DOI: http://dx.doi.org/10.5902/2179378655429

Submissão: 29/09/2020 Aprovação: 07/01/2021 Publicação: 15/01/2021

 

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Filosofia, ciência e magia

 

A atitude fenomenológica e o “caminho do guerreiro”: aprendendo a “ver”

 

The phenomenological attitude and the “warrior's way”: learning to “see”

 

Rudinei Cogo Moor

Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS

(PPGF/UFSM)

rudimoor@yahoo.com.br

 

Resumo: A fenomenologia, como método filosófico, consiste primeiramente numa mudança de atitude, do “olhar natural” para o “ver essencial”. O caminho fenomenológico se inicia quando um fenômeno se mostra para a consciência segundo algum modo descritivo. Com a redução dos pressupostos ou interpretações, a fenomenologia se propõe a descrever o dado puro, a essência do que se dá em aparição. Numa descrição literária, podemos entender esse objetivo fenomenológico como a descrição do conhecimento da feitiçaria, ordenada por Carlos Castaneda em suas experiências incomuns de percepção. No presente artigo, pretendemos aproximar alguns pontos em comum entre feitiçaria e fenomenologia. Além do próprio Castaneda fazer referência direta aos conceitos fenomenológicos e utilizar seu método de descrição, o artigo mostra uma aproximação com o “ver”, que é o objetivo tanto do fenomenólogo quanto do feiticeiro.

Palavras-Chave: Fenomenologia; Feitiçaria; Consciência; Intencionalidade; Guerreiro; Ver

 

Abstract: The phenomenology, as a philosophical method, consists primarily of a change in attitude, from the “natural look” to the “essential seeing”. The phenomenological path begins when a phenomenon appears to consciousness in some descriptive way. With the reduction of assumptions or interpretations, phenomenology proposes to describe the pure data, the essence of what happens in appearance. In a literary description, we can understand this phenomenological objective as the description of the knowledge of sorcery, ordered by Carlos Castaneda in his unusual experiences of perception. In this article, we intend to bring together some points in common between witchcraft and phenomenology. In addition to Castaneda himself making direct reference to phenomenological concepts and using his method of description, the article shows an approximation with to “see”, which is the goal of both the phenomenologist and the sorcerer.

Keywords: Phenomenology; Sorcery; Consciousness; Intentionality; Warrior; See

 

Carlos Castaneda e a fenomenologia

 

Carlos Castaneda era um estudante de antropologia na pós-graduação da Universidade da Califórnia - UCLA e tinha interesse acadêmico por plantas medicinais utilizadas pelos índios durante suas cerimonias. Ficou muito conhecido no final da década de 60 pela publicação de sua primeira obra “The teachings of Don Juan”, na qual relata seu encontro com um velho índio Yaqui de Sonora – México, conhecido como “feiticeiro”, “brujo[1], chamado por ele de Dom Juan Matus. Esse encontro trouxe a público várias obras, nas quais relata as descrições de suas experiências e inserção no mundo do brujo. O nome feitiçaria e feiticeiro é mantido nas obras apenas para designar o conjunto de práticas e descrições que faziam parte daquele sistema de ensinamentos[2]. O aprendizado de Carlos durou um período de treze anos e suas publicações relatam conhecimentos que mudaram a visão de mundo do autor.

De pesquisador de antropologia a aprendiz e praticante do que lhe era apresentado, Carlos se submete à técnicas e situações que fogem às premissas acadêmicas de acompanhar o objeto de pesquisa a uma certa distância. O pesquisador foi afetado pelo fenômeno e seguiu suas configurações e regulamentos. A tese fundamental, dada por Dom Juan, consistia em internalizar um sistema de cognição diferente daquele do mundo comum da vida cotidiana. Ou seja, para poder conhecer as plantas era preciso remodelar completamente seu modo de vida.

Os recursos metodológicos passados pelo seu professor, tais como deslocar o ponto de aglutinação, parar o diálogo interno, não fazer, incluindo a ingestão de psicotrópicos[3], serviam para despertá-lo sobre possibilidades incomuns de ver a realidade. O meio eficaz para modificar suas visões de mundo era internalizar processos cognitivos de um sistema completamente diferente de apreensão, em que a realidade aparece de outros modos às vivências do sujeito, sem interpretações ou preconcepções. Ou seja, o que apreendemos do mundo não esgota o mundo e suas possibilidades, sendo preciso encontrar um ponto de encaixe em que interrompa o fluxo de interpretação.

Carlos Castaneda parte da questão de que todas as tentativas de Dom Juan eram introduzi-lo à cognição[4] de sua linhagem de aprendizado. Enquanto o homem moderno entende o conceito de cognição como um grupo de processos gerais, para os feiticeiros da linhagem de Dom Juan, esse conceito toma uma forma diferente. Em todas as coletas de dados, Castaneda se viu compelido a internalizar os novos processos cognitivos pertencentes ao que lhe era apresentado, uma vez que essa “internalização genuína de tais raciocínios impõe uma transformação, uma resposta diferente ao mundo da vida cotidiana”[5]. Assim, era preciso estabelecer um alinhamento entre o que ele experimentava com a explicação de mundo dos feiticeiros.

Para Carlos, a apreensão do sistema de conhecimentos que lhe eram passados e experimentados se tornava, por vezes, estranha e incompreensível. Mesmo assim, suas anotações de campo narram suas experiências em primeira pessoa. Para descrever as experiências de cada estado de realidade incomum, Carlos utilizava o método fenomenológico de pesquisa, a fim de descrever os fenômenos tal como lhe eram apresentados sem julgamento. Assim, apresenta a utilização de tal método:

O sistema que registrei era incompreensível para mim, de modo que pretender fazer outra coisa senão reproduzi-lo seria enganador e impostura. Nesse caso, adotei o método fenomenológico e procurei tratar da feitiçaria apenas como fenômenos que me eram apresentados. Eu, como perceptor, registrava o que percebia, e no momento de registrar procurava suster o julgamento[6].

No artigo “Carlos Castaneda and the Phenomenology of Sorcery”, Donald D. Palmer sustenta a tese de que, embora Castaneda dedique poucas páginas para tratar do método fenomenológico, o trabalho das primeiras quatro obras[7] consiste na exemplificação prática desse método[8]. Castaneda vai além de um mero relato formal dos fenômenos, pois procura alcançar um ponto de vista imparcial no qual ele consegue perceber e descrever os fenômenos tais como são dados[9] para os membros da comunidade dos feiticeiros.

Ele também tenta alcançar um ponto de vista a partir do qual ele pode perceber os fenômenos em termos das mesmas categorias usadas pelos membros da comunidade de feiticeiros. Em outras palavras, ele descreve primeiro os fenômenos como apareciam a um típico observador ocidental; depois, à moda socrática, Dom Juan tenta subverter a leitura normal dos fenômenos por Castaneda e fornecer a ele uma leitura alternativa deles. Ao reter o julgamento sobre os fenômenos, Castaneda lhes permite ordenar um mundo em seus próprios termos. A redescrição dos dados transformados é o triunfo fenomenológico de Castaneda[10].

Os pontos em comum com a fenomenologia vão além da mera utilização do método fenomenológico de descrição. Por vezes, Castaneda sofreu acusações de que suas obras eram frutos de sua imaginação literária e que Dom Juan nunca existiu[11]. De fato, o nome “Dom Juan” é uma criação do autor, que tinha como objetivo zelar seu verdadeiro nome, algo muito comum na pesquisa de campo que envolve pessoas. Analisando essa questão com a fenomenologia, algo relevante parece se destacar com relação a existência ou não dos fenômenos. É que para a fenomenologia, ao menos husserliana, não interessa o fato da existência ou inexistência dos seus fenômenos, mas a aparição deles para consciência. Isto é, a possibilidade da fenomenologia é remeter aquilo que é dado (Gegebenheit)[12] e, esse dado, pode não ter existência empírica, mas possui um sentido e se manifesta intencionalmente segundo suas modalidades de apreensão. Portanto, se Dom Juan existiu ou não e se os livros são uma ficção da mente brilhante de Castaneda, então precisamos “voltar às coisas mesmas” e tomá-las como tais na descrição da experiência narrativa do autor e nos atermos na eficácia das técnicas ou ensinamentos propostos.

Nas conversas com Dom Juan, era frequente a tentativa de esclarecer os termos para uma melhor apreensão e descrição do aprendizado. Carlos trazia alguns termos da fenomenologia para contrastar com aqueles apresentados pelo mestre, entre eles, destacamos: intencionalidade e ego transcendental. Quando Dom Juan diz à Carlos que todos “nós tínhamos aprendido a nos relacionar com nossa descrição de mundo em termos do que chamávamos de ‘hábitos’”[13], Carlos sugere, para uma melhor compreensão, o termo intencionalidade: “apresentei um termo que eu julgava mais geral, a intencionalidade, a propriedade da consciência humana pela qual um objeto é referido, ou com relação ao qual se tem intenção”[14].

Em outra passagem Dom Juan quer explicar à Carlos as duas totalidades que constituem o ser humano, chamadas por ele de tonal[15] e nagual[16] (lê-se ‘naual’). Carlos conhecia vagamente esses termos pela literatura sobre cultura do México central. Mas, para Dom Juan esses conceitos tinham uma descrição mais abrangente, suprimindo de vez, todas as intepretações que não fossem aquelas das quais ele mesmo testemunhara. Tonal e nagual são duas entidades separadas, mas complementares, remetendo seu funcionamento a partir do nascimento[17]. O tonal[18] é nossa pessoa social, o que organiza o mundo e tudo aquilo que somos, sabemos ou fazemos como seres humanos.  “O tonal começa com o nascimento e termina com a morte”[19]. Para o tonal, qualquer tipo de entendimento bastaria, mas no caso do nagual, a única possibilidade de visualizá-lo é através do corpo[20]. Para Dom Juan “o nagual explica a criatividade (...) é a única parte de nós que consegue criar”[21]. O tonal precisa ser muito bem resolvido, “limpado” a fim de torná-lo impecável. Logo, precisa ser reduzido, com a finalidade de ceder espaço para que o nagual se manifeste.  “O nagual é a parte de nós para a qual não existe descrição... nem palavras, nem nomes, nem sensações, nem conhecimento”[22].

Para contrastar com os conceitos de tonal e nagual descritos por Dom Juan, Castaneda apresenta dois conceitos da fenomenologia de Husserl, ego transcendental e ego empírico. Entretanto, Dom Juan apenas contrapôs-se:

(...) no pensamento europeu nós tínhamos conhecimento do que ele chamava de nagual. Apresentei o conceito de ego transcendental, ou o observador não observado presente em todos os nossos pensamentos, percepções e sentimentos. Expliquei a Dom Juan que o indivíduo podia perceber-se ou intuir-se, como ser, por meio do ego transcendental, pois era esta a única coisa capaz de julgamento, capaz de revelar a realidade dentro do reino de sua consciência.

Dom Juan não se alterou. Riu-se.

- Revelar a realidade. – disse ele, me imitando. – Isso é o tonal.

 Argumentei que o tonal pode ser chamado o ego empírico encontrado em nosso fluxo passageiro de consciência ou experiência, enquanto que o ego transcendental se encontrava por trás desse fluxo.

- Observando, imagino – disse ele, zombando.

- Isso mesmo. Observando-se.

- Eu o ouço falar. Mas você não está dizendo nada. O nagual não é experiência, nem intuição, nem consciência. Esses termos e tudo mais que você possa dizer são apenas itens na ilha do tonal. O nagual, ao contrário, é apenas o efeito. O tonal começa ao nascer e termina na morte, mas o nagual nunca termina. O nagual não tem limites[23]

Esses conceitos apresentados são apenas uma tentativa remota de fazer uma relação com aquilo que era apresentado para Castaneda, fazendo referência direta aos conceitos da fenomenologia, o que mostra sua leitura e conhecimento dos mesmos. No que segue, aprofundaremos outra afinidade com a fenomenologia de Husserl, mostrando a questão do “ver”, iniciando com a fenomenologia de Husserl e completando com os ensinamentos de Dom Juan.

 

“Aprendendo a ver” com Husserl

 

A fenomenologia sempre sentiu a necessidade de fazer a distinção entre a atitude do fenomenólogo e a atitude do homem natural[24]. A fenomenologia consiste, primeiramente, numa mudança de atitude (Einstellung), propositalmente orientada pela epoché[25] – método do qual encaminha o sujeito para a transição do simples olhar natural para o ver fenomenológico. Essa atitude depende da vontade e liberdade do sujeito, pois naturalmente permanecemos envolvidos com as coisas que estão dadas empiricamente no mundo. Poderíamos dizer que olhar “depende dos olhos”, enquanto ver “do espírito”[26].

No olhar estamos constantemente vislumbrando cores dos objetos físicos, tipos de pessoas etc.; sentimos fome, sono, frio, calor etc.; somos atravessados, de forma recorrente, por pensamentos, que passam e que se substituem por outras representações, tomadas por nós, nessa atitude, como meras ideias passageiras... Enfim, tudo o que está disposto ao “nosso olhar”. Parece-nos, aqui, que estamos fixados pelo mundo, absorvidos e afetados por suas entranhas. No olhar tendemos a crer que todas as coisas são do jeito que são, independentemente de nós, e ficamos imersos entre as coisas do mundo, também como possibilidades de sermos enxergados por outros. Olhamos para as coisas e para nós mesmos como efetividades determinadas e reais, tendo o mundo como uma fonte causadora de tudo o que podemos crer como verdadeiro e real. Cremos que o mundo é do jeito que é; que não se subordina a nossa subjetividade e consciência que temos dele, como se fosse uma entidade com sua própria constituição de sentido.

No ver, voltamo-nos reflexivamente para aquilo que torna possível todo olhar e todo objeto olhado. Damo-nos por conta do que significa esse olhar e estar no mundo. O ver nos dá intuitivamente a experiência mesma de nossas vivências conforme ela aparece para nós. Ou seja, o mundo só tem sentido de existente, porque estamos constantemente vivenciando, de algum modo, sua existência. É claro que o mundo existe e está ai, não se trata de negá-lo. No entanto, só podemos estar certos disso na medida que excedemos a mera matéria bruta e apreendemos ela em reflexão: estamos aqui no mundo e o mundo nos é dado em correlação intencional. Somos nós que constituímos o mundo, e ele é apreendido segundo algum modo de experiência. O mundo natural certamente é dado numa modalidade, mas há mais coisas que podem ser vistas além do tênue horizonte.

Nesta tomada de atitude consciente, ao mesmo tempo que se desloca da atitude natural, ela é colocada em ênfase pela reflexão. Ainda continuamos constantemente com nosso olhar natural no mundo, mantemo-nos constantemente envolvidos com ele e nos encontramos nele. Porém, na atitude fenomenológica, assumimos o papel de espectadores imparciais destas vivências que aparecem para nós segundo seu modo de apresentação[27]. O “ver” fenomenológico depende da observância do método, isto é, além de uma mudança de atitude, que nos faz passar da ingenuidade crente para uma orientação essencial e reflexiva, é preciso colocar tudo o que se dá nessa ingenuidade sob o regime de redução, ou seja, suspendê-la para -la em sua essência mesma. É na aplicação do método de redução que podemos perceber o que é necessário e o que é contingente de nossas experiências, e como se dá esse entrelaçamento.

O sentido dessa contingência, entretanto, que ali se chama facticidade, limita-se por ela ser correlativamente referida a uma necessidade, que não significa a mera subsistência fática de uma regra válida de coordenação de fatos espaço-temporais, mas possui o caráter de necessidade eidética e, assim, referência à generalidade eidética. (...) faz parte do sentido de todo contingente ter justamente uma essência e, por conseguinte, um eidos a ser apreendido em sua pureza[28].

Para Zahavi, a investigação da atitude fenomenológica “precisa se voltar para a dação ou para a aparição da realidade efetiva, isto é, para o modo como a realidade efetiva é dada para nós em nossa experiência”[29]. E isso requer uma mudança de atitude, bem como uma redução de todos os pressupostos e interpretações que mostram o mundo a partir de suas teorias. “Nós não podemos deixar, em outras palavras, que teorias pré-concebidas determinem nossa experiência, mas nossa experiência deve, ao contrário, dirigir nossas teorias”[30].

Há uma dificuldade, para todo o iniciante de fenomenologia, em compreender do que se trata a atitude fenomenológica, pois “voltar-se para o dado, contudo, é mais fácil de dizer do que de fazer. Ele exige uma série de movimentos preparatórios”[31]. Para Husserl, o que torna difícil a assimilação da essência da fenomenologia (e sua relação com as ciências e, em especial, com a Psicologia) é a necessidade de uma nova maneira de se orientar, diferente da atitude natural na experiência e no pensar. Na atitude fenomenológica há a necessidade de “aprender a ver”. Desse modo, é preciso “aprender a se mover livremente nela, sem nenhuma recaída nas velhas maneiras de se orientar, aprender a ver, diferençar, descrever o que está diante dos olhos, exige, ademais, estudos próprios e laboriosos”[32].

Adolf Reinach, discípulo de Edmund Husserl, ao dizer que “a fenomenologia não é um sistema de proposições e verdades filosóficas”, [mas] “método de filosofar que vem exigido pelos problemas da filosofia”[33], destaca o quanto penoso é “aprender a ver”, porque, muitas vezes, estamos olhando para o mundo, mas não o vemos, ou melhor, não estamos atentos a suas nuances que se dão em aparecimento para nós. Reinach enfatiza a arte como um modo de ensinar o homem a aprender a ver, despertá-lo para possibilidades esquecidas ou nunca vistas.

No mundo nos desenvolvemos como seres que praticamente agem; vemos o mundo e, ao mesmo tempo, não o vemos; nós vemos isso com mais ou menos precisão; e o que vemos dele é geralmente governado por nossas necessidades e nossos fins. Sabemos como é doloroso aprender a ver realmente; que trabalho é necessário, por exemplo, para realmente ver as cores pelas quais passamos sem prestar atenção e, no entanto, cair dentro do nosso campo de visão. (...) Até a vida consciente mais pobre ainda é rica demais para que seu sujeito possa entender completamente. Também aqui podemos aprender a ver; aqui também é, acima de tudo, a arte que ensina o homem normal a entender o que antes havia sido esquecido. Pois não só acontece que, através da arte, despertamos em nós experiências que não teríamos de outra maneira, mas também nos fazem ver, dentre a superabundância de viver, o que já existia antes, sem que soubéssemos disso[34].

No texto “Meu caminho para a fenomenologia” Heidegger fala do início de seus estudos acadêmicos e o contato com a fenomenologia de Husserl, especialmente com sua obra “Investigações Lógicas” a qual marcou seus anos subsequentes, mesmo sem compreender suficientemente o que lhe fascinava[35]. Heidegger também menciona que “aprender a ver” era a atitude essencial proposta por Husserl em suas aulas, destacando um modo autêntico de filosofar livre de pressupostos.

A atividade docente de Husserl consistia no progressivo exercício e na aprendizagem do “ver” fenomenológico; ele exigia tanto a renúncia a todo uso não crítico de conhecimentos filosóficos como impunha não trazer, para o diálogo, a autoridade dos grandes pensadores[36].

Mas qual é o sentido e a legitimidade do ver fenomenológico? Conforme o § 57 das Ideias I, só faz sentido falar em consciência na forma de sujeito. Ao efetuar a redução fenomenológica, o resíduo que permanece irredutível é o ego puro, pertencendo a toda vivência que passa e escorre, como um raio de luz que acompanha cada vivido. O ego puro não pode ser reduzido a uma experiência ou a um conteúdo da consciência, mas sim aquele que torna possível a visibilidade de toda vivência ou conteúdo[37]. O sujeito se caracteriza pela orientação intencional da consciência, o ponto de partida que “está dirigido para” algo. Já o que legitima o ver fenomenológico é o que Husserl chama no § 24 das Ideias de intuição (Anschaaung), que é “princípio de todos os princípios”, o ver doador originário como a fonte legitimadora do conhecimento, pois o que é apontado como algo deve ser dado antes de qualquer apreensão ou julgamento. 

O ‘ver’ imediato, não meramente o ver sensível, empírico, mas o ver em geral, como consciência doadora originária, não importa qual seja a sua espécie, é a fonte última de legitimidade de todas as afirmações racionais. Ela só tem função legitimadora, porque é e enquanto é doadora originária[38].

A intuição dá algo a ver para a consciência, mesmo quando sua doação se mostra como uma evidência inadequada, isto é, quando não há uma objetividade plenamente preenchida entre ato intencional e seu conteúdo intuitivo. Por exemplo, a experiência do outro é uma evidência inadequada, pois ela é dada, mas não há um ato intencional e um conteúdo do qual se pode adequar como outro. Para Husserl, o outro é constituído como estranho na experiência[39]. Por isso, o sujeito e o outro são vistos como mônadas fechadas em si mesmas, possuindo experiências correspondentes e vistas para si, invisíveis para os outros. Em outras palavras, vemos uns aos outros como pessoas que são corpos psicofísicos, mas a experiência por empatia mostra que junto com a experiência perceptiva que é visível, também constituímos certa ausência do outro eu encarnado, remetendo suas vivências ou como ele experimenta o mundo. Mas essa invisibilidade é dada por intuição, pois é ela que determina a possibilidade ou não do aparecimento. A possibilidade de ver é intuitiva, algo se mostra para a vista do sujeito, e com isso ele pode apreender este dado como objetivo (ou que excede toda a objetividade), segundo seus modos possíveis de apreensão.

 

“Aprendendo a ver” com Dom Juan

 

Na perspectiva literária, Carlos Castaneda relata que o interesse especial de Dom Juan era o de lhe ensinar a “ver”. Em “Viagem a Ixtlan” Castaneda afirma que o argumento de Dom Juan sobre a aprendizagem de feitiçaria era que ele “estava ensinando a ‘ver’ em oposição a simplesmente ‘olhar’, e que ‘parar o mundo’ era o primeiro passo para ‘ver’”[40]. Portanto, para ver a pessoa teria que utilizar a técnica de “parar o mundo”[41], que consistia em romper com certa descrição dogmática na qual “comprimimos” a realidade de acordo com a validade costumeira de nossa interpretação. Nessa forma perceptiva passamos a olhar o mundo em conformidade com o modo que o aglutinamos (apreendemos), a partir de um ponto descritivo, enquanto ver consistiria em “deslocar o ponto de aglutinação”, e presenciar outros domínios de possibilidade e manifestação, anterior a qualquer interpretação. “Para um feiticeiro, o mundo da vida diária não é real, como acreditamos que seja. Para um feiticeiro, a realidade, ou o mundo que todos conhecemos, é apenas uma descrição”[42]. No ensinamento de Dom Juan, havia a possibilidade de realizar a diferença entre “olhar” e “ver”[43], constituindo duas maneiras distintas da percepção.

 ‘Olhar’ referia-se a qualquer maneira comum em que estejamos acostumados a perceber o mundo, enquanto ‘ver’ encerra um processo muito complexo, em virtude do qual um homem de conhecimento supostamente percebe a ‘essência’ das coisas do mundo[44].

Castaneda não entendia o que significava ver, de modo que Dom Juan nunca lhe deu uma descrição exata de como é ver, mas sugeriu que seu aprendiz deveria, por si mesmo, aprender a ver e experimentá-lo. Para aprender a ver deveria seguir fielmente o “caminho do guerreiro”, praticando as técnicas necessárias para chegar à realização do caminho do conhecimento ou o “ver do feiticeiro”.  Esse ver consistia ser também uma descrição entre tantas outras, mas aprimorada para algo essencial, uma descrição mais “fluida” e compacta. “Tudo é um entre um milhão de caminhos [un camino entre cantidades de caminos]. (...) Todos os caminhos são os mesmos: não conduzem a lugar algum”[45].

Nos acostumamos a enxergar o mundo de uma determinada maneira, talvez por conta do modo como nossos pais, professores ou instrutores nos ensinaram a olhar para certa descrição de mundo. E, muitas vezes, imersos numa ingenuidade, mantemos certa relação dogmática com nossa descrição, repetindo ou reproduzindo o que nos foi ensinado, enrijecendo nosso “ponto de aglutinação” em uma descrição específica da qual alimentamos com nosso “diálogo interno”[46]. Assim, o diálogo interno é o que mantém nossa aglutinação de mundo numa posição fixa, dizendo para nós mesmos que “o mundo é isso e aquilo somente porque falamos conosco, dizendo que ele é isso e aquilo”[47]. Ignoramos outras possibilidades e nos instalamos no reino do conhecido e funcional.

Um exemplo prático e essencial que Dom Juan exigia que Castaneda erradicasse de sua via era a autoimportância ou vaidade[48]. Aprendemos e acreditamos que somos importantes, e dizemos isso para nós mesmos, sentindo-nos muito importantes. Com isso, enfraquecemo-nos quando somos “ofendidos pelos feitos e desfeitas de nossos semelhantes. Nossa vaidade faz com que passemos a maior parte de nossas vidas ofendidos por alguém”[49]. Mas tudo isso se desfaz quando o guerreiro utiliza algumas estratégias, lidando com “pequenos tiranos”[50], por exemplo, ou quando aprende a ver.

Aprendemos a pensar sobre tudo (...) e depois exercitamos nossos olhos para olharem como pensamos a respeito das coisas que olhamos. Olhamos para nós mesmos já pensando que somos importantes. E, por isso, temos de sentir-nos importantes! Mas quando o homem aprende a ver, entende que não pode mais pensar a respeito das coisas que ele olha, tudo fica sem importância[51].

Conforme Ana Maria Ramo Y Affonso, para chegar a compreensão da insignificância de todos os caminhos, o aprendiz deve, primeiramente, lançar-se no aprendizado de uma nova descrição, conforme os atributos e técnicas essenciais do caminho do guerreiro, que é “diferente daquela com a qual está comprometido, de modo a compreender a existência de várias descrições. Uma vez que o guerreiro percebe a relatividade do objetivo, e não só do subjetivo, ele é capaz de passar pela fissura, de se enfiar por entre as descrições”[52].

Na concepção que Dom Juan passava a Carlos, todos nós temos um ponto costumeiro em que aglutinamos o mundo, e esse ponto produz um alinhamento do modo como percebemos as coisas. Todo o trabalho de Dom Juan com seu aprendiz consistia em deslocar seu ponto de aglutinação fixo, típico do homem ocidental que tem todo seu fazer baseado na razão. Quando o ponto de aglutinação se desloca, provoca um alinhamento com outros estados de realidade ou “mundos inteiramente diferente daquele que conhecemos”[53]. Isso pode ser experimentado também quando sentimos, por exemplo, muita fome ou sede, estados febris ou de extremo terror, tirando-nos do modo ordinário e costumeiro para algo que antes era incomum. Mas o essencial para movimentar o ponto de aglutinação é que a pessoa disponha de “energia pessoal” para poder encarar e suportar alinhamentos extraordinários. “Sem a energia suficiente – disse Dom Juan – a força de alinhamento é esmagadora”[54].

Entretanto, qual seria o motivo de mudarmos nossa concepção de mundo, uma vez que todo ser humano já está destinado a constituir uma relação com alguma descrição? Para o homem de conhecimento é preciso aprender outras possibilidades de ver a realidade constitutiva[55], aquela que de alguma forma, nos torne imparciais longe de qualquer tipo de julgamento ou limitação, mais impecáveis e fluidos, permitindo-nos ver além do que está estabelecido por uma determinada sociedade ou cultura[56]. Para Dom Juan, o objetivo dos guerreiros no mundo é um constante treinamento “para serem testemunhas imparciais; assim compreenderão o mistério de nós mesmos e desfrutarão a alegria de descobrir o que realmente somos. Esta é a mais elevada das metas dos novos videntes. E nem todo guerreiro atinge”[57]. Mas o que é preciso compreender ou fazer para alcançar a imparcialidade? Segundo Dom Juan, “para tornarmo-nos testemunhas imparciais, começamos por compreender que a fixação ou o deslocamento do ponto de aglutinação é tudo o que existe para nós e para o mundo que testemunhamos, seja qual for este mundo”[58].

Com a utilização das técnicas e com disciplina, um guerreiro pode deslocar seu ponto de aglutinação costumeiro, perpassar por diversos alinhamentos sustendo seu julgamento, testemunhando imparcialmente o que se manifesta para si e compreendendo que se trata apenas de uma descrição. Dessa forma ele vê e sabe. “Ver, portanto, sendo produzido por um alinhamento fora do comum, não pode ser algo para que alguém possa realmente olhar”[59], e “só ocorre quando o guerreiro consegue parar o diálogo interno”[60]. Portanto, “ver é um eufemismo para o deslocamento do ponto de aglutinação”[61].

Pode acontecer que o aprendiz nunca consiga de fato aprender a “ver”, então “terá de viver toda sua vida como um guerreiro”[62]. Agora, quando um homem aprende a ver, ele pode compreender o mundo e viver guiado pela sua visão, orientando sua vida de acordo, não necessitando viver como guerreiro, feiticeiro ou qualquer outra coisa. Segundo Dom Juan:

Quando se aprende a ver, não é mais preciso viver como guerreiro, nem ser feiticeiro. Ao aprender a ver, o homem torna-se tudo, tornando-se nada. Por assim dizer, desaparece, e no entanto continua ali. Eu diria que essa é a ocasião em que o homem pode ser ou conseguir tudo o que deseja. Mas não deseja nada, e em vez de brincar com seus semelhantes como se fossem brinquedos, ele os encontra no meio da loucura deles. A única diferença entre eles é que o homem que vê controla sua loucura, enquanto que seus semelhantes não o conseguem. Um homem que vê não tem mais um interesse ativo por seus semelhantes. Ver já o desprendeu de tudo o que conhecia antes. (...) Ver é para homens impecáveis. Tempere seu espírito agora, torna-se um guerreiro, aprenda a ver, e depois saberá que não há um limite para os novos mundos, para a nossa visão”[63].

De certa maneira, ver consiste em saber que qualquer descrição de mundo é uma entre tantas outras. Ver se deve a certa predileção do feiticeiro, que vê, porque esse é seu intento e preferência, assim como dançar é para o dançarino, caçar é para o caçador, falar para quem quer dar explicações racionais, arte para o artista etc. Cada perspectiva depende de uma aparição fenomênica segundo seus modos de ver. Esses modos podem ser levados em consideração quando o homem quer conhecer, mas para isso ele precisa se lançar numa descrição de mundo do qual contemple seu ser intentado. No entanto, para Dom Juan, não devemos confundir ver com feitiçaria. São coisas distintas, mas facilmente confundidas. Um homem pode aprender a ver sem ser um feiticeiro, e alguém pode ser um feiticeiro e nunca aprende a ver[64].  Pois, “mais importante do que ver é o que os videntes fazem com o que veem[65].

Para Dom Juan, em suma, ver é uma técnica que devemos aprender e, portanto, “deve ser exato, pois um guerreiro não pode usar seu tempo para descobrir o que ele mesmo está vendo. Ver é ver porque elimina todas essas tolices”[66]. E “quando um feiticeiro tenta ver, ele está tentando conseguir poder”[67]. Há vários modos de intentar o poder através do ver, como, por exemplo, perguntar “e através de seu ver obter uma resposta, mas a reposta é simples, nunca embelezada ao ponto de poodles franceses voadores”[68]. Assim, “ver é deixar a nu o núcleo de todas as coisas, testemunhar o desconhecido e ter um vislumbre do incognoscível”[69].

 

Considerações finais

 

O que se destaca nas obras de Castaneda e que é o ponto crucial para a filosofia do guerreiro, é a tentativa de romper com certa concepção de mundo que faz do homem herdeiro e prisioneiro da tradição ou do seu nascimento. Desde o primeiro dia que nos fazemos presentes nesse mundo, fomos constantemente projetados a assimilar um determinado modo de olhar para as coisas, dentre as quais, para algumas damos mais importância do que outras. Aprendemos a conceituar, julgar e abarcar os objetos, pessoas e coisas que se apresentam em nossa percepção, e que formam a ilha do nosso tonal. E uma vez que aprendemos o que “são” tais coisas, nunca mais nos ocorre que elas poderiam ser visadas diferentes do que são.

Ao contrário desse modo de olhar do homem comum, para o guerreiro, o mundo que se apresenta e o que podemos dizer sobre ele remete apenas a uma descrição. Assim também o é para a fenomenologia, principalmente quando Husserl descreve os modos de apreensão dos objetos que se doam para a consciência. É que para Husserl, nós podemos captar os mesmos objetos sobre diversos atos, e descrevê-los tais como se apresentam. Para o guerreiro parece que não é tanto uma questão intelectual ou apenas descritiva, mas é necessário uma modificação radical de visão de mundo – daquela que estamos habituados pelo fazer das rotinas – através do parar o mundo.  Já para a fenomenologia, a partir de uma nova atitude, o fenomenólogo observa os modos que os vividos correm na consciência, apreendendo o que é invariável em todos eles, ou seja, a essência invariável de um dado puro é o que ele é independentemente do modo como ele se dá.

Husserl é um homem de ciência, portanto, suas descrições fazem parte do contexto em que ele precisa diferenciar as ciências empíricas das ciências eidéticas, e outorgar para as últimas, um status em que as pesquisas na área de filosofia possam ser dadas de acordo com as essências de suas investigações. Essa essência é descrita como a intencionalidade da consciência, evidência sob a qual toda a fenomenologia se fundamenta como ciência. Nas Ideias I é notável o esforço para mostrar ao principiante em fenomenologia um modo de fazer filosofia, partindo do que pode ser visto em sua essência mesma, dado em aparições, considerando outros modos possíveis de doação e descrição, além daquelas construídas pelas ciências empíricas. A fenomenologia começa com uma atitude que a diferencia do homem natural. Para um fenomenólogo é o dado puro que conta, como se mostra na experiência, segundo sua essência de aparecimento.

Em suma, o que podemos aprender com as descrições das experiências de Castaneda com Dom Juan e com a fenomenologia de Husserl é que ambas propõem uma mudança de atitude diante das descrições de mundo: o guerreiro precisa se distanciar daquele olhar do homem comum, vendo o que realmente somos e todas as possibilidades da qual somos capazes de nos ajustar.  Na fenomenologia de Husserl procuramos ver o que é essencial em todas as descrições, ou o que nos resta depois de efetuarmos uma redução radical sobre todos os vividos da consciência. Portanto, em ambos os casos, não se trata de uma doutrina de conceitos que deveríamos seguir, mas fazer a experiência, através do método fenomenológico e “parar o mundo”, para podermos realmente testemunhar em todo ver aquilo que é essencial, sem resquício de dúvida. O que vemos servirá de guia e não a interpretação que é dada antes de nossa visão. 

 

Referências

 

BRAGA, Corin. Carlos Castaneda: the uses and abuses of ethnomethodology and emic studies. Journal for the Study of Religions and Ideologies (SACRI), Cluj-Napoca, Vol. 9, No. 27, Winter 2010, pp. 71-106. Disponível em: <http://jsri.ro/ojs/index.php/jsri/article/view/471/469> Acesso em: 29 set. 2020.

 

CASTANEDA, Carlos. A erva do diabo. Tradução de Luiza Machado Costa. 30ª ed. revista. Rio de Janeiro: Record: Nova Era, 2004.

 

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CASTANEDA, Carlos.  O poder do silêncio. Tradução de Antonio Trânsito. Rio De janeiro: Record, 1988.

 

CASTANEDA, Carlos.  Porta para o Infinito. Tradução de Luiza Machado Costa. 15ª ed. revista. Rio de Janeiro: Record: Nova Era, 2003.

 

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HEIDEGGER, Martin. Meu caminho para a fenomenologia. In: Conferências e escritos filosóficos. (Os Pensadores). Tradução e notas de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

 

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HUSSERL, Edmund.  Investigações Lógicas: investigações para a fenomenologia e a teoria do conhecimento. Tradução de Pedro M. S. Alves, Carlos A. Morujão. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

 

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RAMO Y AFFONSO, Ana Maria. O corpo do Xamã e a Passagem de Carlos Castaneda. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008. Disponível em: <https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/VCSA-7EKJ7B> Acesso em: 29 set. 2020.

 

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SOKOLOWSKI, Robert. Introdução à fenomenologia. São Paulo: Loyola, 2004.

 

ZAHAVI, Dan. A fenomenologia de Husserl. 1ª ed.  Rio de Janeiro: Via vérita, 2015.

 

 



[1] “Esta palavra espanhola pode ser traduzida por feiticeiro ou curandeiro” (CASTANEDA, Uma estranha realidade, 11).

[2] No decorrer das obras, Dom Juan não tinha um nome específico para o tipo de conhecimento que praticava. Isso se torna notável na introdução da obra “O poder do silêncio” em que Carlos escreve: “Em várias ocasiões Dom Juan tentou, para o meu proveito, dar nome ao seu conhecimento. Ele sentia que o nome mais apropriado era nagualismo, mas que o termo era obscuro demais. Chamá-lo simplesmente “conhecimento” tornava-o vago, e chamá-lo “bruxaria” seria rebaixá-lo. “A mestria do intento” era muito abstrata, e “a busca da liberdade total” longa demais e metafórica. Finalmente, por ser incapaz de encontrar um nome mais apropriado, chamou-o “feitiçaria”, embora admitisse não ser realmente adequado” (CASTANEDA, O poder do silêncio, 10).

[3] É relevante analisarmos que esta questão não é central nos ensinamentos de Dom Juan. O mesmo indagava seu aprendiz acerca de seu interesse pelo conhecimento das plantas, sobretudo do peiote, respondendo que somente iria tratar da solicitação de seu desejo de saber se Castaneda possuísse a necessária clareza de espírito e propósito; ou seja, era preciso conhecer o próprio íntimo e saber exatamente o porquê querer se envolver (Cf. CASTANEDA, A erva do diabo, 49-50). O que é relevante no caminho do conhecimento dado por Dom Juan é uma vida de impecabilidade, “porque todos temos certas ideias que devem ser quebradas para que sejamos livres; o vidente que viaja para o desconhecido a fim de ver o incognoscível deve encontrar-se em um estado impecável de ser” (CASTANEDA, Fogo interior, 253).

[4] “Por cognição, entende-se os processos responsáveis pela percepção da vida cotidiana, processos que incluem memória, experiência, consciência e o uso especializado de qualquer sintaxe dada. A ideia de cognição era, naquele momento, meu maior obstáculo. Era inconcebível para mim, um homem ocidental erudito, que cognição, como é definida pelo discurso filosófico de hoje em dia, não pudesse ser nada além de um assunto homogêneo e abarcante para toda a humanidade. O homem ocidental está inclinado a considerar que diferenças culturais poderiam justificar formas singulares de definir fenômenos, mas diferenças culturais não poderiam possivelmente justificar processos de memória, experiência, percepção e o uso especializado de linguagem, a não ser em processos conhecidos para nós. Em outras palavras, para o homem ocidental, só existe cognição como um grupo de processos gerais” (CASTANEDA, A erva do diabo, 13-14).

[5] CASTANEDA, A erva do diabo, 14.

[6] CASTANEDA, Uma estranha realidade, 19.

[7] Ordem das quatro primeiras obras que foram traduzidas do inglês para o português com as datas das publicações originais: 1. Erva do diabo (1968); 2. Uma estranha realidade (1971); 3. Viagem a Ixtlan (1973); 4. Porta para o infinito (1975).

[8] Palmer diz que possivelmente “a introdução de Castaneda à fenomenologia pode ter se dado através de seu professor Harold Garfinkel, membro de um pequeno grupo de sociólogos que respondem ao nome pesado de "etnometododologistas", cuja escola tem conexões definidas com o trabalho do fenomenólogo Schutz” (PALMER, Carlos Castaneda and the Phenomenology of Sorcery, 40). A etnometodologia é “uma hermenêutica que leva em conta a premissa de que todas as visões de mundo são subjetivas ou ‘intersubjetivas’, já que são fruto do consenso entre um grupo de pessoas” (BRAGA, Carlos Castaneda: the uses and abuses of ethnomethodology and emic studies, 77).

[9] Para Palmer, a descrição da feitiçaria sublinha um ponto em comum com a epoché praticada por Husserl para se chegar aos dados puros da consciência. No entanto, o que diferencia a fenomenologia e a prática de Dom Juan são as especificidades da utilização da técnica: “Esta é a epoché de Husserl, a tentativa de chegar o mais próximo possível dos "dados puros" da consciência. Juan Matus e Edmund Husserl podem concordar com a primeira etapa do processo, mas não com as especificidades da técnica. Onde o filósofo emprega um formato rigorosamente técnico, o feiticeiro emprega terror. Através de uma enxurrada de experiências assustadoras induzidas por drogas e trapaças, Dom Juan força o antropólogo a abandonar suas suposições e categorias normais” (PALMER, Carlos Castaneda and the Phenomenology of Sorcery, 40).

[10] PALMER, Carlos Castaneda and the Phenomenology of Sorcery, 40.

[11] “Independentemente de como possamos abordá-los, os escritos de Castaneda são muito profundos para serem meras falsificações. Embora possamos não acreditar na existência supranatural que propõem, eles apresentam uma filosofia de vida que pode ter uma eficácia humana, do tipo que é encontrado, digamos, em tratados de estoicismo moral ou cristão. (...) Além disso, se ele fosse um mero embusteiro, Castaneda não teria experimentado, como de fato experimentou, suas próprias invenções.” (BRAGA, Carlos Castaneda: the uses and abuses of ethnomethodology and emic studies, 87-88).

[12] Husserl pensa a fenomenologia como uma ciência de possibilidades, e nisso pode ser incluído fenômenos que não se traduzem facilmente à consciência, como o absurdo, o contra-senso, o impossível e o invisível. No entanto, todos esses fenômenos podem ser tratados fenomenologicamente pelo simples fato de aparecerem. Husserl diz: “(...) temos de reconhecer que, de certo modo, também o contra-senso, o plenamente absurdo está ‘dado’. Um quadrado redondo não aparece na fantasia como me surge o [cavaleiro] que mata o dragão; e também não na percepção, como uma coisa exterior qualquer; mas existe aí, no entanto, de modo evidente, um objeto intencional. Posso descrever o fenômeno ‘pensamento de um quadrado redondo’, no tocando ao seu conteúdo ingrediente, mas o quadrado redondo não está nele e, no entanto, é evidente que está pensado neste pensamento e que ao pensado como tal [o pensamento] atribui justamente a redondez e a quadratura, ou o que o objeto desse pensamento é redondo e ao mesmo tempo quadrado” (HUSSERL, A ideia da fenomenologia, 102).

[13] CASTANEDA, Porta para o infinito, 35.

[14] CASTANEDA, Porta para o infinito, 35.

[15] “Os novos videntes chamam as emanações enfatizadas do lado direito, consciência normal, o tonal, este mundo, o conhecido, a primeira atenção. O homem médio chama-as de realidade, racionalidade, senso comum” (CASTANEDA, Fogo interior, 114).

[16] Carlos queria explicações racionais e objetivas sobre o nagual, mas Dom Juan achava que isso era estupidez. Num diálogo ele diz à Carlos: “- Nunca fiz restrições às conversas – disse ele. – Podemos falar sobre o nagual quanto quiser, contanto que não tente explicá-lo. Se você se recorda, eu disse que o nagual é só para ser presenciado. Assim, podemos conversar sobre o que presenciamos e como presenciamos. Mas você quer ter a explicação de como tudo isso é possível, e isso é uma abominação. Você quer explicar o nagual pelo tonal. É estupidez, especialmente em seu caso, pois você não pode mais esconder-se por trás de sua ignorância. Sabe perfeitamente que só fazemos sentido ao falar porque ficamos dentro de certos limites, e esses limites não se aplicam ao nagual” (CASTANEDA, Porta para o infinito, 228).

[17] Cf. CASTANEDA, Porta para o infinito, 145.

[18] “Podemos dizer que o tonal é como o tampo desta mesa. Uma ilha. E nesta ilha temos tudo. Esta ilha, de fato, é o mundo. Existe um tonal pessoal para cada um de nós, e existe um coletivo para todos nós em dado momento, que podemos chamar de tonal dos tempos” (CASTANEDA, Porta para o infinito, 150).

[19] CASTANEDA, Porta para o infinito, 149.

[20] “As coisas do nagual só podem ser presenciadas pelo corpo, não pela razão” (CASTANEDA, Porta para o infinito, 189).

[21] CASTANEDA, Porta para o infinito, 169.

[22] CASTANEDA, Porta para o infinito, 151.

[23] CASTANEDA, Porta para o infinito, 168-169.

[24] Em Castaneda, a diferença é entre o guerreiro e o homem comum: “A diferença básica entre um homem comum e um guerreiro é que um guerreiro aceita tudo como um desafio – continuou ele -, enquanto que um homem comum aceita tudo ou como uma benção ou como uma praga” (CASTANEDA, Porta para o infinito, 130).

[25] A epoché deve começar com a ausência de pressupostos: “a epoché, que a crítica do conhecimento deve exercitar, não deve ter o sentido de que ela não só comece por, mas também persista em impugnar todos os conhecimentos – ergo, também os seus próprios –, não deixando valer dado algum, portanto, também não aqueles que ela própria estabelece. Se nada lhe é permitido pressupor como previamente dado, deve então por começar por algum conhecimento, que ela não toma sem mais de outro lado, mas antes a si mesma o dá, que ela própria põe como conhecimento primeiro” (HUSSERL, A ideia da fenomenologia, 53).

[26] Para Husserl, a passagem do olhar para o ver resulta de uma modificação dos vividos originários. Tomamos por exemplo, a percepção de um papel branco. No olhar estamos voltados para o papel “concreto” e situado espaço-temporalmente, direcionamo-nos ao objeto material particular e o apreendemos como aqui e agora. No ver, voltamo-nos para o vivido, o ato de percepção que apreende o objeto papel, ou seja, intuímos o que significa a percepção de um objeto percebido. Não estamos mais interessados no olhar particular do objeto, mas a essência da percepção em geral. Para Husserl, “faz parte dessa essência que certas modificações do vivido originário sejam possíveis, modificações que designamos como livre mudança do ‘olhar’ – não exatamente e meramente o olhar físico, mas do ‘olhar do espírito’ – do papel visto primeiro de modo originário para os objetos que antes já apareciam, objetos, portanto, de que se estava ‘implicitamente’ consciente, os quais, após a mudança do olhar, se tornam explícitos para a consciência, são percebidos ‘com atenção’ ou ‘notados concomitantemente’ (HUSSERL, Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, 87).

[27] Cf. SOKOLOWSKI, Introdução à fenomenologia, 56.

[28] HUSSERL, Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, 35.

[29] ZAHAVI, A fenomenologia de Husserl, 67.

[30] ZAHAVI, A fenomenologia de Husserl, 67.

[31] ZAHAVI, A fenomenologia de Husserl, 67.

[32] HUSSERL, Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, 27.

[33] REINACH, Introducción a la fenomenologia, 21.

[34] REINACH, Introducción a la fenomenologia, 22-23.

[35] Cf. HEIDEGGER, Meu caminho para a fenomenologia, 297.

[36] HEIDEGGER, Meu caminho para a fenomenologia, 299.

[37] Por mais que as Investigações Lógicas sublinham uma consciência anônima, Husserl, num adendo da segunda edição dessa obra, faz referência ao ego puro. Para Husserl, “ser eu não significa ser objeto, mas, perante todo e qualquer objeto, ser aquele para quem qualquer coisa é um objeto. O mesmo vale para a relação com o eu. Ser para a consciência significa ser objeto para um eu: este ser-objeto não se deixa, por seu turno, converter num objeto” (HUSSERL, Investigações Lógicas, 309).

[38] HUSSERL, Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, 62.

[39] Cf. HUSSERL, Meditações cartesianas, p. 109.

[40] CASTANEDA, Viagem a Ixtlan, 9.

[41] “Parar o mundo era, de fato, uma descrição apropriada de certos estados de consciência em que a realidade da vida diária se altera porque o fluxo da interpretação, que normalmente corre ininterruptamente, foi detido por uma série de circunstâncias alheias àquele fluxo. Em meu caso, a série de circunstâncias alheias a meu fluxo normal de interpretação foi a descrição feiticeira do mundo” (CASTANEDA, Viagem a Ixtlan, 12). Parar o mundo envolvia outras técnicas auxiliares, como: apagar a história pessoal, perder a importância própria, assumir a responsabilidade, usar a morte como conselheira, aprender a ser inacessível, romper com as rotinas diárias, não fazer etc.

[42] CASTANEDA, Viagem a Ixtlan, 8.

[43] “Sempre que você olha para as coisas, não as . Apenas olha para elas, suponho que para se certificar de que há alguma coisa ali. Como não está preocupado em ver, as coisas parecem as mesmas cada vez que olha para elas. Mas quando aprende a ver, por outro lado, uma coisa nunca é a mesma cada vez que você a , e no entanto é a mesma. Já lhe disse por exemplo, que o homem é como um ovo. Cada vez que vejo o mesmo homem, eu vejo um ovo, e no entanto não é o mesmo ovo” (CASTANEDA, Viagem a Ixtlan, 38).

[44] CASTANEDA, Uma estranha realidade, 13.

[45] CASTANEDA, A erva do diabo, 141. Aqui que o guerreiro se encontra numa ambiguidade: mesmo sabendo que todos os caminhos são iguais, precisa continuar acreditando em algo, mas dessa vez uma caminho que faça sentido para sua existência. Precisa acreditar em seus atos. “Em outras palavras, o segredo de um guerreiro é que ele acredita sem acreditar. Mas um guerreiro não pode dizer simplesmente que acredita e deixar as coisas por isso mesmo. Isso seria fácil demais. Simplesmente acreditar o desobrigaria de examinar sua situação. Um guerreiro, sempre que tem de se envolver em acreditar, faz isso conscientemente, como expressão de sua escolha mais íntima. Um guerreiro não acredita simplesmente: um guerreiro tem de acreditar” (CASTANEDA, Porta para o infinito, 131).

[46] Para Dom Juan “o diálogo interno é um processo que fortalece constantemente a posição do ponto de aglutinação, porque essa posição é arbitrária e necessita de reforço constante” (CASTANEDA, Fogo interior, 134-135).

[47] CASTANEDA, Porta para o infinito, 24.

[48] Para Dom Juan, o “O peso da vaidade é um empecilho terrível” (CASTANEDA, Fogo interior, 27). Por isso, “(...) nas listas estratégicas dos guerreiros, a vaidade figura como atividade que consome maior quantidade de energia, daí seu esforço por erradicá-la. – Uma das preocupações dos guerreiros é liberar aquela energia para poder encarar o desconhecido com ela – continuou Dom Juan. – A ação de recanalizar aquela energia é a impecabilidade” (CASTANEDA, Fogo interior, 29).

[49] CASTANEDA, Fogo interior, 26.

[50] Dom Juan tinha classificações próprias dos pequenos tiranos. O guerreiro usava estrategicamente um pequeno tirano (um atormentador) afim de radicar a vaidade de sua vida, mas também para deleite. A ideia de usar um pequeno tirano não serve apenas para aperfeiçoar o espírito de guerreiro, mas também para diversão e felicidade” (CASTANEDA, Fogo interior, 37).

[51] CASTANEDA, Uma estranha realidade, 77. Nesse sentido Dom Juan distingue “valor” de “importância”.  “Eu não disse sem valor. Falei sem importância. Tudo é igual, e dessa forma sem importância. Por exemplo, não há meio de eu dizer que meus atos sejam mais importantes do que os seus, ou que uma coisa seja mais essencial que a outra; e, portanto, todas as coisas são iguais, e sendo iguais são sem importância” (CASTANEDA, Uma estranha realidade, 78).

[52] RAMO Y AFFONSO, O corpo do xamã e a passagem de Carlos Castaneda, 78.

[53] CASTANEDA, Fogo interior, 142.

[54] CASTANEDA, Fogo interior, 146.

[55] “O homem só vive para aprender. E se aprende é porque é essa a natureza de seu destino, para melhor ou para pior” (CASTANEDA, A erva do diabo, 91).

[56] “Dom Juan Matus e os xamãs de sua linhagem consideram consciência como o ato de estar deliberadamente consciente de todas as possibilidades perceptivas do homem, não apenas as possibilidades perceptivas ditadas por qualquer determinada cultura, cujo papel parece ser o de restringir a capacidade perceptiva de seus membros” (A Erva do Diabo, p. 21).

[57] CASTANEDA, Fogo interior, 148.

[58] CASTANEDA, Fogo interior, 148.

[59] CASTANEDA, Fogo interior, 64.

[60] CASTANEDA, Porta para o infinito, 38-39.

[61] CASTANEDA, Fogo interior, 217.

[62] CASTANEDA, Uma estranha realidade, 138.

[63] CASTANEDA, Uma estranha realidade, 141.

[64] Cf. CASTANEDA, Uma estranha realidade, 154.

[65] CASTANEDA, Fogo interior, 53.

[66] CASTANEDA, Porta para o infinito, 184.

[67] CASTANEDA, Uma estranha realidade, 89.

[68] CASTANEDA, Porta para o infinito, 185.

[69] CASTANEDA, Fogo interior, 63.