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Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 16, n. 2, e93646, 2025
Submissão: 11/09/2025 • Aprovação: 22/09/2025 • Publicação: 26/09/2025
Traduções
Os filósofos e o coração: apresentação à tradução de “Coração: a ideia em si”, de Stephen Darwall
The Philosophers and the Heart: Introduction to the Translation of “Heart, the Very Idea,” by Stephen Darwall
I Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil
RESUMO
O objetivo desta apresentação é introduzir a tradução para a língua portuguesa do Capítulo 1 da obra The Heart and Its Attitudes, do filósofo norte-americano Stephen Darwall. Nesta apresentação, o tradutor contextualiza o pensamento de Darwall dentro da tradição da filosofia moral analítica, com destaque para sua proposta de expandir a teoria das atitudes reativas de segunda pessoa para além do domínio deôntico. O capítulo propõe uma distinção entre atitudes da vontade, como o respeito, a culpa e a indignação, e atitudes do coração, como o amor, o remorso e a gratidão, destacando que ambas compartilham uma estrutura relacional de segunda pessoa. A apresentação enfatiza a relevância conceitual da noção de “competência afetuosa do coração”, introduzida por Darwall, segundo a qual a capacidade de estabelecer conexões afetivas profundas depende de uma abertura mútua entre corações. Ao interpretar o amor e outras emoções afetuosas (confiança, gratidão, raiva) como atitudes normativamente significativas, ainda que não moralmente requeridas, Darwall oferece uma contribuição original para a filosofia moral, propondo que o coração, assim como a vontade moral, é intrinsecamente relacional e normativamente estruturado.
Palavras-chave: Emoções; Segunda pessoa; Coração; Moralidade; Respeito; Amor; Responsabilidade; Vulnerabilidade
ABSTRACT
Keywords: Emotions; Second-person; Heart; Morality; Respect; Love; Responsibility; Vulnerability
A tradição da filosofia moral e da filosofia das emoções tem dado pouca atenção à linguagem do coração, à ideia de que há algo filosoficamente relevante em se falar de experiências e atitudes sentidas com o coração. Ainda que expressões como “de coração”, “com amor”, ou “do fundo do coração” estejam presentes em nossa linguagem e cultura há centenas de anos, e que o estudo das emoções tenha crescido significativamente nas últimas décadas, persiste uma resistência à ideia de que o coração possa oferecer não apenas uma metáfora poética, mas um ponto de partida legítimo para investigações filosóficas sérias sobre nossa vida moral.
É nesse cenário que se insere o capítulo inaugural da obra The Heart and Its Attitudes, do filósofo norte-americano Stephen Darwall, obra lançada em 2024, cujos direitos autorais foram gentilmente cedidos pelo autor para essa tradução inédita para o português. No capítulo aqui traduzido e, mais amplamente, no livro como um todo, Darwall amplia e aborda belamente sua teoria da moralidade de segunda pessoa, apresentada em The Second-Person Standpoint (2006). No seu texto clássico, ainda inédito em português, Darwall parte da ideia de que a moralidade não se esgota em princípios abstratos nem em cálculos de consequências; ela se manifesta em práticas concretas como culpar, perdoar, respeitar ou assumir responsabilidade. O traço distintivo dessas práticas é que nelas os indivíduos se relacionam como agentes morais que se reconhecem mutuamente como dotados de autoridade moral e capacidade de responsabilização recíproca. Essa autoridade não é apenas a capacidade de agir segundo normas, mas a faculdade de dirigir exigências aos outros e de ser, ao mesmo tempo, destinatário legítimo de exigências. Nesse sentido, o caráter “de segunda pessoa” da moralidade se conecta ao papel das atitudes reativas, como o ressentimento, a indignação ou a gratidão. Essas atitudes são modos legítimos de nos dirigirmos ao outro a partir de uma posição de autoridade. Quando alguém sente ressentimento, por exemplo, está reagindo não apenas a um dano sofrido, mas à violação de uma exigência que reconhece como legítima, cuja fonte é a própria autoridade para reivindicar respeito. Do mesmo modo, pedir desculpas implica reconhecer a autoridade moral do outro. Para Darwall, portanto, a moralidade é essencialmente relacional e reciprocante (reciprocating): ela nasce do reconhecimento de que o outro tem autoridade sobre nós, assim como nós temos autoridade sobre ele. Essa estrutura de exigências mútuas fundamenta a normatividade moral de um modo específico, diferente da obediência a convenções sociais ou ao medo de punições externas. O que confere peso moral às nossas ações é, em última instância, o fato de que podemos ser interpelados por outros agentes que têm legitimidade para nos pedir razões, cobrar reparações e exigir atitudes. Assim, ele mostra que essas atitudes constituem o núcleo de uma ética fundamentada na autoridade moral relacional, em contraste com abordagens que tratam a moralidade como um sistema de normas impessoais. Em síntese, as atitudes morais envolvem uma estrutura fundamental de segunda pessoa: são voltadas a um outro que é interpelado não como objeto, mas como alguém com quem se deseja estar em relação mútua.
O desenvolvimento da teoria das atitudes morais de segunda pessoa ou atitudes de reciprocidade se vincula diretamente à filosofia de P. F. Strawson, especialmente à sua análise das atitudes reativas no ensaio clássico Freedom and Resentment. Strawson não define de modo estrito o que são atitudes reativas, mas destaca que elas são experienciadas a partir de uma perspectiva participante ou, como Darwall reformula, uma perspectiva de segunda pessoa, na qual os indivíduos se veem mutuamente como agentes morais com autoridade para fazer reivindicações morais e responsabilizar-se mutuamente. No capítulo aqui traduzido de The Heart and its attitudes, Darwall pretende avançar ainda mais na compreensão das atitudes reativas, sustentando que um grupo particular dessas atitudes, as atitudes que ele chama de “atitudes do coração” podem ser também compreendidas como atitudes de segunda pessoa. A proposta de Darwall é ousada e original: mostrar que, assim como há uma competência de segunda pessoa para o respeito e a responsabilização (o que Darwall chama de competência deôntica), há também uma competência não-deôntica, afetiva ou do coração, baseada em nossa capacidade de abrir o coração ao outro, de nos tornarmos vulneráveis, e de responder emocionalmente de forma significativa. Tal como o respeito pressupõe que o outro seja digno de consideração moral, o amor pressupõe que o outro seja digno de amor, e essa dignidade é algo reconhecido na própria relação afetiva que se estabelece. A propósito fundamental de Darwall é, assim, mostrar que há uma estrutura reciprocante comum que as atitudes do coração compartilham com as atitudes da vontade. Diferentemente das atitudes da vontade que dizem respeito à responsabilidade mútua, as atitudes do coração dizem respeito à responsividade mútua, ou seja, a abertura afetiva ao outro. A responsividade mútua indica a atitude de deixar-se afetar e reagir de uma maneira que reconhece o outro não só como agente moral, mas como uma pessoa que sente, sofre e precisa de cuidado.
O capítulo traduzido aqui percorre temas fundamentais dessa nova proposta. Além disso, mostra que atitudes como a raiva pessoal, diferentemente da indignação moral, pertencem ao domínio do coração, pois expressam não apenas a violação de uma norma, mas o rompimento de uma conexão afetiva significativa. Nesse sentido, tais emoções funcionam como guardiãs do coração, sinalizando a importância dos vínculos interpessoais não apenas em termos morais, mas em termos existenciais e relacionais. Outras seções exploram como emoções de importante significado moral e pessoal como o amor, a confiança, a esperança e a gratidão podem participar de uma estrutura moral centrada na ideia de reciprocidade e participação.
Para finalizar essa apresentação do capítulo “Coração: a ideia em si” convém abordar ainda três aspectos que ajudam a compreender a importância da defesa do lugar das atitudes do coração na ética esboçada por Darwall.
Em primeiro lugar, uma perspectiva centrada no coração introduz uma série de diferenças substanciais no domínio da ética em relação às abordagens tradicionais. Ela nos convida a deixar de ver nossos semelhantes apenas como portadores de direitos ou agentes morais autônomos para reconhecê-los como seres dignos de amor, cuidado e atenção responsiva. Essa mudança de ênfase não substitui a linguagem do dever moral e da justiça, mas a amplia, incorporando uma gramática moral mais rica, sensível às relações, à vulnerabilidade e às formas de presença afetiva. A originalidade da proposta de Darwall pode ser vista particularmente no lugar que o amor ocupa em sua abordagem das atitudes reativas. Darwall mostra que a dignidade afetiva, a capacidade de nos vermos e nos reconhecermos como seres dignos de amor, constitui a base de toda atitude do coração. Ao destacar o amor como atitude fundamental do coração, Darwall mostra que a vida moral não se esgota na normatividade do respeito, mas exige igualmente o reconhecimento do valor afetivo que sustenta nossas relações interpessoais. Darwall amplia, nesse aspecto, o modelo de análise para além do domínio estritamente deôntico da responsabilidade moral, buscando explorar o campo das atitudes do coração, ou seja, formas de disposição afetiva como o amor, o remorso, a gratidão e a confiança, que não operam por meio de exigências normativas formais, mas por aberturas emocionais e convites à reciprocidade. Em segundo lugar, o destaque dado às atitudes do coração permite traçar uma distinção entre o que poderia ser chamado de uma “perspectiva deliberativa” e uma “perspectiva avaliativa” baseada nas respostas afetivas de agentes. Enquanto a perspectiva deliberativa se concentra na posição do agente e nas razões que ele considera ao deliberar sobre o que deve fazer, ou seja, em sua racionalidade prática, a perspectiva avaliativa desloca o foco para as respostas afetivas que outros têm diante do caráter e da conduta desse agente. Em vez de perguntar apenas o que seria racional ou correto fazer em determinada situação, essa abordagem nos convida a considerar que tipos de pessoas admiramos, confiamos ou rejeitamos, em parte devido à forma como a pessoa reage aos sentimentos compartilhados. Avaliar bem o caráter, e responder a ele de maneira emocionalmente apropriada, torna-se, assim, parte central de nossa prática moral[1].
Em terceiro lugar e diferentemente de autores como Jay Wallace e Alan Gibbard, que restringem o campo das atitudes morais relevantes às emoções negativas associadas à violação de obrigações como culpa, raiva e indignação, Stephen Darwall propõe uma ampliação significativa da compreensão das atitudes reativas ao destacar também o papel das emoções positivas na vida moral. Inspirado pela distinção de P. F. Strawson entre atitudes objetificantes e participantes, Darwall defende que emoções como confiança, gratidão e amor ilustram modos de relação de segunda pessoa nos quais os indivíduos se reconhecem mutuamente como agentes morais com autoridade para reivindicar, responder e reconhecer demandas. Essas emoções não apenas expressam vínculos afetivos, mas encarnam formas de reciprocidade moral que sustentam a possibilidade de comunidades fundadas no reconhecimento mútuo. Ao adotar essa perspectiva, Darwall rompe com a tendência de enfatizar as reações negativas diante de transgressões e mostra que a vida ética também se estrutura em torno de formas positivas de reconhecimento, acolhimento e vínculo entre pessoas.
Em quarto lugar, no domínio do debate em torno da natureza das emoções, embora Darwall não se insira explicitamente nas discussões contemporâneas da afetividade situada e no desenvolvimento de uma teoria das emoções, ao insistir na estrutura de segunda pessoa como constitutiva da vida afetiva, ele oferece uma teoria relacional que articula responsabilidade, vulnerabilidade, e reconhecimento mútuo: as emoções morais são experienciadas a partir de nossa inserção significativa com outros, no mundo comum. Essa abordagem está em sintonia com desenvolvimentos recentes na filosofia das emoções, que enfatizam o caráter situado e intersubjetivo das experiências afetivas. A experiência emocional é sempre parte de um mundo compartilhado. Emoções são, assim, modos de habitar o mundo com os outros, expressando nossa vulnerabilidade fundamental à presença e às ações alheias. Elas nos ligam, nos expõem e nos tornam responsivos. A partir dessa perspectiva, Darwall contribui para uma compreensão das emoções morais como formas de coabitação afetiva, em que o reconhecimento mútuo e a abertura ao outro constituem sua própria estrutura fundamental. Nesse sentido, a vida emocional funciona como veículo de resposta e afirmação recíproca de nossa condição moral compartilhada.
A publicação deste capítulo em português busca contribuir para o avanço da filosofia das emoções no Brasil e no espaço lusófono. Ela também nos convida a refletir sobre a forma como nos relacionamos, sobre o que significa estar “com o outro” de forma sincera, e sobre como o amor, a raiva, a confiança ou o remorso estruturam nossas vidas afetivas de maneira tão profunda quanto o respeito ou o dever moral. Esperamos que esta tradução possa servir como ferramenta útil para pesquisadores e pesquisadoras interessados em moralidade, emoções e relações interpessoais, bem como inspirar novos diálogos entre a tradição analítica, a fenomenologia e a filosofia moral de base afetiva.
Coração: a ideia em si[2]
Os filósofos não costumam escrever sobre o coração. Pelo menos, os filósofos analíticos não o fazem[3]. Por que isso acontece? Dizem que os filósofos vivem “na cabeça e não no coração”. Isso representa um risco tanto para quem deseja estabelecer uma conexão emocional com os filósofos quanto, é preciso dizer, para os próprios filósofos.
Mas mesmo que os filósofos tendam a ser pessoas da cabeça e não do coração, por que não pensam nem escrevem sobre o coração? Não precisariam fazê-lo a partir do coração. Além disso, dificilmente passou despercebido pelos filósofos que as questões do coração estão no centro daquilo que nós, seres humanos, mais valorizamos em nossas vidas, inclusive em nossas relações com outros animais. Pensando bem, experiências compartilhadas com o coração parecem ser um aspecto valioso também da vida de outros animais, como sabe qualquer um que tenha desenvolvido uma conexão próxima com animais, ou mesmo assistido a vídeos sobre o luto dos elefantes[4].
“Sem amigos”, disse Aristóteles, “ninguém escolheria viver, ainda que tivesse todos os outros bens” (Aristóteles 2009: 1155a 5–19). Filósofos escrevem bastante sobre amizade e amor, mas tendem a fazê-lo de um modo que deixa de lado a centralidade do coração e da conexão afetiva profunda. Falam, antes, de compromisso mútuo e do bem-estar do outro, ou de tomar o outro como um fim, ou de compartilhar perspectivas deliberativas ou viver a vida juntos, ou uma série de outros tópicos. Mas falam muito menos sobre a vulnerabilidade emocional mútua, o compartilhamento afetivo e o estar presente no coração um do outro.
Certamente, uma explicação para a reticência dos filósofos é que falar de “coração” parece ser inevitavelmente metafórico[5]. Filósofos analíticos como eu procuram um lastro filosófico para cobrir as notas promissórias implícitas nas metáforas.
No entanto, revela-se bastante fácil converter a metáfora em valor efetivo. No modo como a utilizarei, “coração” refere-se a um conjunto de suscetibilidades emocionais que têm, como argumentarei, uma estrutura essencialmente reciprocante (reciprocating) ou de segunda pessoa (second-personal). Aqui e ao longo do texto, o que quero dizer ao chamar uma atitude de “segunda pessoa” é que ela se expressa naturalmente com o pronome de segunda pessoa (como “obrigado” pode expressar gratidão)[6]. O coração busca conexão afetiva, o compartilhamento de experiências de alegrias e tristezas, esperanças e medos, e outras emoções. Procuramos, de modo natural, compartilhar esses sentimentos com os outros e precisamos reprimir essa tendência natural caso queiramos evitá-lo. O desejo do nosso coração é estar aberto a outros corações, na esperança de que eles estejam abertos ao nosso e, em retribuição, a nós mesmos[7].
Claro que não desejamos a mesma conexão afetiva com todas as pessoas. A rejeição de algumas nos fere mais do que a de outras; o mesmo ocorre, mutatis mutandis, com a aceitação profunda (heartfelt acceptance). (Nota: aceitação e rejeição são atitudes de segunda pessoa. Algo precisa ser oferecido a alguém para ser aceito ou rejeitado por essa pessoa. Ser aceito não é o mesmo que ser desejado, e ser rejeitado é diferente de simplesmente não ser desejado ou ser considerado irritante). Ainda assim, não somos completamente indiferentes à frieza ou indiferença até mesmo de pessoas complemente desconhecidas, e sentimos necessidade de nos defender contra isso, por exemplo, com humor ou raiva.
“Frio” e “caloroso” de coração... mais metáforas. Mas sabemos instantaneamente o que significam. Alguém tem um “coração frio” se mantém suas cartas emocionais escondidas e se fecha ao envolvimento afetivo. E é de “coração caloroso” se está disposto ao contrário. É frio se age sem levar em conta a vulnerabilidade emocional dos outros, sem considerar o que pode ferir os sentimentos alheios; e é caloroso se age com consideração e responde aos sentimentos dos outros, ajudando-os a se sentirem emocionalmente à vontade.
Talvez agora você consiga começar a ver o tema se abrindo diante de si. (Uma cirurgia filosófica de coração aberto?) Quando falamos que nossos sentimentos foram feridos, não estamos nos referindo a sensações ruins como uma dor física qualquer. “Sentimentos feridos” aparece no catálogo de P. F. Strawson do que ele chama de “atitudes reativas”, em seu famoso e influente ensaio “Liberdade e Ressentimento” (Strawson 1968). Strawson não define exatamente o que são “atitudes reativas”. Ele apresenta algumas características centrais e dá diversos exemplos de atitudes que são sentidas a partir de uma posição “participante” ou, como eu diria, de “segunda pessoa”. Os exemplos mais influentes de Strawson — ressentimento, culpa e reprovação (o que ele chama de “indignação”) mediam a responsabilização mútua.
Para quem é este livro?
Este livro tem diversos públicos em vista. Escrevo, em primeiro lugar, para filósofos e estudantes de filosofia, em qualquer estágio de formação, com o intuito de convencê-los de que o coração e os fenômenos afetivos profundos são fontes ricas de investigação filosófica. Acredito que isso seja verdadeiro em si mesmo, e também porque tais investigações podem lançar luz sobre fenômenos que têm se mostrado filosoficamente enigmáticos. Espero ainda que essas investigações possam influenciar a filosofia como disciplina, que, na tradição analítica, tem se mostrado um tanto fria e pouco acolhedora, especialmente para grupos sub-representados, como pessoas negras e mulheres. Talvez a filosofia analítica precise de uma cirurgia de coração aberto[8].
Mas escrevo também para o público em geral, pois espero mostrar que compreender a natureza das atitudes afetivas e o papel que desempenham na mediação das relações pessoais e sociais, inclusive na cura de feridas emocionais profundas, feridas do coração, pode nos ajudar a vislumbrar o que seria capaz de reparar até mesmo danos terríveis, como os da escravidão nos Estados Unidos e seu legado.
Por fim, tenho a esperança de que ao menos parte do que tenho a dizer possa ser útil para filósofos e para aqueles que buscam se relacionar conosco de maneira afetivamente engajada. Como tendemos a viver a partir da cabeça, e não do coração, os filósofos podem causar grandes danos emocionais. Sei que eu mesmo já causei. Foi principalmente ao tentar lidar com isso e ao buscar reparar e cultivar relacionamentos com pessoas de quem gosto profundamente que fui capaz de alcançar as percepções que tento compartilhar neste livro. Para começar, no entanto, precisamos apresentar algumas ideias filosóficas básicas que devemos a P. F. Strawson.
“Liberdade e Ressentimento”, de Strawson
O ensaio “Liberdade e Ressentimento”, de Strawson, publicado pela primeira vez em 1962, gerou uma vasta literatura na psicologia moral e na filosofia moral (por exemplo, Watson 1987; Wallace 1994; Hieronymi 2020). As teses de Strawson fundamentam as teorias da moralidade que desenvolvi em The Second-Person Standpoint (doravante SPS) e que R. Jay Wallace apresentou mais recentemente em The Moral Nexus (Darwall 2006; Wallace 2019).
No que diz respeito à moralidade, a ideia central de Strawson é que as atitudes envolvidas na responsabilização mútua - as “atitudes reativas”, como ele as chamou - são sustentadas a partir de um ponto de vista “participativo” (de segunda pessoa). A pessoa que possui a atitude precisa estar nesse ponto de vista e se relacionar implicitamente com a pessoa que é objeto da sua atitude como alguém igualmente capaz de ocupar essa mesma posição. Ambas devem se reconhecer como dotadas de capacidades fundamentais da vontade (o que chamo de “competência de segunda pessoa”), por meio das quais podem responsabilizar a si mesmas e umas às outras[9]. Em SPS, argumento que adotar uma perspectiva de segunda pessoa compromete ambas as partes com a suposição de que compartilham igualmente uma autoridade básica, como costumo dizer, para responsabilizar umas às outras, e que essa autoridade é o que fundamenta, em última instância, a própria ideia de moralidade deôntica, ou seja, nossas noções morais de certo e errado (Darwall 2006).
As atitudes reativas implicadas na moralidade deôntica são a censura (ou reprovação), o ressentimento e a culpa. Até recentemente, passou-se amplamente por alto o fato de que, além desses exemplos deônticos, Strawson também oferece vários exemplos não deônticos de atitudes reativas: “sentimentos feridos”, como já notamos, mas também perdão, amor e gratidão (Strawson 1968: 75). (Exceções notáveis incluem Macnamara 2013, Martin 2021, Mason 2017 e Telech e Katz 2022.). Eu mesmo fui negligente nesse ponto, já que todos os meus escritos inspirados em Strawson, de SPS até 2016, concentraram-se exclusivamente nas atitudes que interferem na responsabilização mútua: ressentimento, censura e culpa. Mais recentemente, no entanto, passei a argumentar que os exemplos não deônticos de Strawson podem ser compreendidos como “atitudes de segunda pessoa do coração (second-personal attitudes of the heart)” (Darwall 2016a, 2017a, 2019). É esse trabalho que continuo aqui. Como veremos, as atitudes do coração possuem exatamente a mesma estrutura reciprocante e de segunda pessoa que os exemplos deônticos de censura, ressentimento e culpa. Todas as atitudes reativas- tanto as não deônticas quanto as deônticas- são sustentadas a partir de uma perspectiva de segunda pessoa e se relacionam, implicitamente, com seu objeto como alguém capaz de retribuí-las dentro de um mesmo ponto de vista de segunda pessoa. Todas elas vêm com um “RSVP” (“Répondez s’il vous plaît” - um convite à resposta). Um dos objetivos deste livro é chegar a uma concepção geral do que torna algo uma atitude reativa, no sentido de Strawson.
Capítulo 2: Respeito e Amor em Douglass e Baldwin
O contraste entre atitudes da vontade de segunda pessoa, por meio das quais respeitamos uns aos outros como pessoas iguais e mutuamente responsáveis, por um lado, e atitudes de segunda pessoa por meio das quais nos conectamos de maneira profunda e amorosa, por outro, é refletido em uma diferença que destacarei no Capítulo 2 entre o famoso discurso de Frederick Douglass, O que é o Quatro de Julho para o Escravo?, e os escritos de James Baldwin e, mais vividamente, sua participação no debate da União de Cambridge em 1965 com William F. Buckley sobre a proposição “O sonho americano se deu às custas do negro americano” (Douglass 2017)[10].
Ambos são feitos retóricos que merecem estudo e análise cuidadosa. Uma característica notável em comum é o uso, por parte de Douglass e Baldwin, de pronomes de segunda pessoa e de primeira pessoa do plural, por meio dos quais procuram engajar suas audiências — ainda que, ao que me parece, de maneiras em certa medida distintas. O discurso de Douglass, como sugerirei, apresenta, de maneira cuidadosa, uma exigência de respeito, oferecendo à sua audiência (e a si mesmo) uma experiência de sua dignidade como pessoas. A intervenção de Baldwin, por sua vez, é profundamente diferente. O mais notável é sua presença emocional: a maneira como se torna vulnerável, se abre à audiência e fala honestamente a partir do coração, sem expectativa ou exigência, embora por vezes com verdadeira raiva. Diferentemente de Douglass, Baldwin não constrói um argumento centrado principalmente na justiça, nem responsabiliza diretamente sua audiência. Em vez disso, transmite a ela um sentido pessoal e afetivo do custo indizivelmente triste da supremacia branca, custo esse que constitui o “sonho americano”, de maneira mais óbvia para os negros, mas também nas vidas emocionais deformadas de seus opressores brancos. O amor, sustenta Baldwin em outros escritos, é essencial tanto para os oprimidos quanto para os opressores, se desejarmos viver juntos como seres emocionalmente íntegros.
Incluo este capítulo já no início com a esperança de que a retórica de Douglass e Baldwin ofereça aos leitores uma percepção vívida de como atitudes reativas da vontade, como o respeito, contrastam com atitudes do coração, como o amor, ainda que ambas sejam de segunda pessoa. Não quero dizer, é claro, que a audiência de Baldwin não tenha sido também tocada pelo respeito, além das atitudes afetuosas do coração. Meu ponto será que Baldwin faz um apelo ao coração de sua audiência que parece menos evidente no discurso famoso de Douglass.
Capítulo 3: Duas Espécies de Atitudes Reativas: Atitudes da Vontade e Atitudes do Coração
A diferença entre atitudes reativas deônticas e não deônticas é a seguinte: enquanto as primeiras mediam a responsabilização mútua e pressupõem que ambas as partes compartilham uma dignidade fundamental ou autoridade de segunda pessoa que dá a ambas o direito ao respeito, as segundas visam a uma conexão sincera e pressupõem que ambas as partes possuem um valor intrínseco de um tipo fundamentalmente diferente. A dignidade, no sentido relevante, é aquilo que nos dá o direito de “exigir respeito”, como diz Kant (Kant 6:434)[11]. O valor intrínseco pressuposto nas atitudes de segunda pessoa do coração, por outro lado, é o de que ambas as partes são dignas de amor.
No nível mais geral, as estruturas das atitudes reativas deônticas e não deônticas são idênticas. Ambas devem assumir que seus objetos são capazes de adotar as atitudes relevantes, tanto em relação ao outro quanto a si mesmos. E ambas devem pressupor que as partes envolvidas possuem um tipo de valor que torna a atitude que reconhece tal valor adequada ao seu objeto. No caso das atitudes de segunda pessoa do coração, ambos os participantes devem se ver como capazes de amar e dignos de amor. E no caso das atitudes deônticas, ambos devem se ver como capazes e legitimados a receber respeito[12].
Os seres humanos, assim, incorporam dois tipos bastante distintos de valor intrínseco. Somos objetos apropriados tanto de amor quanto de respeito. Existem, portanto, dois sentidos distintos nos quais podemos agir em favor de alguém. Podemos agir por amor ou por respeito. E, ao fazê-lo, reconhecemos duas formas muito diferentes de valor intrínseco: ter dignidade, que nos torna objetos apropriados de respeito, por um lado, e ser digno de amor, por outro.
As atitudes reativas deônticas, como Strawson observa, fazem implicitamente exigências a seus objetos, incluindo a exigência de que adotem a atitude de forma reflexiva em relação a si mesmos, reconhecendo a autoridade que ambos têm para fazer tais exigências e assumindo, na relação de segunda pessoa, a responsabilidade por cumpri-las (Strawson 1968: 76). As atitudes reativas deônticas formulam uma exigência respeitosa de respeito, ao mesmo tempo manifestando e exigindo respeito, e o fazem em nome de ambas as partes (p. 93). Elas tratam ambas as partes como tendo direito à expectativa de respeito[13].
É muito fácil ver atitudes negativas como ressentimento e censura apenas como retaliatórias. E não há dúvida de que elas podem assumir a forma que Mill chamou de “animal”, que busca “repelir ou retaliar um dano ou ferida a si mesmo” (Mill 2002: V, §28). Adam Smith capta melhor a ideia strawsoniana ao dizer que “[o] que nosso ressentimento visa principalmente não é tanto fazer com que [quem nos causou um mal] sinta dor em retribuição, mas… que ele perceba que a pessoa que ele feriu não merecia ser tratada daquela maneira” (1982: 95–96). Atitudes da vontade como o ressentimento e a censura exigem, respeitosamente, respeito. Elas expressam responsabilização mútua e respeito mútuo.
As atitudes de segunda pessoa do coração, por sua vez, não podem esperar uma resposta sentida (heartfelt); elas apenas a convidam e a esperam. Como diz Paulo em 1 Coríntios 13:13: “Agora, pois, permanecem a fé (confiança), a esperança e o amor.” (A esperança que depositamos nos outros, que não é meramente proposicional, também é uma atitude de segunda pessoa do coração.) Paulo acerta ao enfatizar que “a maior delas é o amor”, já que o amor se relaciona com as atitudes de segunda pessoa do coração da mesma forma que o respeito se relaciona com as atitudes reativas deônticas. Cada uma é a principal atitude de seu tipo distintivo.
Assim como o respeito é a atitude por meio da qual registramos e apreciamos a dignidade das pessoas, o amor é a atitude por meio da qual reconhecemos e apreciamos que alguém é digno de amor. Ambas as atitudes são de segunda pessoa. Como argumento em SPS, o respeito moral não apenas reconhece a dignidade do outro, mas a reconhece de modo relacional, referindo-se implicitamente ao outro em segunda pessoa. No Capítulo 4, argumentarei que o mesmo vale para o amor, mas em uma chave não deôntica. O amor não pode ser exigido ou esperado; ele apenas pode ser convidado e aguardado com esperança. A natureza do amor é de segunda pessoa: uma abertura do coração a outro coração, na esperança de que o coração do outro também se abra em retorno.
Outra forma de colocar essa questão é dizer que as atitudes deônticas expressam uma vontade (por meio de sua exigência implícita) a outra vontade. Elas, assim, implicam e mediam uma relação de vontade para vontade: na verdade, a relação de vontade para vontade. Analogamente, atitudes não deônticas do coração implicam e mediam uma relação de coração para coração, sendo o amor recíproco a relação por excelência de coração para coração. É da natureza do coração buscar conexão afetiva de segunda pessoa. E é intrínseco à vontade da agência moral que ela exija respeito mútuo e responsabilização mútua. Investigamos os contrastes e as semelhanças entre “atitudes de segunda pessoa da vontade” e “atitudes de segunda pessoa do coração” no Capítulo 3.
Capítulo 4: Dois Contrastes — Culpa vs. Remorso e Indignação Moral vs. Raiva Pessoal
No Capítulo 4, começamos a explorar essas diferenças por meio de dois exemplos: os contrastes entre culpa e remorso, e entre indignação moral (ou raiva imparcial) e raiva pessoal (ou fúria). Ambos os contrastes ilustram a diferença entre atitudes da vontade e atitudes do coração. A culpa é uma atitude de segunda pessoa, deôntica, da vontade: ela reconhece implicitamente a responsabilidade por um erro cometido em relação àqueles perante os quais nos responsabilizamos, assumindo tal responsabilidade e comprometendo a vontade a não repetir a ação. O remorso, por outro lado, é uma atitude de segunda pessoa do coração. Trata-se de uma forma de pesar pelo dano, dor e sofrimento (e não apenas pela injúria moral) que causamos. Ele vai além da culpa ao abrir o coração ao outro e compartilhar sua dor de forma empática e sincera. Não se trata de: “Sinto culpa e, portanto, reconheço minha culpabilidade”. Mas sim: “Meu coração está partido pela dor que te causei”.
Embora não importe tanto se o uso cotidiano de “culpa” e “remorso” acompanha essa diferença psicológica nas atitudes, é fácil confirmar que sim. Agora há pouco, por exemplo, fiz buscas no Google por “culpa sincera” (heartfelt guilt) e “remorso sincero” (heartfelt remorse) e encontrei quase treze vezes mais resultados para o segundo do que para o primeiro. “Culpa sincera” é um oxímoro, apesar dos resultados contrários das ferramentas de busca na internet.
Outro reflexo dessa diferença pode ser observado em um contraste complementar entre dois tipos de perdão. É possível que uma vítima de uma injúria moral perdoe o ofensor no sentido de aceitar seu pedido de desculpas, liberá-lo da obrigação de continuar se responsabilizando, e deixar de guardar mágoa, sem, no entanto, se reconciliar emocionalmente com ele. Imagine que essas pessoas eram emocionalmente próximas, digamos, amigos íntimos ou parceiros. Uma delas poderia ser capaz de perdoar a outra de forma deôntica, por assim dizer, sem estar disposta a deixá-la voltar a habitar seu coração. “Reconheço que você assumiu a responsabilidade pelo que fez, e não guardo mais ressentimento”, alguém poderia dizer, acrescentando: “Mas não consigo voltar à relação que tínhamos. A ferida ainda está muito aberta.” Uma diferença importante entre culpa e remorso e seu vínculo recíproco com o respeito e o amor é que, embora a culpa desempenhe um papel essencial na restauração do respeito mútuo, o respeito é impotente diante da dor emocional ou do sofrimento afetivo. Somente o amor pode curar um coração partido.
Da mesma forma, a indignação ou raiva imparcial difere fundamentalmente da raiva pessoal. A indignação é uma forma de censura que visa responsabilizar seu objeto. Trata-se de uma atitude do mesmo tipo da culpa, mas sentida do ponto de vista de um terceiro. A raiva pessoal também possui uma estrutura de segunda pessoa, mas insinua uma relação pessoal, e não impessoal ou imparcial. Ficar com raiva de alguém por algo que essa pessoa fez é uma forma de levar o ato para o lado pessoal. E se respondemos a essa raiva pessoal como se fosse censura imparcial, com justificativas morais, corremos o risco de não captar seu verdadeiro sentido, o que pode gerar ainda mais raiva. Confundir essas formas de raiva muitas vezes leva a mal-entendidos interpessoais e, por vezes, à mágoa profunda.
Eis uma cena típica de confusão emocional: Uma das pessoas, A, diz algo que irrita a outra, B. Suponha que A faça uma referência a uma situação com uma antiga parceira (de A), usando o pronome “nós”. B se enfurece com isso e expressa sua raiva usando a linguagem da responsabilização moral, acusando A de algo que soa, para A, como negligência culposa. Ao ouvir isso, A responde na mesma linguagem da responsabilidade, tentando se justificar. Mas como isso não responde à raiva pessoal de B, apenas o enfurece ainda mais. “Não estou interessada nas suas justificativas”, B pode dizer. “Essa não é a questão. Quero que você perceba o quanto isso me machucou, e que isso importe para você, porque eu importo para você. Quero que você me veja, me ouça, me perceba.”
Essa cena revela algo importante sobre a natureza da raiva e seu papel nas relações pessoais. Enquanto a censura e a raiva moral buscam responsabilização, a raiva pessoal busca direcionar a atenção do outro para aquilo que importa para quem está com raiva na esperança de que isso também importe para o outro precisamente porque a pessoa que sente raiva importa para ele, ou seja, porque o outro se importa. Responder à raiva pessoal com justificativas morais é ainda mais irritante. Vou argumentar que o locus natural da raiva pessoal está nas relações do coração: ela frequentemente nasce de sentimentos feridos e sua expressão também pode ferir, quando as feridas envolvidas são feridas do coração. O que realmente se deseja, de ambos os lados, é ser escutado, ser acolhido, estar com o outro em uma presença mútua de segurança emocional.
Um contraste relacionado é o que existe entre ciúmes e inveja. Embora hoje em dia “ciúmes” e “inveja” sejam frequentemente tratados como sinônimos, eles não o são. São claramente duas emoções diferentes. O ciúme se aproxima da raiva pessoal de uma forma que a inveja não o faz. “O inferno não conhece uma fúria” igual à de um amante desprezado, cujo ciúme alimentou raiva. A expressão natural da inveja é o desejo de possuir algo que outro possui e/ou o desejo de que ele deixe de tê-lo (Protasi 2021). O ciúme, por contraste, diz respeito a algo que já se tem, normalmente uma relação pessoal, e que é percebido como ameaçado por outra pessoa. Sua conexão com a raiva está no fato de que a percepção de ameaça pode provocar uma resposta de “luta”. Embora a raiva pessoal e o ciúme não sejam, em si, formas de amor e, portanto, não sejam propriamente atitudes do coração, eles pressupõem um pano de fundo relacional amoroso, ao menos em caráter aspiracional. Eles funcionam como guardiões do coração.
Capítulo 5: Amor — A Principal Atitude do Coração
O Capítulo 5 é um estudo da atitude central do coração: o amor. Assim como o respeito está implícito em todas as atitudes reativas deônticas da vontade, o amor também está implícito em todas as atitudes do coração. O amor carrega a característica essencial dessas atitudes: uma abertura do coração a outro coração, na esperança de que este também se abra em resposta, permitindo assim uma conexão afetiva sincera e profunda. O amor, portanto, será um aspecto presente em todas as atitudes do coração que discutiremos, inclusive na raiva pessoal. A raiva é frequentemente desencadeada por sentimentos feridos e funciona como uma defesa contra esses sentimentos. É uma política agressiva de proteção do coração. E seu objetivo é restaurar a relação amorosa não pelo amor em si, mas por meio de uma espécie de força diretiva que visa trazer o outro “de volta à razão”, ou melhor, “de volta ao coração”. O amor é, como argumento, uma atitude de segunda pessoa que envolve sustentar, contemplar e acolher (Darwall 2016a).
Amor e respeito são respostas que reconhecem dois aspectos distintos de nosso valor intrínseco. Amar alguém é vê-lo como digno de amor. Respeitar alguém, por outro lado, é reconhecer sua dignidade como ser capaz de exigir respeito (respeitar no sentido de reconhecer o outro como digno de respeito) (Darwall 1977). Essas duas dimensões do valor humano se manifestam em duas formas distintas pelas quais podemos “impor exigências” (hold) a outra pessoa. Podemos “impor exigências” a alguém no sentido de responsabilizá-lo. E podemos “impor exigências” como expressão de amor. Uma é uma sustentação deôntica: uma relação de vontade para vontade. A outra é uma sustentação do afetiva: uma relação de coração para coração. Mas ambas as formas de sustentação são, implicitamente, recíprocas. Só é possível fazer exigências a alguém de maneira afetiva se essa pessoa o recebe livremente. E, ao responsabilizar alguém, pressupomos que essa pessoa também tem legitimidade para nos responsabilizar. A responsabilização é sempre, em última instância, mútua. E o acolhimento afetivo também implica sempre uma forma de mutualidade, senão uma reciprocidade atual, ao menos a esperança de que o outro esteja aberto a ser acolhido.
Capítulo 6: Confiança e Esperança
O Capítulo 6 discute duas atitudes do coração intimamente conectadas: a confiança e a esperança. Há, claramente, um sentido de “confiança” que não está atrelado a relações pessoais, mas ao modo como nos relacionamos com estranhos enquanto agentes morais. Tal sentido é deôntico, pois, quando nossa confiança é traída, sentimos naturalmente ressentimento ou censura moral. O que está na base de todas as formas de confiança é o seu caráter de segunda pessoa, aquilo que a distingue da mera dependência. Eu dependo do meu Apple Watch para cronometrar minhas voltas na piscina com precisão; se ele falhar, não faz sentido sentir ressentimento, embora talvez seja justificável culpar os executivos da Apple. Considere, no entanto, a atitude que temos em relação aos outros motoristas na estrada quando confiamos que eles não agirão de maneira imprudente e não colocarão nossas vidas em risco. Quando isso acontece, sentimos naturalmente ressentimento e reprovação moral.
Há, porém, outro tipo de confiança que é pessoal. Quando esse tipo de confiança pessoal é frustrado, tendemos a usar a linguagem da decepção pessoal, da tristeza e dos sentimentos feridos, mais do que a da culpa e da indignação moral. A coisa mais devastadora que meu pai já me disse foi quando, adolescente, deixei de corresponder à confiança que ele depositou em mim: “Steve, estou muito decepcionado com você”, ele disse. Ele não estava tanto com raiva, mas triste por eu tê-lo decepcionado depois que ele me ofereceu sua confiança. Nem é preciso dizer que me senti péssimo.
Essa diferença entre a confiança deôntica e a pessoal reflete o contraste mais amplo entre atitudes reativas da vontade e atitudes do coração. As primeiras dizem respeito ao que podemos legitimamente esperar uns dos outros, nomeadamente, o respeito à dignidade de todos como pessoas morais iguais e às exigências morais específicas que essa igualdade expressa[14]. Violações desrespeitosas dessas expectativas geram responsabilização por meio das atitudes reativas deônticas: ressentimento, censura e culpa.
Mas, embora possamos esperar respeito, não podemos esperar ou exigir amor, confiança, esperança ou outras atitudes do coração. Tudo o que pode ser legitimamente esperado de nós é algo que podemos cumprir simplesmente ao reconhecer a legitimidade dessa expectativa por meio da consciência. Mas o amor, a confiança e afins não são atitudes que podemos adotar apenas por reconhecer que se espera justificadamente que o façamos. Essas atitudes exigem uma abertura involuntária do coração, e não uma formação voluntária da vontade. É certo que podemos, intencionalmente, cuidar ou ter o cuidado de não fazer coisas que nos fechem aos outros. Podemos ser cuidadosos tanto com o coração dos outros quanto com o nosso próprio. Mas abrir o coração não é uma ação voluntária; trata-se de uma resposta segundo-pessoal que convida a uma abertura recíproca por parte do outro.
De forma semelhante, as esperanças que depositamos em alguém são diferentes da esperança de que essa pessoa “faça algo”. Trata-se, aqui, de uma esperança em alguém, não apenas de uma esperança de que algo aconteça. A primeira é uma atitude reativa que só podemos ter em relação a pessoas capazes de reciprocidade, pessoas capazes de aceitar nossa confiança ou esperança e corresponder a elas. O que Adrienne Martin chama de “esperança normativa”, a esperança que depositamos em indivíduos, é uma atitude reativa (Martin 2014). Quando essa esperança ou confiança não é correspondida, o que se segue não é culpa ou ressentimento moral, mas reações afetivas como decepção, tristeza e mágoa (Telech e Katz 2022).
Há um sentido no qual a esperança está presente em toda relação afetiva (heartfelt relating). Como vimos, abrir o coração a outra pessoa envolve um convite implícito para que ela receba nosso amor, confiança, e assim por diante, em seu próprio coração. Mas, diferentemente das atitudes reativas deônticas, nas quais temos o direito de esperar uma resposta respeitosa, nas atitudes do coração, só podemos esperar [sermos amados ou perdoados, por exemplo]. Todas as atitudes reativas carregam consigo um RSVP (Répondez s'il vous plaît- responda, por favor) implícito, um convite à resposta, mas nas atitudes do coração, essa resposta é realmente um s’il vous plaît: ela não pode ser exigida nem esperada como um dever. A esperança está, assim, incorporada à estrutura de todas as atitudes do coração, assim como o amor também está.
Capítulo 7: Løgstrup sobre Confiança Natural e Amor (com uma Discussão de Murdoch e Kierkegaard)
O papel da confiança e do amor na vida ética é um tema central nos escritos de Knud Ejler Løgstrup, teólogo e filósofo dinamarquês do século XX cuja importância só agora começa a ser plenamente reconhecida. O Capítulo 7 discute as concepções de Løgstrup sobre o amor e a confiança, juntamente com ideias correlatas de Kierkegaard e Iris Murdoch. A tese central de Løgstrup é que a abertura amorosa e confiante é a condição humana padrão. Por meio da confiança, colocamo-nos naturalmente “nas mãos uns dos outros”. Crianças confiam e amam naturalmente e, ao tornarem-se adultas, precisam aprender a se defender para proteger seus corações. Um tema importante tanto em Løgstrup quanto em Murdoch é o contraste entre a perspectiva que assumimos quando construímos narrativas sobre nós mesmos e sobre os outros para sustentar nossa autoestima e nos defendermos de nossa vulnerabilidade emocional natural. Estas são, respectivamente, o que Murdoch chama de "fantasias autoconfortantes" (self-consoling fantasy) e o que Løgstrup denomina “imagens auto-encerrantes” (self-enclosing pictures) (Murdoch 2001: 83; Løgstrup 2007: 52).
É difícil imaginar uma ilustração mais convincente do que Løgstrup chama de “confiança natural” - a abertura padrão que ele afirma existir entre nós- do que sua descrição vívida de uma mulher sendo interrogada pela “polícia secreta”. A mulher “está plenamente ciente de que as insinuações galanteadoras [do investigador] têm o único propósito de fazê-la falar” sobre o paradeiro de seu marido. Ainda assim, “ela precisa constantemente refrear uma inclinação de falar com o homem como se fosse um outro ser humano”. “O que se manifesta nessa inclinação?”, pergunta Løgstrup, que surge mesmo quando a vida de seu próprio marido está em jogo? “Nada além da peculiaridade elementar e definitiva que acompanha toda fala enquanto expressão espontânea da vida: sua abertura” (Løgstrup 2007: 83–84). Essa confiança espontânea é, segundo ele, uma “expressão soberana da vida”.
A confiança envolve “uma expectativa puramente pessoal”, embora, quando “não é correspondida pelo outro, acusações morais emergem” (p. 10). Mas essa moralização da confiança não faz parte de sua abertura natural, mas é uma forma de autodefesa que se fecha em si mesma. “Alguém se expôs por completo” e foi pessoalmente ferido como consequência:
Uma pessoa se expôs na esperança de que o outro viria ao seu encontro, mas isso não aconteceu. Embora ninguém tenha feito algo moralmente errado, isso confere ao conflito um caráter emocional tão intenso que é preciso transformá-lo num conflito moral, como se o outro tivesse cometido uma falta. É necessário inventar uma falta. (p. 11)
A dor pessoal revela que nos colocamos em vulnerabilidade, algo que, “a qualquer custo”, não pode se tornar evidente para o outro (p. 11). Cobrimos nossa ferida com discursos e pensamentos moralizantes para desviar a atenção dela. Como a experiência de ter seu amor ou confiança não aceitos ou traídos pode ser profundamente dolorosa, é natural que nos defendamos contra isso.
Capítulo 8: Estar com o Outro Afetivamente
As relações pessoais amorosas são de segunda pessoa no sentido em que envolvem relacionamentos entre as partes. Sua qualidade afetiva consiste na abertura dos corações de amigos e amantes, na esperança de que o coração do outro também se abra em resposta. O que está por trás dessa linguagem metafórica? O “coração” é uma metáfora para um conjunto de suscetibilidades e disposições emocionais: sentir alegria, tristeza, luto, entre outros. Relacionar-se afetivamente, portanto, não envolve apenas comunicar proposições sobre tais sentimentos, mas sim comunicar as emoções e sentimentos em si, de modo que, por meio deles, possamos sentir o outro[15].
Por exemplo, tenho um amigo muito querido com quem costumo caminhar regularmente. Conversamos sobre os mais diversos assuntos que são profundamente importantes para ambos. Mas, embora esses passeios estejam entre os episódios mais emocionalmente significativos que vivencio, raramente falamos sobre nossos sentimentos um pelo outro. Ainda assim, não tenho dúvida de que eles são intensos, pois os sinto vindo tanto de mim quanto dele, e, por meio deles, eu sinto como meu amigo se sente.
Embora não seja necessário que essa comunicação emocional ocorra na presença física mútua, essa presença é claramente preferível, entendendo “presença” de modo suficientemente amplo para incluir, por exemplo, a alegria audível na voz de alguém ao telefone ou a tristeza visível em seus olhos numa tela. Durante algumas semanas no auge do inverno, há dois anos, quando meu amigo ficou confinado em casa e não pôde me acompanhar nos passeios, levei o celular comigo e fizemos chamadas por vídeo enquanto eu caminhava por nosso trajeto habitual até que o frio drenasse toda a bateria. Depois disso, seguimos com meu Apple Watch.
Desfrutar da companhia do outro e ser um companheiro exige estar presente a ele de forma sincera e exige que ele, em troca, também esteja presente a você. O Capítulo 8 investiga o que é necessário para estar com os outros de modo que tornemos a nós mesmos e aos outros emocionalmente presentes uns aos outros. Isso envolve menos uma contiguidade espaço-temporal do que uma abertura mútua dos corações. Você e eu podemos estar lado a lado, mas se sua frieza afetiva transmite rejeição hostil, não estamos realmente juntos, no sentido relevante. Ao contrário: nossa distância não poderia ser maior.
Estar na presença de alguém é um fato de segunda pessoa. Se você invade silenciosamente o quarto do rei e o espia fazendo seus exercícios, você não está realmente em sua presença. Para estar na presença de alguém, é preciso estar presente para ele; no caso do rei, é preciso ser apresentado a ele para realmente estar com ele. A presença do rei é uma presença deôntica; é preciso adquirir a posição adequada por meio de uma apresentação formal. Se você tenta se aproximar sem essa apresentação, como ao invadir furtivamente seus aposentos, sua ação se torna passível de ressentimento moral; você cometeu uma ofensa ao Rei. Nosso interesse no Capítulo 8 será a presença e o estar com de tipo afetivo.
Capítulo 9: Gratidão
Outra atitude reativa mencionada por Strawson é a gratidão, que será o tema do Capítulo 9. Nosso foco não será a conduta agradecida nem qualquer dívida de gratidão, mas sim a atitude de gratidão, isto é, a disposição afetiva que as ações gratas normalmente expressam.
Strawson segue Adam Smith ao tratar o ressentimento e a gratidão como estruturalmente semelhantes. Observe como é notavelmente parecido o que Smith diz sobre a gratidão com o que diz sobre o ressentimento em um trecho citado anteriormente, onde defende a ideia de que o ressentimento de segunda pessoa exige, respeitosamente, respeito. “O que a gratidão mais deseja”, diz Smith, “não é apenas fazer com que o benfeitor sinta prazer em retribuição, mas fazê-lo consciente de que esse prazer se deve à sua conduta passada, fazê-lo satisfeito com essa conduta, e convencê-lo de que a pessoa a quem ele prestou seus bons serviços não era indigna deles” (Smith 1982: 95).
Isso capta o caráter implicitamente reciprocante da gratidão, mas a torna mais semelhante a uma estima moral recíproca do que a algo sinceramente afetivo. Kant oferece outro ponto de comparação. Segundo ele, o “sentimento” de gratidão é “respeito pelo benfeitor (que nos coloca em obrigação)”, enquanto o benfeitor é visto “apenas numa relação de amor com o beneficiário” (Kant 1996: 6:454–455). Kant diz que a gratidão é um “dever sagrado”, pois sua violação “pode destruir o incentivo moral à beneficência em seu próprio princípio” (455). Embora o amor do benfeitor esteja claramente fora do domínio jurídico, a gratidão, segundo Kant, não está: ela é uma resposta obrigatória.
Ainda que Kant e Smith concordem que a gratidão é uma forma de estima, Kant nega a tese de Smith de que tal estima seja mútua. Para Kant, a gratidão expressa necessariamente maior estima pelo benfeitor, “uma vez que o beneficiário jamais poderá retirar do benfeitor sua prioridade de mérito, isto é, o fato de ter sido o primeiro a agir com benevolência” (455).
Nenhuma dessas concepções, contudo, parece captar de modo adequado o papel significativo que a gratidão exerce numa vida feliz, como é atestado pela popularidade dos “diários de gratidão”. Além disso, há evidência experimental robusta de que pessoas que regularmente reconhecem e anotam o que têm a agradecer vivem vidas mais felizes (Emmons & McCullough 2002, 2003; ver também Peterson & Seligman 2004: 524–526; Seligman 2002: 74–75; 2011: 30–31).
Esses resultados fazem pleno sentido se entendermos a gratidão como uma atitude do coração. Sentir apreço sincero pela benevolência recebida a partir da bondade do coração de alguém é uma ocasião de alegria e conexão emocional compartilhada.
Capítulo 10: Respeito e Amor nas Reparações e no Reparar da Escravidão e de Seu Legado
O último capítulo, Capítulo 10, ilustrará como a distinção entre atitudes da vontade e atitudes do coração pode informar debates sobre respostas morais e éticas apropriadas à escravidão de pessoas e ao seu legado, debates comumente agrupados sob o título de “reparações”[16]. Embora o foco seja a escravidão nos Estados Unidos, caso que estudei mais de perto, as questões gerais se estendem internacionalmente ao longo da história do capitalismo racial, do colonialismo e de suas consequências (Táíwò 2022)[17]. Aqui só poderemos arranhar a superfície dessas questões, mas espero mostrar como pode ser útil distinguir entre “reparações”, por um lado, e “reparo” (repair), no sentido que está presente no perdão sincero de que fala James Baldwin (Boxill 2003; Baldwin 1998: 293–294; Walker 2006a, 2006b). Somente o amor pode curar feridas pessoais. Isso é geralmente verdade, mas é ainda mais pungente no caso dos danos horrendos causados pela escravidão e pelas instituições e práticas que perpetuam seu legado.
Outra perspectiva relevante é oferecida pela abordagem abolicionista defendida, por exemplo, por Charles Mills no âmbito de uma teoria moral e política não ideal (Mills 2005). Aqui, o objetivo não é corrigir os erros do passado ou sequer curar as feridas que eles criaram, mas sim eliminar das práticas e instituições presentes as injustiças históricas e seus efeitos atuais. Trata-se de arrancar as raízes das estruturas da supremacia branca.
SÍNTESE FINAL
Comecei observando que, por ser metafórica, a linguagem do coração foi em grande medida ignorada por filósofos analíticos. Espero que agora esteja mais claro como essa metáfora pode ser explicitada. Ter um coração é possuir o conjunto de capacidades e suscetibilidades emocionais que nos tornam aptos à conexão afetiva: disposições para sentir alegria, luto, tristeza, medo e angústia pelos outros, gratidão, confiança, amor e assim por diante. Um resultado importante disso é que, embora conheçamos essas experiências em primeira pessoa, uma compreensão teórica adequada exige o tipo de análise das atitudes de segunda pessoa que empreendemos ao longo deste livro.
Em meus escritos anteriores, utilizei a expressão “competência de segunda pessoa” para me referir exclusivamente às capacidades de assumir perspectivas e raciocinar a partir de um ponto de vista imparcial de segunda pessoa, capacidades que pressupomos ao responsabilizar moralmente a nós mesmos e aos outros. Como consequência do meu trabalho mais recente sobre atitudes de segunda pessoa do coração, agora defendo que há, além dessa competência deôntica de segunda pessoa (que implica ter consciência moral e ser capaz de responsabilidade), uma competência de segunda pessoa não deôntica.
Podemos chamá-la de “competência afetiva” (heartfelt competence): ela consiste nas capacidades emocionais necessárias para conexões amorosas – a vulnerabilidade afetiva, a disposição para abrir o coração, e responsividade afetiva requisitadas - seja em amizades, seja em relações afetivas. A conclusão é que o coração é, por natureza, de segunda pessoa, assim como a agência moral ou a vontade o são.
Ambos mediam nossas relações interpessoais: a responsabilização mútua, por meio do respeito e da competência deôntica de segunda pessoa, de um lado; a conexão afetiva sincera, por meio do amor e da competência sincera, de outro. Neste livro, nosso foco principal foi esse segundo eixo relacional, reservando o primeiro, sobretudo, para fins de contraste.
Darwall, S. The heart and its attitudes. Oxford: Oxford University Press, 2024.
Contribuição de autoria
1 – Flavio Williges
Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFSM
https://orcid.org/0000-0002-2820-9805 • fwilliges@gmail.com
Contribuição: Escrita - Primeira Redação
Como citar este artigo
Williges, F. Os filósofos e o coração: apresentação à tradução de “Coração: a ideia em si”, de Stephen Darwall. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria - Florianópolis, v. 16, n. 2, e93646, 2025. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378693646. Acesso em: dia, mês abreviado, ano.
[1] Para uma exploração detalhada e rica dessa perspectiva a partir da filosofia moral de Hume, ver Taylor, Jacqueline. Moral Sentiment and the sources of moral identity. In: Bagnoli, Carla. Morality and the emotions. Oxford: Oxford University Press, 2011, p.257-275.
[2] A tradução deste texto foi realizada com a autorização expressa do autor, Professor Stephen Darwall, que gentilmente cedeu os direitos autorais pessoais para sua publicação neste volume da revista Voluntas. O material aqui traduzido integra a obra The Heart and its Attitudes (Darwall, Stephen. The Heart and its Attitudes. Oxford: Oxford University Press, 2024).
[3] Uma exceção notável é Setiya 2022.
[5] Trata-se, no entanto, de uma metáfora utilizada de forma consistente desde pelo menos os antigos gregos, das poesias de Safo às declarações de amor de Alcibíades por Sócrates. Quando Alcibíades ouve Sócrates falar, seu “coração salta e seus olhos se enchem de lágrimas” (Safo 2009; Kokkiou 2020: 25). Essa metáfora continua comum hoje, e há evidências impressionantes de uma conexão entre tristeza ou “doença do coração” e o órgão cardíaco, por meio do que se chama de “síndrome do coração partido (cardiomiopatia takotsubo)” (Whang 2022).
[6] Sobre meu uso da expressão “segunda pessoa”, ver Darwall 2006, embora ali ela esteja restrita às “atitudes reativas” deônticas, como as denomina P. F. Strawson, isto é, ressentimento, culpa e censura (Strawson 1968). Parte do meu objetivo aqui é estender esse conceito às atitudes de segunda pessoa do coração.
[7] Bell Hooks distingue o “amor verdadeiro” do “amor como sentimento” e está especialmente interessada em diferenciar o amor genuíno da “catexia”, que envolve investimento de energia libidinal no outro (hooks 2001: 5). Tenho esperança de que hooks concordaria que a conexão sincera, tal como a compreendo, difere da catexia.
[8] Sou grato aqui a Katie Lofton.
[9] Aqui e no que se segue, “moralidade” significará moralidade deôntica, isto é, a parte da ética que se ocupa da obrigação moral, do certo e errado, dos direitos, da permissibilidade e temas correlatos. Para o papel das atitudes reativas na moralidade assim compreendida, ver Darwall 2006, 2013a e 2013b.
[10] Um vídeo do debate pode ser encontrado aqui: https://www.youtube.com/watch?v=5Tek9h3a5wQ. E a transcrição aqui: https://www.rimaregas.com/2015/06/07/transcript-james-baldwin-debates-williamf-buckley-1965-blog42. Trechos do debate estão incluídos no filme I Am Not Your Negro, dirigido por Raoul Peck.
[11] As referências são ao volume e número da página na edição da Preussische Akademie das obras de Kant.
[12] Pode-se pensar que, uma vez que “Liberdade e Ressentimento” trata primariamente da responsabilidade moral, as atitudes do coração não seriam, no sentido pretendido por Strawson, verdadeiras atitudes reativas. Como veremos, no entanto, os próprios exemplos não deônticos de Strawson, como a gratidão e o amor, não têm nenhuma conexão essencial com a responsabilidade. Mas nada se altera em virtude da maneira como usamos a expressão “atitude reativa”. O ponto é que há uma estrutura reciprocante comum que as atitudes do coração compartilham com aquelas que mediam a responsabilidade mútua. Poderíamos dizer que dizem respeito à responsividade mútua, mais do que à responsabilidade mútua. Sou grato aqui a um parecerista anônimo da editora.
[13] Quando eu lecionava na Universidade de Michigan, a universidade iniciou uma campanha — “Expect Respect” — que continua até hoje (https://expectrespect.umich.edu). Observe como a ideia de uma campanha “Expect Love” beira a incoerência.
[14] Uma expectativa (deôntica) de que alguém faça algo é fundamentalmente diferente de uma expectativa epistêmica de que ele o fará.
[15] Ver Attie-Picker et al. (no prelo) para uma pesquisa notável sobre o papel da conexão sincera em nossa apreciação de canções que expressam tristeza.
[16] Ao dizer “respostas moral e eticamente apropriadas”, utilizo “moral” para me referir à moralidade deôntica e “ético” para questões mais amplas sobre como devemos agir e sentir (Williams 1985).
[17] Devo reconhecer outra ausência aqui, a saber, qualquer discussão sobre o genocídio e o tratamento desumano dos povos indígenas, que recebeu ainda menos atenção crítica do que a escravidão de pessoas.