|
|
|
Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 16, n. 2, e93514, 2025
Submissão: 02/09/2025 • Aprovação: 02/09/2025 • Publicação: 03/09/2025
Apresentação
Apresentação - Dossiê Emoções e Afetividade
Editorial - Dossier Emotions and Affectivity
Flavio WilligesI, Róbson
Ramos dos ReisII
, Felipe
Nogueira de CarvalhoI
Universidade
Federal de Santa Maria, Santa
Maria, RS, Brasil
II Universidade Federal de Lavras, Lavras,
MG, Brasil
O presente dossiê da Revista Voluntas, dedicado à filosofia das emoções e da afetividade, pretende oferecer um panorama atualizado sobre o lugar desse campo no cenário contemporâneo, em um momento em que a pesquisa internacional se consolida e encontra ressonância crescente no Brasil e na América Latina. O objetivo do volume é refletir sobre a pluralidade temática e metodológica que caracteriza o estudo filosófico das emoções, reunindo contribuições que dialogam tanto com tradições consolidadas quanto com perspectivas emergentes.
De modo particular, duas tradições teóricas servem como ponto de partida desse percurso: a filosofia analítica das emoções e a fenomenologia da afetividade. Na tradição analítica, o interesse recai sobretudo sobre as emoções episódicas, em razão de seu papel epistêmico e normativo. Costuma-se distinguir, nesse âmbito, duas orientações principais: as teorias cognitivistas, que entendem as emoções como juízos avaliativos capazes de revelar e sustentar razões, como em Martha Nussbaum[1] e Robert Solomon[2]; e as teorias não cognitivistas, que concebem as emoções como experiências corporais conscientes, como em William James e Jesse Prinz. Apesar de suas diferenças, essas abordagens compartilham a ideia de que as emoções possuem intencionalidade[3] e desempenham um papel fundamental tanto na experiência comum quanto na investigação científica.
Já a tradição fenomenológica clássica — de Husserl, Scheler, Heidegger, Bollnow, Strasser e Sartre até desenvolvimentos recentes em autores como Slaby, Ratcliffe, Schmitz, Böhme e Tonino Griffero — tem se orientado pela análise de fenômenos afetivos frequentemente negligenciados, como as sintonias (Stimmungen, usualmente traduzidas por “humores”), os sentimentos existenciais e as atmosferas. Essa tradição enfatiza a dimensão corporal, situacional, existencial e pré-intencional da afetividade. Mais do que analisar respostas episódicas compreendidas como juízos ou reações fisiológicas, a fenomenologia entende a afetividade como estruturadora de nossa relação com o mundo. A noção de sentimentos existenciais, proposta por Ratcliffe, exemplifica esse movimento ao mostrar como certas disposições afetivas constituem o pano de fundo pelo qual o mundo se apresenta como significativo.
Se essas tradições foram fundamentais para a consolidação da filosofia das emoções no século XX, o cenário atual testemunha um deslocamento progressivo em direção a dimensões mais sociais, culturais e políticas da análise das emoções e dos afetos. Abordagens recentes têm enfatizado o caráter intersubjetivo e ecológico das emoções, sugerindo que elas estão imersas em ambientes sociomateriais que moldam tanto o modo como os agentes sentem quanto os tipos de transformação afetiva que experimentam. Esse movimento amplia o escopo dos estudos da afetividade, que deixam de se restringir à mente e ao corpo para abarcar práticas sociais, contextos históricos e condições de vulnerabilidade coletiva. Trabalhos como os de Slaby[4] e Protevi[5] são representativos dessa orientação, ao mostrarem como as emoções são inseparáveis das dinâmicas culturais e políticas, revelando formas de pertencimento, exclusão e desamparo que não podem ser compreendidas apenas a partir de uma perspectiva individual ou sem consideração cuidadosa das arquiteturas materiais e culturais que sustentam as experiências emocionais.
É a partir desse horizonte profícuo e complexo que a filosofia das emoções começa também a se enraizar de forma mais sistemática no Brasil e na América Latina. Embora o campo ainda seja relativamente recente, alguns marcos já podem ser destacados, sobretudo no desenvolvimento de pesquisas em Universidades Federais de Santa Maria (RS), Minas Gerais (Belo Horizonte e Lavras), Espírito Santo e Pernambuco.
Em Santa Maria, merece destaque a realização, já em 2012, de um Congresso que discutiu a relação entre emoções e moralidade e que resultou na coletânea O lugar das emoções na ética e na metaética[6]. Mais recentemente, ocorreram o I e o II Workshop de Filosofia das Emoções, em 2022 e 2023, nos quais foram debatidas questões sobre a natureza das emoções, seu vínculo com a experiência moral e seu impacto em domínios práticos como a política e a prática médica. A consolidação de eventos e cursos temáticos transformou o Departamento de Filosofia da UFSM em um núcleo de referência para os estudos sobre emoções, com três linhas principais de investigação: (i) a análise dos aspectos ético-morais de emoções particulares, como compaixão, raiva e empatia, enfatizando seu papel em práticas de cuidado e na constituição do caráter virtuoso de agentes morais[7]; (ii) estudos sobre o lugar das emoções e sentimentos psíquicos (como entusiasmo ou apatia) na experiência individual, com atenção especial a emoções potencialmente desestruturadoras do self, como a ansiedade e a solidão[8]; (iii) investigações sobre a estrutura da experiência afetiva e dos sentimentos existenciais, bem como suas correlações com a saúde mental e somática, com ênfase nos efeitos de disrupções afetivas em experiências patológicas e atípicas de si e do mundo[9].
Em Minas Gerais, desde o início da pandemia de COVID-19, vem sendo desenvolvido um consistente trabalho sobre emoções e regulação emocional, cujos resultados se expressam no projeto de extensão Emoções e Regulação Emocional: Questões Filosóficas e Psicológicas (2020-2022), no projeto internacional WUN Getting Back in Touch: Emotional Pathways to a Post-Pandemic World (2022-2023), além de artigos que relacionam a regulação emocional a nichos e andaimes afetivos do ambiente externo[10] e à participação dos afetos na constituição de práticas, instituições e formas de vida compartilhadas[11]. Nesse mesmo contexto, merece destaque a publicação do volume Textos Selecionados em Filosofia das Emoções[12], que aborda o tratamento das emoções tanto na história da filosofia ocidental quanto na tradição cristã e na filosofia indiana.
No Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo, especialmente a partir de 2022, uma série de pesquisas tem se concentrado nas teorias somáticas, cognitivistas e motivacionais das emoções, bem como em seu significado existencial e na interação dinâmica com ambientes sociais[13].
Esse conjunto de investigações, aqui apenas parcialmente ilustrado, possibilitou a consolidação de uma rede de pesquisa sobre filosofia das emoções no Brasil, a qual culminou, em 2025, na realização do I Congresso Latino-Americano de Ciências Afetivas, em Belo Horizonte, que deu origem à Rede Latino-Americana de Estudos Afetivos e à criação de um Grupo de Trabalho em Filosofia das Emoções, vinculado à Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF).
Como parte desse esforço concentrado e ao mesmo tempo descentralizado de investigação das emoções, surgiram também diferentes volumes especiais de revistas acadêmicas dedicados ao tema. Entre eles, o volume especial da revista Sofia (vol. 12, n. 2, 2023), o dossiê Afetividade Epistêmica da revista Em Construção (n. 12, 2022) e o volume especial da revista Perspectiva Filosófica (vol. 49, n. 5, 2022), todos voltados para discutir a natureza das emoções, seu significado existencial e sua interação com diferentes contextos sociais e práticos. Este próprio dossiê da Voluntas insere-se nesse movimento, reforçando a consolidação de uma rede de pesquisa cada vez mais plural sobre emoções e afetividade na América Latina.
O volume que ora apresentamos reúne artigos de autores convidados já consolidados na área e contribuições selecionadas por meio de avaliação por pares. Os textos abordam, em termos gerais, as diferentes orientações destacadas nesta apresentação: teorias e propostas de análise das emoções, o significado moral, epistêmico e existencial de emoções particulares, bem como sua participação em domínios como a política, moralidade e a cognição. Muitos artigos foram escritos por jovens pesquisadores, o que atesta o vigor do campo. Além de artigos inéditos, o volume inclui traduções de textos fundamentais da tradição mais recente de análise das emoções e da afetividade, uma entrevista com Matthew Ratcliffe — um dos autores mais originais e influentes da atualidade — e resenhas.
Ao reunir contribuições diversas e complementares, esperamos fortalecer a investigação no contexto latino-americano e ampliar o diálogo internacional em torno da afetividade humana, concebida não como um tema periférico da filosofia, mas como um eixo constitutivo de sua vocação mais profunda: compreender nossa condição existencial em toda a sua complexidade.
Altoé, E. A tese cognitivista da emoção como juízo de valor. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2025. (no prelo)
Ávila, J. C.; Reis, R. R.; Bernal, A. T. G.; Rueda Lizarazo, M. P; Avila Bareño, D. C; Vivas Gómez, L. F.; Rojas Navarrete, F. E. Resignificación de la experiencia de la enfermedad del cáncer infantil desde la fenomenologia. Revista Medicina. v.32, p.57 - 72, 2024.
Bello, L; Wiliges, F. Ativismo emocional: contribuições para o debate acerca do significado moral e político da raiva. Em Construção, p. 126-136, 2022.
Carvalho, F. N. de; Williges, F. (Orgs.). Textos selecionados de Filosofia das Emoções. Pelotas: NEPFIL Online, 2023.
Carvalho, F. N. de; Krueger, J. Biases in niche construction. Philosophical Psychology, v. 1, p. 1-31, 2023
Carvalho, F. N. de; Ramos Ferreira, S. B. Emoções e construção social. Revista Sofia, v. 12, p. e12243351, 2023
Freitas, Y. A. O problema da representação na teoria das emoções a partir da abordagem de Jesse Prinz: da avaliação incorporada à motivação imanente. 2025. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2025.
Krueger, J.; Carvalho, F. N. de. Vieses Implícitos, hábitos corporificados e nichos de desenvolvimento. Síntese - Revista de Filosofia, v. 51, p. 549-576, 2024
Lopes, M.V. Sentimentos existenciais e memória corporal: dois casos em filosofia da psiquiatria. Revista de Psicología, v. online, p. 091, 2021.
Lopes, M.V. What Is It to Lose Trust? Covid-19 Pandemic, Extended Minds and Shared Feelings. Revista Portuguesa de Filosofia, v. 77, p. 937-58, 2021.
Lopes, M.V. Too sad to be true: hypo - and hyperreality in experiences of depression. PHILOSOPHICAL PSYCHOLOGY, v. 1, p. 1-20, 2023.
Lopes, M.V. Para além da dúvida corporal: a dúvida como problema existencial e sua relevância para a psiquiatria. TRANS/FORM/AÇÃO (UNESP. MARÍLIA. IMPRESSO), v. 47, p. 1-16, 2024.
Nussbaum, M. Emotions as judgments of value and importance. In: SOLOMON, R. (org.) Thinking about feeling: Contemporary philosophers on emotions, p. 183–199, 2004.
Nussbaum, M. Upheavals of thought: The intelligence of emotions. Cambridge, UK: Cambridge University Press. 8 ed. 2008.
Prinz, J. Embodied Emotions. In: Solomon, R. Thinking about feeling. Oxford: Oxford University Press, 2004, p.44-60.
Protevi, J. Political Affect: Connecting the Social and the Somatic. Minneapolis, MN: University of Minnesota Press, 2009.
Reis, R.R. Neonatal pediatric suffering: limits of the phenomenology of suffering? Estudios de Filosofía. v.70, p.160 - 179, 2024.
Reis, R. R. Sentimentos existenciais, pertencimento e confiança. Ekstasis. Revista de Hermenêutica e Fenomenologia. v.12, p.232 - 267, 2024
Slaby, J. Mind Invasion: Situated Affectivity and the Corporate Life Hack. Frontiers in Psychology, Lausanne, v. 7, 2016. Disponível em: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fpsyg.2016.00266/full.
Solomon, R. Fiéis às nossas emoções. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2015.
Viesenteiner, J. L.; Apolinario, V. Nietzsche e Prinz: uma hipótese compatibilista das abordagens cognitivas e não cognitivas na filosofia das emoções. Veritas (Porto Alegre), v. 68, p. e43798, 2023.
Williges, F. Fischborn, M.; Copp, D. (OrgS.). O lugar das emoções na ética e na metaética. Pelotas: Editora da Ufpel, 2018.
Williges, F. Em direção à compreensão das emoções na pandemia: a solidão e seu significado epistêmico. Revista Portuguesa de Filosofia, v. 77, p. 917-936, 2021.
Williges, F. There is a presence in anger. Sofia, v. 12, p. e12243340-28, 2023.
Williges, F. Ávila, J. C. Perturbações na experiência corporal e na experiência de si na solidão crônica. Revista de Filosofia UIS. v23 n2-2024006, v. 25, p. 9-27-27, 2024. https://doi.org/10.18273/revfil.
Williges, F. Tribus Morales y Emociones: un análisis crítico de la metamoralidad utilitarista de Joshua Greene. Comprendre, v. 27, p. 13-35, 2025.
Contribuição de autoria
1 – Flavio Williges
Doutor em Filosofia. Atualmente é Professor Associado IV do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria,
https://orcid.org/0000-0002-2820-9805 • fwilliges@gmail.com
Contribuição: Conceitualização- Administração de projetos - Escrita – revisão e edição
2 –Felipe Nogueira de Carvalho
Professor adjunto de Filosofia no Departamento de Ciências Humanas da Universidade Federal de Lavras. Possui mestrado e doutorado em Filosofia e Ciências Sociais pela École des Hautes Études en Sciences Sociales/Institut Jean Nicod (Paris, França), estágio de pós-doutorado no Center for Mind and Cognition da Universidade de Ruhr (Bochum, Alemanha), e residência pós-doutoral de 3 anos na Universidade Federal de Minas Gerais.
https://orcid.org/0000-0002-0584-3424 • felipencarvalho@gmail.com
Contribuição: Conceitualização- Administração de projetos - Escrita – revisão e edição
3 – Róbson Ramos dos Reis
Possui graduação em Licenciatura Plena Em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (1985), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992) e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1994). Atualmente é Professor Titular da Universidade Federal de Santa Maria.
https://orcid.org/0000-0001-5380-1192 • robsonramosdosreis@gmail.com
Contribuição: Conceitualização- Administração de projetos - Escrita – revisão e edição
Como citar este artigo
Williges, F.; Carvalho, F. N. de; Reis, R. R. dos. Apresentação - Dossiê Emoções e Afetividade. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, v. 16, n. 2, p. 01-08.
DOI: 10.5902/2179378693514. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378693514
[1] Nussbaum, M. Emotions as judgments of value and importance, p. 189.
[2] Solomon, R. Fiéis às nossas emoções, p. 328.
[3] Ver Prinz, J. Embodied Emotions, p. 188 e Nussbaum, M. Upheavals of thought: The intelligence of emotions, p. 27.
[4] Slaby, J. Mind invasion: situated affectivity and the corporate life hack, p. 7.
[5] Protevi, J. Political affect: connecting the social and the somatic, p. 24.
[6] Williges, F.; Fischborn, M.; Copp, D. (Orgs.). O lugar das emoções na ética e na metaética.
[7] Williges, F. Tribus Morales y Emociones: un análisis crítico de la metamoralidad utilitarista de Joshua Greene; Williges, F. There is a presence in anger; Bello, L.; Williges, F. Ativismo emocional: contribuições para o debate acerca do significado moral e político da raiva.
[8] Williges, F. Em direção à compreensão das emoções na pandemia: a solidão e seu significado epistêmico.
[9] Ávila, J. C. et al. Resignificación de la experiencia de la enfermedad del cáncer infantil desde la fenomenologia; Reis, R. R. Neonatal pediatric suffering: limits of the phenomenology of suffering?; Reis, R. R. Sentimentos existenciais, pertencimento e confiança; Lopes, M. V. Sentimentos existenciais e memória corporal: dois casos em filosofia da psiquiatria; Lopes, M. V. Too sad to be true: hypo- and hyperreality in experiences of depression. Lopes, M. V. Para além da dúvida corporal: a dúvida como problema existencial e sua relevância para a psiquiatria.
[10] Carvalho, F. N. de; Krueger, J. Biases in niche construction; Krueger, J; Carvalho, F. N. de. Vieses implícitos, hábitos corporificados e nichos de desenvolvimento.
[11] Carvalho, F. N.; Ramos Ferreira, S. B. Emoções e construção social.
[12] Carvalho, F. N. de.; Williges, F. (Orgs.). Textos Selecionados em Filosofia das Emoções, 2023.
[13] Viesenteiner, J. L. Nietzsche e Prinz: uma hipótese compatibilista das abordagens cognitivas e não cognitivas na filosofia das emoções; Freitas, Yuri Assis. O problema da representação na teoria das emoções a partir da abordagem de Jesse Prinz: da avaliação incorporada à motivação imanente; Altoé, Estela. A tese cognitivista da emoção como juízo de valor.