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Descrição gerada automaticamente

Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 16, n. 1, e91819, 2025

DOI: 10.5902/2179378691819

ISSN 2179-3786

Submissão: 30/04/2025 Aprovação: 01/08/2025 Publicação: 03/09/2025

1 INTRODUÇÃO.. 2

2 SENTIMENTALISMO CLÁSSICO E NEO-JAMESIANISMO.. 6

3 ABORDAGENS COGNITIVISTAS ACERCA DAS EMOÇÕES. 8

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS. 19

REFERÊNCIAS. 20

 

Artigos

Por que as emoções importam?

Why do emotions matter?

Matheus Genro BuenoIÍcone

Descrição gerada automaticamente

I Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil

 

RESUMO

Neste artigo, examino três abordagens centrais para compreender as teorias das emoções na contemporaneidade: o sentimentalismo de William James, o cognitivismo de Robert Solomon e a teoria judicativa de Martha Nussbaum. Primeiramente, reviso a proposta de James e o neo-jamesianismo de Prinz, que identificam as emoções como reações fisiológicas automáticas, apontando suas limitações para captar o aspecto valorativo e intencional dos afetos. Em um segundo momento, analiso a contribuição de Solomon, que apresenta as emoções como modos ativos de interpretação e engajamento moral, articulados por julgamentos avaliativos que moldam nossa identidade. Por fim, apresento a teoria de Nussbaum, segundo a qual as emoções são formas de julgamento avaliativo e eudaimonista, ou seja, são juízos que atribuem valor a pessoas, eventos ou situações na medida em que impactam o florescimento e o bem-estar do sujeito. Segundo essa perspectiva cognitivista, as emoções deixam de ser fenômenos secundários ou subprodutos biológicos, tornando-se alicerces valorativos que orientam nossas decisões, revelam nossos compromissos mais profundos e fundamentam a construção de sentido na vida humana.

Palavras-chave: Afetividade; Emoções; Sentimentalismo; Cognitivismo

ABSTRACT

This article examines three central approaches to understanding contemporary theories of emotion: William James's sentimentalism, Robert Solomon's cognitivism, and Martha Nussbaum's judgment-based theory. First, I review the proposals of James and Prinz's neo-Jamesianism, which identify emotions as automatic physiological reactions, highlighting their limitations in accounting for the evaluative and intentional dimensions of affect. Next, I analyze Solomon’s contribution, which portrays emotions as active modes of interpretation and moral engagement, structured by evaluative judgments that shape our identity. Finally, I present Nussbaum’s theory, according to which emotions are forms of evaluative and eudaimonistic judgment—that is, judgments that assign value to people, events, or situations insofar as they affect the subject’s flourishing and well-being. From this cognitivist perspective, emotions are not mere biological by-products or secondary phenomena, but evaluative foundations that guide our decisions, reveal our deepest commitments, and underpin the construction of meaning in human life.

Keywords: Affectivity; Emotions; Sentimentalism; Cognitivism

 

1 INTRODUÇÃO

A afetividade, enquanto dimensão intrínseca da existência humana, configura-se como um eixo central na tessitura de nossas relações com o mundo, com os outros e conosco mesmos. Ela imprime cor, textura e significado às interações que definem a vida humana. Enquanto faculdades como a imaginação, o raciocínio e a memória contribuem para a construção da experiência, é a afetividade que confere profundidade e ressonância a essas vivências, transformando eventos cotidianos em momentos de conexão, desafio ou transcendência. Seja na curiosidade que impulsiona a busca pelo conhecimento, na compaixão que orienta ações morais ou na apatia que paralisa projetos, a afetividade estrutura não apenas como percebemos o mundo, mas também como nos posicionamos diante dele, mediando nossa relação com a realidade em suas múltiplas dimensões. Além disso, a afetividade funciona como uma bússola interna, orientando nossas decisões em situações de incerteza e fornecendo um termômetro dos nossos valores mais profundos. Ela sinaliza quais caminhos são mais compatíveis com nossas motivações e alerta para possíveis riscos emocionais, tornando-se fundamental na regulação do comportamento e na definição de prioridades. Essa orientação interna, fruto do entrelaçamento entre sensações corporais e juízos avaliativos, sustenta desde escolhas cotidianas até decisões de maior impacto, revelando o papel estratégico das emoções na condução de nossas trajetórias de vida.

No âmbito da filosofia analítica contemporânea, as emoções têm sido tradicionalmente enquadradas em duas vertentes antagônicas, cuja tensão revela os limites de cada abordagem. Por um lado, o sentimentalismo de William James (1884), que identifica as emoções com a percepção de mudanças fisiológicas, como a aceleração do pulso, a tensão muscular e alterações glandulares, considerando-as a base primária da consciência afetiva. Por outro, o cognitivismo de Robert Solomon (2007) e Martha Nussbaum (2001), segundo o qual as emoções são, antes de tudo, julgamentos avaliativos: crenças intencionais que atribuem valor moral ou prático a objetos, eventos ou pessoas. Esse contraste não se reduz a uma disputa sobre a ordem causal (se o corpo gera a mente ou vice-versa), mas põe em xeque como concebemos a própria natureza emocional: seria ela um fenômeno essencialmente corporal, um ato de interpretação racional, ou um entrelaçamento inseparável entre corpo e cognição. Enquanto James oferece um diagnóstico agudo da dimensão visceral das emoções, Solomon e Nussbaum mostram que, sem o caráter avaliativo, nos restaria apenas um catálogo de reações automáticas, desprovidas de significado. Por outro lado, a ênfase cognitivista, ao privilegiar as emoções como juízos avaliativos, corre o risco de subestimar a força imediata e por vezes irracional do caráter fisiológico das emoções. É nesse impasse teórico que se revela a necessidade de compreendermos as emoções como fenômenos complexos, nos quais alterações fisiológicas e juízos valorativos se articulam reciprocamente.

Este artigo propõe-se a discutir as concepções de William James, Robert Solomon e Martha Nussbaum sobre a natureza das emoções, com ênfase na teoria cognitivista desenvolvida por Nussbaum, que concebe as emoções como formas de julgamento avaliativo e eudaimonista. Isso significa que as emoções são juízos avaliativos que atribuem valor a pessoas, eventos ou situações conforme sua relevância para o florescimento e o bem-estar do sujeito. Ao lado da análise dos aspectos metafísicos implicados nas diferentes teorias das emoções, a proposta de Nussbaum será também examinada e defendida em sua dimensão prática, evidenciando de que modo as emoções orientam nossas decisões cotidianas, moldam nossas relações interpessoais e sustentam a maneira com que atribuímos sentido à existência. Ao final, será defendido, a partir da teoria de Nussbaum, por que as emoções importam: não como reações somáticas ou percepções corporais que sinalizam relevâncias adaptativas no ambiente, como ameaça, medo, desafio ou atratividade, como nas teorias sentimentalistas; mas por expressarem julgamentos de valor que revelam o que consideramos significativo e orientam nossas decisões, vínculos e formas de compreender a vida.

Iniciamos com o sentimentalismo de James, segundo o qual batimentos cardíacos acelerados, sudorese e tensão muscular não são meros efeitos colaterais das emoções, mas constituem seu núcleo experiencial, imprimindo ao corpo uma linguagem primordial. Em seguida, voltamo‐nos a Robert Solomon, um dos principais expoentes do cognitivismo sobre emoções, que concebe as emoções não como meras respostas fisiológicas automáticas, mas como formas sofisticadas de julgamento avaliativo e engajamento ativo com o mundo, estruturadas por crenças e valores que moldam nossas escolhas e nossa identidade moral.

Por fim, será apresentada a teoria judicativa de Martha Nussbaum, segundo a qual cada emoção, seja o medo, o luto ou a esperança, constitui uma forma de juízo avaliativo acerca da importância de algo para o florescimento e bem-estar do sujeito. Inspirada na tradição estóica, Nussbaum entende as emoções como crenças complexas que reconhecem a vulnerabilidade da vida humana diante de perdas, vínculos e aspirações, conferindo sentido àquilo que nos afeta. Embora possam envolver alterações fisiológicas e expressões comportamentais, o que define a emoção, nessa perspectiva, é seu caráter intencional e valorativo. Com base nessa abordagem cognitivista, defendo que as emoções não apenas orientam e transformam nossas decisões, mas constituem, em si mesmas, fontes de valor: é por meio delas que atribuímos importância ao que nos cerca, reconhecemos o que é precioso ou ameaçador e tecemos a rede de sentido que nos liga a pessoas, lugares e projetos. Assim, busco demonstrar que as emoções são importantes por serem alicerces valorativos que revelam nossos compromissos mais profundos e  sustentam a construção de sentido em nossas vidas. Nas seções seguintes, inicio com a proposta sentimentalista de William James, em seguida, passo pela teoria cognitivista de Robert Solomon, e, por fim, concluo com a análise e defesa da abordagem de Martha Nussbaum.

2 SENTIMENTALISMO CLÁSSICO E NEO-JAMESIANISMO

As teorias sentimentalistas ou não-cognitivistas concebem as emoções como experiências afetivas que emergem diretamente da corporeidade, sem mediação de julgamentos conscientes ou avaliações racionais. Nesse modelo, as emoções não se distinguem dos sentimentos: são reações corporais perceptíveis, imersivas e conscientes, manifestas em alterações fisiológicas como sudorese, aperto no peito, respiração acelerada ou tensão muscular. Essa perspectiva não estabelece uma separação rígida entre mente e corpo, mas sustenta que o conteúdo emocional se dá justamente pela experiência dessas sensações somáticas. Em termos causais, o senso comum tende a pressupor que sentimos medo, tristeza ou alegria e, como consequência, nosso corpo reage. Por exemplo: ao ver um cão ameaçador, sentimos medo e então o corpo treme, o coração acelera e transpiramos.

William James, no entanto, inverte essa ordem causal ao propor que as emoções são, precisamente, a percepção dessas alterações corporais. Ele desafia a concepção intuitiva de que primeiro há um estado emocional interno que causa a resposta fisiológica. Segundo James, é a percepção das modificações corporais que constitui a emoção. Como afirma: “the bodily changes follow directly the PERCEPTION of the exciting fact, and that our feeling of the same changes as they occur IS the emotion”.[1] Ou seja, não choramos porque estamos tristes; estamos tristes porque choramos. A emoção, nessa perspectiva, não é anterior às reações corporais, mas coincide com a percepção dessas alterações somáticas. O próprio James reconhece a existência de estados afetivos mais difusos, que não envolvem intensamente o corpo. No entanto, sua ênfase no seu célebre ensaio recai sobre o que ele chama de “emoções padrão” (standard emotions): estados afetivos paradigmáticos, como o medo, tristeza ou a raiva, em que alterações corporais distintas e identificáveis desempenham um papel central na experiência emocional.

A proposta de Jesse Prinz, desenvolvida no início dos anos 2000, representa uma atualização contemporânea do projeto sentimentalista. Defensor de uma abordagem chamada neo-jamesiana, Prinz concorda com James ao afirmar que as emoções são estados corporais percebidos conscientemente. No entanto, ele busca enfrentar uma das críticas mais persistentes ao sentimentalismo clássico: a dificuldade em explicar a intencionalidade das emoções, ou seja, o fato de que as emoções sempre são dirigidas a algo: como sentir medo de um cão, raiva de uma injustiça ou tristeza por uma perda. Do ponto de vista cognitivista, essa direcionalidade não pode ser explicada apenas como percepção de alterações corporais: elas envolvem uma avaliação do mundo, um modo de representá-lo como significativo, perigoso, valioso ou repulsivo. Para responder a esse problema, Prinz (2004) desenvolve a teoria das avaliações incorporadas (embodied appraisals), segundo a qual as emoções são percepções somáticas que já carregam conteúdo avaliativo. Elas representam, segundo ele, como o organismo se sai em seu ambiente, em termos de bem-estar e sobrevivência.

Contudo, mesmo ao introduzir o componente representacional nas emoções corporais, Prinz ancora sua concepção de cognição baseada em teorias da representação e da semântica informacional. Essa proposta tem sido alvo de críticas, tanto por manter um resquício de dualismo entre corpo e representação quanto por não esclarecer suficientemente como a emoção representa seu objeto. O próprio Prinz, em colaboração com Shargel (2018), reconhece essas limitações em sua abordagem inicial e propõe uma revisão substancial do modelo das avaliações incorporadas, admitindo que sua teoria inicial não explica satisfatoriamente a intencionalidade emocional em termos não-reducionistas.

Além disso, mesmo ao integrar elementos avaliativos, a proposta de Prinz permanece limitada quanto à profundidade  do conteúdo valorativo que as emoções podem expressar. Ao entendê-las, sobretudo como respostas somáticas com função adaptativa, ele reduz a intencionalidade emocional a um conjunto de indicadores biológicos de ajustamento. Com isso, perde-se a riqueza normativa, narrativa e prática presente em emoções como o luto, a indignação ou a compaixão: aspectos que são centrais nas abordagens cognitivistas de Robert Solomon e Martha Nussbaum, que analisaremos nas seções seguintes.

3 ABORDAGENS COGNITIVISTAS ACERCA DAS EMOÇÕES

3.1 Robert Solomon

Robert Solomon é um dos principais expoentes contemporâneos da teoria cognitivista das emoções, tendo estabelecido um marco fundamental nessa tradição ao propor uma concepção refinada e abrangente do papel das emoções na experiência humana. Em vez de tratá-las como meras respostas fisiológicas automáticas, Solomon argumenta que as emoções são estruturadas por julgamentos avaliativos e exercem uma função essencial na maneira como compreendemos e interagimos com o mundo. Ele rompe com a dicotomia tradicional entre emoção e razão, sustentando que as emoções não são irracionais, mas formas sofisticadas de inteligência e engajamento ativo com a realidade. Essa perspectiva desafia interpretações reducionistas que tentam explicar as emoções exclusivamente em termos biológicos ou mecanicistas, ressaltando, em vez disso, sua dimensão interpretativa, social e ética.  Ao longo de sua obra, Solomon defende que as emoções não apenas expressam nossas crenças e valores, mas também moldam nossa experiência do mundo, influenciando a forma como percebemos situações, pessoas e eventos. Isso sugere que uma análise filosófica das emoções deve ir além da mera descrição de seus aspectos fenomenológicos e considerar sua estrutura cognitiva, suas funções adaptativas e seu impacto sobre nossas decisões e ações.

A rejeição da teoria de William James é um dos pilares fundamentais da proposta de Solomon. James defendia que as emoções eram essencialmente reações corporais a estímulos externos, sem qualquer conteúdo cognitivo significativo. Solomon se opõe a essa concepção reducionista, argumentando que, embora os aspectos fisiológicos sejam relevantes, não são suficientes para definir uma emoção. O que distingue uma emoção de um simples reflexo biológico é sua estrutura cognitiva e seu caráter avaliativo. Assim, a experiência emocional não pode ser reduzida a uma mera resposta orgânica; ela envolve um processo interpretativo complexo, no qual o sujeito atribui significado ao que sente e ao que ocorre ao seu redor. Esse deslocamento conceitual é crucial para compreender a profundidade da abordagem de Solomon, que enfatiza a interdependência entre emoção, cognição e ética.

 A teoria das emoções de Solomon passou por importantes reformulações ao longo de sua obra, embora tenha mantido como núcleo a concepção de que as emoções são essencialmente fenômenos intencionais e avaliativos. Na primeira fase de sua obra, Solomon desenvolve a ideia de que as emoções são essencialmente formas de avaliação racional, baseadas em escolhas ou juízos deliberados, o que ele denomina “judgmentalism”. Em The Passions: Emotions and the Meaning of Life (1976), Solomon argumenta que, ao sentir uma emoção como a raiva, o indivíduo não está apenas experimentando uma reação fisiológica automática, mas formulando um juízo de valor acerca de uma situação percebida como injusta ou ameaçadora. Ele defende que “as emoções são, em essência, avaliações racionais que envolvem escolhas conscientes sobre como interpretar e responder ao mundo”[2], destacando que o processo emocional é intrinsecamente ligado à maneira como o sujeito atribui significado e responsabilidade pessoal às suas experiências. Essa abordagem inicial enfatiza a centralidade da cognição na formação das emoções, sugerindo que o modo como nos relacionamos com o mundo depende, fundamentalmente, de nossos julgamentos e avaliações deliberadas dos eventos e circunstâncias que vivenciamos.

Essa concepção cognitivista, contudo, não se limita a descrever as emoções como simples reações internas, mas as coloca como esquemas interpretativos que estruturam nossa percepção do mundo e orientam nossas respostas comportamentais. Para Solomon, a emoção não é um estado passivo, mas um engajamento ativo com a realidade, onde cada resposta afetiva reflete uma escolha deliberada e um posicionamento ético e estético em relação ao que nos cerca. Ao enfatizar a intencionalidade e a racionalidade por trás dos sentimentos, ele propõe uma visão que contrasta com abordagens puramente biológicas ou reducionistas, argumentando que a experiência emocional revela os valores e as crenças do indivíduo. Dessa forma, sua teoria inicial não só coloca a cognição como central na formação das emoções, mas também aponta para a importância da responsabilidade pessoal e da agência na construção do significado emocional.

Na segunda fase de sua teoria, Robert Solomon amplia sua visão original ao integrar uma abordagem que une avaliações cognitivas com dimensões corporais, sociais e contextuais. Segundo essa perspectiva, as emoções deixam de ser compreendidas apenas como reações fisiológicas ou juízos deliberados e passam a ser entendidas como avaliações significativas de situações, objetos e pessoas. Assim, ao sentir raiva, por exemplo, o indivíduo não experimenta apenas uma resposta automática, mas formula um julgamento de que algo injusto ocorreu e, consequentemente, merece uma resposta adequada. Essa ideia é reforçada pela afirmação de que “as emoções são engajamentos com o mundo, não meros sentimentos autocontidos”[3], o que evidencia que a experiência emocional se configura como um processo dinâmico, no qual a interpretação do ambiente é mediada por uma rede complexa de crenças, valores e contextos sociais. Dessa forma, a segunda fase da teoria de Solomon propõe uma visão integrada das emoções que alinha o componente avaliativo com a vivência corporal e a influência do ambiente, contribuindo para um entendimento contemporâneo que valoriza a complexidade e a inter-relação entre razão, emoções e contexto.

A visão cognitivista de Robert Solomon teve grande impacto na compreensão das emoções ao enfatizar sua dimensão avaliativa, racional e moral. Ao rejeitar explicações puramente biológicas ou mecanicistas, ele destaca o papel das emoções como formas sofisticadas de engajamento com o mundo. Suas ideias desafiam a noção de que as emoções são irracionais ou acidentais, mostrando que elas são estruturadas por julgamentos complexos que refletem nossas crenças e valores. Ao compreender as emoções como processos interpretativos que moldam nossa percepção da realidade e orientam nossas ações, Solomon oferece uma perspectiva à filosofia contemporânea que destaca a importância das emoções na ética e na vida cotidiana. Sua abordagem não apenas amplia nosso entendimento teórico sobre as emoções, mas também abre um caminho para noções como autoconhecimento e a autorrealização, demonstrando que uma vida emocional bem compreendida é uma vida mais plena e significativa.

Um aspecto essencial de sua teoria é a noção de que as emoções são expressões de valores e juízos éticos. Isso implica que nossas emoções não surgem isoladamente, mas estão intrinsecamente ligadas às normas culturais, às expectativas sociais e às concepções morais que internalizamos ao longo da vida. Nesse contexto, Solomon diferencia dois tipos de julgamentos avaliativos: os juízos de valor e os juízos éticos. Para Solomon, os juízos de valor são avaliações pessoais que determinam a importância e o significado que um evento ou situação possui para o indivíduo. Esses julgamentos se manifestam, por exemplo, quando sentimos tristeza diante de uma perda ou irritação frente a um desrespeito, sinalizando de forma intuitiva aquilo que é essencial para a constituição dos nossos valores e para a configuração da nossa identidade. Em suma, os juízos de valor revelam como experiências particulares ressoam em nosso interior, definindo o que consideramos digno de atenção e carece de proteção, e moldando, assim, nossa percepção de nós mesmos e do mundo ao nosso redor. Já os juízos éticos possuem uma dimensão que ultrapassa a avaliação puramente individual, pois estão intrinsecamente ligados ao modo como nos relacionamos com os demais e às implicações morais das nossas interações. Essa avaliação se manifesta em sentimentos como culpa, vergonha e arrependimento, os quais surgem quando nossas ações, no contexto das nossas relações interpessoais, violam as normas éticas e os compromissos morais que assumimos coletivamente. Em outras palavras, esses juízos éticos avaliam o impacto de nossas condutas sobre o convívio e o bem-estar alheio, funcionando como mecanismos que nos orientam para uma convivência mais equilibrada e responsável.

A distinção entre juízos de valor e juízos éticos evidencia que as respostas emocionais não se reduzem a reações instintivas ou automáticas, mas sim a processos complexos de avaliação que informam tanto a nossa identidade pessoal quanto a forma como nos relacionamos socialmente. Quando sentimos tristeza ou irritação, não estamos apenas reagindo a um estímulo externo, mas expressando, de forma individual, o que consideramos essencial para o nosso bem-estar e nossa personalidade. Em contrapartida, emoções de natureza ética, aquelas que envolvem sentimentos de culpa, vergonha ou arrependimento, revelam um aspecto de nossa vida em comum, atuando como mecanismos que regulam as interações e reforçam compromissos morais em contextos sociais. Essa abordagem permite uma análise mais rica da experiência emocional, apontando para a importância de se considerar tanto as avaliações pessoais quanto os imperativos éticos que orientam nosso comportamento.

Em suma, a proposta de Robert Solomon redefine radicalmente nossa compreensão das emoções ao evidenciar que elas são, antes de tudo, julgamentos avaliativos intencionais, imbricados em valores pessoais e normas éticas compartilhadas, e não meras reações fisiológicas ou impulsos irracionais. Ao rejeitar o reducionismo visceral de James e ao mostrar, na primeira fase, que as emoções são escolhas racionais, Solomon afirma sua dimensão cognitiva e deliberativa; já em sua fase posterior, ele enriquece essa visão ao integrar as manifestações corporais, os contextos sociais e as concepções morais que dão forma e sentido às nossas respostas afetivas. Dessa forma, ele nos convida a reconhecer as emoções como modos sofisticados de engajamento com o mundo, capazes de expressar nossa identidade, orientar nossas ações e regular nossos vínculos interpessoais, revelando sua centralidade não apenas na filosofia e na ética, mas na própria tessitura da vida cotidiana.

3.2 Martha Nussbaum

Martha Nussbaum, juntamente com Robert Solomon, é uma das mais influentes defensoras da visão cognitivista das emoções na filosofia contemporânea. Em sua abordagem, as emoções não são concebidas como meras reações automáticas ou impulsos irracionais, mas como julgamentos avaliativos ricos em conteúdo cognitivo. Nesse sentido, as emoções, para ela, não apenas refletem a nossa relação com o mundo, mas também moldam a forma como atribuímos valor e significado à nossa experiência.

Contudo, as emoções são caracterizadas por uma urgência ou impulsividade marcantes, muitas vezes dominando nossa personalidade e desencadeando respostas comportamentais avassaladoras. Isso pode sugerir que as emoções são estados nos quais nos mantemos passivos, em oposição à racionalidade. Afinal, à primeira vista, parece que não deliberamos ou calculamos antes de sentir uma emoção: a experiência emocional parece nos arrastar, alheia ao nosso controle consciente. Nussbaum ilustra essa vivência ao descrever seu medo da morte da mãe e a esperança de sua recuperação: “a sensação é de estar entre a esperança e o medo, como se estivesse entre dois ventos inimigos, a sensação de que forças muito poderosas estavam puxando meu eu para um lado ou rasgando-o membro por membro”[4]. Essa imagem poderosa expõe não apenas a intensidade avassaladora do sentimento, mas também a dimensão valorativa que ele encerra, pois só nos perturbamos tanto por aquilo a que atribuímos profundo significado. Ao revelar esse conflito, Nussbaum sugere que as emoções não são apenas arrebatamentos sem razão, mas que as emoções são agitações do pensamento, isto é, experiências vividas que revelam nossas avaliações valorativas fundamentais sobre o que é bom, mau, desejável ou ameaçador em nossa vida.

Diante desse quadro, como sustentar a tese de que emoções são uma forma de juízo, como argumentam os cognitivistas? Se pressupormos que pensamentos são, em geral, distanciados e calmos, controláveis pela razão, como explicar que emoções possam desencadear reações impulsivas? Como conciliá-las com a racionalidade, se parecem ser essencialmente experiências sentidas e distintas do pensamento? Para Nussbaum, a resposta reside no reconhecimento de que as emoções não são meros impulsos irracionais, mas sim formas de julgamento que revelam nossas crenças mais profundas e nosso comprometimento com determinados valores.

Para responder a essas questões, Nussbaum desenvolve uma teoria judicativa das emoções, destacando que elas “têm um objeto”. Diferentemente de meras alterações fisiológicas, as emoções se referem a algo no mundo. A identidade de uma emoção não pode ser reduzida às alterações fisiológicas que a acompanham. O medo, por exemplo, não é apenas um tremor ou uma aceleração cardíaca; sua identidade está atrelada à percepção de algo como ameaçador. O luto não é só um aperto no peito ou um choro, mas uma resposta à perda de um ente querido. Ao eliminar o objeto do luto (a consciência da perda), restam apenas reações fisiológicas desconectadas do significado emocional.

A teoria judicativa de Nussbaum surge, nesse contexto, como uma resposta ao problema da intencionalidade emocional, apontado anteriormente nas abordagens sentimentalistas. Se, como vimos, autores como James e Prinz enfrentam dificuldades em explicar como as emoções representam o mundo ou se dirigem a objetos específicos, Nussbaum afirma que as emoções são julgamentos avaliativos sobre o mundo. Elas possuem intencionalidade porque envolvem uma maneira específica de perceber e interpretar situações à luz do que consideramos importante para o nosso bem-estar. No medo, por exemplo, vemos algo que valorizamos como ameaçador. Na esperança, vislumbramos o mundo sob o prisma da possibilidade e do desejo. Esse “modo de ver” revela que as emoções têm conteúdo cognitivo: são compostas por crenças como “x pode acontecer e x é ruim”, que organizam nossa percepção prática do mundo. Por isso, podem ser avaliadas, corrigidas ou até dissipadas à medida que novas crenças se formam: como quando o medo da morte de um ente querido se transforma em alívio diante da notícia de sua recuperação.

Dado o papel central das crenças nas emoções, Nussbaum sustenta que “o sentimento de agitação por si só não revela se o que estou sentindo é medo, tristeza ou pena. Somente uma inspeção dos pensamentos permite tal discriminação”.[5] Assim, a crença é uma condição necessária da emoção, mas não suficiente. Para que uma emoção se configure plenamente, é preciso que essa crença seja avaliativa, isto é, que envolva a percepção de algo como importante, valioso ou ameaçador. Em outras palavras, o que define a emoção é o juízo de valor, que articula crença, intencionalidade e a relação com o florescimento humano.

Importa esclarecer, portanto, que não se trata de qualquer tipo de crença, mas de crenças sobre o valor das coisas. Quando sentimos emoções, investimos seus objetos de importância e os situamos dentro de nosso próprio esquema de fins e objetivos. Como afirma Nussbaum: “as emoções insistem na importância de seus objetos, mas elas também incorporam os próprios compromissos das pessoas com seus objetos como parte de seu esquema de fins”[6]. Dessa forma, as emoções revelam não apenas como vemos o mundo, mas também aquilo que consideramos valioso e digno de nossa atenção.

Nussbaum conclui que o assentimento a um juízo avaliativo é o que constitui a emoção em sua essência. Para justificar como um estado cognitivo pode desencadear mudanças fisiológicas e comportamentais tão marcantes, ela recorre a uma fenomenologia do juízo inspirada no estoicismo. Segundo essa abordagem, ao receber uma impressão, podemos assentir a seu conteúdo, rejeitá-lo ou suspender o juízo. No caso do luto, como coloca Nussbaum, a impressão da perda da mãe combina a percepção de sua importância com a irreversibilidade da morte. Essa impressão pode ser aceita ou recusada, mas, ao afirmá-la, ao dizer a si mesmo “minha mãe morreu”, não apenas se reconhece o fato, mas se assume a sua gravidade. Esse assentimento equivale ao próprio luto: ao reconhecer cognitivamente a perda, a pessoa se vê emocionalmente abalada, levando a reações como choro e desespero. Sem essa adesão ao juízo avaliativo, o evento poderia ser percebido de forma indiferente, sem provocar a resposta emocional característica. Assim, é o juízo sobre a importância e o significado da perda que constitui a emoção em sua totalidade.

Como Nussbaum expressa poeticamente, o pleno reconhecimento cognitivo do evento terrível já é, por si só, a agitação emocional. Ela descreve essa relação de forma contundente:

Quando eu sinto luto, eu não começo abraçando friamente a proposição “Minha mãe maravilhosa está morta” e então começo a enlutar. Não, o real, completo, reconhecimento daquele terrível evento (tantas vezes quantas eu o reconheço) é a agitação. [...] Se eu abraçar a imagem da morte, se eu a tomar para mim como o modo como as coisas são, é nesse exato momento, nesse ato cognitivo mesmo, que estou colocando o prego do mundo em minhas próprias entranhas. Isso não é preparação para agitação, é a própria agitação. Esse próprio ato de assentimento é em si um rasgo da minha condição de auto-suficiência. Saber pode ser violento, dadas as verdades que estão aí para serem conhecidos.[7]

Ou seja, para Nussbaum, o juízo de valor não apenas acompanha a emoção: ele a constitui. É a adesão ao juízo que desencadeia os demais aspectos da experiência emocional. O impulso em direção à mãe falecida reflete um movimento do pensamento em direção ao que é mais valioso no mundo. A emoção, nesse sentido, é o pensamento que se reconhece e, ao fazê-lo, se vê inevitavelmente transformado.

A perspectiva de Nussbaum permite entender as emoções não apenas como reações fisiológicas ou impulsos descontrolados, mas como formas cognitivas e valorativas de nos relacionarmos com o mundo. Cada emoção “está voltada” para um objeto específico, seja o medo diante de uma ameaça ou o luto diante de uma perda. Esse direcionamento é constituído por crenças avaliativas sobre valor e significado. Nussbaum, inspirando-se na tradição estóica, afirma que o assentimento cognitivo não é um passo preliminar da emoção, mas sua própria essência: trata-se do reconhecimento consciente de que algo externo afeta de modo significativo o nosso bem-estar. A emoção, assim, é um juízo sobre aquilo que importa, ou seja, sobre o que tem um significado profundo em nossas vidas. Ao revelarem o que nos é, de fato, importante, de modo mais íntimo, as emoções também evidenciam nossa exposição à instabilidade do mundo. Elas são juízos sobre o que está em jogo para o nosso florescimento e tornam visível a nossa vulnerabilidade constitutiva: a condição de estarmos afetivamente ligados a pessoas, bens e projetos cuja perda ou realização escapa ao nosso controle direto.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

            A partir da análise das teorias sentimentalistas de William James e Jesse Prinz, bem como do cognitivismo de Robert Solomon e Martha Nussbaum, foi possível reconstruir um panorama conceitual em que a emoção deixa de ser compreendida como uma reação fisiológica automática ou uma perturbação irracional. A trajetória argumentativa deste estudo mostrou uma mudança decisiva na forma de conceber o estatuto ontológico e epistêmico das emoções: de fenômenos corporais e não intencionais, passamos a considerá-las como modos de apreensão valorativa do mundo, enraizados em crenças e juízos. Embora a proposta neo-jamesiana de Prinz tente resolver o problema da intencionalidade afetiva ao introduzir avaliações incorporadas, ela ainda se mostra limitada ao reduzir o conteúdo emocional a marcadores somáticos e ajustamentos. Em contraste, a teoria judicativa de Martha Nussbaum permite compreender ass emoções como formas de julgamento que revelam aquilo que prezamos e valorizamos de modo mais profundo.

            Ao conceber as emoções como juízos avaliativos profundamente enraizados em crenças sobre o que é valioso para o florescimento humano, a proposta de Nussbaum oferece um modelo no qual o envolvimento afetivo com o mundo é constitutivo da própria racionalidade prática. As emoções, longe de serem “forças cegas”, são modos pelos quais reconhecemos aquilo que realmente é valioso em nossas vidas. Elas vinculam o sujeito àquilo que lhe é mais caro, revelando tanto os contornos do seu horizonte de valor quanto a sua exposição à perda e à mudança. Com isso, Nussbaum reitera que compreender as emoções é compreender as formas pelas quais os seres humanos atribuem sentido, constroem compromissos e se posicionam eticamente no mundo.

*Esta pesquisa foi financiada pela CAPES.

REFERÊNCIAS

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Contribuição de autoria

1 – Matheus Genro Bueno

Mestrando em Filosofia pela UFSM na área de Ética Normativa, Metaética e Ética Aplicada, com ênfase em Filosofia das Emoções e Filosofia da Música.

https://orcid.org/0009-0002-0213-9789 • matheusgenrobueno@gmail.com

Contribuição: Escrita - Primeira Redação

Como citar este artigo

Bueno, M. G. Por que as emoções importam?. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria - Florianópolis, v. 16, n. 2, e91819, 2025. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378691819. Acesso em: dia, mês abreviado, ano.

 



[1] James, W. 1884, p. 189–190.

[2] Solomon, R. 1976, p. 54, tradução minha.

[3] Solomon, R. 2007, p. 205, tradução minha.

[4] Nussbaum, M. 2004, p. 187, tradução minha.

[5] Nussbaum, M. 2004, p. 189, tradução minha.

[6] Nussbaum, M. 2004, p. 193, tradução minha.

[7] Nussbaum, M. 2004, p.195, tradução minha.