|
|
|
Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 16, n. 1, e92891, 2025
Submissão: 17/07/2025 • Aprovação: 29/09/2025 • Publicação: 28/11/2025
ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A FILOSOFIA DE NIETZSCHE
Tradução
Algumas observações sobre a filosofia de Nietzsche, de Paul Deussen
Some remarks on Nietzsche’s philosophy, by Paul Deussen
I Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil
RESUMO
O presente trabalho é uma tradução de Einige Bemerkungen über Nietzsches Philosophie, apêndice do livro Erinnerungen an Friderich Nietzsche (1901), de Paul Deussen. Neste apêndice, diferente das demais partes do livro, Deussen não apenas tece algumas observações pessoais de sua convivência com Nietzsche, mas também busca comentar, sobretudo a partir da ótica da filosofia de Schopenhauer, sobre alguns aspectos centrais da filosofia de Nietzsche, a saber, o eterno retorno, o além-do-homem e a afirmação da vida. Apesar de sucintas, estas observações expressam uma tentativa particularmente instigante de Deussen: Reler o discípulo que rompeu com Schopenhauer à luz de seu antigo mestre.
Palavras-chave: Paul Deussen; Friedrich Nietzsche; Autonegação; Negação da vontade; Eterno retorno
ABSTRACT
Keywords: Paul Deussen; Friedrich Nietzsche; Self-denial; Denial of the will; Eternal return
Paul Jakob Deussen, nascido em 1845 em Oberdreis, em Westerwald, já era fluente em grego aos 10 anos de idade[1], antes mesmo de começar seus estudos em Schulpforta, em 1859, quando então se aproximou e desenvolveu um vínculo mais próximo de Friedrich Nietzsche, que assim como ele era filho de pastor. Aos olhos de Janz, a amizade que lentamente se formou não se apoiava, de início, em uma verdadeira intimidade, mas sobretudo “em interesses comuns por escritores antigos e pela filologia, em sua intenção de estudar teologia, na tendência de ambos de se isolar do resto e de levar muito a sério as experiências espirituais”[2], o que não impediu, por sua vez, de que ela realmente viesse a se desenvolver ao longo dos anos. Longe de esgotar-se com a saída de Pforta, a amizade entre os jovens continua na Faculdade de Teologia de Bonn, para onde decidiram ir juntos e aonde chegaram em 1864, tornando-se vizinhos e, poucos dias depois, tornando-se calouros da “Confraria Franconia”, assim como vários outros ex-alunos de Pforta[3]. Em um ano, porém, seus caminhos iriam se distanciar. Em 1865, Nietzsche parte de Bonn para estudar filologia em Leipzig[4] e Deussen, para estudar teologia em Tübingen[5]. A partir de então, a relação entre os dois passa a se dar sobretudo por cartas, com exceção de algumas breves visitas.
Nos próximos dois anos, enquanto Deussen volta para Bonn para estudar filologia[6], Nietzsche, em Leipzig, se aprofunda em Schopenhauer e, em 1867, chega até mesmo a ordenar sua leitura para seu querido amigo[7]. Deste modo, se não é Nietzsche quem acaba seduzindo Deussen ao schopenhauerismo, como afirma Janz[8], ele ao menos exerceu um grande papel para este encontro. Alguns anos depois, em 1869, Deussen conclui seus estudos na Universidade de Berlim, publica sua dissertação Commentatio de Platonis Sophista e se torna um professor ginasial[9]. Nietzsche, por sua vez, recebe a notícia de que se tornaria Professor de Filologia Clássica da Universidade da Basileia[10], o que foi palco de intriga entre os ex-colegas. Infelizmente não foi conservada a carta que Deussen enviou a Nietzsche na ocasião, mas temos registros do profundo abalo que ela ocasionou no recente professor universitário. Dadas as circunstâncias, Nietzsche rascunha a seguinte carta, que, porém, não envia a seu amigo:
Querido amigo,
como não tenho tempo para longas discussões, aceite de bom grado as seguintes insinuações. Em primeiro lugar, lhe envio, como é natural, sua própria carta, que você deve ler com bastante atenção, como fiz. Se eu e meus amigos de Leipzig, aos quais a apresentei para avaliação, a entendemos e interpretamos corretamente, você deveria agora julgar a si mesmo, caso ela retorne para você como algo que se tornou estranho.
Há momentos em que se tem de afirmar a solidez de uma amizade: e eu fiz a experiência, justamente com o presente acaso oportuno, de que honestidade e profundidade uma amizade pode ser. Como spicilegium [coleção] eu lhe envio, assim como com o pedido de mais rápida remission [remissão], uma carta do amicissumi [queridíssimo] Rodhe em Hamburgo. Que eu me tornei um pouco estranho para você, ou melhor, que você não mais me conhece propriamente, uma vez que lhe é praticamente desconhecido o desenvolvimento dos três últimos anos, isto é, os mais importantes anos de vida — sobre isso eu refleti com bastante frequência; nessa idade o afastamento danifica a amizade de maneira mais considerável.
Dito sem rodeios — todo o seu raciocínio em todas as suas cartas parece-me infinitamente insignificante e trivial: e como a uma tal superficialidade do pensamento, a uma ausência tão não filosófica da seriedade pela vida, ainda se quer associar o orgulho, o ridículo orgulho camponês de não querer reconhecer alguém mais elevado, isso admito apenas com dificuldade e com um forte suspiro ao ver a perversidade humana[11].
Em vez de confrontar a carta de Deussen, Nietzsche acabou optando por romper, de forma mais brusca, todos os contatos com seu amigo, enviando apenas uma brevíssima carta: “Prezado amigo, caso não tenha sido responsável por sua última carta algum tipo de perturbação ocasional da cabeça, então devo lhe pedir para considerar encerradas as nossas relações”[12]. Assim, a relação entre os dois sofreu uma mudança incontornável, o que, no entanto, não implica seu fim.
Diante da ruptura de Nietzsche, Deussen não insiste em sua postura inicial. Alguns dias depois, ele reescreve a seu amigo, fazendo agora um pedido de desculpas, que infelizmente também não foi conservado. Mesmo tendo ficado bastante abalado com a carta de Deussen, Nietzsche decide acatar suas desculpas, embora não por isso livre seu amigo de ler alguns duros comentários a seu respeito.
Querido amigo,
pois não façamos uma tragédia: não parece haver de fato nenhum motivo para tanto. Mas o velho Eurípedes às vezes tem razão contigo: “A pluma escreve e o coração de Deussen nada sabe disso”. Essa pequena pluma incurável tem uma tendência à retórica e à vaidade de querer contar mais sobre tal coração do que pode saber e responder por ele. É evidente uma pluma de ganso; eu a cortaria violentamente ou a descartaria completamente e me acostumaria com uma outra. Sapienti sat [Para o sábio, basta].
É tarde da noite, e amanhã com a alvorada ocorre a partida. O mundo me parece estranho, esse mundo em que eu estou entrando. Tentemos, nós dois, respirar cada um em seu lugar, cada um à sua maneira, e nos acostumarmos a uma atmosfera temporariamente sufocante.
Dito de passagem: a Basileia não é para você inalcançável, especialmente para um tal soldado de infantaria, como você é, que caminha de Oberdreis para Minden — horresco referens [estremeço ao contar] —, como se ainda não fossem inventados os trens.
O livro, que você me enviou recentemente com tanta gentileza, eu recebi como ele foi dado, como um signo de lembrança de um longo e belo dia, dos tempos de um desenvolvimento em comum, dos quais também me lembro com alegria e gratidão. Nós ainda vamos nos aturar, caso você não me assuste e confunda de maneira tão frequente com um tal improptus [improviso], como o último foi.
E assim inicia sua profissão, com a fidelidade e zelo que conheço em você de seu tempo de escola, com a vista em um ideal, com o anseio por uma efetivação do mesmo. Por fim, todos nós fazemos um [ideal] e, com esperança, também queremos algo próximo. Eu não saberia nenhum motivo para estar desanimado. Certamente se suporta a vida: o que significa, contrariamente, um cargo, um dever! Caso as coisas pesem, use então o velho remédio caseiro: “sente-se no lugar do espectador e veja a mais bela de todas as comédias”. “Não apenas atuar, aqui devemos observar”, para parodiar mal um belo verso de Sófocles[13].
Longe de se ater aos comentários no mínimo duros de se ouvir da parte de Nietzsche e retrucá-los em sua próxima carta, Deussen mantém uma postura conciliatória e encerra o assunto:
Meu querido amigo,
caso eu já não me sentisse confortável aqui por conta própria como nunca em todo o meu tempo de estudante e menos ainda no ano passado, então, acredito, seria necessário apenas sua última carta para devolver à minha alma, após tantas tempestades invernais ásperas, a primavera da qual há tempos carece[14].
Contornado o conflito entre os antigos conhecidos, a amizade entre eles pôde continuar. No entanto, ao menos da parte de Nietzsche, como sugere Janz, ela seria mantida apenas externamente, não mais em seu íntimo[15]. Andler também parece corroborar com esta perspectiva: “Indo morar em Genebra, em Aix-la-Chapelle e na Rússia, ele [Deussen] desapareceu da intimidade de Nietzsche, quando não de seu horizonte intelectual”[16]. E de fato algumas colocações de Nietzsche caminham para esse sentido, tal como aquela na carta que escreve a Gersdorff durante o conturbado período em que sofria com as repercussões de seu O Nascimento da Tragédia:
Deussen esteve aqui por alguns dias. Ah, esse é um capítulo próprio. Ele realmente me atormenta até a exaustão — o resultado é como ele me escreve hoje — a completa emancipação. Eu estou seriamente preocupado — não diga a ninguém — preocupado com seu entendimento. Uma ambição completamente insatisfeita o consome[17].
Essas dores de cabeça, segundo Janz, se tornam a partir de então um desagradável acompanhamento dos contatos pessoais de Nietzsche com Deussen[18].
Durante os anos em que Nietzsche publica suas duas primeiras extemporâneas, Deussen deixa a Alemanha como tutor de Georges Kanchine, começa a ensinar sânscrito na Universidade de Genebra, na Suíça, e passa a combinar em sua carreira seu conhecimento de sânscrito e de filologia[19]. Em 1874, quando Nietzsche publica sua terceira extemporânea, Schopenhauer como Educador, Deussen leciona um curso universitário de filosofia em Aachen, que seria a base de seu primeiro livro, Os Elementos da Metafísica, publicado no ano seguinte[20]. Já em 1877, entra em jogo um novo elemento para complicar ainda mais a relação entre os velhos amigos: o afastamento de Nietzsche da filosofia de Schopenhauer. Neste ano, Deussen envia com bastante animação ao autor da recente Quarta Exemporânea seu livro de 1875: “Finalmente, meu amigo mais querido, posso te enviar um exemplar completo do meu guia, desse filho preferido que absorveu inteiramente quase dois anos de minha vida”[21]. No entanto, sobretudo após a viagem a Sorrento, Nietzsche já não se encontrava mais ao lado de Schopenhauer, isto é, no mesmo lugar não apenas de Deussen, mas também de outros de seus antigos companheiros, Jacob Burckhardt, Carl von Gersdorff, Erwin Rohde, Cosima e Richard Wagner. Assim, em agosto de 1877, Nietzsche confessa a Deussen seu atual posicionamento em relação a Schopenhauer:
Querido amigo, quanto tempo depois você recebe o agradecimento pelo presente de seu livro! Mas minhas viagens e indiretamente portanto o que fazia necessária essa instabilidade da estadia, minha saúde — pois desde outubro do ano passado eu não estou mais na Basileia, mas sim em todos os lugares (sobretudo no sul da Itália e nos Alpes altos): essas circunstâncias indicadas fizeram com que sua obra chegasse em minhas mãos apenas posteriormente. No outono quero fazer o experimento de retomar como antigamente minha posição na Basileia: não tenho muita confiança. Muitas dores (em consequência de uma nevralgia craniana que se tornou crônica) eram entrementes meu destino, o seu suportar, minha principal atividade.
Você usou seu ano muito bem: severa vontade de aprender, adquirida clareza e distinta capacidade de comunicação — que talvez ainda esteja em uma etapa mais elevada na apresentação oral —: sobre isso fala cada página de seu livro. De todos aqueles aos quais é útil conhecer Schopenhauer, mas sobretudo daqueles que querem controlar por si mesmos o seu conhecimento do mesmo, você colocou nas mãos um excelente guia; cada leitor encontra aí, além disso, tantas coisas provindas de você, pelas quais ele deve ser grato (sobretudo pelo dificilmente acessível domínio dos estudos indianos).
Eu, de maneira completamente pessoal, lamento muito uma coisa: que eu não tenha recebido alguns anos atrás um livro tal como o seu! Quanto mais grato eu não lhe teria sido! Mas, como agora os pensamentos humanos dão seus passos, raramente seu livro me serve como um feliz aglomerado de tudo o que eu[22] não mais tomo como verdadeiro. Isso é triste! E não quero mais falar sobre isso, para não lhe ocasionar dor com a diferença de nosso juízo. Já quando escrevi meu pequeno escrito sobre Schopenhauer, eu não retinha quase nada mais de todos os pontos dogmáticos; mas acredito agora como naquele tempo que por enquanto é altamente essencial passar por Schopenhauer e utilizá-lo como educador. Apenas não mais acredito que ele deva educar para a filosofia schopenhaueriana. —
Viva bem, querido amigo e perdoe meus olhos que proíbem escrever mais.
Seu F[23].
Que Nietzsche teria se afastado de Schopenhauer, Deussen não poderia imaginar. Pasmo diante da notícia, ele envia a seguinte carta a seu amigo: “Mas o que é isso? — Você não está mais com Schopenhauer, — Você, meu μυσταγωγός [mistagogo] e protoevangelista! — isso não é compreensivo, não é possível. — / Aqui eu digo: Nietzsche deve retornar! —”[24]. Isso, no entanto, jamais aconteceu.
Enquanto Nietzsche renunciava seu cargo de professor e dava início aos seus escritos aforísticos, Deussen se tornou Privatdozent em filosofia, na Universidade de Berlim, publicando, em 1883, seu livro Das System des Vedânta (O Sistema de Vedanta)[25]. No mesmo ano, Deussen o envia para Nietzsche, pelo qual este logo agradece[26]:
Isso é belo, querido velho amigo! Assim se deve fazer: desenvolver uma a uma todas as suas sete forças, uni-las por fim e com sete cavalos conduzi-las para uma meta. Muito devia se acumular em um homem para poder manifestar para nós europeus um tal ensinamento Vedanta; e eu não exalto menos, velho amigo, que você não desaprendeu a trabalhar arduamente. Não se chamava Μελέτη [Prática] uma das três Musas? O céu sabe: sem reta diligência, apenas erva daninha cresce do mais belo talento. Visto por perto, inclusive o melhor artista não deve se distinguir do artesão. Eu quero dizer a corja maltrapilha, que não quer ter nenhum ofício e deixa o espírito valer apenas como gourmetização.
Me dá grande prazer conhecer a expressão clássica da maneira de pensar que me é mais estranha: a isso me presta seu livro. Nele vem à tona de forma mais ingênua tudo o que eu desconfiava em relação a essa maneira de pensar: eu leio página por página com perfeita “maldade” — você não poderia desejar um leitor mais agradecido, querido amigo!
O acaso quer que precisamente agora seja imprimido um manifesto meu que mais ou menos com a mesma eloquência diz sim! onde seu livro diz não! Isso é para rir; mas talvez te machuque, e eu ainda não estou de acordo comigo quanto a se eu o irei lhe enviar. Para poder fazer seu livro, você não pôde pensar tanto sobre todas as coisas como eu; e seu livro teve de ser feito. Logo — — — — — — — —
Grato de coração
Friedrich Nietzsche[27].
O manifesto ao qual Nietzsche se refere é o seu célebre Assim falou Zaratustra, que, embora pudesse ter sido um bom presente de agradecimento, também poderia, na perspectiva do autor, agravar ainda mais a relação entre eles, dadas as suas diferenças teóricas. Sua gratidão se restringe, portanto, às boas palavras escritas sobre O Sistema de Vedanta e, em particular, ao conhecimento do amigo acerca da filosofia indiana.
Em 1886, chega para Nietzsche a notícia de que Deussen se casou com Marie Volkmar, uma moça 19 anos mais jovem do que ele, o que, na ocasião, não foi muito bem recebido pelo autor de Zaratustra. Junto à sua alegria pelo amigo, teria também se misturado, segundo Janz, “um pouco de amargura diante de seu próprio destino, pelo fato de nunca ter encontrado este caminho que aliviasse o peso do seu isolamento”[28]. Apenas cinco semanas depois Nietzsche consegue parabenizar Deussen, que “se tornara um dos maiores especialistas do sânscrito e da filosofia indiana” e com cuja obra Nietzsche havia desenvolvido uma relação objetiva[29]. Nietzsche aproveita a oportunidade para enviar seu Além do Bem e do Mal como agradecimento pelo envio de O Sistema de Vedanta[30].
Querido velho amigo,
há, como me comunicam, a mais bela ocasião para lhe desejar felicidade — ou antes, nem sequer chegar a desejar. Segure firme o que você já tem, meu velho amigo e camarada, especialmente quando a “felicidade”, como em seu caso, é uma boa mulher; pois a felicidade foge de bom grado de gente como nós (sobretudo de nós filósofos e monstros do conhecimento…).
Como sinal do quanto eu gostaria de, um dia, estar novamente perto de você, eu me permiti lhe enviar meu filho mais novo e mais malévolo: que, com esperança, ele aprenda em sua proximidade alguma “moralidade” e dignidade vedantesca, uma vez que ele sofre da ausência de ambos de seu pai. “Além do Bem e do Mal” ele se chama; já li uma redação assustadoramente séria sobre ele com o título “O perigoso livro de Nietzsche” — é elaborado completamente o tema “isso é dinamite”...
O que se encontra aí! Alguma vez já esteve diante das coisas um homem mais ousado do que eu? Deve-se poder suportar isso: essa é a prova; o que se “diz” disso, se “pensa” disso, me é indiferente. Por fim — eu não quero estar certo para hoje ou amanhã, mas para milênios.
Esse verão eu falei frequentemente sobre você com Leskien (Sils Maria é, sobretudo na segunda metade do verão, um verdadeiro encontro de professores: tal que o velho “eremita de Sils-Maria é mantido informado – – sim, sim, informado, mas informado quanto às atuais condições alemães de formação da universidade). Leskien contou sobre a extraordinária estima que Böthlingk tem de seu trabalho; ele acredita que seria mais fácil conseguir para você uma cátedra de sânscrito do que uma cadeira (poltrona) de filosofia. No fundo, com seu duplo talento, você teria se sentado entre duas cadeiras: — na verdade, depois da antiga habituação dos eruditos, deixa-se valer apenas a “especialidade”, não se pode servir a dois senhores, sobretudo quando são duas mulheres, como filologia e filosofia…
Até mesmo para mim seu livro forneceu mais uma vez um profundo interesse e lição: eu desejei que também houvesse algo mais claro, mais elaborado dialeticamente sobre a filosofia Sankhya.
Fique em boa memória de seu
amigo Friedrich Nietzsche[31]
No ano seguinte, quando Deussen passa a receber uma bolsa como professor em Berlim e realiza a tradução dos Sutras de Vedanta, ele aproveita da ocasião de viajar com sua esposa para Itália e para Grécia para passar antes em Sils-Maria, a fim de visitar seu antigo companheiro de Pforta[32]. É importante destacar que, durante essa visita, Deussen percebe pela primeira vez algum tipo de alteração na relação de Nietzsche com seu ambiente, um certo cuidado exagerado, que, para Janz, pode ter sido provocado pela presença da esposa do amigo e que já apontaria para seu trágico desfecho pouco tempo depois[33]. Mas não apenas por esse motivo essa visita se revela interessante. Através dela, podemos enfatizar ainda mais a importância de Deussen para o contato de Nietzsche com a filosofia indiana. Neste período, Nietzsche escreve a Overbeck:
O professor Deussen me visitou aqui com sua pequena mulher; comovente apego por mim. Ele viaja para Grécia; o desvio por Sils foi muito adorável. Aliás, o primeiro professor de filosofia de denominação schopenhaueriana: e por ele ter chegado a essa maneira de pensar, eu e ninguém mais deve ser culpado. Va benissimo! [Muito bem!] Eu dou mais valor por Deussen ser o primeiro erudito europeu que entende a filosofia indiana de dentro, com base de preparação kantiana-schopenhaueriana ( — ele “acredita” nela: para tanto Schopenhauer foi de fato a necessária fase intermediária). Ele me trouxe a obra mais refinada daquela filosofia, os Sutras de Vedanta, traduzida por ele e impressa às custas da academia. —[34]
Não nos surpreende, portanto, encontrarmos a seguinte passagem em A Genealogia da Moral, um ano depois:
“Para aquele que sabe não há nenhum dever!... “Pelo aumento das virtudes, não se realiza a redenção: pois ela está em ser um com Brahma, não capaz de aumento de perfeição; e tampouco na diminuição dos erros: pois o Brahma, com o qual deve ser um é o que constitui a redenção, é eternamente puro” — passagens do comentário de Shankara, citadas pelo primeiro realmente conhecedor da filosofia indiana na Europa, meu amigo Paul Deussen[35].
Se não se pode defender uma consonância entre Nietzsche e Deussen, podemos ao menos destacar o quanto os estudos do amigo chamaram a atenção e ganharam a admiração de Nietzsche.
Para além da filosofia indiana, não há muito mais o que comentar aqui a respeito da relação entre os autores a não ser sobre algumas breves interações que tiveram antes e depois do colapso mental de Nietzsche. Em 1888, sofrendo com as impressões de seus livros, Nietzsche recebe a boa notícia de que Deussen lhe enviara dois mil marcos para o custeio da impressão[36]. No entanto, uma vez que Nietzsche desconfiou da versão de Deussen, de que esse dinheiro havia sido levantado por um círculo de admiradores, a doação lhe causou certo desconforto e feriu seu orgulho[37]. Ainda em novembro do mesmo ano, a fim de ter o direito de suas próprias obras, Nietzsche pede para Deussen um empréstimo de 10 mil táleres[38] — que, na verdade, deveria ser de 10 mil marcos, aproximadamente 30 mil táleres —, mesmo sabendo que o amigo não teria como lhe ajudar integralmente[39]. Essas questões financeiras e concernentes às suas obras marcariam as últimas interações entre os velhos amigos em que, apesar das recaídas, Nietzsche ainda mantinha seus juízos consigo. Em janeiro do ano seguinte, já em meio ao colapso mental, Nietzsche escreve sua última carta a Deussen, assinando agora como Dioniso: “Após ter sido irrevogavelmente revelado que eu criei propriamente o mundo, também meu amigo Paul parece previsto no plano do mundo: ele deve, junto ao Monsieur Catulle Mendès, ser um de meus grandes sátiros e animais de festa”[40]. Encerra-se, assim, completamente qualquer possibilidade de amizade consciente entre eles.
Embora 1889 tenha sido o ano em que Deussen aceita o posto integralmente remunerado de Professor na Universidade de Kiel, em que permanece até o fim de sua vida[41], ele inicia com a triste notícia de Overbeck do estado em que Nietzsche foi encontrado. Diante do colapso mental do amigo, Deussen posterga em uma semana sua resposta e envia, para auxílio, 100 marcos a Overbeck[42]. Nietzsche, que passou a ser cuidado por sua mãe em Naumburg[43], recebe ainda no mesmo ano uma visita de Deussen, que, por sua vez, não teve boas impressões do amigo. Após sua visita, o tradutor dos Sutras relata a Overbeck que Nietzsche não parecia poder recuperar um emprego normal de suas faculdades espirituais[44], a respeito do que, infelizmente, a história lhe deu razão. Enquanto Nietzsche não melhorava, Deussen continuou a se debruçar em seus estudos, agora como professor em Kiel, fazendo importantes apresentações — como Der kategorische Imperativ (O Imperativo Categórico) e Advaita Vedanta in the Eyes of the West (Advaita Vedanta aos Olhos do Ocidente) — e, inclusive, uma viagem de cinco meses para a Índia[45]. Deussen apenas verá Nietzsche novamente — e pela última vez — em 1894, ano em que publica o primeiro volume de Allgemeine Geschichte der Philosophie mit besonderer Berücksichtigung der Religionen (História Universal da Filosofia com especial Consideração das Religiões), a qual “foi a primeira história da filosofia a dar ao Oriente a mesma importância dada ao Ocidente”[46]. Na ocasião da visita, Nietzsche já “estava completamente apático e não reconhecia mais ninguém além da mãe, da irmã de Alwine”[47], e é nestas condições que Deussen se despede do amigo. Até o final de sua vida, em 1919, para citarmos alguns de seus feitos notáveis, Deussen leva a termo sua História Universal[48] e funda “a hoje internacional Schopenhauer-Gesellschaft, da qual ele foi o primeiro presidente”[49]. Não deve nos surpreender a boa recordação que o líder espiritual hindu Swami Vivekananda tinha deste professor de Kiel, e talvez não seja inadequado olharmos para sua vida através das seguintes palavras: “Assim ele alcançou o sucesso; e agora — não apenas a Europa, mas toda Índia conhece esse homem, Paul Deussen”[50].
Embora Nietzsche não estivesse mais em suas faculdades espirituais normais desde 1889, será somente após a morte do amigo que Deussen publicará suas Erinnerungen an Friedrich Nietzsche (Lembranças de Friedrich Nietzsche), em 1901. Nelas, Deussen nos apresenta seis períodos diferentes de sua relação com Nietzsche: “O tempo de escola em Pforta” (1858-1864), “O ano de estudo em Bonn” (1864-1865), “O tempo em Leipzig e o ano militar” (1865-1869), “O tempo na Basileia” (1869-1879), “O ano de peregrinação e o isolamento” (1879-1889) e, por último, “O adoecimento e o fim”. Em cada um destes períodos, Deussen intercala alguns comentários a seu respeito com a sua correspondência com Nietzsche, quando existente. Nas páginas finais, no entanto, Deussen ainda nos serve com um anexo, em que escreve Algumas Observações sobre a Filosofia de Nietzsche, cuja tradução se encontra abaixo. Nela, longe de apenas nos apresentar uma série de dados biográficos, Deussen reflete sobre sua filosofia, analisando-a não apenas por dentro das obras de Nietzsche, mas também a partir de toda a sua bagagem schopenhaueriana.
Andler, C. Nietzsche: Vida e Pensamento, volume I. Trad. Regina Schöpke, Mauro Baladi. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2016.
Braz, D. R. Meu caminho até Paul Deussen: sobre as relações perenes entre a filosofia de Schopenhauer e o Advaita Vedānta de Śaṅkarācārya. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.12, e17, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/voluntas/article/view/67487/46295. Acesso em: 17 jun. 2025. DOI: 10.5902/2179378667487.
Daly, D. The routes of philosophy: Paul Deussen, Indian non-dualism and universal metaphysics. 2010. 300 p. Tese (Doutorado em Filosofia) – Goldsmiths Colledge, Londres, 2010
Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume I: infância, juventude, os anos em Basileia. Trad. Markus A. Hediger. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.
Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume II: os dez anos do filósofo livre (primavera de 1879 a dezembro de 1888). Trad. Markus A. Hediger, Luís M. Sander. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.
Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume III: os anos de esmorecimento, documentos, fontes e registros. Trad. Markus A. Hediger. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.
Nietzsche, F. W. Briefe na Friedrich Nietzsche: April 1869 — Mai 1872. In: Colli, G; Montinari, M. (Hrsg.). Nietzsche Briefwechsel. Kritische Gesamtausgabe (KGB). Zweite Abteilung. Zweite Band (2.2). Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1977.
Nietzsche, F. W. Briefe na Friedrich Nietzsche: Januar 1875 — Dezember 1879. Erster Halbband. In: Colli, G; Montinari, M. (Hrsg.). Nietzsche Briefwechsel. Kritische Gesamtausgabe (KGB). Zweite Abteilung. Sechster Band (2.6). Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1980.
Nietzsche, F. W. Briefe na Friedrich Nietzsche: Januar 1887 — Januar 1889. In: Colli, G; Montinari, M. (Hrsg.). Nietzsche Briefwechsel. Kritische Gesamtausgabe (KGB). Dritte Abteilung. Sechster Band (3.6). Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1984.
Nietzsche, F. W. Friedrich Nietzsche Briefe: Januar 1875 — Dezember 1879. In: Colli, G; Montinari, M. (Hrsg.). Nietzsche Briefwechsel. Kritische Gesamtausgabe (KGB). Zweite Abteilung. Fünfter Band (2.5). Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1980.
Nietzsche, F. W. Friedrich Nietzsche Briefe: Januar 1880 — Dezember 1884. In: Colli, G; Montinari, M. (Hrsg.). Nietzsche Briefwechsel. Kritische Gesamtausgabe (KGB). Dritte Abteilung. Erster Band (3.1). Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1981.
Nietzsche, F. W. Friedrich Nietzsche Briefe: Januar 1885 — Dezember 1886. In: Colli, G; Montinari, M. (Hrsg.). Nietzsche Briefwechsel. Kritische Gesamtausgabe (KGB). Dritte Abteilung. Dritter Band (3.3). Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1982.
Nietzsche, F. W. Friedrich Nietzsche Briefe: Januar 1887 — Januar 1889. In: Colli, G; Montinari, M. (Hrsg.). Nietzsche Briefwechsel. Kritische Gesamtausgabe (KGB). Dritte Abteilung. Fünfter Band (3.5). Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1984.
Nietzsche, F. W. Friedrich Nietzsche Briefe: Mai 1872 — Dezember 1874. In: Colli, G; Montinari, M. (Hrsg.). Nietzsche Briefwechsel. Kritische Gesamtausgabe (KGB). Zweite Abteilung. Dritter Band (2.3). Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1978.
Nietzsche, F. W. Friedrich Nietzsche Briefe: September 1864 — April 1869. In: Colli, G; Montinari, M. (Hrsg.). Nietzsche Briefwechsel. Kritische Gesamtausgabe (KGB). Erste Abteilung. Zweite Band (1.2). Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1975.
Nietzsche, F. W. Zur Genealogie der Moral: Eine Streitschrift. In: Colli, G; Montinari, M. (Hrsg.). Nietzsche Werke. Kritische Gesamtausgabe (KGW). Sechste Abteilung, zweiter Band (6.2). Berlin: Walter de Gruyter & Co, 1968.
Vivekananda, S. On Dr. Paul Deussen. The Complete Works of Swami Vivekananda. Volume IV. Calcutá: Advaita Ashrama, 1955.
ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A FILOSOFIA DE NIETZSCHE[51]
O termo preferido de Nietzsche, que ele já empregava continuamente em Pforta, era o termo “sensato”. Tudo o que lhe fosse dirigido, tinha de ser sensato; ser um homem sensato, esse era o ideal que ele tinha em mente. Mas esse termo significa uma alegria silenciosa, interna, para com tudo o que é belo, verdadeiro e bom, um repousar e um se-deixar-satisfazer nos tesouros do próprio interior, unido a um certo afastamento do mundo exterior, de seu movimento e de seu juízo. Nesse sentido, pela constituição e pelo estilo de vida, Nietzsche foi sensato enquanto homem, e esse caráter também não se desmente em sua filosofia. Ele nunca foi um filósofo sistemático; os grandes problemas da teoria do conhecimento e da psicologia, da estética e da ética, são apenas mencionados de passagem, ainda que, por assim dizer, algum raio de luz valioso, que incide sobre eles, ilumine-os de maneira fulminante. Nietzsche nunca fez uma elaboração de todas as relações da natureza e da vida, como encontramos em Schopenhauer, e, pela fraqueza de seus olhos, que lhe era um impeditivo para o estudo, assim como para a observação do mundo e do homem, ele se sentia, desde a infância, direcionado ao seu próprio interior e aos ricos tesouros que ele lhe oferecia. Um intelecto claro, vivo, incansavelmente ativo, não lhe deixou facilmente escapar uma combinação, que foi possível construir a partir do material limitado, que lhe era acessível, e [nele] sempre esteve em movimento uma fantasia delicada, que transborda em imagens esvoaçantes, de vestir seus pensamentos com as mais agradáveis parábolas e de expressá-los em uma linguagem de beleza sedutora. Mas esses pensamentos e imagens, que pululam no rico solo do próprio interior, carecem daquela crítica e controle da efetividade, daquela correção que, pelas reais relações da natureza e da vida, deve ser realizada nos leves filhos do espírito. Por isso inundou o campo de nosso filósofo uma criação de pensamentos que não está em harmonia nem consigo mesmo, nem com as relações do mundo efetivo; por isso correm em suas obras os mais engenhosos olhares profundos, as mais valiosas verdades coloridamente emaranhadas com as ideias bizarras, deturpadas, levadas ao extremo, que, como costuma acontecer nos romances sensacionalistas, colocam como regra o que ocorre como rara exceção, e por isso fornecem uma caricatura da vida que significa um não pequeno perigo para os ânimos receptivos e inexperientes. Apenas podemos escapar desse perigo se recuperarmos o que Nietzsche deixou de fazer: se confrontarmos seus pensamentos a cada passo com a natureza das coisas presente em nós assim como nele e eliminarmos tudo o que não se prova nessa pedra de toque de toda verdade. Trata-se, em Nietzsche, não tanto das coisas e das relações reais da natureza e da vida espiritual, mas, antes, dos valores que estamos habituados a incluir em tais coisas e relações, e que Nietzsche acreditou ter de submeter a uma completa transvaloração. Se perguntarmos, porém, de onde ele retirou a autorização para sua transvaloração de todos os valores, podemos encontrar, no fundo, apenas as últimas profundidades inconscientes, metafísicas, de nossa natureza e, com isso, algo de fato dado que Nietzsche, como todos os éticos antigos, geriu com suas determinações de valor, e a questão será apenas a de se Nietzsche logrou escutar a voz da natureza de maneira mais clara e propagar suas mensagens de maneira mais pura na luz solar do conhecimento abstrato do que seus antecessores.
Mas antes de nos aproximarmos das novas tábuas de leis, que Nietzsche quer pendurar sobre nós, e da meta mais elevada, que elas indicam, i.e., do conceito do além-do-homem, queremos mencionar brevemente um dogma que Nietzsche maneja ao lado do além-do-homem como o segundo ponto cardinal de seu ensinamento e como um novo e grande mistério. Este é o ensinamento do eterno retorno, segundo o qual no decorrer do tempo infinito todas as coisas e acontecimentos retornarão novamente em um ciclo periódico e, de maneira mais precisa, exatamente como eles são atualmente; e essa repetição de todo o processo do mundo ocorrerá no futuro ainda inúmeras vezes, assim como ela já aconteceu no passado inúmeras vezes, pois o tempo é infinito. Deve-se perceber em primeiro lugar que essa ideia não é de nenhuma maneira nova; pois já os antigos pitagóricos ensinavam que todo o curso do mundo, exatamente como ele é agora, retornaria; — e se isso é verdadeiro, diz Eudemo, a quem devemos essa notícia, a seus ouvintes, então, assim como agora, eu também estarei outra vez diante de vós e terei essa vareta aqui em minhas mãos. Neste pensamento antigo, renovado novamente por Nietzsche, é também certo que o desenvolvimento do mundo forma um curso circular e não se move, em progresso retilíneo, para alguma meta final, pois cada semelhante meta final já deveria ter sido alcançada há tempos, uma vez que o tempo que já correu é infinito. O desenvolvimento do mundo se dá, portanto, em ciclo, e nosso atual conhecimento da natureza nos permite muito bem esboçar uma imagem hipotética da vida do universo no tempo infinito. Originalmente, assim podemos presumir, nosso sol formou, junto a seus planetas, uma esfera gasosa ígnea, cujo ponto central se encontrava no atual sol e cuja periferia, ainda muito além da órbita de Netuno. Essa esfera gasosa começou a diminuir, circular, soltar anéis, que se romperam, se aglomeraram e, atualmente como planetas, orbitam por um tempo o corpo central, até que eles, impedidos em seu voo por algum acaso, sejam puxados para dentro do sol e, despencando de uma monstruosa altura e adentrando profundamente no corpo do sol, produzam uma fricção e um calor subsequente, que é suficiente para retransformar todo o sistema solar naquela esfera gasosa, da qual o desenvolvimento partiu. Esse curso circular ainda se retornará inúmeras vezes no futuro sob modificações nos pormenores com nosso sistema solar e — mutatis mutandis — com todos os sóis que avistamos no espaço infinito como estrelas fixas, como ele já sucedeu inúmeras vezes no passado. Até este ponto, portanto, devemos aprovar o eterno retorno. Mas se é afirmado que o futuro período do mundo teria em todos os pormenores exatamente o mesmo decorrer que o presente [período do mundo], então se trata de uma opinião totalmente inconsistente. Essencialmente, o processo do mesmo permanecerá, mas as modalidades serão sempre diferentes; assim como no bilhar, uma vez que suas áreas consistem em infinitos pontos, nunca retornará a mesma posição de três bolas uma em relação à outra, o jogo evolutivo do mundo terá infinitas variações; eadem sed aliter [a mesma coisa, mas de outro modo] é, como o lema da história da humanidade, também o lema da história geral da natureza do céu.
Dessa questão secundária, passemos ao ponto principal, que consiste em que Nietzsche quebra com grande coragem as tábuas de leis de todos os valores vigentes até então e quer construir novas valorações. O primeiro lhe foi mais bem-sucedido do que o último, o romper mais do que o construir. Com impetuosidade, ele se volta contra as representações religiosas, cristãs e morais legadas. Ele vê nelas um indigno grilhão que por séculos manteve atadas as mais nobres forças da humanidade e impediu seu desenvolvimento livre, natural. Se aqui, em seu combate contra os legados sagrados, Nietzsche vai além do que qualquer um antes dele, então apenas a ele devemos ser gratos por isso. Pois em todas as tradições, que se reproduzem de estirpe em estirpe, há sempre muito de morto, fossilizado, insalubre e cada tentativa de ferir a propriedade herdada estimula a uma revisão renovada da mesma e deve ser, por isso, bem-vinda.
Já em 1873 na Basileia, Nietzsche me disse que sua meta não seria a negação da vontade, mas o enobrecimento da vontade, e já naquele tempo eu respondi que aquele que ainda não entende a negação da vontade é quem não vê nela o mais elevado enobrecimento. Talvez esse termo, como naquele tempo para meu amigo, ainda hoje pareça paradoxal para alguns, e queremos tentar nos explicar de maneira mais clara.
Qual é a meta mais elevada do homem? Para essa questão, cada teoria moral dá sua resposta específica; mas elas podem ser tão distintas quanto seus representantes podem ser todos ordenados em dois grupos principais, dos quais o primeiro escreve em sua bandeira o termo “bem-aventurança” (“Glückseligkeit”) e o segundo, o termo “autonegação” (“Selbstverleugnung”), e que podemos designar brevemente como o pagão e o cristão. O primeiro, representado pela ética antiga com exceção do platonismo e pelos muitos fenômenos do mais novo tempo, parte do fato de que todos os impulsos da natureza humana convergem no anseio geral de viver, de gozar e de ser feliz, e ela encontra a mais elevada e última tarefa da moral em estipular o meio e o caminho que conduzem o mais seguramente para a felicidade, seja nessa vida ou em um além em que se crê. Essa direção pagã é contrária à cristã, cujos principais representantes são a vedanta, o platonismo, o cristianismo e a filosofia kantiana-schopenhaueriana; eles todos ensinam que a mais elevada tarefa do homem não se situa na perseguição e na gratificação daqueles impulsos naturais para a felicidade, mas antes no seu combate e no extermínio, e que, somente através de uma tal negação da vontade de vida, nossa natureza verdadeira, supraindividual, divina, sobressairia do escurecimento ao qual ela sucumbiu precisamente por aquele impulso à felicidade. Esse pensamento monstruoso, que se revolta contra todo o ordenamento natural do mundo, podemos nomear de cristão, desde que ele foi pregado e incutido na humanidade ocidental pela primeira vez na forma do cristianismo. De maneira mais pura do que nessa forma[52] semi-mítica e ainda mais escurecida pela natureza pagã, em que ele foi enxertado, o pensamento cristão se sobressai na ética fundamentada por Kant, pensada até o fim por Schopenhauer. O núcleo de nossa essência (Wesens), assim ensina Schopenhauer, o philosophus christianissimus, é a vontade; ambos os polos são afirmação e negação; aquele forma, como o egoísmo, a raiz de toda a nossa existência natural, este se manifesta, em contradição com a ordem empírica da natureza, em cada ação moral, i. e., em cada ação que se opõe ao nosso impulso natural à vida, ao gozo e à felicidade, seja perseguindo o bem-estar de nossos semelhantes ou diretamente e sem uma tal finalidade exterior a crucificação do homem natural em nós através da voluntária adoção da renúncia, da fadiga e da dor. Essa direção, oposta à corrente natural, Schopenhauer nomeou inicialmente de “a melhor consciência”, mas posteriormente, com a renovação de uma expressão utilizada primeiramente por Jesus, de: “a negação da vontade de vida”. Essa expressão teve de ser negativa, porque todos os conceitos e intuições positivas surgiriam do reino da afirmação e, por isso, seriam enganosos; mas, na verdade, a negação da vontade de vida é algo completamente positivo, a fonte de toda justiça, amor humano e disposição sacrificial não interessados para a grande finalidade, toda aspiração e criação grandes, heroicas, supraindividuais, enquanto, antes, a afirmação encontra sua mais clara expressão na sensibilidade (Sinnlichkeit), na avidez por gozo, na apreensão e na pequena preocupação com a própria pessoa e com seus pobres interesses. Como muitos outros, Nietzsche também subestimou essa essência da negação, senão ele teria compreendido que aquilo que ele muito estima acima de tudo e para onde ele gostaria de conduzir a humanidade, para falar em nossa linguagem, não é afirmação, mas negação da vontade de vida. Pois afirmação é fraqueza, é um angustiante aderir ao próprio eu e aos seus interesses. O que resulta disso para mim? Assim pergunta aquele que afirma, e essa consideração lhe impede de aplicar todo o ímpeto em sua personalidade, a fim de perseguir com dedicação alguma grande finalidade. É capaz disso apenas quem esquece a si mesmo em sua obra, e um tal auto-esquecimento significa negação. A vontade de poder, que Nietzsche quer fazer florescer, se situa, compreendido corretamente, na direção da negação, não na da afirmação, cuja traço principal é sensibilidade, fraqueza e incapacidade em toda grandeza. Ou caso se prefira uma outra terminologia, a vontade de poder não é uma afirmação individual, mas supraindividual, i. e., ela é negação. Com razão, Nietzsche insiste em que a vontade se faz livre de todos os grilhões da loucura e da crendice, de todas as tradições religiosas e morais, a fim de, para além do bem e do mal, pertencer completamente apenas a si mesma e se designar, a partir da decisão mais particular, a suas ações, ela não anseia — para falar em linguagem kantiana — a heteronomia, mas a autonomia da vontade, i. e. ela não anseia a afirmação, mas a negação, caso se entenda esses termos tal como eles são pensados por seus autores. A negação, segundo sua essência, é sempre ascética, ela é dura e amarga, como Nietzsche quer, e quando essa dureza e sacrifício de si próprio adota a forma da compaixão pelos outros, que Nietzsche tanto abomina, deve-se perceber que essa forma não tem qualquer importância para o valor da ação, pois o valor moral de uma ação não se situa no que ela é para os outros, mas no que ela é para nós, i. e. no grau de autonegação que se manifesta nela. O homem é uma passagem, uma ponte, o homem é algo que deve ser superado, assim prega Nietzsche e assim pregaram antes dele todos os grandes professores da moral e da religião, e quando o Veda diz: libertai-vos da loucura da individualidade e reconhecei que vós sois o Atman, [assim como] quando a Bíblia exige que o velho homem em nós morra, para que viva em nós apenas Cristo, o novo homem, essas exigências significam o mais profundamente o mesmo que Nietzsche quer: que o homem seja superado em nós, para que surja o além-do-homem. O além-do-homem de Nietzsche é um ideal da humanidade, exatamente como a forma de Cristo é para a igreja; ambos coincidem em aspectos essenciais, e não constitui nenhuma profunda distinção quando Nietzsche espera a realização de seu ideal somente do futuro, enquanto a igreja contempla o seu como realizado em um homem do passado. Pois, na verdade, esse ideal da humanidade, queira chamá-lo de Cristo ou de além-do-homem, não pertence nem ao passado nem ao futuro, mas é a divina força metafísica, atemporal, que está potencialmente latente em todos nós e pode sobressair em todos nós. Mas isso não acontece, como Nietzsche acredita, no caminho da genialidade, por mais elevada que a poderíamos avaliar, mas através da autonegação, que é a moralidade; pois o intelecto é e permanece a natureza secundária, [enquanto] o radical e o metafísico em nós é a vontade, mas esta é uma potência que pertence não apenas ao gênio, mas também aos “superficiais”, os “demasiados”, por isso a mais elevada tarefa, o mais elevado caminho está aberto a cada um que ela também seja. O próprio Nietzsche já se aproxima em seu último escrito da ideia de que o além-do-homem não seja um Messias a se esperar futuramente, a cuja criação todos os povos e gerações devem servir enquanto meros meios de cultura, mas um ideal de vida tangível a cada um. E certamente suas ideias teriam se esclarecido ainda mais nesse sentido, se, demasiado cedo para ele e para nós, a noite não tivesse caído sobre ele.
O presente trabalho foi elaborado durante a pesquisa de mestrado financiada, inicialmente, pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), através do Programa de Excelência Acadêmica (PROEX), e, atualmente, pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Brasil. Processo nº 2024/16313-2.
CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA
1 – Lucas Pires Ramos
Bacharel e Licenciado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas
https://orcid.org/0009-0007-3559-3036 • lucaspiresramos@gmail.com
Contribuição: Escrita - Primeira Redação
COMO CITAR ESTE ARTIGO
Ramos, L. P. Algumas observações sobre a filosofia de Nietzsche, de Paul Deussen. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria - Florianópolis, v. 16, n. 1, e92891, 2025. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378692891. Acesso em: dia, mês abreviado, ano.
[1] Daly, D. The routes of philosophy, p. 295.
[2] Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume I, p. 76.
[3] Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume I, p. 117.
[4] Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume I, p. 136.
[5] Daly, D. The routes of philosophy, p. 295.
[6] Daly, D. The routes of philosophy, p. 295.
[7] Braz, D. R. Meu caminho até Paul Deussen, p. 4, nota 4.
[8] Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume II, p. 369.
[9] Daly, D. The routes of philosophy, p. 295.
[10] Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume I, p. 212.
[11] Rascunho de carta de Nietzsche a Paul Deussen da segunda metade de fevereiro de 1869 (623). KGB 1.2, p. 375.
[12] Carta de Nietzsche a Paul Deussen da segunda metade de fevereiro de 1869 (622). KGB 1.2, p. 374.
[13] Carta de Nietzsche a Paul Deussen de 11 de abril de 1869 (633). KGB 1.2, p. 387-388.
[14] Carta de Paul Deussen a Nietzsche de 29 de abril de 1869 (2). KGB 2.2, p. 4.
[15] Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume I, p. 379.
[16] Andler, C. Nietzsche: Vida e Pensamento, volume I, p. 405.
[17] Carta de Nietzsche a Carl von Gersdorff de 2 de agosto de 1872 (248). KGB 2.3, p. 41-42.
[18] Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume I, p. 389.
[19] Daly, D. The routes of philosophy, p. 295.
[20] Daly, D. The routes of philosophy, p. 295.
[21] Carta de Paul Deussen a Nietzsche de 5 de julho de 1877 (927). KGB 2.6, p. 597.
[22] No original, o eu está não apenas em itálico, mas também em negrito.
[23] Carta de Nietzsche a Paul Deussen do começo de agosto de 1877 (642). KGB 2.5, p. 264-265.
[24] Carta de Paul Deussen a Nietzsche de 14 de outubro de 1877 (996). KGB 2.6, p. 730.
[25] Daly, D. The routes of philosophy, p. 296.
[26] Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume II, p. 369.
[27] Carta de Nietzsche a Paul Deussen de 16 de março de 1883 (389). KGB 3.1, p. 342-343.
[28] Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume II, p. 368.
[29] Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume II, p. 369.
[30] Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume II, p. 369.
[31] Carta de Nietzsche a Paul Deussen de 20 de setembro de 1886 (752). KGB 3.3, p. 251-252.
[32] Daly, D. The routes of philosophy, p. 296.
[33] Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume III, p. 16.
[34] Carta de Nietzsche a Franz Overbeck de 17 de setembro de 1887 (913). KGB 3.5, p. 158.
[35] Nietzsche, F. W. Zur Genealogie der Moral, III 17. KGW 6.2, p. 398-399.
[36] Carta de Paul Deussen a Nietzsche de 9 de outubro de 1888 (588). KGB 3.6, p. 325.
[37] Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume II, p. 465.
[38] Carta de Nietzsche a Paul Deussen de 26 de novembro de 1888 (1159). KGB 3.5, p. 492.
[39] Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume II, p. 485-6.
[40] Carta de Nietzsche a Paul Deussen de 4 de janeiro de 1889 (1246). KGB 3.5, p. 574.
[41] Daly, D. The routes of philosophy, p. 296.
[42] Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume III, p. 55-6.
[43] Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume III, p. 93.
[44] Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume III, p. 93.
[45] Daly, D. The routes of philosophy, p. 296.
[46] Braz, D. R. Meu caminho até Paul Deussen, p. 5.
[47] Janz, C. P. Friedrich Nietzsche: uma biografia, volume III, p. 131.
[48] Daly, D. The routes of philosophy, p. 297.
[49] Braz, D. R. Meu caminho até Paul Deussen, p. 5.
[50] Vivekananda, S. On Dr. Paul Deussen, p. 274.
[51] Para a realização da tradução, foi utilizada a seguinte edição: Deussen, P. Einige Bemerkungen über Nietzsches Philosophie. In: Deussen, P. Erinnerungen an Friedrich Nietzsche. Leizpig: F. A. Brockhaus, 1901.
[52] Diferente da oração anterior, Deussen emprega aqui o termo Gestalt, em vez de Form.