Logotipo

Descrição gerada automaticamente

Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 16, n. 1, e92703, 2025

DOI: 10.5902/2179378692703

ISSN 2179-3786

Submissão: 05/07/2025 Aprovação: 13/10/2025 Publicação: 28/11/2025

Resenha

Resenha da obra a liberdade intelectual em Schopenhauer, de Antonio Alves

Review of the work "Intellectual Freedom in Schopenhauer" by Antonio Alves

 

Vinicius EdartIÍcone

Descrição gerada automaticamente

 

I Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil

ALVES, Antonio. A liberdade intelectual em Schopenhauer. São Paulo: Editora Dialética, 2024.

 

Debates sobre o conceito de liberdade intelectual são uma lacuna na tradição de estudos schopenhauerianos, de modo que os outros dois tipos de liberdade (liberdade moral e liberdade física) são mais amplamente discutidos. As investigações de Antonio Alves, em A liberdade intelectual em Schopenhauer, mostra que o conceito até então negligenciado pode provocar novas reflexões sobre a obra schopenhaueriana. Esta obra é a transformação em livro de sua Dissertação de Mestrado, defendida em 2023 na Universidade Estadual de Londrina (UEL), publicada pela Editora Dialética, com 279 páginas, nas quais o pesquisador empreende investigações como uma arqueologia do conceito de liberdade intelectual no sistema de Schopenhauer.

A liberdade intelectual em Schopenhauer conta com dois grandes capítulos e alguns anexos. O primeiro capítulo é intitulado Liberdade, responsabilidade moral e consciência e o segundo capítulo é intitulado Causalidade, caracterologia e loucura. O primeiro capítulo é dividido em três seções: a primeira seção (Aristóteles na perspectiva da liberdade intelectual), com a intenção de explorar a formação do conceito com a sua fonte grega, evidencia o modo como Aristóteles expressa brevemente (na Ética a Eudemo II, cap. 7 e 9 e na Ética a Eudemo III, cap. 2) a relação entre atos voluntários, involuntários e não-voluntários, com destaque à diferença entre os dois últimos. Os atos involuntários (também as ações que são forçadas) são aqueles realizados em que o agente se arrepende, enquanto os atos não-voluntários ocorrem quando o agente não se arrepende. Além disso, Alves distingue a compreensão de Aristóteles sobre as condições dos atos voluntários (três vias: inclinações de apetite, por opção de escolha ou por pensamentos), das ações em ignorância (quando se está sem a capacidade de ponderamento de suas ações) e ações por ignorância (quando há falta de discernimento sobre suas próprias ações).

Na segunda seção do primeiro capítulo (Liberdade, determinismo, justiça eterna e sentimento de responsabilidade moral), o Alves realiza uma breve distinção entre os três tipos de liberdade schopenhaueriana (liberdade física, liberdade moral e liberdade intelectual) relacionando-as com o princípio de razão suficiente e suas figuras, em conformidade com a Quadrúplice raiz do princípio de razão suficiente e utiliza uma abundância de exemplos sobre a aplicação das noções schopenhauerianas de liberdade para que o leitor não fique em dúvida sobre as diferenças entre as três noções. Em seguida, o autor da obra analisa a questão do sentimento de responsabilidade moral [Gefühl der Verantwortlichkeit], passando pela noção de caráter inteligível, pelo sentimento de culpa e de remorso e o modo como a culpa e o remorso se relacionam com a responsabilidade moral, em uma análise da imputação moral e juridicamente.

A partir da página 56 até a página 76, o autor analisa pormenorizadamente o conceito de justiça eterna enquanto uma alegoria, distinguindo-se de comentadores que compreendem o conceito com vista à aplicabilidade da justiça eterna no mundo enquanto representação, isto é, na compatibilidade do conceito de justiça eterna com a responsabilidade moral. A ousada empreitada de Antonio Alves apresenta as posições interpretativas já consolidadas na comunidade acadêmica: há intérpretes que, por um lado, simpatizam com esta compatibilização, como Ramos e Bacelar, por outro, há quem não interprete a compatibilização como possível, como Orrutea Filho. A análise de Alves, porém, extrapola a apresentação das interpretações e oferece uma terceira via interpretativa para a resolução da questão, destacando o aspecto alegórico da justiça eterna apresentado nas Upanishads. Neste ponto, quando recorre à ilustração das ocorrências da repetida expressão Tat twan asi no diálogo entre Śvetaketu e Āruni (seu pai), justifica as razões pelas quais a justiça eterna deve ser compreendida enquanto alegoria, reforçando seu argumento. Por fim, a seção se encerra com a elucidação de como Schopenhauer se apropriou da terceira antinomia da razão pura, acerca da liberdade transcendental, para compatibilizar a sua concepção de liberdade transcendental, ou ainda, liberdade da vontade.

A terceira e última seção do primeiro capítulo (Sobre a impossibilidade de se encontrar a liberdade na consciência de si), inicia com a descrição do idealismo schopenhaueriano em contraposição à posição realista. Em seguida, apresenta os doze argumentos acerca do primado da vontade na consciência de si, presentes no capítulo 19 do segundo tomo de O mundo como vontade e como representação. Além da apresentação dos argumentos, Antonio Alves se detém mais nitidamente no argumento nº 8 (“Que existem méritos e deméritos da vontade e méritos e deméritos do intelecto”), pois é nele um dos poucos momentos textuais em que Schopenhauer escreve sobre a liberdade intelectual. À luz de exemplos como Paulo Coelho, Keith Richards, Adolf Hitler, Louis Althusser e W. C. Minor, a análise de Alves evidencia a distinção que Schopenhauer realizou acerca das características morais e intelectuais ou, em outras palavras, os méritos e deméritos do caráter e do intelecto, de modo que um não condiciona o outro.

No segundo capítulo, o autor da obra inicia descrevendo brevemente as três formas de causalidade (causas em sentido estrito, estímulo e motivos), evidenciando que a aprioridade da causalidade (a causalidade é uma faculdade do intelecto), contrapondo o entendimento kantiano da causalidade enquanto empírica (o nexo causal existe entre objetos empíricos). A partir desta relação, Alves relaciona a aprioridade da causalidade com a liberdade intelectual e sua limitação, de modo que o sujeito sem liberdade intelectual, na verdade,

 

deixa de entender a verdade e a realidade do nexo causal à sua volta, criando um universo todo particular e respondendo ao mundo externo de acordo com os impedimentos que lhe são apresentados em seu intelecto, mas ocorre que responder incoerentemente ao ambiente não exclui a aprioridade da causalidade.[1]

 

A compreensão equivocada do indivíduo e, consequentemente, a resposta incoerente à realidade empírica podem resultar em ações prejudiciais a si mesmo, de modo que o indivíduo se encontra em uma espécie de prisão intelectual (excluindo motivos metafísicos, como a justiça eterna). Esta condição seria resultado do entendimento errôneo do tempo, do espaço e da causalidade. Ainda nesta seção, Antonio Alves apresenta as três formas de causalidade de maneira mais detida, sendo que a primeira, as causas em sentido estrito [Ursache], descrita como o evento em que a intensidade do efeito é proporcional a intensidade das causas e atribuída aos seres inorgânicos, de modo a possibilitar a aproximação com as leis de Newton, em especial com a terceira lei. Já a segunda forma de causalidade, os estímulos [Reiz], em que a intensidade do efeito não segue a intensidade das causas, é apresentada relacionando com a atividade vegetal e dos animais sem consciência, ou ainda, das ações dos corpos animais sem a intermediação do intelecto. Neste aspecto, o autor evidencia a irritabilidade enquanto sensibilidade ao estímulo e a sensibilidade enquanto uma propriedade nervosa.

 A primeira seção do segundo capítulo discute ainda a causalidade enquanto motivos [Motiv], distinguindo o modo de manifestação dos motivos do modo de manifestação dos estímulos: os motivos atuam nas ações causais na consciência, já na atuação dos estímulos ocorre sem a consciência, além de que os primeiros podem ser efetivos à distância, enquanto os últimos necessitam do contato físico para atuar. Neste aspecto, a dupla consideração do conhecimento pelos seres humanos evidencia uma suposta aristocracia intelectual do humano, pois outros animais são capazes de ter o conhecimento intuitivo, porém são incapazes do conhecimento abstrato, porém os seres humanos são capazes da dupla consideração. Nas palavras de Alves, “o ser humano [...] possui a capacidade de turvar a essência da natureza para fazê-la caber na sua própria visão de mundo”[2].

A distinção entre seres humanos e outros animais, considerados desprovidos de consciência por Schopenhauer, ocupa um espaço importante na primeira seção do segundo capítulo, rendendo inclusive um questionamento acerca da lógica antropológica utilizada por Schopenhauer na construção de sua epistemologia. Neste momento, antecipando alguns pontos da seção seguinte, Antonio Alves aponta que os humanos reagem de acordo com o caráter individual, já os animais possuem apenas um caráter de espécie, não havendo distinções muito particulares entre os indivíduos animais não-humanos. Ao mesmo tempo em que o humano representa a aristocracia intelectual da natureza, o autor apresenta uma espécie de hierarquia intelectual humana de Schopenhauer, na qual os indivíduos que desenvolvem trabalhos físicos estariam em uma posição mais abaixo na pirâmide intelectual, em que poderiam ser alocados os escravos, os servos, mas também a pessoa com alto grau de vulgaridade e rudeza.

Na seção seguinte (Caracterologia, fatalismo e negação da vontade), o autor inicia descrevendo os três conceitos-chave da caracterologia schopenhaueriana (caráter inteligível, caráter empírico e caráter adquirido) e em seguida apresenta a relação dos caráteres com as necessidades interna e externa. De acordo com o autor, a primeira “diz respeito à consideração isolada de cada Ideia objetivada no mundo enquanto representação e também a conservação de um organismo quanto à sua própria espécie”[3], pois cada indivíduo representa sua espécie ou seu caráter, já a finalidade externa “trata da relação da natureza inorgânica com a orgânica e da relação entre si dos organismos aparecendo uns para os outros como meios, dos quase todos pretendem um mesmo fim”[4], isto é, a sua continuidade na existência enquanto representação. O texto de Alves segue apresentando a compreensão kantiana de caráter inteligível e empírico, com a qual Schopenhauer dialoga no § 55.

O autor tece, na sequência do texto, algumas provocações instigantes relacionando a caracterologia schopenhaueriana com a liberdade intelectual, tema central da obra. Por exemplo, pergunta acerca do caso de ser possível que as falhas intelectuais revelassem tipos específicos de fraqueza da vontade, considerando a imutabilidade do caráter. A tentativa de resposta de Alves passa pela definição de cérebro e por uma exegese do capítulo 15 do segundo tomo d’O Mundo, em que o autor chega a afirmar que não se trata de um erro da vontade em se objetivar desta maneira, em um intelecto falho e anômalo, mas que o cérebro do indivíduo não recebeu um ‘fluxo de vontade’ bom e ideal para se desenvolver de maneira sadia, mesmo que tenha recebido justificadamente suficiente, já que a combinação genética assim permitiu. Ao mesmo tempo, pontua que Schopenhauer não responde a esta questão de modo direto, mas mostra como é possível chegar a esta resposta a partir das obras do filósofo.

Passa-se então para a análise do comportamento dos negadores da vontade e como interpretar o dito portão da liberdade, descrito por Schopenhauer por meio da negação da vontade. Aqui, tem-se o asceta que desenvolve repulsa pela própria vontade, ainda que não possa se separar de seu próprio caráter inteligível (sua personalidade) e espera o seu destino inevitável (a morte) com alegria. Um ponto muito importante na argumentação de Alves é o de que o caráter empírico é um espelho do caráter inteligível e, assim, a ação do indivíduo é previamente determinada pelo seu caráter. Disso resulta que o asceta não escolhe livremente, mas é determinado a escolher desta maneira e não poderia ocorrer de outro modo, pois a escolha é desconhecida ao intelecto apenas.

Neste sentido, a decisão da ação é ilustrada com o exemplo do cego e do paralítico: a vontade é como um forte cego que carrega nos ombros um paralítico que vê, sendo o forte cego uma analogia para a vontade, enquanto o paralítico que vê é análogo ao intelecto. Uma das teses da obra de Antonio Alves é a de que o paralítico que vê (o intelecto) não teria a possibilidade nenhuma de guiar os passos do forte cego (a vontade), de modo que o intelecto pode instruir pela orientação, porém de modo algum determina o caráter empírico atuará. Assim, a resposta pela existência da liberdade intelectual é negativa, dado que o intelecto é determinado

A obra segue com uma nova direção. Agora, o propósito do texto é responder uma complexa questão levantada pelo autor: “o que mantém a validade do caráter inteligível ao analisarmos a vida de um indivíduo e percebermos que esse tomou caminhos totalmente diferentes no decurso de sua vida?”[5]. Para isso, há dois caminhos iniciais, a saber, o caminho da negação, que pode advir de qualquer doutrina religiosa que tenha preceitos ascéticos, e um segundo caminho, por meio de experiências dolorosas do indivíduo no mundo. No primeiro caso, teríamos os exemplos de indivíduos que se arrependem, muitas vezes em idade avançada, mas este arrependimento pode ser um indício do temor da morte, assim como das consequências futuras do pós-morte. Este arrependimento pode ser legítimo sem as condições da morte e, desse modo, teria sofrido efeito da graça. Este primeiro caminho é ilustrado pelo exemplo de São Dimas. O segundo caminho de negação da vontade, por experiências dolorosas e frustrantes com a vida é ilustrado com o ascetismo de Jacques Fresch, reconhecido como ‘um bom ladrão do século XX’.

 O autor da obra A liberdade intelectual em Schopenhauer evidencia que o arrependimento moral schopenhaueriano advém não de que a vontade ter mudado, mas sim do conhecimento ter mudado. Isto é especialmente importante, pois a análise da liberdade intelectual não pressupõe a mudança do caráter, mas o conhecimento e o julgamento das ações. A partir deste momento, Alves levanta de maneira sucinta as noções de inclinação, paixão e afeto assimilando, tal como Schopenhauer, ao conceito de liberdade intelectual. A inclinação é descrita como uma predisposição acentuada da vontade para os motivos de tipos específicos, enquanto as paixões apresentam um grau mais elevado, pois podem potencializar as inclinações, tornando os motivos que advém das paixões como capazes de abafar quaisquer contramotivos. Isso raramente ocorre, pois, geralmente  é possível encontrar um contramotivo forte o suficiente para frear a paixão. Na sequência, os afetos são caracterizados como paixões mais passageiras, mas conquanto esteja presente na consciência, são capazes de suprimir a capacidade de ponderação e, assim, a liberdade intelectual. O arrependimento se dá não no caráter, mas passado o efeito da paixão ou do afeto, se conhece o que se fez.

Um problema que surge a partir destas definições se torna o fio condutor da obra a partir daqui até o fim, porém é desenvolvido de maneira central apenas na última seção: nas palavras de Antonio Alves, a pergunta seria se “estariam os santos afetados, quando praticam a ascese, por meio de seus motivos abstratos e, por conseguinte, sem liberdade intelectual?”[6] e neste momento, o conceito da liberdade intelectual é investigado de modo mais detido, apresentando a localização do conceito na obra schopenhaueriana.

As questões que contornam a liberdade intelectual são desenvolvidas na obra de Alves até o retorno da questão central na última seção do último capítulo. É apresentada, por exemplo, a distinção entre arrependimento e remorso, sendo o primeiro o conhecimento de uma ação realizada de acordo com falsos motivos ou influências externas ou internas que dificultaram a correta ponderação dos motivos para agir, enquanto o remorso (peso de consciência, re-moer) “é um arrependimento potencializado e capaz de ultrapassar o intelecto, alcançando o próprio caráter inteligível, isto é, a vontade extratemporal”[7], isto é, o arrependimento é a correção do conhecimento que resultou na ação, já o remorso é o reconhecimento de ter sido capaz de realizar tal ação.

Um relevante ponto levantado por Alves, a essa altura da obra, é a possibilidade do caráter adquirido, pois de acordo com Schopenhauer a vontade não é ensinada e as ações são determinadas pelo caráter, certo? Dessa maneira, conforme Antonio Alves apontou em seu livro, chega-se no famoso argumento do preguiçoso ou argumento do ocioso, exposto na obra De Fato (Sobre o destino), de Cícero, no capítulo XI: se as ações estão determinadas e não há nada o que possa ser feito para alterar esta necessária determinação, logo não preciso fazer nada além do que ser eu mesmo e, assim, vou descansar em minha cama, pois isso também já está determinado de antemão. Cícero, nesta obra, expõe a refutação de Crisipo a este argumento, ao qual se filia, de modo que haveria duas classes de fatos: os simples e os complexos. Os primeiros são fatos que independem da ação de alguém, como o resultado de uma linha causal, enquanto os últimos são fatos condestinados, isto é, quando se encontram duas linhas causais e os quais não se realizam senão com o encontro das condicionantes. Neste ponto, a argumentação de Fernanda Fernandes é trazida para refutar o argumento do preguiçoso que, para ela, não considera os fatos complexos, apenas os fatos simples, mas Alves considera insuficiente o argumento dos fatos complexos para a refutação do fatalismo, pois a linguagem abstrata não teria o poder de determinação dos fatos. Neste ponto, escreve Alves, concordando com Schopenhauer, que “o juízo pode errar, mas o destino de ações, nunca”[8].

O autor desenvolve ainda o caráter adquirido enquanto uma possibilidade de liberdade, dado que o conceito acomoda uma certa plasticidade, rompendo o determinismo extremo. No caso da negação da vontade, o caráter adquirido assume a possibilidade de autoconhecimento para a negação de si, mas esta categoria de caráter não exclui a determinação do caráter inteligível. Disso resulta que é preciso reconhecer que, no caso da negação da vontade por meio da graça, o efeito precisaria já estar impressa no caráter (inteligível) do indivíduo que se manifestaria posteriormente (por meio do caráter adquirido). Neste caso, teríamos de nos perguntar, como fez Antonio Alves, se haveria um caráter ascético e transcendentalmente agraciado. Alves responde que é um problema infundado, pois recusar “a graça seria como negar um caminho para a liberdade“[9], o que significaria agir contra a negação da vontade, mesmo que se tivesse um caráter ascético. Dentro da teoria de Schopenhauer, porém, não há reflexões neste sentido.

Os ascetas poderiam ser considerados como sem liberdade intelectual, dado que o efeito da graça se sobrepõe aos motivos e é determinante na ação do indivíduo. Além disso, de acordo com o autor da obra, na ideia de graça schopenhaueriana há uma forma velada de que um deus agracia o fiel que o usa e o faz servir a si (a deus), porém como muito bem contraposto a esta hipótese é a observação de que não há lugar para a ideia de deus em Schopenhauer e o efeito da graça, portanto, é uma concessão ascética do filósofo pra descrever uma “duvidosa entrada em cena da liberdade da vontade”[10].

Apresentada brevemente uma das teses da obra, segue-se a apresentação de exemplos biográficos de místicos clássicos, muitos deles retomando personalidades comumente referenciadas na obra de Schopenhauer, como é o caso do cristão Mestre Eckhart[11], da autora francesa Madame Guyon[12], de São Tomé[13] e do Bhagavad Gita[14]. A conclusão almejada por Alves com estes exemplos é a de que os autores citados confirmem o ponto schopenhaueriano de que a liberdade da vontade, por via da graça, é intraduzível para a linguagem, pois todos os autores citam sentimentos muito semelhantes, mas afirmam esta incapacidade de tradução do que sentem em palavras.

A questão final desta seção II, que é instrumentalizada como uma indicação para a seção III e a parte final da obra, é o problema acerca do fatalismo e sua dicotomia, presentes no capítulo Especulação transcendente sobre a aparente intencionalidade no destino dos indivíduos do segundo volume do Parerga, do qual Alves se ocupa até a página 209. Alves apresenta de maneira muito organizada a distinção do fatalismo demonstrável e do fatalismo transcendente, evidenciando a recomendação de Schopenhauer para não tomar o capítulo como acabado e como conclusões definitivas e que podem, inclusive, ser tomadas como meras fantasias metafísicas.

 O fatalismo demonstrável seria aquele que pode ser confirmado na experiência e a posteriori, podendo ser classificados em três categorias: primeiro, os sonhos premonitórios, o sonambulismo magnético e as premonições realizadas por videntes, também chamadas por Schopenhauer pela expressão segunda visão. A primeira categoria, os sonhos premonitórios, dos quais o próprio Schopenhauer experienciou duas ocasiões marcante, são experiências oníricas em que o indivíduo metaforicamente lê o livro da vida em uma ordem distinta daquela maneira como se lê em estado de vigília. Para exemplificar os sonhos premonitórios, Alves apresenta casos vivenciados pelo filósofo, como no caso do sonho de sua camareira, que sonhou que o filósofo derrubaria sua taça e ela iria limpar, e na ocasião em que o filósofo sonhou com a epidemia de cólera que assolaria a cidade de Berlim. De acordo com a história biográfica, este foi o motivo de Schopenhauer haver deixado Berlim e sobreviver, enquanto que seu arquirrival, Hegel, não ter tido a mesma sorte e vir a falecer em 1831. Antonio Alves apresenta também o caso do sonho de Júlio Rasec, tecladista da banda Mamonas Assassinas, trazendo uma entrevista que o músico concedeu ao Globo Repórter apenas 12 horas antes do ocorrido. Além disso, Alves apresenta outros exemplos, dentre literários e históricos.

Já o sonambulismo magnético é apresentada muito brevemente como originada do magnetismo animal, ou mesmerismo[15], se apoiando na interpretação de Luan Corrêa da Silva sobre a relação de Schopenhauer com a magia. Neste ponto, define o sonambulismo magnético como a ocasião em que alguém dá explicações e instruções a si mesmo para seu processo terapêutico, conduzida pelo magnetizador e que ajuda a promover uma comunicação íntima da vontade entre dois indivíduos, em volta do conceito de fluído vital. Neste processo, pode ocorrer a catalepsia, a incapacidade de mexer os músculos, mesmo que consciente em sentinela.

A terceira categoria, da premonição, ou ainda da adivinhação, vidência ou segunda visão, passa a ser tratada ainda com certo apoio nas interpretações de Silva, o qual argumenta que esta categoria seria sentida não pelos sentidos externos, mas por sentidos internos que se voltam ao interior da consciência. Alves comenta que este tipo de fatalismo contribui com a sua argumentação a favor da unidade da vontade, já que a visão dos espíritos e outras visões sobrenaturais têm origem do conteúdo da realidade (uma origem metafísica). Assim, a segunda visão seria admitida como com igual validade de um sentido externo, distinguindo-se deste último por não ser determinado pelo princípio de razão suficiente. A ilustração desta categoria é apresentada com a história trágica de Édipo, sobre a qual o Oráculo de Delfos teria tido uma premonição.

Antes de avançar para o fatalismo transcendental, a obra retoma a discussão sobre o livre-arbítrio e a possibilidade de determinação do futuro, já que, excluída esta possibilidade, não teria razão discutir vidência ou sonhos premonitórios. Aqui, o autor da obra utiliza-se de autores como Mark Balaguer e Leonard Mlodinow para discutir acerca do acaso em relação à vida, não necessariamente a fim de defender um determinismo absoluto, mas de uma linha determinística complexa. Além disso, Alves aprofunda um questionamento acerca dos sonhos e dos conteúdos oníricos e, para isso, são mobilizados Freud, Aristóteles, Foucault, entre outros nomes.

Para finalizar a seção, inicia-se a descrição do fatalismo transcendente, evidenciando logo no início que “o grande diferencial desse tipo de fatalismo em relação ao outro [demonstrável], é que nesse ponto Schopenhauer passa a considerar que talvez [...] a necessidade com que tudo acontece não seja cega[16]. Nesse ponto, nos encontramos diante de uma possível defesa da teleologia, em que a vontade não seja cega e, assim, ataca-se um dos sustentáculos de sua própria filosofia. Antes de tudo, é preciso lembrar que o capítulo onde Schopenhauer apresenta esta possibilidade é intitulado evidentemente de especulações ou, conforme expressão do próprio filósofo no capítulo, trata-se de palpadelas às escuras. A consideração séria do fatalismo transcendente pode resultar em problemas na conciliação do conceito com o caráter adquirido, com a irracionalidade da vontade e gerar conflitos na coerência interna do sistema schopenhaueriano. Por isso, é extremamente relevante o fato de o autor da obra destacar, quando aborda este fatalismo, de que se trata de especulações e finaliza esta seção recriando, de maneira excepcional, a analogia do cego forte e do paralítico que vê, de modo que, ao aceitar o fatalismo transcendente “seria o caso de se dizer que a vontade é como um forte que vê e determina tudo, mas que ainda assim carrega nas costas um paralítico-trouxa que acha que age deliberadamente”[17].

É na última seção da obra que se constrói a parte mais ousada e mais autoral de toda a pesquisa. É elaborada inicialmente sob hipótese de que

 

se minha memória esquece quem eu sou [esse], e não apenas que esqueça eventos ocorridos no meu passado, então, perco a conexão com o que eu faço [operari], logo, meu conhecimento sobre meus próprios pensamentos se encontra rompido e estou mais apto às ações impulsivas, ou seja, às ações sem liberdade intelectual[18].

 

            A tese que Antonio Alves busca provar nessa seção é a de que a loucura não está apenas relacionada com os gênios, mas também se aproxima dos santos, dos ascetas e dos negadores da vontade em geral. Neste aspecto, reconstrói a teoria da loucura schopenhaueriana discutindo uma gama de autores, como Erasmo de Roterdã, Foucault, Holbach e Xenofonte, e questiona se o próprio Schopenhauer não haveria negligenciado este aspecto da loucura, pois o filósofo nos legou a conexão da loucura com a genialidade, porém o que o que Alves realiza é a conexão dos negadores da vontade com a loucura, no caso específico, com a loucura divinatória. De modo firme, o autor afirma que

 

A negação da vontade é antinatural e por isso não pode ser compreendida sem um pouco de nocividade: ela afeta a sanidade coletiva, contribui para aumentar superstições e leva o ser humano para longe da verdade da vida. Nada pode nos convencer de que os santos têm a mente totalmente sã[19].

 

            Para defender a sua tese, o autor se utiliza de argumentos evolucionistas e até mesmo argumentos de Schopenhauer acerca da prudência para defender que a negação da vontade, em um nível extremo, é uma insanidade mental. Isso significa que a defesa da vida seria um instinto e um sinal de saúde psicológica, pois a mesma prudência que, por um lado, não alcança a genialidade, por outro, não atinge o ascetismo.

            É importante perceber que a tese não é uma simples crítica ao filósofo, mas o autor mostra um grande domínio da teoria do filósofo, realizando uma rigorosa exegese de suas obras, ao mesmo tempo que é extremamente cuidadoso ao estabelecer diálogos com outros pensadores e nas ilustrações do que se propõe. Disso, é muito satisfatório poder ler uma obra que dialoga com o filósofo de modo evidente, sem injustiça, mas ainda assim o trai, principalmente na última seção: apresenta a teoria, compreende a sua extensão com propriedade, porém também se posiciona, buscando instrumentalizar a teoria aos dias de hoje. Em outras palavras, a obra A liberdade intelectual em Schopenhauer coloca o filósofo contra a parede lógica, de maneira brilhante.

Esta obra é indicada para todos aqueles schopenhauerianos ortodoxos e heréticos que desejam conhecer a teoria da liberdade intelectual schopenhaueriana e ler uma exposição literária digna de filósofo, com abundância de analogias e diálogos com diversos pensadores anteriores e posteriores ao Buda de Frankfurt.

 

REFERÊNCIAS

ALVES, Antonio. A liberdade intelectual em Schopenhauer. São Paulo: Editora Dialética, 2024.

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA

1 – Vinicius Edart

Doutorando em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Paraná

https://orcid.org/0009-0002-8362-2798 • f.vinicius.edart@gmail.com

Contribuição: Escrita - Primeira Redação

 

COMO CITAR ESTE ARTIGO

Edart, V. Resenha da obra a liberdade intelectual em Schopenhauer, de Antonio Alves. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria - Florianópolis, v. 16, n. 1, e92703, 2025. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378692703. Acesso em: dia, mês abreviado, ano.

 

 



[1] Alves, A. A liberdade intelectual em Schopenhauer, p. 115.

[2] Alves, A. A liberdade intelectual em Schopenhauer, p. 126.

[3] Alves, A. A liberdade intelectual em Schopenhauer, p. 138.

[4] Alves, A. A liberdade intelectual em Schopenhauer, p. 139.

[5] Alves, A. A liberdade intelectual em Schopenhauer, p. 159.

[6] Alves, A. A liberdade intelectual em Schopenhauer, p. 166.

[7] Alves, A. A liberdade intelectual em Schopenhauer, p. 170.

[8] Alves, A. A liberdade intelectual em Schopenhauer, p. 175.

[9] Alves, A. A liberdade intelectual em Schopenhauer, p. 182.

[10] Alves, A. A liberdade intelectual em Schopenhauer, p. 182.

[11] Alves, A. A liberdade intelectual em Schopenhauer, p. 182-183.

[12] Alves, A. A liberdade intelectual em Schopenhauer, p. 183-184.

[13] Alves, A. A liberdade intelectual em Schopenhauer, p. 184-185.

[14] Alves, A. A liberdade intelectual em Schopenhauer, p. 185-186.

[15] Mesmerismo é uma teoria com base nas pesquisas do médico francês Franz Anton Mesmer.

[16] Alves, A. A liberdade intelectual em Schopenhauer, p. 207.

[17] Alves, A. A liberdade intelectual em Schopenhauer, p. 209.

[18] Alves, A. A liberdade intelectual em Schopenhauer, p. 209-210.

[19] Alves, A. A liberdade intelectual em Schopenhauer, p. 218.