Mulheres, mães, educadoras: notas sobre (im)possibilidades na transmissão do cuidado

Womans, mothers, educators: notes about (im)possibilities in the transmission of care

 

 

Kellen Evaldt Arrosi

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

kellenevaldtarrosi@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-9889-5807

 

Andrea Gabriela Ferrari

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil ferrari.ag@hotmail.com - https://orcid.org/0000-0002-4262-3033

 

Milena da Rosa Silva

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil milenarsilva@hotmail.com - https://orcid.org/0000-0003-1063-4149

 

 

Recebido em 25 de setembro de 2020

Aprovado em 14 de maio de 2021

Publicado em 29 de junho de 2022                                                                       

 

RESUMO

Este artigo parte de uma experiência de acompanhamento em Escolas de Educação Infantil com a Metodologia IRDI, tendo como orientação teórica a psicanálise.  Além do olhar direcionado aos bebês no contexto da pesquisa-intervenção, voltou-se a atenção, por meio da escuta e de observações, para as educadoras. Propõe-se, neste escrito, trazer à tona questões perpassadas por aspectos sócio-histórico-culturais que parecem refletir no fazer cotidiano dessas mulheres e nas suas possibilidades de transmissão do cuidado às crianças. Para a composição do trabalho, foram utilizadas vinhetas retiradas dos diários clínicos de duas pesquisadoras que acompanharam semanalmente uma turma de berçário 1 durante 7 meses. Na análise dos dados, fez-se presente uma dificuldade das educadoras em entregarem-se corporalmente aos cuidados dos bebês. A partir de trabalhos que apontam para um apagamento histórico da relevância das amas-de-leite e das babás na formação subjetiva da sociedade brasileira, propõe-se uma transposição dessa situação às profissionais da educação infantil, também encarregadas do cuidado primordial de crianças das quais não são mães. Tal apagamento funcionaria como um barramento realizado pelas famílias e pela cultura diante da possibilidade da construção de intimidade entre o bebê e a educadora e das trocas corporais entre a dupla. Além disso, são analisados efeitos de intervenções que promoveram um reconhecimento da função e da importância das profissionais. Dessa maneira, reflete-se sobre a função do reconhecimento como forma de cuidado no âmbito do trabalho na educação infantil e em um aspecto macro, levando em conta marcadores sociais, como aqueles de gênero e de raça.

Palavras-chave: Educadoras; Educação Infantil; Psicanálise.

 

ABSTRACT

This article is part of a follow-up experience in Early Childhood Schools using the IRDI Methodology, with psychoanalisis as its theoretical orientation. In addition to looking at babies in the context of the research-intervention, the attention, through listening and observing, was drawn to educators. This writing proposes to bring up issues permeated by the socio-historical-cultural aspects that seem to reflect on the daily activities of these women and on their possibilities of transmitting care to children. For the composition of this work, it was used vignettes taken from the clinical diaries of two researchers who followed a class of nursery 1 weekly for 7 months. In the data analysis, it was found a difficulty of the educators in giving themselves bodily to the care of babies. Based on works that point to a historical erasure of the relevance of wet nurses and nannies in the subjective formation of Brazilian society, it is proposed to transpose this situation to professionals in early childhood education, also responsible for the primary care of children of whom they are not the mothers. Such erasure would act as a barrier carried out by families and culture in view of the possibility of building intimacy between the baby and the educator and of bodily exchanges between the pair. In addition, the effects of interventions that promote recognition of the role and importance of these professionals are analyzed. Thus, it reflects on the role of recognition as a form of care, both in the field of work in early childhood education and in a macro aspect, taking into account social markers, such as those of gender and race.

Keywords: Educators; Child education; Psychoanalysis.

 

Introdução

A psicanálise, enquanto teoria e técnica, vem paulatinamente se inserindo nos mais variados contextos de atuação, não sendo mais sua aplicação exclusiva ao setting analítico tradicional. Como apontam Kupfer e Bernardino (2018), a partir de seus instrumentos de difusão, a psicanálise é capaz de adentrar na pólis e, dessa maneira, atingir outros profissionais e a cultura como um todo. Torna-se possível, assim, realizar leituras dos fenômenos encontrados à luz de uma teoria que irá considerar o sujeito como dividido, levando em conta a dimensão inconsciente da subjetividade humana. Um potente contexto de inserção e de intervenção com a psicanálise tem sido o da Educação Infantil.

Contemporaneamente, entende-se a escola de Educação Infantil como um importante espaço para o desenvolvimento de uma criança, haja vista o processo de urbanização e as mudanças nas relações de trabalho que fazem com que os pais busquem, cada vez mais, espaços alternativos de cuidado para os seus filhos (RAPOPORT E PICCININI, 2004). Levando em conta tal situação e pensando o espaço da creche como local de prevenção e promoção de saúde mental na infância surge a pesquisa “O impacto da Metodologia IRDI na prevenção de risco psíquico em crianças que frequentam creche no seu primeiro ano e meio de vida1 (FERRARI, SILVA E CARDOSO, 2014), inspirada nas produções de Kupfer (2007) e de Bernardino e Mariotto (2009). A Metodologia IRDI (KUPFER ET AL., 2009) tem como base o Instrumento IRDI (Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil), o qual consiste em 31 indicadores criados inicialmente para serem observados na relação mãe-bebê. Percebeu-se, posteriormente, a potencialidade de eles serem utilizados também no contexto da Educação Infantil. Dessa forma, os IRDI passaram a ser observados também na relação entre a educadora e o bebê. Tais indicadores apontam para uma constituição subjetiva em andamento, sendo a presença deles sinal de saúde e podendo a ausência apontar para indícios de sofrimento psíquico.

Fundamentados na teoria psicanalítica, os indicadores foram divididos em quatro eixos que apontam para um caminho rumo à constituição psíquica. A Suposição de Sujeito diz respeito a uma antecipação realizada pelo cuidador da presença de um sujeito psíquico no bebê, ainda não constituído, que permitirá justamente tal constituição; o Estabelecimento da Demanda engloba a interpretação pelo cuidador dos gestos do bebê como um pedido endereçado a ele, interpretando assim a própria demanda como sendo do bebê, que passa a responder a isso; o eixo Alternância presença-ausência refere-se às descontinuidades na satisfação do bebê e na presença do cuidador principal, que vão permitir a substituição da presença real do objeto por sua representação simbólica; o eixo Função Paterna diz respeito à entrada de uma “terceira instância” nas relações desse bebê, o que estabelece certos parâmetros e opera na relação bebê-cuidador uma separação fundamental para a constituição de uma noção de Eu separado do outro (KUPFER ET AL., 2009).

Ao longo da experiência com o IRDI, percebeu-se a sua potência para além da observação dos indicadores. Tal dispositivo serve como guia de leitura dos bebês, sinalizando possíveis desconexões entre o bebê e seus cuidadores primordiais (KUPFER E BERNARDINO, 2018). Instaura-se, assim, a possibilidade de intervenções a tempo da retomada de um percurso constitutivo. Com o foco em um olhar clínico, tendo o IRDI como pano de fundo e inseridas em um projeto de pesquisa-intervenção vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), iniciamos um trabalho em Escolas de Educação Infantil. A proposta foi a de realizar acompanhamentos semanais nas turmas de berçário, onde uma dupla de pesquisadores permanecia durante um turno compondo a rotina em sala de aula junto das educadoras e dos bebês. Assim como Ferrari, Fernandes, Silva e Scapinello (2017, p. 20),

propusemos uma intervenção em serviço, onde nossa presença em ato poderia servir de apoio ao fazer cotidiano do educador. Nesse sentido, brincávamos com os bebês e conversávamos com as educadoras sobre as crianças.

Tal experiência de composição conjunta em sala de aula fez com que nossa atenção também se voltasse para as profissionais da Educação Infantil, as quais possuem uma função fundamental no processo de constituição psíquica dos sujeitos em formação. É relevante enfatizar, aqui, a marcação de gênero e também de raça dessas profissionais. Na nossa experiência de trabalho em uma das Escolas de Educação Infantil acompanhadas pelo projeto de pesquisa-intervenção, nos deparamos com uma totalidade de educadoras mulheres e, em sua maioria, negras, incluindo as duas educadoras da turma de berçário acompanhada e sobre a qual construímos este escrito. Destacamos aqui que essas marcações foram realizadas por heterodeclaração das pesquisadoras. Pensamos existir, portanto, atravessamentos importantes que trazem à tona questões perpassadas por aspectos sócio-histórico-culturais no fazer cotidiano dessas mulheres, bem como na transferência de trabalho conosco, mulheres brancas pertencentes a classes e a realidades sociais diferentes das delas.

Lélia Gonzalez (1984, p. 226), em “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, diferencia consciência de memória, colocando que:

Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que memória inclui.

A autora ainda aponta para os tropeços que a memória causa na consciência, dando seu jeito de fazer-se presente, apesar da consciência fazer de tudo para que a história da população negra seja esquecida, tirada de cena (GONZALEZ, 1984). Os atravessamentos que discutiremos neste escrito visam resgatar uma memória delegada ao apagamento.

Também pudemos refletir, a partir de tais atravessamentos, sobre as diferenças entre as nossas expectativas em relação ao cuidado dos bebês e as possibilidades de transmissão desse cuidado pelas educadoras. Segundo Figueiredo (2009), para que a transmissão do cuidado seja realizada de forma criativa e eficaz, é necessário que quem exerce a função de cuidar tenha introjetado criativamente as funções cuidadoras a partir das próprias referências de cuidado. Porém, o que percebemos foram, por vezes, exatamente situações de falta de um olhar cuidadoso para as educadoras dentro da Escola de Educação Infantil acompanhada. Como, então, podem essas mulheres sustentarem suas funções sem ter a efetiva consolidação de um amparo seguro para elas próprias?

Partimos da experiência em uma turma de berçário 1 e da relação estabelecida com as educadoras para pensar o que pode estar por trás dos impasses entre as nossas intervenções e o modo como elas eram recebidas pelas profissionais. Pretendemos colocar em cena e refletir acerca de aspectos que passam por um não dito e que parecem apontar para além do encontro entre bebê e educadora. Pensamos que tais aspectos, assim como o conceito de memória referido por Lélia Gonzalez (1984), insistem em fazer marca e, desse modo, repercutir no trabalho realizado dentro da Escola de Educação Infantil.

 

Metodologia

Ao compor o fazer cotidiano das educadoras em sala de aula, percebemos que nossas intervenções nem sempre eram bem aceitas por aquelas mulheres que se ocupavam do cuidado diário de várias crianças. Faziam-se presentes, dessa maneira, impasses entre o nosso saber, advindo de um lugar técnico-científico (enquanto pertencentes ao campo universitário), de mulheres brancas e com condições econômicas mais favorecidas, e o saber das educadoras, inseridas diretamente na comunidade onde a escola se localizava e detentoras de um conhecimento advindo do envolvimento constante com os bebês. Diniz (2011) coloca que o método clínico de pesquisa inclui os valores e posições subjetivas daqueles envolvidos no processo, considerando a verdade científica como sendo sempre parcial e não toda. Partindo de tal pressuposto, desde o início do trabalho tivemos a preocupação de nos situarmos em uma posição de horizontalidade em relação às educadoras, resistindo ao exercício de um poder que pudesse colocar de modo impositivo formas consideradas “mais adequadas” de cuidado, e de sustentar uma posição de abertura para o novo. Como já apontava Freud (1923/2010, p. 164), “a extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos anímicos e a riqueza de fatores determinantes resistem à mecanização da técnica”. Dessa maneira, ele coloca recomendações, e não regras, para aqueles interessados no exercício da psicanálise, fundando uma ética aberta para o imprevisível da experiência humana.

As visitas na escola aconteceram semanalmente, durante um turno, por 7 meses, totalizando aproximadamente 90 horas de acompanhamento. Duas pesquisadoras ficavam no berçário 1 e outros dois pesquisadores no berçário 2. As educadoras e os responsáveis pelos bebês assinaram Termos de Consentimento Livre e Esclarecido concordando com a participação na pesquisa-intervenção. O acompanhamento incluía, tendo a Metodologia IRDI como pano de fundo e guia do olhar, a observação das potencialidades e eventuais dificuldades constitutivas dos bebês, na criação de vínculos e no relacionamento com o outro; e intervenções em ato (como dar voz a um bebê que ainda não fala, lançar uma pergunta às educadoras diante das práticas e servir de modelo especular através do brincar).

Consideramos importante também marcar, durante todo o período de visitas à escola, a importância do fazer das educadoras para o desenvolvimento das crianças, bem como o nosso intuito de aprendermos juntas acerca dos cuidados com os bebês, em uma construção conjunta do conhecimento. Tais ponderações foram baseadas no entendimento de que “o desafio científico da pesquisa clínica é o trabalho que consente com a exposição e a interrogação do/a pesquisador/a na produção de um conhecimento” (DINIZ, 2011, p. 14). Para que tais interrogações fossem possíveis, contávamos com as reuniões semanais junto de todo o grupo de pesquisa, espaço de discussão sobre as reverberações da nossa prática nas escolas.

Além do sistemático espaço de interlocução, lançamos mão do diário clínico, dispositivo trabalhado por Silva, Oliveira e Ferrari (no prelo) como forma de registro da nossa experiência. Nesse diário, para além de um relato descritivo das cenas vivenciadas durante os turnos de acompanhamento nas escolas, faziam-se presentes percepções pessoais das pesquisadoras. Desse modo, era possível colocar em palavras e promover a elaboração dos acontecimentos e afetos sentidos em um primeiro tempo, o qual chamamos de tempo da experiência (SILVA ET AL., no prelo). O material e as vinhetas utilizadas neste trabalho foram retirados de uma releitura minuciosa dos diários clínicos, os quais foram produzidos por uma das autoras deste escrito.

 

Apagamento impossibilitador

A questão de dar colo para os bebês foi um dos temas centrais de impasse entre o nosso saber, enquanto pesquisadoras, e o saber das educadoras. Entendemos que o espaço da creche precisa também ser um lugar de aconchego, principalmente quando nos referimos a bebês tão pequenos como os pertencentes às turmas de berçário 1. Faz-se necessária, portanto, uma transição entre um colo onipresente e a possibilidade de a criança realizar explorações por si só. Para que isso ocorra, é importante que exista um investimento da educadora em relação ao bebê através de uma capacidade genuína de preocupar-se, tolerando que o seu corpo seja utilizado a fim de possibilitar ao bebê o início de uma existência (PUCCINELLI, 2018). Porém, em muitas ocasiões, as educadoras da turma acompanhada liam os pedidos dos bebês por colo, realizados através do choro, como “manha”:

Quando entramos, William2 começou a chorar, e as educadoras disseram que era manha, que ele sempre faz isso quando alguma pessoa diferente entra na sala. Disseram também que na casa dele o piso é de chão batido, por isso ele fica sempre no colo. Pensei: então não é por manha, ele apenas não está acostumado a ficar no chão, e essa transição não precisa ser radical. Parece que elas agem como se o pecado capital do bebê fosse querer colo, como se fosse um abuso por parte dele ao adulto (Diário clínico).

Apesar das educadoras conseguirem, na cena descrita pela vinheta, fazer a leitura de uma singularidade que possa ser a razão dos apelos por colo de William, elas pareciam estar impossibilitadas de agirem de modo a atenderem as necessidades individuais do bebê. Pensamos que ter um olhar singular para cada criança demanda uma presença e uma disponibilidade diferenciada. Presença e disponibilidade que não são as mesmas daquelas exigidas ao se cumprir tarefas mais organizacionais e burocráticas (que pareciam, por vezes, servir como uma “fuga” das educadoras às demandas dos bebês) e ao seguir normas já pré-estabelecidas, o que dificultava que nossas intervenções pudessem produzir um furo no discurso e questionamentos acerca de suas práticas.

Lúcia (educadora) disse que havia esquecido de nos avisar que a Joana também gosta muito de colo [...] e que se dá muito colo pra Joana, depois ela própria (Lúcia) quer fugir pela janela. Logo que ela falou isso, não tirei a bebê do meu colo; alguns minutos depois, entretanto, eu tirei, não querendo causar dificuldades futuras para a professora (Diário clínico).

Por onde passa essa dificuldade em disponibilizar-se corporalmente aos bebês que faz com que Lúcia tenha vontade de “fugir pela janela”? Sabemos que a exposição diária ao choro e demais demandas das crianças são realmente muito difíceis de serem suportadas e extremamente cansativas. Vieira e Oliveira (2013) apontam, além da desvalorização social da função de cuidar de crianças pequenas, a precarização (atribuição de novas funções sem capacitações para tal ou emprego de pessoas sem a formação requerida para substituir professores) e a intensificação do trabalho (sobrecarga pela necessidade de realização de tarefas fora da jornada oficial de trabalho e baixa remuneração, exigindo a complementação salarial por outras vias) nas escolas infantis. Não pretendemos, aqui, relativizar os impasses reais do trabalho no contexto da Educação Infantil. Porém, acreditamos não se tratar apenas de não querer pegar os bebês no colo, mas sim de inscrições subjetivas que acabam por impossibilitar às educadoras autorizarem-se a um cuidado que passa, predominantemente, pela via do corpo.

Rita Segato (2006), em seu trabalho “O édipo brasileiro: a dupla negação de gênero e raça”, retoma a questão da maternidade transferida (COSTA, 2002) presente ao longo do percurso histórico do nosso país. A autora aponta o profundo apagamento das amas-de-leite (mães pretas) e, posteriormente, das babás nas produções acadêmicas brasileiras, tema que se configura como de extrema importância para análises psíquicas e sociológicas do Brasil. Isso porque, como já colocava Lélia Gonzalez (1984), a função materna era realizada, no período de escravização, pela mãe preta (estando a branca encarregada apenas de parir o filho do senhor). “E quando a gente fala em função materna, a gente tá dizendo que a mãe preta, a exercê-la, passou todos os valores que lhe diziam respeito prá criança brasileira [...]. Essa criança, esse infans, é a dita cultura brasileira, cuja língua é o pretuguês” (GONZALEZ, 1984, p. 235). Dessa forma, era a mulher negra a responsável pela inserção do infans na linguagem e, consequentemente, no campo cultural.

 Mas não é apenas dessas produções que a maternagem realizada por mulheres que não as mães biológicas foi apagada. Um trabalho que analisou as transformações ocorridas em fotografias de crianças com suas babás ao longo do tempo (DEIAB, 2005) mostrou que de figuras principais as babás passaram a aparecer nos retratos através de rastros de seus corpos (sendo utilizadas apenas para acalmar o bebê no momento da fotografia), até desaparecerem completamente. Esse movimento encontra ressonância na conhecida frase “mãe tem uma só”, que se articula às práticas higienistas da época: fazer com que os bebês deixassem de ser amamentados por mulheres negras (SEGATO, 2006). Partindo de tais análises, Segato (2006) denuncia o encobrimento histórico do papel de maternagem exercido pela babá, bem como de sua raça. Com isso, a autora coloca que o sujeito acaba deixando para trás o reconhecimento das marcas constitutivas estabelecidas pela relação com essas mulheres em sua trajetória.

É evidente que, em sua emergência, o sujeito, qualquer que seja sua cor, deve deixar para trás, num movimento único, a mãe com sua negritude. Seja esta negritude a atual, ou a da genealogia de escravidão que ainda ecoa por trás do colo alugado do presente. O fato de que a mãe se encontra impregnada por esta genealogia que vai do seio escravo do passado ao colo alugado de hoje, faz com que essa perda não possa ser somente rasurada no discurso como recalque. A supressão deve ser nada mais e nada menos que desconhecimento. A ausência mesma de conhecimento do destino terrível que é a marca da mãe é a táctica de alienação e o refúgio do sujeito frente à possibilidade de tornar-se herdeiro dessa história (SEGATO, 2006, n. p.).

Grada Kilomba (2019) coloca que durante o colonialismo os corpos das mulheres negras foram usados como mamadouros de crianças brancas. A autora situa uma relação histórica importante entre negritude e maternidade, o que teria acabado por confinar “mulheres negras à função de serventes maternais, justificando sua subordinação e exploração econômica” (KILOMBA, 2019, p. 142). São inúmeras as marcas e inscrições psíquicas que o negro no Brasil carrega em decorrência do processo de escravização e de suas consequências socioculturais. Ele vive “um processo de destituição do seu lugar ou de suas conquistas, pois o olhar do branco nunca o vê como merecedor e não reconhece como legítimas suas possibilidades e conquistas” (NOGUEIRA, 2017, p. 125). No caso das amas-de-leite e das babás, o que se destitui é a relevância e a influência dos seus papéis nos processos de subjetivação daqueles de quem cuidam.

É possível conjecturar, considerando o lugar de desvalorização ocupado por aquelas para quem o cuidado é transferido, acerca de uma transposição do lugar da babá para o lugar da educadora infantil. Conforme o Anuário Brasileiro da Educação Básica de 2019, 97% dos docentes que atuavam na Educação Infantil em 2018 eram mulheres; no ensino fundamental, 89% (anos iniciais) e 68% (anos finais); e, no ensino médio, 59% (ANUÁRIO, 2019). Esses dados evidenciam que, quanto mais elementar a etapa de ensino, maior é a presença feminina na composição do corpo docente.

Trabalhando questões referentes à identidade profissional das professoras da Educação Infantil, Silva (2006) marca um forte atravessamento de gênero. O autor coloca que a forma como o exercício de tal profissão encontra-se historicamente imbricado com os papéis sociais desempenhados por mulheres no âmbito privado e familiar “resulta numa profissão feminizada/sexualizada, de pouco valor social e econômico, definida pela ‘vocação natural’ que as mulheres possuem de educar e cuidar das crianças, e que, portanto, não requer valorização, tampouco organização política” (SILVA, 2006, p. 22). As atividades realizadas no contexto da educação infantil ainda são vistas como aquelas que necessitam de pouca qualificação e que reproduzem o cotidiano e o trabalho doméstico (KRAMER, 2008). Nesse sentido, as condições para analisar criticamente a subalternidade de gênero são ampliadas se considerarmos a categoria de gênero como constitutiva da docência na Educação Infantil (BATISTA E ROCHA, 2018).

Martins, Araujo e Vieira (2019) apontam para a falta de delimitação entre as atividades de mulher, mãe e professora no contexto da Educação Infantil. Essa situação acaba gerando um desprestígio social em razão das educadoras serem frequentemente remetidas à figura da babá e às atividades de cuidado, deixando de fora a dimensão educativa de suas atividades laborais (MARTINS, ARAUJO E VIEIRA, 2019). O fazer dessas profissionais, segundo Batista e Rocha (2018, p. 99), aproxima-se das “práticas brincantes, afetivas, emocionais, corporais, festivas e de cuidado”, além das educadoras estarem imersas em um ambiente majoritariamente feminino, o que revela a indissociabilidade entre as dimensões constitutivas da docência e as da maternagem e do trabalho doméstico (BATISTA E ROCHA, 2018). Considerando tais aspectos, podemos traçar paralelos entre o fazer da babá e o papel da educadora, ambas encarregadas do cuidado primordial de crianças das quais não são mães.

A vinculação do trabalho desenvolvido pelas profissionais da Educação Infantil com os papéis sociais ocupados historicamente por mulheres no âmbito doméstico e familiar acaba descaracterizando suas atividades como um trabalho, uma vez que essas atividades são associadas à suposta “vocação natural” das mulheres para o cuidado de crianças pequenas (SILVA, 2006). Tem-se, portanto, a ideia de que para ser educadora infantil basta ser mulher, colocando tal ocupação em um lugar de desqualificação e desvalorização. Para Kramer (2008, p. 125), “a ideologia aí presente camufla as precárias condições de trabalho, esvazia o conteúdo profissional da carreira, desmobiliza os profissionais quanto às reivindicações salariais e não os leva a perceber o poder da profissão”.

Somando-se à situação de desvalorização do trabalho de mulheres que cuidam de crianças com as quais são possuem vínculo consanguíneo, Segato (2006), em seu escrito, aponta que a mãe biológica acaba por assumir a função de barrar a intimidade entre a babá e a criança, negando o investimento materno por parte da babá, substituindo, dessa forma, “a clave do afeto pela clave do contrato” (SEGATO, 2006, n. p.). Kilomba (2019) aborda de forma semelhante as relações entre negritude e maternidade, colocando que as mulheres negras foram sexualmente exploradas para criar filhas/os durante o período de escravização. Tal fato teria criado fantasias, relacionadas às memórias coloniais, da mulher negra roubando crianças brancas, “um medo que pode estar ligado à imagem inconsciente das mulheres negras como mães ideais” (KILOMBA, 2019, p. 142). Nos escritos das duas autoras, encontramos resistências à atuação de mulheres que não são as mães biológicas no exercício do cuidado de crianças pequenas.

Alguns trabalhos vêm demonstrando o modo como as tarefas rotineiras em sala de aula acabam tomando em demasia a atenção das educadoras no contexto da Educação Infantil (FLACH E SORDI, 2007; MORILLO E FONSECA, 2015; CAVAGGIONI, OLIVEIRA E BENINCASA, 2018; MARTINS, ARAUJO E VIEIRA, 2019). Podemos pensar acerca do barramento evidenciado por Segato (2006) exercer influência no apego das educadoras pelas regras fixas, o qual favorece um cuidado homogeneizado dos bebês (como a troca de fraldas de cada criança ser realizada em sequência e o horário de sono ter de ser o mesmo para todos) e que reafirma o cuidado por um viés de contrato entre o serviço prestado pela educadora e a escola com a qual ela está vinculada. Puccinelli (2018) coloca que dada a precocidade da entrada de alguns bebês na creche, justifica-se a adaptação quase total das educadoras e das rotinas ao ritmo natural de cada criança. Porém, a prática de um cuidado singular exige uma relação de intimidade, e a intimidade bebê-babá/educadora parece encontrar-se, por sua vez, histórica e culturalmente barrada. Resta, portanto, o apego às normas e aos procedimentos burocratizados que reafirmam o contrato em detrimento do afeto no contexto em questão.

São nas falas das próprias educadoras, também mães de crianças que frequentam a mesma creche, que é possível encontrar elementos para pensar em uma demarcação que delineiam limites entre o fazer da mãe e o fazer dessas profissionais. A vinheta que se segue apresenta uma situação vivenciada em uma roda de conversa realizada entre nós e as educadoras fora do horário habitual de acompanhamento:

Lúcia (educadora) pareceu bastante apropriada do seu saber, falando várias coisas para nós em tom de explicação. [...] Isso me pareceu mais forte em certo momento em que surgiu, entre as educadoras, a questão de ser certo ou errado deixar que os bebês as chamem de mãe. Lúcia disse que não gosta disso, e que, sempre que é chamada de mãe, diz aos bebês que é a profe, não a mãe. Explica que o motivo de não gostar é que ela própria se sentiria mal caso soubesse que seu filho chamou a educadora da sua sala de mãe. Alice e Cíntia (educadoras) concordaram, mas Gisele (também educadora) disse que não se importa, talvez por ainda não ser mãe e ter muito desejo de ter filhos (Diário clínico).

Aparece, aqui, o incômodo que seria sentido pelas educadoras, enquanto mães, caso seus filhos reconhecessem outra mulher como capaz do exercício dessa função. Corrêa (2007), analisando as produções de alguns autores sobre as babás e suas circulações no âmbito familiar, encontra um ponto em comum: elas são consideradas “perigos do exterior (de fora pra dentro, da rua para a casa, do público para o privado) que põem em risco as relações familiares existentes” (p. 86). De forma semelhante, Pesaro (2014) coloca que pode ser difícil para a educadora implicar-se no papel de cuidado, já que ele implica em uma proximidade com o bebê que, por vezes, é considerada como ameaça ao papel materno. Tais ideias encontram ressonância nos estudos anteriormente referidos de Segato (2006), que coloca o contrato, em vez do afeto, como mediador da relação babá-bebê, e de Kilomba (2019), que lança luz sobre fantasias de receio frente à proximidade de mulheres negras e crianças brancas.

O impedimento realizado pelas famílias e pela cultura dessas profissionais exercerem uma maternagem seria um dos fatores que dificulta a entrega delas aos bebês? Essa hipótese nos parece merecer consideração. Também nos chamava a atenção o modo como as educadoras se referiam, no dia a dia em sala de aula, aos cuidadores primordiais das crianças, principalmente às mães. Muitas vezes suas falas sobre essas pessoas vinham acompanhadas de um tom de reclamação, o que parecia marcar uma espécie de rivalidade com essas cuidadoras:

Marina, a bebê que está em adaptação, estava mais calma, chorando menos, mas precisava ficar no colo. Se colocássemos ela no chão novamente começava a chorar. As professoras falaram que ela continua recusando alimentação na escola. Alice (educadora) disse: ‘pois é, mas a mãe diz que em casa ela come o mesmo tipo de comida que tem aqui’, Lúcia (educadora) responde dizendo que a mãe também pode estar mentindo (Diário clínico).

 

Ele (bebê) está sempre com o mesmo casaquinho, Lúcia tirou-o e falou ‘ba, esse aqui é guerreiro’, Alice disse que pelo menos a camiseta de baixo a mãe troca, e Lúcia respondeu que a do meio, porque a de baixo mesmo é a mesma (Diário clínico).

Tais falas marcam, aparentemente, uma posição defensiva das educadoras perante as mães, frequentemente falando sobre elas de forma pejorativa e até debochada. Estaria essa posição defensiva aparecendo como uma maneira de proteger-se da angústia de não poderem fazer tudo pelos bebês? A impossibilidade de investimento de mulheres que não as mães sobre os bebês pode nos dar pistas acerca da natureza da diferença entre as nossas expectativas de cuidado e as expectativas de cuidado das educadoras, impossibilitadas de entregarem-se corporalmente às crianças.

Enquanto eu brincava com Joana, Paola (pesquisadora) se ocupava com Emília e William, e as educadoras ficaram um tempão batendo papo entre elas. Parece que estavam aproveitando da nossa presença ali para ‘se livrar’ um pouco dos bebês. Joana começou a se movimentar, foi se agarrando em mim e eu segurei suas mãozinhas para ajudá-la a ficar de pé. A menina quando conseguiu ria bastante. Aproveitei para tentar chamar de volta as educadoras, dizendo, em voz alta “olha prof, eu tô aqui!” Alice parou de conversar e veio se sentar, dizendo algo como “que legal Joana, tá faceira”. A menina também estava fazendo movimentos como querendo engatinhar. Alice disse que ela é mais paradinha. Nisso, eu coloco que com esses bebês a gente precisa ser muito ativo, para que eles possam começar a demandar também (Diário clínico).

Na contramão do que é dito por nós, pesquisadoras, talvez para as educadoras não seja interessante que os bebês passem a demandar mais. O esgotamento pelas exigências do trabalho parecia fazer com que elas utilizassem a nossa presença como possibilidade de espairecimento. Justamente o apagamento da importância de suas funções retorna em ato pela impossibilidade (mascarada por uma recusa) em atender às demandas dos bebês. Reconhecê-las em sua função talvez seja uma forma de cuidado que as ajude a se sentirem igualmente convocadas ao cuidado das crianças.

 

A função do reconhecimento na transmissão do cuidado

No decorrer de nossa experiência, chamou-nos a atenção o modo como as relações de cuidado se estabeleciam dentro da Escola de Educação Infantil. Dessa forma, a pergunta “quem cuida de quem cuida?” tornou-se presente em nossas discussões. Para que seja possível cuidar de outro ser é necessário a introjeção das funções cuidadoras naquele que exerce tal função (FIGUEIREDO, 2009). Essa introjeção se dá a partir das experiências daquele que agora cuida, e que outrora foi também objeto de cuidado.

Torna-se relevante, aqui, retomar o conceito de experiência trabalhado por Walter Benjamin. O autor coloca a experiência como um saber passível de transmissão decantado daquilo que foi vivido. Portanto, é a partir da transmissão que a vivência pode se tornar experiência (BENJAMIN, 1936/1996). Kehl (2015, p. 163), a partir da conceituação de experiência de Benjamin, aponta que “as atividades que favorecem a transmissão das experiências através das narrativas são executadas em um tempo distendido, diferente do tempo da produção mecanizada que caracteriza o nascimento do capitalismo”. As tarefas rotineiras, o tempo cronometrado, o ideal de produção e a necessidade de dar conta de todas as atividades podem ser lidos, portanto, como empecilhos para a composição de experiências e, consequentemente, para suas possibilidades de transmissão.

No contexto da Educação Infantil, percebemos como as educadoras eram tomadas pelas rotinas a serem seguidas e pelas várias atividades a serem planejadas e executadas. Tais rotinas e atividades vão ao encontro desse tempo de produção mecanizado descrito por Kehl (2015), o qual desfavorece a transmissão de experiências (no caso, experiências de cuidado) e que, como citamos anteriormente, não demandam a mesma disponibilidade corporal e psíquica do que a tarefa de entregar-se ao cuidado dos bebês. A experiência de encontro entre adulto e criança que, conforme Branco e Corsino (2020), acontece pela inteireza da presença em uma relação de empatia e acolhimento, fica, portanto, fragilizada.

A lógica pedagogizante, que percebe o espaço da educação infantil como um campo para o desenvolvimento de habilidades (MARIOTTO, 2009), e a precarização da educação em nosso país parecem se unir ao apagamento da importância das educadoras, impossibilitando-as de tecer narrativas sobre seu fazer, elaborá-lo e, assim, transformá-lo em potência de fazer algo de outra ordem. Para Batista e Rocha (2018), as professoras da educação infantil desenvolvem atividades relativas ao educar e ao cuidar que são indissociáveis e complementares à família, fato que “ocasiona tensões no que diz respeito à influência das experiências maternas e domésticas no contexto educacional-pedagógico, dificultando a consolidação de uma cultura própria e específica da profissão” (BATISTA E ROCHA, p. 96). A falta de cuidado com essas mulheres, evidenciada pela desvalorização da categoria profissional e pelas péssimas condições de trabalho (SILVA, 2006), além do apagamento da importância dos seus papéis, deixam marcas que parecem as impossibilitar de transmitir outras marcas aos bebês: as de um cuidado genuíno e de uma disponibilidade de afetação mútua, incluindo aí a entrega do corpo.

Em nossa experiência na escola, percebemos aberturas da educadora Lúcia justamente nos momentos em que uma leitura da importância da sua função para os bebês era realizada por nós, pesquisadoras. Vale aqui destacar que essa educadora é uma pessoa mais fechada, apegada a regras pré-estabelecidas e que dava pouca abertura para o questionamento e para a instalação de uma pergunta em seu discurso. Na roda de conversa realizada com as profissionais dos berçários, apontamos como o trabalho de Lúcia com os bebês teve impactos positivos no comportamento das crianças. Seu olhar, seus gestos, diálogos e brincadeiras com os bebês foram colocados como cruciais para o desenvolvimento deles. Na visita seguinte, algo parecia diferente: Lúcia estava mais alegre e conversando bastante conosco.

Acho que nunca tínhamos falado tanto de coisas triviais [...] Me lembro de rir de algo engraçado que Lúcia disse e perceber na expressão dela que ela gostou desse meu gesto espontâneo. Ela me pareceu bem adequada com os bebês, conversando com eles em um certo ‘manhês’ e bem atenta (Diário clínico).

No texto “A metapsicologia do cuidado”, Figueiredo (2009) destaca a função de reconhecer como uma das modalidades do cuidar. O autor coloca que, muitas vezes, cuidar é “ser capaz de prestar atenção e reconhecer o objeto dos cuidados no que ele tem de próprio e singular, dando disso testemunho e, se possível, levando de volta ao sujeito sua própria imagem” (FIGUEIREDO, 2009, p. 138). Essa forma de cuidar requer, portanto, um reconhecimento preciso do outro no que ele tem de mais próprio e sua falta se revela como nociva para a instalação da autoimagem e da autoestima (FIGUEIREDO, 2009). A alegria e leveza despertada em Lúcia na relação conosco aparece como um possível efeito do reconhecimento concedido a ela por nós, proporcionando uma elevação de sua autoestima. Na cena que se segue é possível perceber um efeito do reconhecimento também na relação da educadora com os bebês:

Lúcia estava bem carinhosa com os bebês, pegando eles no colo e falando em manhês. Duas vezes eu sinalizei para ela que o Marcelo queria ficar pertinho dela, e nas duas vezes ela o pegou no colo. [...] Pontuamos várias vezes que os bebês gostam dela e querem ficar com ela, e acho que isso mobilizou-a para ser mais carinhosa com eles (Diário clínico).

Lúcia também participou de uma entrevista junto com uma das pesquisadoras e com a mãe de Emília, bebê que preocupava pelos seus choros excessivos e sem motivo aparente. Entende-se que as entrevistas com os pais junto da educadora servem como um dispositivo clínico que oferece um compartilhamento das funções entre cuidar e educar de ambos (ROSA, FERRARI E ARROSI, 2021). Nessa ocasião, foi possível que mãe e educadora trocassem experiências sobre as práticas de cuidado com Emília, sobre os comportamentos da menina (que apareciam tanto na escola quanto em casa) e sobre as preocupações de ambas com a bebê.

Anteriormente a essa conversa, Lúcia nos relatava que os choros da bebê eram cena, e que a menina poderia ser atriz, fazendo isso para chamar a atenção. Depois da conversa, o olhar de Lúcia para Emília parece ter se transformado. Passamos a presenciar momentos de carinho entre a educadora e a bebê, onde falas de Lúcia dirigidas à Emília como “se eu soubesse o que fazer para te acalmar eu faria, a prof se preocupa contigo” (sic) se faziam cada vez mais presentes. O dado a ver no corpo (JERUSALINSKY E BERLINCK, 2008) da bebê passou a ser escutado e creditado pela educadora como um sofrimento legítimo. Lúcia foi reconhecida como aquela que detém um saber e uma função e, assim, passou a também reconhecer Emília como uma criança em sofrimento. O cuidado com a educadora pôde, nessa situação, servir como motor da transmissão do cuidado à bebê.

 

Considerações finais

É importante destacar que o reconhecimento precisa ser realizado tanto no contexto com o qual aqui trabalhamos, marcando a função e a importância dessas mulheres para o desenvolvimento dos bebês, quanto em um sentido macro. Kilomba (2019), ao discutir o termo racismo genderizado, aponta para a extrema invisibilização das mulheres negras, cristalizando-as em um lugar de subalternidade. Pensando de maneira interseccional, a autora coloca que é preciso entender o entrelaçamento entre gênero e opressão racial que marcam a trajetória dessas mulheres, fazendo com que fossem silenciadas e invisibilizadas até mesmo dentro do projeto feminista global. A articulação do racismo com o sexismo, para Gonzalez (1984), produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular, produzindo uma rejeição de seus papéis em diversos âmbitos. Nesse sentido, Djamila Ribeiro (2017) aponta a importância de se pensar em saídas emancipatórias e de luta para que as mulheres negras possam ter direito à voz e a melhores condições de vida, sendo, dessa maneira, reconhecidas.

Neste trabalho buscamos refletir sobre as vicissitudes do espaço entre o afeto e o contrato, pensando haver aí importantes marcadores sócio-histórico-culturais que influenciam no modo como é possível conceber as práticas das educadoras infantis. Partimos, enquanto pesquisadoras brancas, de uma localização social distinta da das educadoras, ocupando, assim, diferentes lugares de fala (RIBEIRO, 2017) e tivemos o cuidado de marcar uma posição de horizontalidade durante o trabalho realizado na Escola de Educação Infantil. Sabemos, no entanto, que o corpo branco por si só pode acabar produzindo um lugar hierarquizado em relação ao corpo negro, evidenciando, assim, um local de privilégio.

A partir do reconhecimento da nossa branquitude, foi possível perceber as interseccionalidades e questões históricas envolvidas nos processos de cuidar e de ser cuidado, abrindo espaço para que tais aspectos incidissem em nossa escuta. Dessa forma, criamos um espaço onde, junto das educadoras, a importância dos seus lugares e de suas funções dentro da Escola de Educação Infantil pôde ser reconhecida, bem como uma singularização dos bebês e de seus sofrimentos pôde ser realizada.

Levando em consideração os diferentes lugares de onde partimos, foi possível compor uma construção conjunta na relação de troca com as educadoras. Construção que nos leva a pensar na experiência enquanto potência. Rodulfo (2012) coloca que cuidar para que a ocorrência de uma experiência seja possível é diferente de presumir que se possa causar uma experiência no outro. Nesse sentido, Figueiredo (2009) aponta a importância do equilíbrio entre a implicação e a reserva no exercício de cuidar, uma vez que ‘deixar ser’ o objeto “converte-se em uma maneira muito sutil e eficaz de cuidado”. Assim como Wiles e Ferrari (2020), colocamo-nos em um lugar terceiro e disponível, apostando em uma abertura para que o novo pudesse emergir, tanto no encontro das educadoras com os bebês quanto no nosso encontro com as educadoras.

Reconhecer as educadoras enquanto importantes em suas funções de cuidado está longe de resolver o problema do apagamento dessas mulheres da história e a dívida simbólica decorrente do processo de escravização e invisibilização. Consideramos, entretanto, importante lançar luz sobre elementos que costumavam não ter a notoriedade que deveriam e, dessa forma, contribuir para que essas discussões continuem sendo realizadas em estudos futuros. Entre ser mulher, mãe e educadora há uma infinidade de atravessamentos que requerem um olhar e uma escuta que atentem para o singular de cada sujeito. Contudo, para que a psicanálise mantenha o seu caráter revolucionário que deu origem a concepção de um sujeito dividido, é imprescindível que ela se ocupe do campo coletivo e cultural, resgatando aquilo que foi apagado mas que mesmo assim, ou exatamente em razão disso, não deixa de produzir marcas.

 

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Notas

 


1Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

2 Todos os nomes foram modificados no intuito de manter o sigilo dos participantes.