Panorama sobre a Política Nacional de Educação Especial Inclusiva no Rio Grande do Norte: análise descritiva dos microdados do Censo Escolar da Educação Básica (2008-2023)
Overview of the National Policy on Inclusive Special Education in Rio Grande do Norte: A Descriptive Analysis of Microdata from the Basic Education School Census (2008–2023)
Panorama de la Política Nacional de Educación Especial Inclusiva en Rio Grande do Norte: un análisis descriptivo de los microdatos del Censo Escolar de la Educación Básica (2008–2023)
Universidade Federal do Paraná, Curitiba – PR, Brasil.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal – RN, Brasil.
Recebido em 08 de agosto de 2025
Aprovado em 04 de outubro de 2025
Publicado em 10 de outubro de 2025
RESUMO
Este artigo analisa os efeitos da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI/2008) nos contextos do Rio Grande do Norte e da sua capital Natal. Inicialmente, foram feitas revisões bibliográfica e documental e levantamento e análise dos microdados do Censo Escolar da Educação Básica (2008-2023), com foco nas matrículas de estudantes público-alvo da Educação Especial (PAEE) e na oferta do Atendimento Educacional Especializado (AEE). Fundamentada no materialismo histórico-dialético, a análise compreende o Estado como expressão das contradições de classe e das disputas pela hegemonia, mediadas pela sociedade civil, que opera como espaço de difusão ideológica e conformação das políticas públicas.Constatou-se crescimento nas matrículas de estudantes PAEE no ensino regular, bem como ampliação da oferta de AEE em escolas comuns e exclusivas. Contudo, esses avanços não superam o caráter seletivo e excludente do sistema, marcado pela insuficiência de instituições com AEE e pela permanência de um modelo educacional paralelo. A presença marcante de instituições privadas, tanto na manutenção de escolas especiais quanto na execução do AEE, revela a persistência de uma lógica dual, contraditória ao princípio da inclusão plena. Diante disso, torna-se urgente problematizar a efetividade da política em curso e seus limites estruturais, exigindo do Estado um compromisso real com a universalização do direito à educação, sob a perspectiva da justiça social e da superação das desigualdades que atravessam historicamente o campo da Educação Especial.
Palavras-chave: Políticas públicas educacionais; Inclusão escolar; Censo Escolar.
ABSTRACT
This article analyzes the effects of the National Policy on Special Education in the Perspective of Inclusive Education (NPSPIE/2008) within the contexts of Rio Grande do Norte and its capital, Natal. Initially, a bibliographic and documentary review was conducted, along with the collection and analysis of microdata from the Basic Education School Census (2008–2023), focusing on the enrollment of students with special needs(SEN) and the provision of Specialized Educational Support (SES). Grounded in historical-dialectical materialism, the analysis conceptualizes the State as an expression of class contradictions and hegemonic disputes, mediated by civil society, which functions as a space for ideological dissemination and the configuration of public policies. The findings indicate an increase in SEN student enrollment in mainstream education, as well as an expansion in the provision of SES in both regular and specialized schools. However, these advances have not overcome the selective and exclusionary nature of the system, which remains marked by the insufficient number of institutions offering SES and the persistence of a parallel educational model. The significant presence of private institutions, both in maintaining special schools and in delivering SES, reveals the persistence of a dual logic that contradicts the principle of full inclusion. In light of this, it becomes urgent to question the effectiveness of the current policy and its structural limitations, demanding from the State a genuine commitment to the universalization of the right to education, guided by the pursuit of social justice and the overcoming of the historical inequalities that pervade the field of Special Education.
Keywords: Educational public policies; School inclusion; School census.
RESUMEN
Este artículo analiza los efectos de la Política Nacional de Educación Especial en la Perspectiva de la Educación Inclusiva (PNEEPEI/2008) en los contextos de Río Grande del Norte y su capital, Natal. Inicialmente, se realizaron una revisión bibliográfica y documental, así como el levantamiento y análisis de los microdatos del Censo Escolar de la Educación Básica (2008–2023), con énfasis en las matrículas de estudiantes público objetivo de la Educación Especial (PAEE) y en la oferta de la Atención Educativa Especializada (AEE). Fundamentado en el materialismo histórico-dialéctico, el análisis concibe al Estado como expresión de las contradicciones de clase y de las disputas por la hegemonía, mediadas por la sociedad civil, la cual opera como espacio de difusión ideológica y de conformación de las políticas públicas.Se constató un aumento en las matrículas de estudiantes PAEE en la enseñanza regular, así como una ampliación en la oferta de AEE en escuelas comunes y especiales. Sin embargo, estos avances no logran superar el carácter selectivo y excluyente del sistema, marcado por la insuficiencia de instituciones con AEE y por la permanencia de un modelo educativo paralelo. La fuerte presencia de instituciones privadas, tanto en el mantenimiento de escuelas especiales como en la ejecución del AEE, revela la persistencia de una lógica dual, contradictoria al principio de inclusión plena. Ante ello, se vuelve urgente problematizar la efectividad de la política vigente y sus límites estructurales, exigiendo del Estado un compromiso real con la universalización del derecho a la educación, desde la perspectiva de la justicia social y de la superación de las desigualdades que históricamente atraviesan el campo de la Educación Especial.
Palabras clave: Políticas públicas educativas; Inclusión escolar; Censo escolar.
Introdução
A trajetória da Educação Especial (EE) no Brasil reflete as contradições estruturais da sociedade, marcada por práticas assistencialistas e segregadoras. Ao longo do século XX, o atendimento às pessoas com deficiência foi conduzido por entidades privadas, majoritariamente filantrópicas, em parceria com o Estado, oferecendo uma educação paralela ao Ensino Regular (ER). Essa configuração legitimou a exclusão e reforçou a ideia de que o pertencimento escolar dessas pessoas ocorreria fora da escola comum (Kassar, 2011). Esse modelo começou a ser tensionado nos anos 1970 com a introdução do conceito de integração, que buscava alternativas menos excludentes. A partir dos anos 1990, o discurso da inclusão escolar se fortaleceu, culminando, em 2008, na criação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI). Ancorado nessa virada histórica, este artigoobjetiva analisar os efeitos concretos da implementação dessa política no Rio Grande do Norte (RN), com ênfase na cidade de Natal, tomando como referência dados empíricos e as disputas ideológicas que a atravessam.
A análise da política pública em questão exige uma abordagem que ultrapasse a leitura instrumental e quantitativa das suas diretrizes, exigindo uma compreensão dialética da relação entre Estado e sociedade civil. Sob o prisma do materialismo histórico-dialético, o Estado é concebido como aparelho coercitivo e espaço de disputa entre projetos societários em conflito, cujas decisões políticas expressam correlações de força entre classes e grupos sociais antagônicos (Gramsci, 2022). Dessa forma, a PNEEPEI não pode ser compreendida como produto de uma linearidade técnica ou de uma vontade política homogênea, mas como síntese provisória de embates entre interesses conservadores e progressistas em torno do direito à educação. Segundo Rafante (2016), compreender políticas públicas implica considerar as interações entre a sociedade política — representada pelos aparelhos estatais — e a sociedade civil — campo onde emergem resistências, demandas e proposições. É, pois, nesse espaço contraditório que se forjam as possibilidades e os limites da política de inclusão, exigindo do pesquisador uma leitura crítica dos sentidos que a orientam e dos entraves que a condicionam.
Com base nessa compreensão crítica, o estudo desenvolveu uma análise multidimensional, articulando investigação bibliográfica, levantamento documental e leitura estatística dos microdados do Censo Escolar da Educação Básica (CEEB) entre os anos de 2008 e 2023. A investigação focou-se nos dados referentes à matrícula dos/as estudantes público-alvo da Educação Especial (PAEE) em diferentes modalidades de ensino — regular, especial, Educação de Jovens e Adultos (EJA) e ensino profissionalizante —, conforme os recortes categóricos definidos pelo Censo. Igualmente, examinamos a oferta do Atendimento Educacional Especializado (AEE), considerando-se o número de matrícula se o perfil institucional das escolas, exclusivas ou não. Para o tratamento dos dados, foi utilizado o software Statistical Package for the Social Sciences(SPSS), o que permitiu uma leitura refinada das variações observadas no período analisado, evidenciando tanto avanços quanto oscilações e retrocessos, o que desafia a narrativa triunfalista frequentemente associada à inclusão escolar.
A estrutura analítica do estudo organiza-se em três momentos interdependentes, que dialogam com as múltiplas dimensões da política educacional. Inicialmente, reconstrói-se o percurso histórico da EE no Brasil, no RN e sua capital Natal, buscando identificar as forças sociopolíticas que moldaram esse processo. Em seguida, são apresentados e interpretados os dados extraídos do CEEB, não apenas como registros estatísticos, mas como expressões materiais das contradições presentes na política educacional inclusiva. Por fim, sintetizamos as principais inferências do estudo, apontando para os desafios que ainda se impõem à efetivação de uma educação verdadeiramente inclusiva, equânime e socialmente referenciada.
Percurso histórico-legislativo da Educação Especial no Brasil
A educação das pessoas com deficiência no Brasil foi historicamente organizada sob o paradigma da institucionalização, que sustentava a deficiência como anomalia individual a ser diagnosticada e segregada. Fundamentado no modelo médico-psicológico, esse paradigma legitimava a exclusão da escola regular mediante exames clínicos e avaliações psicométricas. Machado (1980) considera que tal processo naturalizou a percepção de que esses sujeitos não pertenciam ao espaço escolar comum, mas, sim, a instituições especializadas. Surgiram então organizações como a Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) e as Sociedades Pestalozzi. Na articulação com o Estado, consolidaram poder político e passaram a ditar as políticas públicas de EE. Rafante (2015) analisa esse protagonismo institucional, enquanto Garcia e Michels (2011) e Kassar (2011) ressaltam que, para muitos, essas instituições se confundiam com o próprio serviço público. Assim, a institucionalização revelou-se mais que assistência: constituiu-se como um projeto político-ideológico de exclusão.
Durante a Ditadura Civil-Militar (1964–1985), a educação foi instrumentalizada como mecanismo de modernização econômica e alinhada aos interesses capitalistas internacionais, principalmente dos Estados Unidos. A adoção da Teoria do Capital Humano (TCH) transformou a educação em investimento estratégico, não direito universal. Nesse contexto, a inclusão das pessoas com deficiência na escola regular não decorreu de avanços democráticos, mas da necessidade de ampliar a força de trabalho e reduzir custos com institucionalização. A universalização do acesso escolar ganhou um caráter ambíguo: abria espaços para grupos marginalizados, mas reforçava a lógica produtivista do sistema.
Nesse cenário, o paradigma da integração se fortaleceu, inspirado pelo mainstreaming dinamarquês, que propunha a inserção gradual dos estudantes com deficiência no ensino regular, condicionada à comprovação de sua capacidade de adaptação. Pereira (1980) sintetiza essa lógica como a busca por uma vida “tão normal quanto possível”. Apesar da aparente inclusão, esse modelo mantinha o padrão normativo e pouco questionava a estrutura excludente da escola, transferindo a exclusão para dentro do ambiente comum, sob novas formas de vigilância.
A ligação entre integração e a TCH revela o caráter funcionalista das políticas voltadas à população com deficiência. Nesse sentido, segundo Kassar (2011) e Rafante (2015), a educação inclusiva justificava-se por custos menores e por formar sujeitos produtivos, subordinando o direito à educação ao valor econômico do indivíduo, não a sua dignidade.
Apesar dos avanços legais, como a Constituição de 1988, que prevê o atendimento “preferencialmente na rede regular” (Brasil, 1988), o modelo dual persistiu, mantendo práticas segregadoras. A Organização das Nações Unidas (ONU) e o Banco Mundial reforçaram a educação como instrumento de combate à pobreza e formação de capital humano, e a inclusão foi ressignificada com ênfase na capacitação para o mercado, em detrimento da justiça social (Souza; Pletsch, 2017).
A década de 1990 consolida o discurso da inclusão, impulsionado pela Conferência Mundial de Jomtien (1990) e a Declaração de Salamanca (1994), que reposicionaram a escola comum como espaço legítimo para todos, inclusive para sujeitos com deficiência. O Brasil formaliza esse compromisso na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional(LDB, Lei nº 9.394/1996), que reconhece a EE como modalidade e prioriza a matrícula na rede regular (Brasil, 1996).
Nos anos 2000, políticas federais tornaram obrigatória a matrícula de estudantes com deficiência nas escolas regulares e instituíram o AEE, ofertado preferencialmente nas salas de recursos multifuncionais. A Resolução CNE/CEB nº 2/2001 reconhece o AEE como apoio à escolarização comum e destaca a colaboração entre professores e especialistas (Garcia; Michels, 2011). Embora limitada, essa política avançou no reconhecimento da diversidade como valor pedagógico.
Com o lançamento da PNEEPEI, em 2008, a EE passou a ser entendida como modalidade estruturada em serviços e recursos específicos, com o AEE como estratégia central para garantir acesso, permanência e aprendizagem (Brasil, 2008). O Decreto nº 6.571/2008 regulamentou o AEE como serviço complementar no contraturno e priorizou o financiamento público para sistemas de ensino, excluindo inicialmente as instituições privadas (Garcia; Michels, 2011). O Decreto nº 7.611/2011 reverteu essa exclusão, ampliando apoio federal a instituições especializadas e evidenciando os embates políticos pela hegemonia na oferta educacional.
A promulgação da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) representa um marco jurídico importante ao reafirmar direitos e liberdades fundamentais das pessoas com deficiência, estabelecendo avaliação biopsicossocial interdisciplinar, que considera dimensões orgânicas, ambientais, psicológicas e sociais (Brasil, 2015). Essa abordagem desafia o modelo clínico tradicional, mas Garcia e Michels (2011) notam que a definição do público-alvo da EE ainda está marcada por uma lógica classificatória. Embora a Nota Técnica nº 4/2014 tenha eliminado a exigência de laudo médico para AEE, Pletsch e Paiva (2018) mostram que a cultura médico-clínica permanece forte no ambiente escolar. Parcerias com instituições especializadas, frequentemente ligadas à saúde, reforçam a resistência à adoção plena do modelo social da deficiência.
A promulgação do Decreto nº 10.502/2020, marca um retrocesso nas políticas de EE no Brasil, não apenas pelo conteúdo que apresenta, mas sobretudo pela orientação político-ideológica que sustenta. Ao instituir a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, o governo federal desloca o foco da inclusão como direito para a noção de escolha individual, reabilitando práticas segregacionistas sob o disfarce da flexibilidade. Ao desobrigar a matrícula de estudantes com deficiência na escola comum e reposicionar as instituições especializadas como preferenciais, o decreto compromete avanços históricos conquistados com base na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e na Constituição Federal. A suspensão dos efeitos da norma, determinada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.590, evidencia os riscos de desvirtuação do princípio da inclusão plena, encerrando — ao menos juridicamente — mais um capítulo das tensões que atravessam a política educacional inclusiva no País.
A revogaçãodo Decreto nº 10.502/2020, em 2023, com a publicação do Decreto nº 11.370e o lançamento do Plano de Afirmação e Fortalecimento da PNEEPEI, representam não apenas um gesto normativo, mas uma resposta política articulada à tentativa de desestruturação da educação inclusiva. O plano articula metas ambiciosas de ampliação do acesso, permanência e aprendizagem de estudantes com deficiência nas escolas regulares até 2026, e reconhece que tais metas só podem ser viabilizadas mediante políticas robustas de formação docente, reorganização curricular e transformação das práticas pedagógicas.
Mais de uma década após a PNEEPEI, o sistema educacional brasileiro ainda convive com tensões entre um sólido marco normativo em defesa da inclusão e práticas cotidianas que mantêm a exclusão simbólica e material. Essa contradição revela que efetivar a educação inclusiva vai além da técnica ou da legislação, configurando-se como um desafio político que exige confrontar estruturas históricas de desigualdade e assumir compromissos profundos com a transformação social.
Percurso histórico-legislativo da Educação Especial no Rio Grande do Norte e em Natal
A promulgação da PNEEPEI, em 2008, consolidou uma inflexão normativa e simbólica nos sistemas educacionais brasileiros. Esse marco exigiu dos entes federativos a reestruturação de suas normativas e práticas, inaugurando um movimento de reconfiguração da EE no interior da escola comum. O ano de 2009, nesse contexto, marcou a resposta inicial dos Conselhos Estaduais e Municipais de Educação, que buscaram regulamentar o AEE, com vistas à efetivação do paradigma inclusivo.
No RN, essa reconfiguração tomou forma na Resolução do Conselho Estadual de Educação de 2009, revogada e atualizada pela Resolução nº 03/2016-CEB/CEE/RN (Rio Grande do Norte, 2016). Em âmbito municipal, Natal instituiu a Resolução nº 05/2009 (Natal, 2009), ainda vigente em 2025. A permanência desse documento por mais de uma década – (apesar dos esforços técnicos por sua revisão)– revela a fragilidade da gestão pública frente a disputas político-institucionais que retardam avanços normativos (Silva; Cenci, 2022).
A Resolução estadual de 2016 inova ao incluir, como público do AEE, estudantes com Transtornos Funcionais Específicos (TFE), que apresentam dificuldades significativas de aprendizagem decorrentes de condições como dislexia, discalculia, disgrafia e transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), cujas manifestações clínicas afetam o processo de aprendizagem, embora não estejam, necessariamente, associadas à deficiência intelectual (DI). Ao reconhecer essas especificidades, a normativa orienta a oferta de intervenções pedagógicas específicas e de suporte especializado, reforçando o compromisso com a equidade educativa. Embora essa ampliação represente um avanço na perspectiva da atenção à diversidade, gera conflitos de ordem técnica e administrativa, uma vez que esses/as estudantes não estão contemplados/as na política nacional e, por isso, não são contabilizados/as no Censo Escolar, como destacam Silva eCenci (2022).
O município do Natal, por sua vez, adota uma formulação mais próxima à orientação nacional, utilizando o termo Necessidades Educacionais Especiais (NEESP) para designar os/as educandos/as atendidos/as. Assim, contempla deficiências, transtornos do desenvolvimento e altas habilidades. Essa opção terminológica, ao enfatizar as necessidades em detrimento das deficiências, pode indicar uma inflexão pedagógica mais humanizada. Contudo, a coexistência de marcos normativos com enfoques distintos, mesmo em uma mesma unidade federativa, desafia a coerência da política pública e reforça a necessidade de alinhamento conceitual e operacional.
As normativas sobre avaliação da aprendizagem também expressam esse tensionamento. A Portaria nº 193/2014/GS/SME, em Natal, e a Portaria nº 1878/2016-SEEC/RN, no estado, preveem adaptações nos processos avaliativos conforme as especificidades dos/as estudantes PAEE. Ambas indicam o uso de instrumentos alternativos e registros descritivos – um avanço na direção de uma avaliação mais formativa. Entretanto, a redação da portaria estadual (Rio Grande do Norte, 2016), ao empregar o termo "classificatória", no Artigo 22, inciso 1, conflita com o espírito da inclusão e com os princípios da avaliação qualitativa. A Portaria-SEI nº 4.522/2024 (Rio Grande do Norte, 2024) corrige essa imprecisão, ao propor uma avaliação diagnóstica, formativa e somativa, mais compatível com os princípios da pedagogia inclusiva.
No estado do RN e em Natal, observa-se que, embora a legislação vigente afirme o compromisso com uma educação pautada na perspectiva da inclusão para os/as educandos/as PAEE, permanece legalmente assegurada a possibilidade de atuação das instituições privadas de educação especializada.
Percurso metodológico da pesquisa
A produção de conhecimento sobre a PNEEPEI requer, antes de tudo, o enfrentamento metódico da realidade educacional brasileira por meio de dados empíricos que revelem não apenas cifras, mas contradições, ausências e disputas. Nesse sentido, este estudo adota a pesquisa descritiva, cuja finalidade vai além da enumeração de características: interpreta e evidencia regularidades em grupos sociais ou fenômenos historicamente situados. Para Gil (2008), essa abordagem permite delinear com clareza uma realidade empírica que, embora perceptível, demanda sistematização e rigor analítico.
Nessa direção, a adoção do método quantitativo — com ênfase na estatística descritiva — representa um recurso técnico e uma decisão teórico-metodológica orientada pela necessidade de mapear padrões, identificar recorrências e evidenciar contradições que atravessam a implementação das políticas inclusivas. Segundo Zanella (2013), a estatística descritiva permite a mensuração objetiva dos fenômenos e a generalização de resultados a partir da análise de uma amostra representativa, constituindo-se como ferramenta essencial para a produção de inferências fundamentadas. Ainda que limitada em sua capacidade de apreender a complexidade das experiências subjetivas, a abordagem quantitativa se mostra indispensável quando se trata de dimensionar políticas públicas em escala e de evidenciar desigualdades estruturais que escapam à percepção individual. Como defende Gatti (2004), para sua devida compreensão, determinados problemas educacionais exigem o respaldo de dados quantificáveis que contribuam para a construção de diagnósticos situados e, ao mesmo tempo, comunicáveis.
A principal fonte de dados deste estudo foi o banco de microdados do CEEB, disponibilizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) em seu site. Segundo Vizzotto (2021), os microdados representam a unidade mais elementar de informação coletada, permitindo reconstruir panoramas específicos e realizar análises precisas. Dessa forma, esses dados são amplamente acessíveis e utilizados por pesquisadores de diversas áreas, configurando base sólida para investigações rigorosas.
Entretanto, uma leitura crítica exige atenção rigorosa às metodologias de tratamento estatístico aplicadas nas versões dos relatórios do INEP. Filtros que excluem matrículas vinculadas a turmas de atendimento complementar, ao AEE e registros duplicados podem gerar discrepâncias significativas entre os dados brutos e as sinopses estatísticas anuais. Essa diferença, longe de ser mera questão técnica, possui densidade epistemológica e política, pois o modo como os dados são coletados, processados e divulgados influencia a visibilidade de grupos escolares historicamente vulnerabilizados, como os/as estudantes PAEE.
No caso desta pesquisa, a manipulação e análise dos dados foi operacionalizada por meio do software SPSS (versão 23 Windows), escolhido por sua capacidade de comportar, com eficiência, bancos de dados de grande volume, contendo centenas de variáveis (colunas) e milhões de registros (linhas), como é o caso do extenso banco do Censo Escolar.
O recorte temporal compreendido entre 2008 e 2023 não é meramente cronológico: expressa uma escolha política e analítica. Trata-se do período que sucede à promulgação da PNEEPEIe que contempla importantes mudanças nas diretrizes censitárias do INEP, como a inclusão de variáveis específicas sobre o AEE e os recursos de acessibilidade. Além disso, o intervalo abarca contextos de alternância política nos planos federal, estadual e municipal — entre gestões que ora reforçaram, ora fragilizaram, os princípios da inclusão escolar —, permitindo observar tensões e descontinuidades na implementação das políticas voltadas ao público PAEE.
Análise e discussão dos microdados do Censo Escolar da Educação Básica
A análise dos dados do RNno período entre 2008 e 2024 revela um paradoxo que merece reflexão crítica. Enquanto o total de matrículas na educação básica apresentou uma queda de 16,93%, as matrículas de educandos/as PAEE experimentaram um crescimento exponencial de 335,2% (Tabela 1). Esse dado, que à primeira vista pode ser lido como indicador de avanço na política de inclusão, exige problematização. O aumento da porcentagem de matrículas PAEE em relação ao total — de 0,7% para 3,7% — pode tanto refletir o avanço de práticas mais inclusivas, quanto mascarar processos de medicalização, ampliação de diagnósticos ou fragilidades nas práticas pedagógicas voltadas ao acolhimento da diferença.
Tabela 1 – Matrículas da EE em classes comuns ou exclusivas, por modalidade de ensino no RN
|
ANO |
MODALIDADES DE ENSINO DA EDUCAÇÃO BÁSICA |
|||||||
|
ENSINO REGULAR |
EDUCAÇÃO ESPECIAL |
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS |
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA |
|||||
|
TOT. MAT. |
TOT. MAT. NEE |
TOT. MAT. |
TOT. MAT. NEE |
TOT. MAT. |
TOT. MAT. NEE |
TOT. MAT. |
TOT. MAT. NEE |
|
|
2008 |
958.882 |
6.783 |
1.155 |
1.155 |
98.740 |
939 |
12.871 |
13 |
|
2009 |
944.406 |
6.631 |
354 |
354 |
91.575 |
511 |
16.317 |
14 |
|
2010 |
929.144 |
9.526 |
289 |
289 |
93.934 |
839 |
20.143 |
38 |
|
2011 |
913.979 |
11.386 |
125 |
125 |
93.426 |
1.113 |
23.665 |
48 |
|
2012 |
894.366 |
12.298 |
25 |
25 |
88.139 |
1.211 |
23.731 |
41 |
|
2013 |
890.265 |
12.829 |
21 |
21 |
90.531 |
1.322 |
29.338 |
47 |
|
2014 |
877.431 |
13.845 |
11 |
11 |
82.155 |
1.312 |
38.051 |
65 |
|
2015 |
863.950 |
15.268 |
5 |
5 |
75.709 |
1.454 |
42.659 |
113 |
|
2016 |
845.655 |
15.735 |
--- |
--- |
72.147 |
1.314 |
39.736 |
119 |
|
2017 |
840.646 |
17.150 |
1 |
1 |
69.114 |
1.380 |
40.287 |
135 |
|
2018 |
829.463 |
19.035 |
1 |
1 |
65.822 |
1.446 |
43.961 |
348 |
|
2019 |
820.485 |
20.006 |
4 |
4 |
66.648 |
1.501 |
42.367 |
385 |
|
2020 |
804.775 |
21.458 |
1 |
1 |
63.203 |
1.631 |
45.127 |
407 |
|
2021 |
798.972 |
22.278 |
2 |
2 |
58.959 |
1.550 |
48.050 |
640 |
|
2022 |
802.751 |
25.143 |
--- |
--- |
53.523 |
1.509 |
50.158 |
667 |
|
2023 |
796.526 |
29.532 |
1 |
1 |
53.282 |
1.607 |
55.291 |
810 |
Legenda: TOT. MAT. = Total de matrículas no ER; TOT. MAT. NEE = Total de matrículas de estudantes com necessidades educacionais especiais.
Fonte: Microdados do INEP/CEEB.
Uma leitura detida dos dados por modalidade de ensino mostra uma inflexão importante: enquanto as matrículas na EE caíram 99,91%, o ER absorveu um aumento de 335,28% nas matrículas de estudantes PAEE. O saldo foi de 22.749 novas matrículas no ER, número superior à perda registrada na EE. A princípio, essa mudança poderia indicar uma transição exitosa rumo à inclusão. No entanto, sem o devido acompanhamento das condições materiais e pedagógicas das escolas, tal crescimento pode mascarar práticas de exclusão internalizada, em que os alunos estão presentes fisicamente nas salas comuns, mas sem acesso real à aprendizagem. No Ensino Profissionalizante (EP), a estabilidade entre 2015 e 2017 sugere pouca mobilidade desse segmento, enquanto a EJA apresenta um aumento de 71,14%, indicando uma demanda reprimida de escolarização para pessoas com deficiência em idade adulta.
No município de Natal, a transição para o paradigma inclusivo reconfigura o cenário educacional com características próprias, marcadas tanto por avanços quanto por contradições (Tabela 2). A extinção completa das matrículas na modalidade de EE, somada a um expressivo crescimento de 403,91% no Ensino Regular (5.142 novas matrículas) pode, à primeira vista, ser interpretada como sinal de uma política de inclusão formalmente bem-sucedida. No entanto, uma análise mais detida evidencia tensões latentes nesse processo. O salto de 5.650% nas matrículas da modalidade profissionalizante e o aumento de 76,52% na EJA introduzem elementos que complexificam o panorama: o acesso à educação está de fato sendo ampliado, mas de modo desigual entre as diferentes etapas e modalidades de ensino. Tal assimetria revela que a inclusão, ainda que normativamente impulsionada, não assegura, por si só, condições equitativas de permanência e aprendizagem. A centralidade da escola regular como lócus privilegiado da inclusão demanda, portanto, mais do que a incorporação física de sujeitos historicamente excluídos – exige uma reconfiguração estrutural e epistemológica das práticas pedagógicas, curriculares e avaliativas, orientada por uma concepção de justiça educacional para além da lógica do acesso.
Tabela 2 – Matrículas da EE em classes comuns ou exclusivas, por modalidade de ensino em Natal
|
ANO |
MODALIDADES DE ENSINO DA EDUCAÇÃO BÁSICA |
|||||||
|
ENSINO REGULAR |
EDUCAÇÃO ESPECIAL |
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS |
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA |
|||||
|
TOT. MAT. |
TOT. MAT. NEE |
TOT. MAT. |
TOT. MAT. NEE |
TOT. MAT. |
TOT. MAT. NEE |
TOT. MAT. |
TOT. MAT. NEE |
|
|
2008 |
225.846 |
1.500 |
227 |
227 |
25.924 |
230 |
6.669 |
4 |
|
2009 |
219.586 |
1.515 |
117 |
117 |
25.212 |
172 |
8.547 |
7 |
|
2010 |
216.212 |
2.141 |
48 |
48 |
24.481 |
257 |
9.155 |
15 |
|
2011 |
213.443 |
2.567 |
29 |
29 |
24.523 |
324 |
11.713 |
23 |
|
2012 |
208.913 |
2.797 |
25 |
25 |
24.356 |
362 |
10.796 |
13 |
|
2013 |
203.874 |
2.853 |
21 |
21 |
22.170 |
368 |
12.183 |
11 |
|
2014 |
204.426 |
3.106 |
11 |
11 |
19.959 |
361 |
17.868 |
16 |
|
2015 |
202.253 |
3.505 |
--- |
--- |
19.310 |
413 |
21.580 |
73 |
|
2016 |
195.275 |
3.703 |
--- |
--- |
18.747 |
401 |
18.997 |
60 |
|
2017 |
195.419 |
4.116 |
1 |
1 |
17.756 |
413 |
19.543 |
51 |
|
2018 |
191.894 |
4.543 |
--- |
--- |
17.298 |
422 |
18.774 |
120 |
|
2019 |
186.975 |
4.668 |
--- |
--- |
17.151 |
404 |
16.192 |
127 |
|
2020 |
178.625 |
5.126 |
1 |
1 |
15.845 |
451 |
14.534 |
174 |
|
2021 |
174.323 |
5.232 |
--- |
--- |
12.743 |
402 |
16.482 |
207 |
|
2022 |
173.448 |
5.693 |
--- |
--- |
12.350 |
431 |
13.725 |
200 |
|
2023 |
170.733 |
6.415 |
--- |
--- |
11.800 |
406 |
13.345 |
230 |
Legenda: TOT. MAT. = Total de matrículas no ER; TOT. MAT. NEE = Total de matrículas de estudantes com necessidades educacionais especiais.
Fonte: Microdados do INEP/CEEB.
A análise da evolução das matrículas na EE, segmentada por tipo de deficiência, revela a coexistência de políticas inclusivas em expansão e de silêncios institucionais que ainda marginalizam determinados sujeitos. O discurso da universalização do acesso à educação encontra, nesse panorama, tanto argumentos favoráveis quanto contradições que não podem ser ignoradas. Os dados da Tabela 3ilustram com clareza as assimetrias na distribuição das matrículas por tipo de deficiência. O crescimento relativamente modesto nas matrículas de estudantes com cegueira e deficiência auditiva (DA), aliado à estagnação dos registros relacionados à surdez e à surdocegueira, expõe um padrão de inclusão desigual, que favorece alguns perfis em detrimento de outros. Ainda mais preocupante é a queda de 53% nas matrículas de estudantes com baixa visão, o que sugere não apenas a persistência de barreiras materiais e simbólicas ao acesso, mas também uma possível subnotificação provocada por critérios diagnósticos pouco sensíveis às múltiplas formas de ver e aprender. Em contraste, o expressivo aumento nas matrículas de estudantes com deficiência física (DF) (242,2%), deficiência intelectual (DI) (620,7%), com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e/ou com Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD) (59.205%) revela uma reconfiguração das categorias de inclusão escolar, nas quais certas deficiências ganham centralidade nos mecanismos de visibilidade, financiamento e intervenção pedagógica.
Tabela 3 – Matrículas de estudantes da EE, em classes comuns da Educação Básica, por tipo de deficiência, Transtorno Global do Desenvolvimento ou Altas Habilidades/Superdotação, no RN
|
ANO |
TOT. MAT. |
TOT. MAT. NEE |
TGD/ AH/SD |
CG |
BV |
SDZ |
DA |
SCG |
DF |
DI |
DM |
|
2008 |
958.882 |
5.628 |
20 |
58 |
635 |
425 |
436 |
6 |
770 |
2.046 |
452 |
|
2009 |
944.406 |
6.277 |
588 |
83 |
746 |
414 |
588 |
6 |
913 |
2.525 |
635 |
|
2010 |
929.144 |
9.237 |
1.272 |
113 |
1.230 |
592 |
749 |
12 |
1.523 |
4.322 |
449 |
|
2011 |
913.979 |
11.261 |
1.562 |
133 |
1.353 |
689 |
782 |
10 |
1.865 |
5.727 |
613 |
|
2012 |
894.366 |
12.273 |
1.848 |
124 |
1.360 |
684 |
767 |
9 |
2.014 |
6.426 |
664 |
|
2013 |
890.265 |
12.829 |
1.856 |
120 |
1.238 |
658 |
759 |
10 |
2.103 |
7.215 |
742 |
|
2014 |
877.431 |
13.834 |
2.019 |
123 |
1.209 |
637 |
759 |
9 |
2.182 |
8.261 |
813 |
|
2015 |
863.950 |
15.263 |
2.366 |
136 |
1.226 |
615 |
803 |
4 |
2.290 |
9.250 |
875 |
|
2016 |
845.655 |
15.735 |
2.260 |
135 |
1.260 |
579 |
815 |
6 |
2.267 |
9.581 |
940 |
|
2017 |
840.646 |
17.149 |
3.034 |
132 |
1.249 |
515 |
834 |
7 |
2.304 |
10.777 |
1.011 |
|
2018 |
829.463 |
19.034 |
3.715 |
129 |
1.270 |
459 |
912 |
7 |
2.492 |
11.784 |
1.020 |
|
2019 |
820.485 |
20.002 |
4.132 |
143 |
1.215 |
456 |
914 |
13 |
2.535 |
12.421 |
1.129 |
|
2020 |
804.775 |
21.457 |
4.842 |
143 |
1.402 |
436 |
895 |
7 |
2.631 |
12.972 |
1.128 |
|
2021 |
798.972 |
22.276 |
5.645 |
138 |
1.475 |
532 |
712 |
12 |
2.552 |
13.079 |
1.091 |
|
2022 |
802.751 |
25.143 |
7.891 |
139 |
1.446 |
445 |
733 |
11 |
2.581 |
14.000 |
1.134 |
|
2023 |
713.572 |
27.702 |
11.861 |
128 |
1.346 |
421 |
719 |
10 |
2.636 |
14.745 |
1.155 |
Legenda: TOT. MAT. = Total de matrículas no ER; TOT. MAT. NEE = Total de matrículas de estudantes com necessidades educacionais especiais; TGD/AH/SD = Transtorno Global do Desenvolvimento/Altas Habilidades/Superdotação; CG = Cegueira; BV = Baixa Visão; SDZ = Surdez; DA = Deficiência Auditiva; SCG = Surdo-cegueira; DF = Deficiência Física; DI = Deficiência Intelectual; DM = Deficiência Múltipla.
Fonte: Microdados do INEP/CEEB.
É precisamente nessa centralidade atribuída à DI e ao TEA que se revela um movimento discursivo-institucional que redefine os contornos da inclusão escolar no Brasil contemporâneo. A impressionante elevação de matrículas de estudantes com DI, que saltam de 2.046 em 2008 para 14.745 em 2023, e aqueles/as com TEA, cuja presença nas escolas passa de apenas 20 para 11.861 no mesmo período, não pode ser interpretada apenas como um reflexo positivo da ampliação do acesso. Esses números são indicativos de um processo mais profundo, no qual as práticas diagnósticas e classificatórias operam como tecnologias de gestão da diferença, orientando quem entra na escola, em quais condições e que tipos de reconhecimento institucional recebe. Tal fenômeno impõe à pesquisa educacional o desafio de interrogar criticamente as categorias que estruturam a inclusão: quais os critérios epistemológicos e sociopolíticos sustentam os diagnósticos de DI e TEA? Em que medida essas classificações refletem as singularidades dos sujeitos e não apenas a normatização de condutas? E, sobretudo, que projetos pedagógicos estão sendo mobilizados para além da mera presença física desses estudantes nas escolas? Ao mesmo tempo em que apontam para uma democratização formal do acesso, os dados tensionam a qualidade e os fundamentos das práticas educativas, abrindo espaço para questionar se a escola inclusiva tem, de fato, se constituído como espaço de emancipação, diálogo e reconhecimento da pluralidade humana.
Retomando os dados sistematizados na Tabela 2, a expansão das matrículas de estudantes PAEE em Natal, entre 2008 e 2023, expõe a coexistência de avanços quantitativos e tensões qualitativas no campo da inclusão escolar. Embora se registre uma redução de 24,41% no total geral de matrículas, o crescimento de 403,9% nas matrículas de estudantes PAEE parece sinalizar uma inflexão nos compromissos institucionais com a educação inclusiva. Em 2008, esse grupo correspondia a 0,56% do total de matriculados; em 2023, atingia 3,76%. Apesar da aparente evolução, a análise desagregada revela que esse movimento é marcado por uma heterogeneidade significativa entre as categorias de deficiência: há incremento nas categorias de DA, baixa visão e cegueira – 73,83%, 212,68% e 214,29% respectivamente –, estabilidade nas matrículas de surdocegos, redução discreta nas matrículas de surdos(as) (-3,33%) e aumentos expressivos entre educandos(as) com DF (216,67%), DI(471,5%) e o grupo designado como TGD e/ou com /AH/SD(35.600%) (Tabela 4). Tal distribuição evidencia a centralidade da DI e do grupo TGD e/ou com TGD/AH/SD nos processos de inclusão, o que, longe de representar apenas um dado estatístico, exige reflexão crítica sobre os dispositivos de classificação e as práticas pedagógicas que os sustentam.
Tabela 4 – Matrículas de estudantes da EE, em classes comuns da Educação Básica, por tipo de deficiência, Transtorno Global do Desenvolvimento ou Altas Habilidades/Superdotação, em Natal
|
Ano |
TOT.MAT. |
TOT. MAT. NEE |
TGD/ AH/SD |
CG. |
BV. |
SDZ. |
DA |
SCG. |
DF |
DI |
DM |
|
2008 |
225.846 |
1.273 |
8 |
7 |
71 |
90 |
107 |
1 |
156 |
498 |
104 |
|
2009 |
219.586 |
1.398 |
150 |
7 |
104 |
94 |
150 |
1 |
170 |
647 |
135 |
|
2010 |
216.212 |
2.093 |
264 |
17 |
140 |
131 |
199 |
2 |
304 |
1.151 |
88 |
|
2011 |
213.443 |
2.538 |
345 |
17 |
161 |
155 |
188 |
2 |
364 |
1.465 |
102 |
|
2012 |
208.913 |
2.772 |
390 |
24 |
173 |
154 |
191 |
1 |
376 |
1.655 |
121 |
|
2013 |
203.874 |
2.832 |
365 |
32 |
162 |
140 |
184 |
2 |
394 |
1.774 |
135 |
|
2014 |
204.426 |
3.095 |
430 |
29 |
181 |
145 |
212 |
3 |
410 |
1.967 |
157 |
|
2015 |
202.253 |
3.505 |
536 |
36 |
206 |
138 |
223 |
1 |
443 |
2.222 |
177 |
|
2016 |
195.275 |
3.703 |
643 |
35 |
236 |
131 |
226 |
2 |
436 |
2.348 |
202 |
|
2017 |
195.419 |
4.115 |
763 |
31 |
226 |
122 |
224 |
2 |
464 |
2.655 |
209 |
|
2018 |
191.894 |
4.543 |
957 |
26 |
240 |
97 |
265 |
2 |
526 |
2.767 |
183 |
|
2019 |
189.975 |
4.668 |
1.122 |
33 |
224 |
104 |
245 |
4 |
511 |
2.756 |
202 |
|
2020 |
178.625 |
5.125 |
1.391 |
36 |
279 |
111 |
214 |
2 |
546 |
2.849 |
184 |
|
2021 |
174.323 |
5.232 |
1.585 |
33 |
295 |
134 |
155 |
1 |
509 |
2.806 |
160 |
|
2022 |
173.448 |
5.693 |
1.990 |
24 |
285 |
108 |
163 |
3 |
503 |
2.944 |
178 |
|
2023 |
170.733 |
6.415 |
2.856 |
22 |
222 |
87 |
186 |
1 |
494 |
2.846 |
175 |
Legenda: TOT. MAT. = Total de matrículas no ER; TOT. MAT. NEE = Total de matrículas de estudantes com necessidades educacionais especiais; TGD/AH/SD = Transtorno Global do Desenvolvimento/Altas Habilidades/Superdotação; CG = Cegueira; BV = Baixa Visão; SDZ = Surdez; DA = Deficiência Auditiva; SCG = Surdo-cegueira; DF = Deficiência Física; DI = Deficiência Intelectual; DM = Deficiência Múltipla.
Fonte: Microdados do INEP/CEEB.
Em sintonia com a tendência estadual, Natal evidencia um predomínio expressivo das categorias de DI, DF e TGD e/ou com AH/SD em todo o período, representando 52,01% dos/as educandos/as com deficiência em 2008 e 96,58% em 2023. Embora tal aumento possa ser interpretado como sinal de maior acesso, também pode refletir estratégias institucionais de alocação que, em muitos casos, operam sob lógicas classificatórias distantes de critérios pedagógicos consistentes. O risco de que tais classificações funcionem como respostas administrativas à crise da aprendizagem, e não como reconhecimento legítimo das singularidades dos/as estudantes, torna-se um problema ético-educacional de primeira ordem.
É nesse ponto que a crítica de Rafante, Oliveira e Silva (2018) se torna incontornável: para eles, o crescimento do número de educandos/as identificados/as com DI pode operar como dispositivo de exclusão simbólica, pois reforça a noção de que tais estudantes são estruturalmente incapazes de aprender. O estigma da deficiência, nesse contexto, não apenas limita as expectativas sobre o desempenho escolar, como contribui para a cristalização de trajetórias escolares marcadas pela baixa mobilidade e pela desvalorização do potencial cognitivo e social dos sujeitos. A crítica assume ainda maior gravidade quando se verifica que os processos diagnósticos frequentemente carecem de fundamentação pedagógica contextualizada, funcionando mais como ferramentas de contenção da crise educacional do que como estratégias de inclusão.
As constatações de Pletsch e Paiva (2018) acerca da persistência do modelo médico em avaliações de educandos/as com DI reforçam esse argumento. Com base em estudo realizado em sete municípios fluminenses, as autoras identificaram que as avaliações são frequentemente conduzidas de forma desarticulada do contexto escolar e do cotidiano dos/asestudantes, assumindo caráter prescritivo e despolitizado. Além disso, estudos anteriores (Pletsch; Oliveira, 2015; Ferreira, 1989) já alertavam para a confusão recorrente entre dificuldades de aprendizagem e DI, o que contribui para a patologização do fracasso escolar. Nesse cenário, a deficiência é menos uma condição do sujeito e mais um artefato produzido pela incapacidade das instituições educacionais de lidarem com a diversidade de formas de aprender.
Manzini (2018) afirma que parte dos/as estudantes classificados/as como PAEE integra, na verdade, o que denomina “construção social da deficiência”. De acordo com a autora, há um contingente de alunos rotulados como deficientes que são, em realidade, vítimas de um sistema educacional que fracassa em garantir-lhes acesso, permanência e aprendizagem. Essa rotulação não é neutra: ela se inscreve em uma lógica institucional que reproduz desigualdades e distribui fracassos conforme marcadores sociais de classe, território, raça e gênero. Assim, os dados que revelam o crescimento das matrículas de educandos/as com DI e/ou TEA não podem ser tomados como prova inequívoca de inclusão, mas devem ser problematizados à luz dos limites estruturais da escola em acolher a diversidade.
O crescimento do AEE no estado do RN, entre 2008 a 2023, pode ser interpretado como expressão de um movimento institucional que buscou ampliar as estruturas de suporte à inclusão escolar. Tal expansão, contudo, se deu sob condições assimétricas e estruturais que limitam sua efetividade. No mesmo período em que o número total de escolas potiguares sofreu uma retração de 19,13%, observa-se um aumento de 100% nas unidades escolares com oferta de AEE em regime não exclusivo. Esse dado ganha relevância quando se considera que, em 2008 — no ano de implementação da PNEEPEI —, nenhuma escola no estado ofertava tal serviço; já em 2023, esse número alcança 611 instituições. Além disso, embora de maneira ainda incipiente, identificam-se avanços também na oferta exclusiva do AEE: de um cenário inicial de total ausência, passa-se à presença de 28 escolas que, em 2023, oferecem exclusivamente esse atendimento.
Esses dados revelam que, consideradas conjuntamente, essas duas formas de atendimento revelam um crescimento de 339,87% no número de escolas com AEE (Tabela 5). À primeira vista, tais números podem sugerir um avanço substantivo da política educacional inclusiva no estado; no entanto, uma análise crítica revela que o crescimento institucional do AEE não tem sido proporcional à intensificação da demanda, revelando contradições entre os marcos normativos da inclusão e sua concretização nas dinâmicas escolares cotidianas.
Tabela 5 – Escolas no RN com AEE
|
Ano |
Total geral de escolas |
Total de escolas que oferecem AEE nãoexclusivamente |
Total de escolas que oferecem AEE exclusivamente |
Total de escolas que oferecem AEE |
Total de escolas com AEE em relação ao total geral de escolas (%) |
Total de escolas nãoexclusivas com AEE em relação ao total geral de escolas (%) |
Total de escolas exclusivas com AEE em relação ao total geral de escolas (%) |
|
2008 |
4.198 |
--- |
--- |
--- |
--- |
--- |
--- |
|
2009 |
4.062 |
63 |
23 |
86 |
1,87 |
1,37 |
0,50 |
|
2010 |
4.001 |
109 |
25 |
134 |
3,35 |
2,72 |
0,62 |
|
2011 |
3.932 |
184 |
31 |
215 |
5,47 |
4,68 |
0,79 |
|
2012 |
3.891 |
226 |
34 |
260 |
6,68 |
5,81 |
0,87 |
|
2013 |
3.806 |
306 |
34 |
340 |
8,93 |
8,04 |
0,89 |
|
2014 |
3.744 |
398 |
32 |
430 |
11,49 |
10,63 |
0,85 |
|
2015 |
3.674 |
449 |
32 |
481 |
13,09 |
12,22 |
0,87 |
|
2016 |
3.635 |
474 |
29 |
503 |
13,84 |
13,04 |
0,80 |
|
2017 |
3.590 |
492 |
29 |
521 |
14,51 |
13,70 |
0,81 |
|
2018 |
3.522 |
507 |
29 |
536 |
15,22 |
14,40 |
0,82 |
|
2019 |
3.485 |
481 |
27 |
508 |
14,57 |
13,80 |
0,77 |
|
2020 |
3.418 |
501 |
25 |
526 |
15,39 |
14,66 |
0,73 |
|
2021 |
3.410 |
516 |
26 |
542 |
15,90 |
14,96 |
0,76 |
|
2022 |
3.398 |
566 |
26 |
592 |
17,42 |
16,65 |
0,76 |
|
2023 |
3.395 |
611 |
28 |
636 |
18,73 |
17,99 |
0,82 |
Fonte: Microdados do INEP/CEEB.
Apesar da ampliação registrada ao longo da década que sucedeu a implementação da PNEEPEI, os dados de 2018 indicam que apenas 14,4% das escolas potiguares ofertavam o AEE em regime não exclusivo, enquanto meros 0,8% dispunham de atendimento exclusivo, totalizando uma cobertura institucional de apenas 15,2%.Quando esses índices são cotejados com o crescimento de 335,33% nas matrículas de estudantes PAEE no AEE (Tabela 6), evidencia-se uma assimetria preocupante entre o direito garantido em lei e a sua efetivação nas redes de ensino. De maneira ainda mais alarmante, apenas 39% desses/as educandos/as tiveram, de fato, acesso ao AEE em 2018, revelando que a expansão institucional não tem sido suficiente para atender à totalidade daqueles/as que têm direito a esse serviço. Esse descompasso coloca em xeque o compromisso ético e político do Estado com a equidade educacional, pois a inclusão parcial ou simbólica não substitui o direito pleno ao atendimento especializado de qualidade.
Tabela 6 – Matrículas de estudantes com necessidades especiais no ER em relação ao acesso ao AEE no RN
|
Ano |
Total de matrículas da Educação Especial |
Total de matrículas no AEE |
Total (%) |
|
2008 |
--- |
--- |
--- |
|
2009 |
6.631 |
2.765 |
41,70 |
|
2010 |
9.526 |
3.061 |
32,14 |
|
2011 |
11.386 |
4.148 |
36,43 |
|
2012 |
12.298 |
4.158 |
33,81 |
|
2013 |
12.829 |
4.961 |
38,68 |
|
2014 |
13.845 |
5.664 |
40,91 |
|
2015 |
15.268 |
6.190 |
40,54 |
|
2016 |
15.735 |
6.370 |
40,50 |
|
2017 |
17.150 |
7.099 |
41,40 |
|
2018 |
19.035 |
7.429 |
39,04 |
|
2019 |
20.006 |
7.450 |
37,24 |
|
2020 |
21.458 |
7.513 |
35,01 |
|
2021 |
22.278 |
8.158 |
36,61 |
|
2022 |
25.143 |
8.844 |
35,18 |
|
2023 |
29.532 |
9.637 |
32,64 |
Fonte: Microdados do INEP/CEEB.
No município de Natal, a expansão do AEE revela uma trajetória marcada por contradições e limites estruturais, mesmo diante de avanços quantitativos. A análise dos dados apresentados na Tabela 7 evidencia que, entre 2009 e 2019, o número total de escolas da rede municipal permaneceu praticamente constante. No entanto, o quantitativo de instituições com AEE em caráter não exclusivo experimentou um crescimento expressivo de 354,55%, enquanto aquelas que ofertavam o serviço de forma exclusiva apresentaram uma redução de 14,29%. Quando se consideram ambas as modalidades de atendimento, o incremento global no número de escolas com AEE atinge 265,52% no período analisado.À primeira vista, esses índices podem sugerir um avanço substancial na implementação de políticas voltadas à educação inclusiva. Todavia, uma análise mais detida revela que tal expansão se dá de forma parcial e fragmentada. Em 2019, apenas 20,37% das escolas da rede municipal ofertavam o AEE em caráter não exclusivo e 1,22% em caráter exclusivo, totalizando 21,59% de unidades com algum tipo de oferta especializada. Esses percentuais, longe de apontarem para a consolidação de uma política de inclusão educacional abrangente e equânime, escancaram a limitação do alcance das ações implementadas.
Tabela 7 – Escolas em Natal com AEE
|
Ano |
Total geral de escolas |
Total geral de escolas que oferece AEE não exclusivamente |
Total geral de escolas que oferecem AEE exclusivamente |
Total geral de escolas que oferecem AEE |
Total geral de escolas com AEE em relação ao total geral de escolas (%) |
Total geral de escolas não exclusivas com AEE em relação ao total geral de escolas (%) |
Total geral de escolas exclusivas com AEE em relação ao total geral de escolas (%) |
|
2008 |
499 |
--- |
--- |
--- |
--- |
--- |
--- |
|
2009 |
489 |
22 |
7 |
29 |
5,93 |
4,50 |
1,43 |
|
2010 |
500 |
34 |
7 |
41 |
8,20 |
6,80 |
1,40 |
|
2011 |
490 |
46 |
7 |
53 |
10,82 |
9,39 |
1,43 |
|
2012 |
493 |
57 |
7 |
64 |
12,98 |
11,56 |
1,42 |
|
2013 |
496 |
80 |
7 |
87 |
17,54 |
16,13 |
1,41 |
|
2014 |
504 |
99 |
6 |
105 |
20,83 |
19,64 |
1,19 |
|
2015 |
494 |
103 |
7 |
110 |
22,27 |
20,85 |
1,42 |
|
2016 |
496 |
98 |
6 |
104 |
20,97 |
19,76 |
1,21 |
|
2017 |
493 |
104 |
6 |
110 |
22,32 |
21,10 |
1,22 |
|
2018 |
495 |
110 |
6 |
116 |
23,43 |
22,22 |
1,21 |
|
2019 |
491 |
100 |
6 |
106 |
21,59 |
20,37 |
1,22 |
|
2020 |
462 |
106 |
6 |
112 |
24,24 |
22,94 |
1,30 |
|
2021 |
477 |
108 |
6 |
114 |
23,90 |
22,64 |
1,26 |
|
2022 |
468 |
110 |
6 |
116 |
24,79 |
23,50 |
1,28 |
|
2023 |
482 |
112 |
6 |
118 |
24,48 |
23,24 |
1,24 |
Fonte: Microdados do INEP/CEEB.
A defasagem entre a oferta institucional e a demanda concreta se acentua quando se observa que, em Natal, o número de estudantes PAEE matriculados/as no AEE aumentou 74,58% no período analisado (Tabela 8), mas somente 26,23% desse total teve acesso efetivo ao serviço em 2024. Esses dados reiteram uma fragilidade estrutural das políticas de inclusão, cuja expansão normativa e discursiva não tem sido acompanhada de investimentos proporcionais em infraestrutura, formação docente e reorganização curricular. A presença do AEE, quando não sustentada por condições concretas de funcionamento, pode operar como mero indicativo formal de inclusão, sem alterar as estruturas escolares excludentes. A desigualdade no acesso ao atendimento também pode aprofundar as vulnerabilidades já enfrentadas por muitos desses estudantes, comprometendo seu percurso escolar e seu direito à aprendizagem significativa.
Tabela 8 – Matrículas de alunos com necessidades especiais no ER em relação ao acesso ao AEE em Natal
|
Ano |
Total de matrículas da Educação Especial |
Total de matrículas no AEE |
Total (%) |
|
2008 |
1.500 |
--- |
--- |
|
2009 |
1.515 |
964 |
63,65 |
|
2010 |
2.141 |
1.012 |
47,27 |
|
2011 |
2.567 |
1.205 |
46,94 |
|
2012 |
2.797 |
1.236 |
44,19 |
|
2013 |
2.853 |
1.419 |
49,73 |
|
2014 |
3.106 |
1.429 |
46,01 |
|
2015 |
3.505 |
1.473 |
42,02 |
|
2016 |
3.703 |
1.501 |
40,53 |
|
2017 |
4.116 |
1.728 |
41,98 |
|
2018 |
4.543 |
1.672 |
36,80 |
|
2019 |
4.668 |
1.630 |
34,91 |
|
2020 |
5.126 |
1.631 |
31,81 |
|
2021 |
5.232 |
1.629 |
31,13 |
|
2022 |
5.693 |
1.620 |
27,17 |
|
2023 |
6.415 |
1.683 |
26,23 |
Fonte: Microdados do INEP/CEEB.
A análise aqui apresentada evidencia um paradoxo central das políticas de inclusão: ao mesmo tempo em que os dados apontam para um crescimento expressivo do AEE no Rio Grande do Norte e em Natal, os percentuais de cobertura e acesso revelam uma precariedade persistente e estrutural. Não basta contabilizar escolas com AEE; é preciso problematizar que tipo de AEE está sendo ofertado, em que condições, com quais profissionais, e com que intencionalidade pedagógica. A inclusão não pode ser medida apenas pela presença do/a educando/a ou pela existência de uma Sala de Recursos Multifuncionais (SRM), mas pela efetivação de processos pedagógicos que garantam aprendizagem, desenvolvimento e participação. Sem essa perspectiva crítica, corre-se o risco de transformar a política de inclusão em mais uma instância de desigualdade educacional legitimada por indicadores quantitativos que, na verdade, ocultam as reais dinâmicas de exclusão em curso.
Considerações finais
A trajetória da EE no Brasil revela a permanência de lógicas excludentes que se reconfiguram ao longo do tempo sob novas roupagens discursivas. Historicamente, predominou o paradigma médico-psicológico, responsável por alocar os sujeitos com deficiência em instituições privadas, mantidas por convênios com o Estado, legitimando um sistema educacional paralelo, de caráter assistencialista e segregador. Na década de 1970, sob a influência da TCH e do redirecionamento das políticas públicas à racionalidade neoliberal, a integração escolar passou a ser defendida como alternativa mais econômica, ainda que mantivesse o ideal normativo de adaptação do sujeito à escola, e não o contrário.
Nos anos 1990, com a incorporação da agenda dos direitos humanos, o discurso da inclusão escolar se fortalece, culminando na formulação da PNEEPEI, em 2008. A implementação dessa política em estados como o RN e em municípios como Natal, embora representasse um avanço normativo, ocorreu majoritariamente por meio do AEE e das SRM, reforçando práticas que, embora inseridas na escola comum, ainda operam sob lógica de atendimento segregado.
A análise dos microdados do Censo Escolar revela essa ambiguidade: ao mesmo tempo em que cresce o número de estudantes PAEE matriculados/as na rede regular e atendidos/as pelo AEE, também se observa a expansão das escolas especializadas. Tal cenário denuncia uma disputa ideológica e política persistente entre projetos de inclusão e a manutenção de um sistema paralelo, sustentado por interesses institucionais historicamente consolidados. Superar esse impasse requer mais do que a continuidade das políticas: exige um reposicionamento ético e pedagógico capaz de desconstruir os alicerces da exclusão historicamente legitimada como cuidado.
Referências
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BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n° 12.796, de 4 de abril de 2013. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para dispor sobre a formação dos profissionais da educação e dá outras providências.Diário Oficial da União, Brasília, DF, 4 abr. 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 25 fev. 2025.
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