nesse início da terceira década do milênio. Apreciam-se, com respaldo metodológico na Análise de Conteúdo, as alterações realizadas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN/1996), à luz do contributo da Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva (2008). A análise tem prosseguimento com a abordagem dos efeitos decorrentes do advento da “Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida” (2020). Nas conclusões, constata-se evidente retrocesso no tocante às orientações de oferta da Educação Especial. Em face desse dado da realidade, assume-se a defesa do que já foi conquistado formalmente, destacando-se a instituição da perspectiva inclusiva como um princípio orientador das práticas que se desenvolvem nos ambientes educacionais, mas, sobretudo, como um postulado legal a ser cumprido. Afinal, ainda que as leis não bastem, nem delas nasçam os lírios, é preciso concebê-las de fato como instrumentos relevantes para a reflexão na política educacional, sobretudo para fazer valer os avanços alcançados na forma da lei, quando da utilização destes como ferramentas imprescindíveis à consolidação do direito a uma educação inclusiva.
Palavras-chave: LDBEN/1996; Educação Especial; Educação Inclusiva; Política Nacional de Educação Especial.
ABSTRACT
This article aims to analyze the movement of march and counter-march in the Policy, in the Guidelines and in the Bases of Special Education in Brazil, with the intention of highlighting historical achievements still in force and that deserve wide defense, as well as the imminent risks of losses of rights present at the beginning of the third decade of the millennium. Approved, with methodological support in Content Analysis, the changes made to the Law of Directives and Bases of National Education (LDBEN/1996), in light of the contribution of the National Special Education Policy in the perspective of inclusive education (2008). The analysis continues with the approach of the effects resulting from the advent of the “National Special Education Policy: Equitable, Inclusive and with Lifelong Learning” (2020). In the conclusions, there is an evident setback regarding the guidelines for the provision of Special Education. In view of this reality, the defense of what has already been formally achieved is assumed, highlighting the institution of the inclusive perspective as a guiding principle of practices that develop in educational environments, but, above all, as a legal postulate to be fulfilled. After all, even if the laws are not enough, nor the lilies are born of them, it is necessary to conceive them in fact as relevant instruments for reflection in educational policy, above all to assert the advances achieved in the form of the law, when using these as tools indispensable for the consolidation of the right to an inclusive education.
Keywords: LDBEN/1996; Special Education; Inclusive Education; National Special Education Policy.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo analizar el movimiento de marcha y contramarcha en la Política, en las Directrices y en las Bases de la Educación Especial en Brasil, con la intención de resaltar conquistas históricas aún vigentes y que merecen amplia defensa, así como los riesgos inminentes de pérdidas de derechos presentes al inicio de la tercera década del milenio. Con apoyo metodológico en el Análisis de Contenido, se valoran los cambios realizados a la Ley de Directrices y Bases de la Educación Nacional (LDBEN/1996), a la luz del aporte de la Política Nacional de Educación Especial en la perspectiva de la educación inclusiva (2008). El análisis continúa con una aproximación a los efectos derivados del advenimiento de la “Política Nacional de Educación Especial: Equitativa, Inclusiva y con Aprendizaje Permanente” (2020). En las conclusiones se evidencia un retroceso en cuanto a los lineamientos para ofrecer Educación Especial. Ante este hecho de la realidad, se asume la defensa de lo ya formalmente conquistado, destacando la institución de la perspectiva inclusiva como principio rector de las prácticas que se desarrollan en los ambientes educativos, pero, sobre todo, como postulado jurídico. para ser cumplido Al fin y al cabo, si bien las leyes no bastan, ni de ellas brotan lirios, es necesario concebirlas como instrumentos relevantes para la reflexión sobre la política educativa, sobre todo para hacer efectivos los avances logrados en la forma de la ley, al utilizarlas como herramientas esenciales para la consolidación del derecho a una educación inclusiva.
Palabras clave: LDBEN/1996; Educación especial; Educación inclusiva; Política Nacional de Educación Especial.
Introdução
No poema "Nosso tempo", Carlos Drummond de Andrade declama: “As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei”. Em sua obra “Desejos de reforma: legislação educacional no Brasil Império e República”, Vieira (2008) recorre a esses versos do poeta para tecer um complemento igualmente relevante: “se isto é verdade, na poesia e na vida prática, não significa dizer que devamos relegar as leis ao esquecimento. Ao contrário, elas têm o que nos ensinar; por isso mesmo, são instrumentos relevantes para a reflexão em política educacional” (p.145).
Em 2021, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN/1996) completa 25 anos de existência. Conforme assertiva de Carneiro (2018, p.7), “filha dileta das lutas sociais por redemocratização, cujo marco foi a Constituição de 1988, a LDB 9.394/1996 representou, então, a possibilidade de democratizar e modernizar a educação nacional”. Em que pese essa expectativa, o conteúdo advindo do projeto de lei proposto pela sociedade “foi severamente maculado pelo contexto político e econômico daquele período, marcado pelo avanço do ideário neoconservador” (Idem). Em sintonia com esse entendimento, Saviani (2016), ao se referir a versão da LDBEN/1996 que marcará o início de sua vigência, a considera uma lei minimalista, “compatível com o “Estado mínimo”, ideia reconhecidamente central na orientação política então dominante” (p.221. Grifo do autor).
Sancionada oito anos após a Constituição Federal de 1988, a LDBEN/1996 contém três artigos (58, 59 e 60) que tratam de forma mais direta do atendimento às pessoas com deficiência no processo de escolarização (BRASIL, 1996). Ao preconizar, no Art. 58, que “entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino”, conjugando-se com o disposto no Art. 59, Inciso III, que exige dos sistemas e das redes de ensino “professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns”, a Lei da Educação passa a oferecer um suporte indispensável em favor do avanço da concepção inclusiva de escolarização.
É cabível relembrarmos que, tanto ao longo da década que a atual LDBEN foi sancionada (1990), quanto nos anos seguintes, quando o texto da lei começa a ganhar concretude no contexto das escolas, a perspectiva inclusiva foi assumida como cerne da luta para fazer avançar a oferta de Educação Especial como modalidade de ensino no país. Pode-se considerar que um passo importante para a consagração desse pleito foi dado com o advento da Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva (BRASIL, 2008a). Conforme se faz notar no próprio nome desta política, a perspectiva da educação inclusiva ganha centralidade na orientação de projetos e programas, mas, sobretudo, de práticas que contemplem o público aqui enfatizado (MANTOAN, 2017).
Na fundamentação da política em tela, assume-se que
o movimento mundial pela inclusão é uma ação política, cultural, social e pedagógica, desencadeada em defesa do direito de todos os alunos de estarem juntos, aprendendo e participando, sem nenhum tipo de discriminação. A educação inclusiva constitui um paradigma educacional fundamentado na concepção de direitos humanos, que conjuga igualdade e diferença como valores indissociáveis, e que avança em relação à ideia de equidade formal ao contextualizar as circunstâncias históricas da produção da exclusão dentro e fora da escola (BRASIL, 2008a, p.5).
À luz desse movimento mundial pela inclusão, o texto da Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva (doravante PNEE, 2008) passa a reconhecer que as dificuldades enfrentadas nos sistemas de ensino evidenciam a necessidade de confrontar as práticas discriminatórias e criar alternativas para superá-las. Em essência, essa política realça a imprescindibilidade da questão da educação inclusiva no debate acerca da sociedade contemporânea e do papel da escola na superação da lógica da exclusão. Para tanto, faz-se indubitável as devidas alterações nos referenciais de educação para que seja possível construir e consolidar os sistemas educacionais inclusivos, “implicando uma mudança estrutural e cultural da escola para que todos os alunos tenham suas especificidades atendidas” (Idem).
Fica evidente que essa perspectiva de política educacional para a Educação Especial é relativamente recente, ainda que se reconheça que o ideal por ela assumido tenha se constituído bandeira historicamente erguida, especialmente por militantes desta causa. O fato é que o advento dessa política tornou inevitável a proposição de injunções necessárias nas diretrizes e bases da educação nacional. A esse respeito, cabe realçar os efeitos da Lei nº 12.796/2013 (BRASIL, 2013), que alterou a LDBEN/1996, destacando-se, especialmente, a redefinição do dever do Estado com a educação escolar pública (ZOIA; PASQUALOTTO; COSSETIN, 2019), tendo também redimensionado o referencial de atendimento educacional às pessoas com algum tipo de deficiência.
Com efeito, a literatura da área tem aprofundado a análise da Política de Educação Especial proposta no bojo das injunções na LDBEN/1996, destacando-se importantes produções que tematizam tipos e especificidades das deficiências no contexto educacional (MANTOAN, 2017; RAMOS, 2017); os desafios e perspectivas do trabalho didático-pedagógico no processo de inclusão escolar (LANUTI; MANTOAN, 2018; RODRIGUES, 2018); além de estudos sobre programas específicos que tomam direto ou indiretamente a inclusão escolar como objeto (FIGUEIREDO; ROCHA; POULIN, 2019; GATTIBONI, 2017).
De forma efetiva, os avanços alcançados e reconhecidos pelos estudiosos do tema têm sido confrontados pela atual “Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”, instituída por meio do Decreto nº 10.502/2020, ordenado pelo Presidente Jair Bolsonaro (BRASIL, 2020). Trata-se de evidente contraposição ao processo de consolidação da perspectiva de educação inclusiva que se encontra em curso no país.
No presente artigo analisamos esse movimento de marcha e de contramarcha na Política, nas Diretrizes e nas Bases da Educação Especial no Brasil, na perspectiva de realçarmos conquistas históricas ainda vigentes e que merecem ampla defesa, assim como os riscos iminentes de perdas de direitos presentes nesse início da terceira década do Séc. XXI.
Com respaldo metodológico na Análise de Conteúdo, apreciam-se as alterações realizadas nos dispositivos da LDBEN/1996, ao longo dos anos de vigência, estabelecendo nexos com os avanços e retrocessos nas diretrizes para a Educação Especial assumidas no país.
Alterações na LDBEN/1996 e perspectivas de avanços na Política Nacional de Educação Especial
A versão atual do Capítulo V da LDBEN/1996, Da Educação Especial, que encerra o 5º Título da Lei da Educação, dedicado aos Níveis e as Modalidades de Educação e Ensino, contém sucintas alterações. Importa reconhecer que se tratam de modificações estreitamente comprometidas com a marcha em favor da ampliação da garantia do direito à educação e, por conseguinte, do enfrentamento a uma das dimensões da desigualdade educacional no país.
Três leis compuseram as reformas neste capítulo. A Lei nº 12.796/2013, de autoria do Poder Executivo, exercido à época pela presidenta Dilma Rousseff, deu nova redação ao Art. 58 da LDBEN/1996, que, além da manutenção do trecho original, que dizia: “Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos com deficiência”, a LDBEN passa a incluir nesse entendimento “as pessoas com transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação”.
Ainda no âmbito do Art. 58 da lei, tem-se a alteração realizada no seu parágrafo 3º, em cumprimento da Lei nº 13.632/2018 (BRASIL, 2018). A nova redação desse dispositivo legal, em que pese a supressão da expressão “dever constitucional do Estado”, utilizada na versão anterior do parágrafo em questão, para se referir à oferta de educação especial, ainda assim, cabe reconhecer a relevância do texto acrescido, especificamente na parte que, ao trecho original “tem início na educação infantil”, inclui-se o complemento “e estende-se ao longo da vida”. Disto resulta na seguinte redação atual: “a oferta de educação especial, nos termos do caput deste artigo, tem início na educação infantil e estende-se ao longo da vida, observados o inciso III do art. 4º e o parágrafo único do art. 60 desta Lei” (Art.58, § 3º).
Em decorrência da aplicação da Lei nº 13.234/2015 (BRASIL, 2015), foi incluído o Art. 59-A. Além de endossar parcialmente o já disposto no Art. 9º, Inciso IV-A, também incluído por força da referida lei, especificamente na parte que estabelece que o “poder público deverá instituir cadastro nacional de alunos com altas habilidades ou superdotação, matriculados na educação básica e na educação superior”, o Art. 59-A consigna um complemento importante à esta primeira parte do texto, ao fixar que, o tal cadastro nacional a ser instituído tem a finalidade de “fomentar a execução de políticas públicas destinadas ao desenvolvimento pleno das potencialidades desse alunado”.
Para cumprimento deste intento contido no novo artigo, fez-se constar o Parágrafo único no Art. 59-A da LDBEN/1996, determinando que
a identificação precoce de alunos com altas habilidades ou superdotação, os critérios e procedimentos para inclusão no cadastro referido no caput deste artigo, as entidades responsáveis pelo cadastramento, os mecanismos de acesso aos dados do cadastro e as políticas de desenvolvimento das potencialidades do alunado de que trata o caput serão definidos em regulamento.
Por fim, tem-se uma modificação no Art. 60. Ressalte-se que foi mantido o caput deste artigo, que estabelece que “os órgãos normativos dos sistemas de ensino estabelecerão critérios de caracterização das instituições privadas sem fins lucrativos, especializadas e com atuação exclusiva em educação especial, para fins de apoio técnico e financeiro pelo Poder Público”. Na realidade, a modificação, de natureza pontual, foi feita no Parágrafo único deste artigo, para incluir a expressão “transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação”. Com esta alteração, este parágrafo passou a ter a seguinte redação: “O poder público adotará, como alternativa preferencial, a ampliação do atendimento aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na própria rede pública regular de ensino, independentemente do apoio às instituições previstas neste artigo”.
Em face dessas alterações na Lei da Educação, é inegável o potencial indutor de políticas educacionais específicas, assim como de práticas didático-pedagógicas que passam a ser cotejadas com o incremento que a modalidade “Educação Especial” recebeu no texto legal, especificamente com o reconhecimento formal do direito das pessoas com transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação.
Pode-se considerar que a consagração dessa matéria na legislação educacional foi diretamente influenciada pelo advento da PNEE, 2008 (BRASIL, 2008a). Credita-se a esse texto e, por conseguinte, ao Grupo de Trabalho responsável por sua proposição, constituído pelo Ministério da Educação1, a devida ampliação e diversificação do público concernente à educação especial, e, por consequência, do dever do Estado com a oferta dessa modalidade de ensino, na perspectiva da educação inclusiva (MANTOAN, 2017).
Uma das importantes dimensões do enfrentamento às desigualdades educacionais é a ampliação do atendimento educacional às pessoas com algum tipo de deficiência. A verdade é que mesmo quando essas pessoas conseguem se inserir no ambiente escolar, por vezes, elas constituam à margem da principal função social da escola, que é a formação humana promovida necessariamente por meio da convivência entre o conjunto dos sujeitos que integram as comunidades escolar e local. O fato é que, em nome de um suposto atendimento especializado, o ingresso das pessoas com deficiência no sistema escolar foi marcado historicamente pela segregação desse público, apartando-o em pavilhões obrigatoriamente separados dos demais educandos que frequentavam a mesma escola.
Em síntese,
a educação especial se organizou tradicionalmente como atendimento educacional especializado substitutivo ao ensino comum, evidenciando diferentes compreensões, terminologias e modalidades que levaram a criação de instituições especializadas, escolas especiais e classes especiais. Essa organização, fundamentada no conceito de normalidade/anormalidade, determina formas de atendimento clínico terapêuticos fortemente ancorados nos testes psicométricos que definem, por meio de diagnósticos, as práticas escolares para os alunos com deficiência (BRASIL, 2008a, p.1).
O processo de superação dessa forma de atendimento tem sido movido especialmente por defensores da perspectiva progressista de educação, enfatizando-se a noção de inclusão que tem por princípio basilar justamente a convivência da pessoa com deficiência com os demais sujeitos coparticipantes dos processos que se desenvolvem na e pela escola. Esse pleito guarda plena coerência com o disposto no Art. 205 da Constituição da Federal de 1988, que estabelece que a Educação é direito de todos, devendo ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. A rigor, é inconcebível que haja pleno desenvolvimento da pessoa sem que seja garantido rigorosamente o direito de cada pessoa conviver com as outras.
Nos termos da política em apreciação, para colocar em prática a perspectiva da educação inclusiva, os sistemas e redes de ensino devem garantir:
transversalidade da educação especial desde a educação infantil até a educação superior; atendimento educacional especializado; continuidade da escolarização nos níveis mais elevados do ensino; formação de professores para o atendimento educacional especializado e demais profissionais da educação para a inclusão escolar; participação da família e da comunidade; acessibilidade urbanística, arquitetônica, nos mobiliários e equipamentos, nos transportes, na comunicação e informação; e articulação intersetorial na implementação das políticas públicas (BRASIL, 2008a, p.10).
Pode-se inferir que a perspectiva de educação inclusiva que é cotejada na política de educação especial em destaque requisita também os devidos ajustes nos referenciais que orientam o trabalho no âmbito escolar, com ênfase para a inserção do compromisso com a perspectiva de educação inclusiva na textualização da proposta pedagógica da escola regular. Em sintonia com as novas diretrizes e bases da educação, incrementadas por influência da PNEE (2008), requisita-se que cada comunidade escolar incorpore à sua proposta pedagógica a incumbência de promover o atendimento aos estudantes com deficiência, TGD e altas habilidades/superdotação.
Importante reconhecer que o atendimento a estes e outros casos, como os transtornos funcionais específicos, os que provocam uma série de perturbações na aprendizagem do aluno, deve ser efetivado de forma articulada com o ensino em sala de aula comum. Destaque-se que essa perspectiva de educação especial
direciona suas ações para o atendimento às especificidades desses estudantes no processo educacional e, no âmbito de uma atuação mais ampla na escola, orienta a organização de redes de apoio, a formação continuada, a identificação de recursos, serviços e o desenvolvimento de práticas colaborativas (BRASIL, 2008a, p.11).
O que está em causa é a garantia do atendimento das especificidades dos estudantes com deficiência na própria escola comum. De forma efetiva, as Diretrizes da PNEE (2008) concebem a educação especial como uma modalidade de ensino que perpassa todos os níveis, etapas e modalidades de educação e ensino, por isso mesmo, exige-se a organização de redes de apoio, a promoção de programas de formação continuada, a consecução de recursos e serviços compatíveis com as demandas dos estudantes, bem como o desenvolvimento de práticas colaborativas que potencializem o atendimento educacional especializado nos processos de ensino e de aprendizagem nas turmas comuns do ensino regular.
A esse respeito, a referida política de educação especial também prestou uma importante contribuição, ao estabelecer que
o atendimento educacional especializado tem como função identificar, elaborar e organizar recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos estudantes, considerando suas necessidades específicas. As atividades desenvolvidas no atendimento educacional especializado diferenciam-se daquelas realizadas na sala de aula comum, não sendo substitutivas à escolarização. Esse atendimento complementa e/ou suplementa a formação dos estudantes com vistas à autonomia e independência na escola e fora dela. Dentre as atividades de atendimento educacional especializado são disponibilizados programas de enriquecimento curricular, o ensino de linguagens e códigos específicos de comunicação e sinalização e tecnologia assistiva. Ao longo de todo o processo de escolarização esse atendimento deve estar articulado com a proposta pedagógica do ensino comum (Idem).
À luz dessa concepção político-pedagógica, o atendimento especializado é parte, não à parte, dos processos didático e pedagógico que se desenvolvem na sala de aula comum. De forma objetiva, ao invés de segregar os estudantes com algum tipo de deficiência, isolando-os em um pavilhão apartado dos demais que são reservados aos estudantes ditos normais, o que passa a constituir uma exigência é a organização de recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos estudantes. Um exemplo dessa concepção de inclusão pode ser notado por meio da leitura do que a política em questão estabelece como exigência para o atendimento de estudantes surdos nas escolas comuns.
Com efeito,
para o ingresso dos estudantes surdos nas escolas comuns, a educação bilíngue – Língua Portuguesa/Libras desenvolve o ensino escolar na Língua Portuguesa e na língua de sinais, o ensino da Língua Portuguesa como segunda língua na modalidade escrita para estudantes surdos, os serviços de tradutor/intérprete de Libras e Língua Portuguesa e o ensino da Libras para os demais estudantes da escola. O atendimento educacional especializado para esses estudantes é ofertado tanto na modalidade oral e escrita quanto na língua de sinais. Devido à diferença linguística, orienta-se que o aluno surdo esteja com outros surdos em turmas comuns na escola regular (BRASIL, 2008a, p.12).
Observa-se que há uma orientação política no sentido de assumir o atendimento educacional especializado como dimensão inerente ao conjunto do trabalho que é desenvolvido na e pela escola comum. Na realidade, esse suporte ao atendimento educacional demandado pelo público estudantil com algum tipo de deficiência, TGD ou altas habilidades/superdotação constitui uma das ferramentas fundamentais para o que se quer enunciar por meio da expressão “na perspectiva inclusiva” que foi acrescida ao título “Política de Educação Especial”.
Essa nova perspectiva de educação formalmente enunciada, por óbvio, requer incremento na força de trabalho que passa a ser exigida, a exemplo da atuação de profissionais com conhecimentos específicos no ensino da Língua Brasileira de Sinais. A rigor, para além de uma carta de desejos, a PNEE (2008) assume formalmente um conjunto de demandas como o incremento da oferta do sistema Braille, do Soroban, da orientação e mobilidade, de programas de enriquecimento curricular, da adequação e produção de materiais didáticos e pedagógicos, da utilização de recursos ópticos e não ópticos, da tecnologia assistiva e outros.
Por isso mesmo, nos termos desta política,
cabe aos sistemas de ensino, ao organizar a educação especial na perspectiva da educação inclusiva, disponibilizar as funções de instrutor, tradutor/intérprete de Libras e guia-intérprete, bem como de monitor ou cuidador dos estudantes com necessidade de apoio nas atividades de higiene, alimentação, locomoção, entre outras, que exijam auxílio constante no cotidiano escolar. Para atuar na educação especial, o professor deve ter como base da sua formação, inicial e continuada, conhecimentos gerais para o exercício da docência e conhecimentos específicos da área. Essa formação possibilita a sua atuação no atendimento educacional especializado, aprofunda o caráter interativo e interdisciplinar da atuação nas salas comuns do ensino regular, nas salas de recursos, nos centros de atendimento educacional especializado, nos núcleos de acessibilidade das instituições de educação superior, nas classes hospitalares e nos ambientes domiciliares, para a oferta dos serviços e recursos de educação especial. Para assegurar a intersetorialidade na implementação das políticas públicas a formação deve contemplar conhecimentos de gestão de sistema educacional inclusivo, tendo em vista o desenvolvimento de projetos em parceria com outras áreas, visando à acessibilidade arquitetônica, aos atendimentos de saúde, à promoção de ações de assistência social, trabalho e justiça. Os sistemas de ensino devem organizar as condições de acesso aos espaços, aos recursos pedagógicos e à comunicação que favoreçam a promoção da aprendizagem e a valorização das diferenças, de forma a atender as necessidades educacionais de todos os estudantes. A acessibilidade deve ser assegurada mediante a eliminação de barreiras arquitetônicas, urbanísticas, na edificação – incluindo instalações, equipamentos e mobiliários – e nos transportes escolares, bem como as barreiras nas comunicações e informações (BRASIL, 2008a, p.13).
Um passo importante em favor do alcance desse pleito foi dado com o Decreto nº 6.571, de 17 de setembro de 2008 (BRASIL, 2008b), ordenado pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva. Por meio desse dispositivo, que dispõe sobre o atendimento educacional especializado, regulamentando o Parágrafo único do Art. 60 da LDBEN/1996, a União fica incumbida de prestar apoio técnico e financeiro aos sistemas públicos de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, “com a finalidade de ampliar a oferta do atendimento educacional especializado aos alunos com deficiência, TGD e altas habilidades ou superdotação, matriculados na rede pública de ensino regular” (Art. 1º). Nos termos deste decreto, “o atendimento educacional especializado deve integrar a proposta pedagógica da escola, envolver a participação da família e ser realizado em articulação com as demais políticas públicas” (Art. 1º, § 2º).
Para tanto, o apoio técnico e financeiro prestado pelo MEC passa a cobrir as seguintes ações voltadas à oferta do atendimento educacional especializado, conforme o disposto no Art. 3º do decreto:
I - implantação de salas de recursos multifuncionais;
II - formação continuada de professores para o atendimento educacional especializado;
III - formação de gestores, educadores e demais profissionais da escola para a educação inclusiva;
IV - adequação arquitetônica de prédios escolares para acessibilidade;
V - elaboração, produção e distribuição de recursos educacionais para a acessibilidade; e
VI - estruturação de núcleos de acessibilidade nas instituições federais de educação superior.
§ 1º As salas de recursos multifuncionais são ambientes dotados de equipamentos, mobiliários e materiais didáticos e pedagógicos para a oferta do atendimento educacional especializado.
§ 2º A produção e distribuição de recursos educacionais para a acessibilidade incluem livros didáticos e paradidáticos em braile, áudio e Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS, laptops com sintetizador de voz, softwares para comunicação alternativa e outras ajudas técnicas que possibilitam o acesso ao currículo.
§ 3º Os núcleos de acessibilidade nas instituições federais de educação superior visam eliminar barreiras físicas, de comunicação e de informação que restringem a participação e o desenvolvimento acadêmico e social de alunos com deficiência.
As indicações aos sistemas de ensino, previstas no texto da PNEE (2008), bem como a garantia de apoio técnico e financeiro assumida por meio do Decreto nº 6.571/2008, são de fato compatíveis com a mudança na natureza de atendimento educacional que se vislumbra para a consolidação de uma escola efetivamente inclusiva. O que se faz notar é que há um portfólio idealizado para o adequado trabalho a ser desenvolvido pelas escolas comuns. Além de uma equipe multiprofissional, a própria formação inicial e continuada dos docentes precisa ser incrementada (RODRIGUES, 2018). Além disso, demandam-se investimentos robustos na estrutura e infraestrutura das escolas. Por conseguinte, para além de resultados aferíveis em avaliações em larga escala que traduzam, a seu modo, as repercussões dessa política, faz-se importante realçar os estudos que reconhecem avanços na redefinição tanto do espectro do atendimento educacional, quanto das ações didático-pedagógicas voltadas à Educação Especial, em consonância com a renovação qualitativa que esse tema recebeu na legislação educacional.
Com efeito, o trabalho de Carvalho (2013), referindo-se ao contexto de vigência da PNEE (2008), constata que o ordenamento jurídico constitui base sólida para fomentar o cumprimento dos direitos dos estudantes e a eficácia da escola, com eliminação de ambiguidades e contradições que possam postergar ou dificultar esses propósitos.
O trabalho de Trentin (2017) pondera que a referida política vem se manifestando nos documentos que orientam a educação inclusiva nos estados brasileiros de maneiras diversas. No caso da Política de Educação Especial de Santa Catarina (PEE-SC), lócus da pesquisa que subsidiou o estudo da autora, evidencia-se a proposta de efetivação da educação inclusiva, em que “a Educação Especial deixa de ser um sistema paralelo com abordagem assistencialista e passa a ser uma modalidade que perpassa todos os níveis, etapas e modalidades de ensino, sem substituí-los, ofertando os recursos e serviços de acessibilidade aos alunos com deficiência” (p.335). Em essência, o texto da PEE-SC, ao evidenciar a proposta da educação inclusiva, afirma utilizar-se de conceitos e serviços para a educação especial que vão ao encontro da PNEE (2008).
Já os resultados do estudo realizado por Possa e Pieczkowski (2020), sobre os desafios docentes para a atuação no Atendimento Educacional Especializado, concluem que a proposta brasileira de Educação Inclusiva resultou no crescente acesso de estudantes com deficiência às escolas regulares. Decorrente disso, o sistema educacional brasileiro mudou significativamente quanto ao atendimento a esses educandos. Ainda de acordo com as autoras, os avanços no campo da educação inclusiva são evidentes e reconhecidos, e, mesmo que haja a necessidade de tensionar seus paradoxos, é essencial intensificar o processo de inclusão.
Esses qualificados trabalhos já realizados sobre a ênfase temática aqui focalizada corroboram o entendimento de que a PNEE (2008) tem reverberado nas políticas de educação especial desenvolvidas no âmbito dos estados e dos municípios, com repercussões imprescindíveis para o avanço da perspectiva de educação inclusiva.
Em um país com longa história de negação de direitos sociais, como é o caso brasileiro, as conquistas alcançadas em favor dos coletivos feitos desiguais são permanentemente confrontadas (ARROYO, 2010). Os avanços em favor do direito à educação das pessoas com algum tipo de deficiência não passariam ilesos. O fato é que há sempre o risco de reconversão da perspectiva de educação inclusiva, a exemplo do que tem sido observado nos tempos atuais, tema que dedicaremos atenção na próxima seção do texto.
Retrocessos na Política Nacional de Educação Especial
No bojo do golpe de Estado de 31 de agosto de 2016, que depôs injustamente a presidenta Dilma Vana Rousseff, um processo de evidente contramarcha aos direitos sociais e humanos foi desencadeado no país, tornando-se particularmente nefasto ao direito à educação.
Em plena concordância com Orso (2017, p.50),
deixamos claro que só se compreende a educação atual no contexto do ataque “iniciado” em 2016, que plantou Michel Temer no poder, mas que se completa com a sucessão de golpes, expressos na PEC 241/55, que congelou os salários por 20 anos, na Reforma do Ensino Médio, da Previdência, na terceirização, na Reforma Trabalhista e Política, que em seu conjunto, configuram-se como um ataque sem precedente contra a classe trabalhadora.
Em face do foco da abordagem no presente artigo, referimo-nos especificamente à inflexão de rumo da política de educação especial preconizada pelo Decreto nº 10.502/2020, ordenado pelo Presidente Jair Bolsonaro, para instituir a “Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”.
De acordo com o disposto no Art. 6º do Decreto nº 10.502/2020, são diretrizes para a implementação da mais recente Política Nacional de Educação Especial:
I - oferecer atendimento educacional especializado e de qualidade, em classes e escolas regulares inclusivas, classes e escolas especializadas ou classes e escolas bilíngues de surdos a todos que demandarem esse tipo de serviço, para que lhes seja assegurada a inclusão social, cultural, acadêmica e profissional, de forma equitativa e com a possibilidade de aprendizado ao longo da vida;
II - garantir a viabilização da oferta de escolas ou classes bilíngues de surdos aos educandos surdos, surdocegos, com deficiência auditiva, outras deficiências ou altas habilidades e superdotação associadas;
III - garantir, nas escolas ou classes bilíngues de surdos, a Libras como parte do currículo formal em todos os níveis e etapas de ensino e a organização do trabalho pedagógico para o ensino da língua portuguesa na modalidade escrita como segunda língua; e
IV - priorizar a participação do educando e de sua família no processo de decisão sobre os serviços e os recursos do atendimento educacional especializado, considerados o impedimento de longo prazo e as barreiras a serem eliminadas ou minimizadas para que ele tenha as melhores condições de participação na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas.
Fica evidente que essas diretrizes atacam frontalmente a perspectiva de educação inclusiva que foi incorporada ao Decreto nº 6.571/2008 (BRASIL, 2008b), que regulamentou o atendimento educacional especializado, previsto no Art. 60 da LDBEN/1996. É importante relembrar que, com a promulgação deste decreto, as diretrizes para a implementação do atendimento especializado voltavam-se essencialmente para a consecução de condições objetivas no âmbito das escolas comuns que possibilitassem a inclusão das pessoas com deficiência junto aos estudantes ditos sem deficiência. É propriamente essa concepção de inclusão que é atacada por meio do Decreto nº 10.502/2020. Ao enfatizar a (re)instalação de classes e escolas especializadas ou classes e escolas bilíngues de surdos, o Governo da vez explicita seu posicionamento em desfavor da convivência das pessoas com deficiência em escolas comuns.
Além das diretrizes, as formas de oferta da modalidade de educação especial deixam ainda mais transparentes o desejo de apartar os estudantes com deficiência dos demais alunos. De forma prescritiva, no Art. 7º, são considerados serviços e recursos da educação especial:
I - centros de apoio às pessoas com deficiência visual;
II - centros de atendimento educacional especializado aos educandos com deficiência intelectual, mental e transtornos globais do desenvolvimento;
III - centros de atendimento educacional especializado aos educandos com deficiência físico-motora;
IV - centros de atendimento educacional especializado;
V - centros de atividades de altas habilidades e superdotação;
VI - centros de capacitação de profissionais da educação e de atendimento às pessoas com surdez;
VII - classes bilíngues de surdos;
VIII - classes especializadas;
IX - escolas bilíngues de surdos;
X - escolas especializadas;
XI - escolas-polo de atendimento educacional especializado;
XII - materiais didático-pedagógicos adequados e acessíveis ao público-alvo desta Política Nacional de Educação Especial;
XIII - núcleos de acessibilidade;
XIV - salas de recursos;
XV - serviços de atendimento educacional especializado para crianças de zero a três anos;
XVI - serviços de atendimento educacional especializado; e
XVII - tecnologia assistiva.
Parágrafo único. Poderão ser constituídos outros serviços e recursos para atender os educandos da educação especial, ainda que sejam utilizados de forma temporária ou para finalidade específica.
Na verdade, esse conjunto de modalidades de serviços não apenas oficializa a predileção por um atendimento das pessoas com deficiência em escolas ditas especializadas, portanto, excluindo esses estudantes das escolas comuns e, por consequência, da conivência com as pessoas ditas sem deficiência, mas também é possível captar que este decreto institucionaliza a possibilidade de contratação ampliada de serviços da iniciativa privada que, certamente, já dispõe de uma rede escolar compatível com esses tipos de escolas citados no decreto.
Cabe ainda salientar que, dentre as seis ações previstas no Art. 9º para a implementação dessa recém lançada Política Nacional de Educação Especial, destacamos três delas, em face de sua explícita conexão com a perspectiva segregacionista incutida na forma de atendimento especializado que é imposto pelo Decreto:
I - elaboração de estratégias de gestão dos sistemas de ensino para as escolas regulares inclusivas, as escolas especializadas e as escolas bilíngues de surdos, que contemplarão também a orientação sobre o papel da família, do educando, da escola, dos profissionais especializados e da comunidade, e a normatização dos procedimentos de elaboração de material didático especializado;
II - definição de estratégias para a implementação de escolas e classes bilíngues de surdos e o fortalecimento das escolas e classes bilíngues de surdos já existentes;
III - definição de critérios de identificação, acolhimento e acompanhamento dos educandos que não se beneficiam das escolas regulares inclusivas, de modo a proporcionar o atendimento educacional mais adequado, em ambiente o menos restritivo possível, com vistas à inclusão social, acadêmica, cultural e profissional, de forma equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida.
Em que pese essa explícita intenção de impulsionar o oferecimento de serviços de atendimento à pessoa com deficiência em escolas especializadas, o Art. 14 do Decreto nº 10.502/2020 estabelece que, para fins de implementação da Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, “a União poderá prestar aos entes federativos apoio técnico e assistência financeira, na forma a ser definida em instrumento específico de cada programa ou ação”.
Observe-se que, diferentemente da conjugação verbal adotada no Decreto anterior, o texto que anuncia a nova política em questão utiliza a conjugação condicional (poderá), evidenciando o não comprometimento da União com a implementação desta política. Disto se depreende que caberá a cada Município e a cada Estado o provimento da modalidade de educação especial. Trata-se, portanto, de um retrocesso em relação ao que os cidadãos já haviam conquistado nos termos do Decreto de regulamentação do Art. 60 (BRASIL, 2008a).
Este evidente movimento recente de contramarcha na Política de Educação Especial no país foi contundentemente reprovado por respeitáveis órgãos da república, como o Ministério Público, assim como por importantes entidades acadêmico-científicas, como a Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial (ABPEE), a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), a Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial (ABPEE), a Associação Brasileira de Ensino de Biologia (SBENBIO), Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE), a Associação Nacional de História (ANPUH), o Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES), o Fórum Nacional de Diretores de Faculdades (Forumdir), o Centros de Educação ou Equivalentes das Universidades Públicas Brasileiras, o Fórum Nacional dos Coordenadores Institucionais do Parfor/Forparfor, a Associação Brasileira de Alfabetização (ABALF), a Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (Abrapec), a Associação Brasileira de Currículo (ABdC), e a Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM).
O Manifesto assinado conjuntamente por essas entidades inicia sua comunicação de repúdio ao Decreto nº 10.502/2020, denunciando que este, em consonância ao projeto de desmonte do Estado, induz à privatização da educação2. De acordo com este coletivo, “ao retomar o modelo biomédico de deficiência, o documento intensifica processos de segregação e discriminação dos sujeitos da educação especial”. Um fato igualmente grave, uma vez que se refere a uma ruptura com o disposto em lei, é ainda observado pelos estudiosos que subscreveram esta nota de repúdio. Trata-se da solene contradição que o Decreto em questão faz à Constituição Federal de 1988, assim como as seguintes normativas infraconstitucionais: Decreto N.º 6.949, que promulga a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2009); Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996); Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (2015).
Por isso mesmo, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos – AMPID, ao tomar conhecimento da publicação do Decreto no 10.502/2020, expressou, por meio de Nota3, seu veemente repúdio, à luz das normas constitucionais e legais, “pois verifica uma afronta desmedida à Constituição da República, à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e à Lei no 13.146/2015, em flagrante retrocesso às conquistas obtidas em relação ao direito humano à Educação Inclusiva”.
As consistentes considerações iniciais expressas na Nota assinada pela AMPID já seriam suficientes para justificar a constatação de que o Decreto em questão atenta fundamentalmente contra a perspectiva de educação inclusiva, que foi preconizada pela Política de Educação Especial anterior (BRASIL, 2008a). Com efeito, há de se considerar, conforme sintetiza a nota, que a Constituição Federal de 1988 estabelece como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana (Art. 1º, Inciso III) e como um dos seus objetivos fundamentais o de promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação (Art. 3º, Inciso IV), além de expressamente declarar que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (Art. 5º, Caput); que a Constituição da República, no artigo 208 inciso III, prevê a garantia do atendimento educacional especializado às pessoas com deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino (BRASIL, 1988).
A Nota da AMPID ainda incorpora um conjunto considerações inferidas da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto Legislativo no 186/2008 e Decreto nº 6.949/2009), realçando-se garantias contra as mais variadas formas de discriminação que as pessoas são submetidas, por motivo de deficiência, incluindo-se qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, que resultam em impedimento que todo o indivíduo desfrute, “em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, social, civil ou qualquer outro”.
Igualmente relevantes são as considerações respaldadas na Lei nº 13.146/2015, que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), especialmente no tocante ao disposto em seu Art. 27, ao conceber que “a educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida”. Para tanto, a LBI, em seu Art. 28, incumbe ao poder público assegurar o aprimoramento dos sistemas educacionais, visando garantir condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por meio da oferta de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as barreiras e promovam a inclusão plena (Inciso II).
Em face dessas considerações, a nota da AMPID é concluía com a constatação de que
o regulamento interno brasileiro – o Decreto nº 10.502/2020 - viola a proteção aos direitos humanos presentes na Constituição da República e na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência; fere o compromisso internacional assumido pelo Brasil ao assinar a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência que dispõe sobre direitos humanos; violenta o sistema jurídico brasileiro no qual a referida Convenção está incorporada com o status de norma constitucional que obriga e estabelece o sistema de ensino inclusivo em todos os níveis, único modelo que atende aos princípios e disposições nela contidos, corroborando com o que está disposto em nossa Carta Magna.
Significa dizer que o Decreto no 10.502/2020 deve ser declarado inconstitucional e expurgado da legislação brasileira, com a maior urgência possível.
Esse é também o entendimento que se infere da Nota publicada pela Executiva Nacional de Estudantes de Pedagogia (ExNEPe), para fins de também manifestar seu repúdio ao Decreto nº 10.502/2020. Para a ExNEPe, “a nova política é um ataque ao direito à Educação Inclusiva, conquistado com muita luta ao longo dos últimos anos, pois incentiva a segregação de estudantes com deficiência e torna possível a recusa das escolas em aceitar alunos com deficiência”4.
O fato é que o cerne dessas importantes Notas publicadas em repúdio ao Decreto nº 10.502/2020 dá o tom do quanto a mais recente Política de Educação Especial constitui-se contramarcha ao enfrentamento das desigualdades educacionais no país. De forma explícita, o atual Governo Federal (2019-) faz opção por induzir um retrocesso abominável na forma de atendimento especializado ao público aqui focalizado, deixando evidente o pretenso afastamento do Poder Público de suas obrigações quanto ao provimento das condições objetivas para a efetivação da educação na perspectiva inclusiva, mas também, e de forma conjugada, abre espaço para atuação da iniciativa privada, que passa ofertar um portfólio de serviços a serem prestados aos sistemas de ensino. Esta parece ser a razão principal da inflexão constatada na lógica da política em questão: colocar em marcha o processo de privatização do atendimento especializado por meio da atual política de educação especial.
Considerações finais
Na LDBEN sancionada em 1996, um dos capítulos foi reservado à educação especial, fazendo constar em lei tanto o acolhimento das pessoas com deficiência, preferencialmente, em salas comuns, quanto a previsão de atendimento especializado dessas pessoas apenas para os casos com justificada necessidade, ainda assim, sendo recomendado que este atendimento aconteça sempre que possível também em ambientes escolares comuns aos demais estudantes.
Em sintonia com esse texto legal, uma importante contribuição acadêmico-científica foi oferecida ao Ministério da Educação, em 2008, tendo sido formulada por importantes pesquisadores em Educação Especial, evidenciando a acepção de inclusão como elemento central a ser assumido na Política Educacional, incluindo-se, ineditamente, o atendimento às pessoas com Transtornos Globais do Desenvolvimento.
Com efeito, a incorporação da perspectiva inclusiva como diretriz da Política Nacional de Educação Especial no segundo Governo Lula (207-2010) constitui um avanço imprescindível no enfrentamento de desigualdades educacionais, à medida que esse pleito historicamente defendido pelas forças progressistas no país foi textualizado na Lei da Educação, reverberando, por conseguinte, no conjunto normativo que orienta a organização da modalidade de educação especial nos sistemas de ensino em todo o território nacional.
No presente artigo, identificamos a mudança de perspectiva que o Governo Bolsonaro impôs à política de educação especial como um evidente retrocesso às conquistas que paulatinamente começavam a ganhar concretude no âmbito das escolas. De forma objetiva, este Governo busca impor a perspectiva segregacionista em contraposição à perspectiva inclusiva que vinha se consolidando como princípio basilar para a oferta dessa modalidade de ensino até o Governo Dilma Rousseff.
Em face dessa contramarcha engrenada pelo Governo da vez, consideramos imprescindível defender o que já foi conquistado ao longo dos 25 anos de vigência da LDBEN/1996, cabendo destacar a instituição da perspectiva inclusiva como um princípio orientador das práticas que se desenvolvem nos ambientes educacionais, mas, sobretudo, como um postulado legal a ser cumprido.
Afinal, ainda que as leis não bastem, nem delas nasçam os lírios, é preciso concebê-las de fato como instrumentos relevantes para a reflexão na política educacional, sobretudo para fazer valer os avanços alcançados formalmente, quando da utilização destes como ferramentas imprescindíveis à consolidação do direito a uma educação inclusiva.
Referências
ARROYO, Miguel González. Políticas educacionais e desigualdades: à procura de novos significados. Revista Educação e Sociedade, v.31, n.113, p. 1381-1416, out./dez. 2010.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Dispõe sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23/12/1996.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Presidência da República. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
BRASIL. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília/DF: MEC/SECADI, 2008a. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/politicaeducespecial.pdf
BRASIL. Decreto nº 6.571/2008. Dispõe sobre o atendimento educacional especializado. Diário Oficial da União - Seção 1 - 18/9/2008, Página 26. 2008b. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2008/decreto-6571-17-setembro-2008-580775-publicacaooriginal-103645-pe.html
BRASIL. LEI Nº 12.796/2013. Dispõe sobre a formação dos profissionais da educação e dar outras providências. 2013. Diário Oficial da União - Seção 1 - 5/4/2013, Página 1. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2013/lei-12796-4-abril-2013-775628-publicacaooriginal-139375-pl.html
BRASIL. Decreto nº 10.502/2020. Institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. Presidência da República, 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10502.htm
BRASIL. Lei nº 13.632/2018. Dispõe sobre educação e aprendizagem ao longo da vida. 2018. Diário Oficial da União - Seção 1 - 7/3/2018, Página 1. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2018/lei-13632-6-marco-2018-786231-publicacaooriginal-154957-pl.html
BRASIL. Lei nº 13.234/2015. Dispõe sobre a identificação, o cadastramento e o atendimento, na educação básica e na educação superior, de alunos com altas habilidades ou superdotação. 2015. Diário Oficial da União - Seção 1 - 30/12/2015, Página 1. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2015/lei-13234-29-dezembro-2015-782192-publicacaooriginal-149105-pl.html
CARNEIRO, Waldeck. Prefácio. In: NAJJAR, Jorge; VASCONCELOS, Maria Celi (Orgs.). A LDB e as Políticas Educacionais: perspectivas, possibilidades e desafios 20 anos depois. Curitiba: Appris, 2018, p.7-9.
CARVALHO, Erenice Natália Soares de. Educação especial e inclusiva no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Educação Especial, v. 26, n. 46, maio/ago. 2013. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/educacaoespecial/article/view/4662
FIGUEIREDO, Rita Vieira; ROCHA, Silvia Roberta da Mota; POULIN, Jean Robert. Contribuição da inclusão digital na afirmação de sujeitos com deficiência intelectual. Revista Diálogo Educacional, v. 19, p. 809-825, 2019.
GATTIBONI, Bruna Dalcin. A Institucionalização do atendimento educacional especializado (AEE) em um município da região central do estado do Rio Grande do Sul. (Dissertação Mestrado). Universidade Federal de Santa Maria – RS. 2017, 149p.
LANUTI, José Eduardo de Oliveira Evangelista; MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Ressignificar o ensino e a aprendizagem a partir da Filosofia da Diferença. Polyphonia. Revista de Educación Inclusiva (Publicación científica del Centro de Estudios. Latinoamericanos de Educación Inclusiva de Chile), v. 2, p. 119-129, 2018.
MANTOAN, Maria Teresa Eglér. E. Inclusão, diferença e deficiência: sentidos, deslocamentos, proposições. Inclusão Social (ONLINE), v. 10, p. 37-46, 2017. Disponível em: http://revista.ibict.br/inclusao/article/view/4030
ORSO, Paulino José. A educação em tempos de golpe, ou como avançar andando para trás. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 9, n. 1, p. 50-71, abr. 2017. Disponível em: file:///C:/Users/Edson%20Andrade/Downloads/21735-76394-1-PB.pdf
POSSA, Joce Daiane Borilli; PIECZKOWSKI, Tania Mara Zancanaro. Desafios docentes para a atuação no Atendimento Educacional Especializado. Revista Educação Especial, v. 33, 2020. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/educacaoespecial/article/view/36231/pdf
RAMOS, Denise Marina. Educação de surdos: estudo bibliométrico de teses e dissertações (2010-2014). (Tese de doutorado). 2017. Universidade Federal de São Carlos.
RODRIGUES, Marlene. Formação Docente para Inclusão de Estudantes Público Alvo da Educação Especial em Cursos de Licenciatura da Universidade Federal de Rondônia. 2018. 341 f. Tese (Doutorado em Educação Escolar) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Araraquara, SP, 2018.
SAVIANI, Dermeval. A lei da educação: trajetória, limites e perspectivas. Campinas: Autores Associados, 2016.
VIEIRA, Sofia Lerche. Desejos de reforma: legislação educacional no Brasil Império e República. Brasília, Líber Livro, 2008.
ZOIA, Elvenice Tatiana; PASQUALOTTO, Lucyelle Cristina; COSSETIN, Márcia. Educação infantil: em defesa de uma formação humanizadora em tempos de lutas e resistências. Uberlândia: Navegando Publicações, 2019.
This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)
Notas
1 O Grupo de Trabalho foi constituído por pesquisadores com reconhecido conhecimento acadêmico-científico sobre Educação Especial no país. Ver Portaria do MEC n. 555/2007, prorrogada pela Portaria no 948/2007. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/politicaeducespecial.pdf
2 Disponível em: https://anped.org.br/sites/default/files/images/nota_repudio_anped_abnpee_ee_decreto_n.o_10.502_final.docx.pdf
3 Disponível em: https://ampid.org.br/site2020/wp-content/uploads/2020/10/NotaRepudio_Decreto-10502_2020_educacaoInclusiva.pdf
4 Acessível em: https://exnepe.org/2020/10/08/nota-de-repudio-ao-decreto-no-10-502-2020/