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Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 16, n. 2, e91770, 2025
Submissão: 28/04/2025 • Aprovação: 30/06/2025 • Publicação: 03/09/2025
Resenha
Resenha de Contra o Ódio, de Carolin Emcke
Review of Against Hate, by Carolin Emcke
I Universidade
Federal Fluminense, Rio de Janeiro,
RJ, Brasil
EMCKE, Carolin. Contra o Ódio. Tradução de Maurício Liesen. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2020.
A obra que será objeto desta resenha poderia ser sintetizada em um questionamento fundamental: “Por que você odeia tanto aqueles que são diferentes de você?”. Esta problemática central nos conduz à urgência teórica e política que demanda uma análise rigorosa do fenômeno do ódio nas sociedades contemporâneas. Iniciamos esta resenha com as palavras de Carolin Emcke, autora da obra aqui examinada:
Como muitos outros, não estou disposta a me acostumar. Não quero que esse novo prazer em odiar livremente seja normalizado. Nem no meu país, nem na Europa, nem em nenhum outro lugar[1].
Existir realmente no plural significa ter respeito mútuo pela individualidade e pela singularidade de todos. Eu não tenho de querer viver exatamente como os outros ou acreditar no que eles acreditam. Não preciso compartilhar os costumes e convicções das outras pessoas. Elas não precisam ser simpáticas ou compreensivas comigo. Também nisso consiste a enorme liberdade de uma sociedade liberal verdadeiramente aberta: em não ter de se gostar mutuamente, mas ser capaz de permitir[2].
Em 2020, a Editora Âyiné publicou o livro da filósofa alemã Carolin Emcke, intitulado Contra o Ódio, cuja publicação original em alemão, pela Fischer Verlag GmbH, ocorreu em 2016. Em linhas gerais, esse livro descortina os perigos da normalização da cultura do ódio na Alemanha e no mundo contemporâneo, especialmente em tempos de ascensão da extrema-direita. A autora nos convida a questionar nossos próprios preconceitos e intolerâncias, além de ressaltar a urgência de recuperar o espaço democrático como um ambiente cada vez mais plural, em que todos se permitem a convivência respeitosa, mútua e inclusiva. Trata-se de um chamado à consciência e um apelo ao rompimento do ciclo devastador da cultura do ódio.
Carolin Emcke é filósofa, jornalista, repórter internacional e ativista LGBTQIAPN+, com formação em filosofia, política e história pela Universidade Johann Wolfgang von Goethe, de Frankfurt, e pela Universidade de Harvard. Ela lecionou teoria política e jornalismo na Universidade de Yale e teve uma vasta carreira jornalística, passando pelos jornais Die Zeit, Der Spiegel e Süddeutsche Zeitung. Ademais, ela atuou como correspondente de guerra por catorze anos, cobrindo conflitos na Colômbia, no Kosovo, no Iraque e no Afeganistão. Seus trabalhos, centrados em questões de violência e direitos humanos, renderam-lhe prêmios de prestígio, como o Prêmio de Paz dos Editores Alemães (2016) e o Prêmio Theodor Wolff (2008). Emcke[3] é também autora de outros doze livros, incluindo a presente obra aqui resenhada.
Contra o Ódio estrutura-se a partir de um prefácio e de três capítulos: Visível – Invisível; Homogêneo – Natural – Puro; e Elogio ao Impuro. Os dois primeiros capítulos são subdivididos em subcapítulos, que representam os aspectos relacionados aos assuntos que a filósofa deseja abordar: Amor, Esperança, Preocupação, Ódio e Desprezo – Parte 1: Misantropia contra determinado grupo (Clausnitz); Ódio e Desprezo – Parte 2: Racismo Institucional (Staten Island), e Homogêneo, Original/Natural, Puro. Ao longo do livro, a filósofa recorre a uma série de intelectuais para compor seu arcabouço teórico, dentre os quais se destacam Hannah Arendt, Martha Nussbaum, Frantz Fanon, Michel Foucault e outros de língua alemã. É importante ressaltar que o livro se destaca por sua linguagem acessível, situada entre o ensaio e o texto jornalístico, como se a autora estivesse em um diálogo direto com o leitor. Dessa forma, possibilita clareza à compreensão do leitor quanto às questões abordadas.
A respeito do conteúdo propriamente dito da obra, Emcke investiga a ascensão da cultura do ódio a partir de cinco acontecimentos emblemáticos, os quais servem como base para suas reflexões. O primeiro é o protesto de extrema-direita em Clausnitz, na Alemanha, contra refugiados que chegavam em um ônibus. O segundo é o assassinato de Eric Garner pela polícia de Nova York, através do qual se discute o racismo institucional. O terceiro é o crescimento de partidos nacionalistas de extrema-direita na Alemanha e em outras partes da Europa, que defendem uma visão de nação homogênea por meio de discursos excludentes, carregados de ódio e desprezo em relação aos imigrantes, às mulheres, aos transexuais, explorando como a linguagem, as metáforas biológicas e a ideia de naturalidade, que influenciam o pensamento político extremista, são disseminadas na sociedade. O quarto é a disseminação da discriminação e dos discursos de ódio por meio de imagens e vídeos manipulados nas redes sociais. Por fim, a autora examina a ideologia jihadista do Estado Islâmico, argumentando que a noção de pureza, usada para justificar a violência e o terror, não é inerente ao Islã, mas uma construção de uma ideologia totalitária que, curiosamente, compartilha traços com a retórica da extrema-direita.
Mas, o que esses eventos têm em comum? Em todos eles, a cultura do ódio e do preconceito se sustenta sobre dois pilares centrais: a despersonalização do outro e a banalização das violências históricas que ele sofreu, especialmente quando este "outro" refere-se a grupos como mulheres, negros, transexuais e imigrantes. Para Emcke, esses pilares, ao serem constantemente reforçados, alimentam a necessidade de segurança e a reafirmação de uma identidade homogênea e "pura" entre aqueles que perpetram essas agressões. Essas violências podem se manifestar de diversas formas, desde ataques físicos e psicológicos até insultos disseminados por meio do compartilhamento de imagens e vídeos manipulados nas redes sociais, cujo objetivo é a ridicularização e a deslegitimação do outro.
Emcke também salienta outra forma de violência: a invisibilidade social, que autoriza que grupos marginalizados sejam desprezados, ignorados e desvalorizados. Esse processo afeta esses grupos diretamente, ao transformá-los em vítimas de uma sociedade que se recusa a reconhecer seus integrantes como sujeitos plenos de direitos. Além disso, reforça a desconsideração e a minimização das violências históricas que esses grupos sofreram, já que, por meio dos discursos de ódio, essas violências são relativizadas, postas em dúvida ou submetidas a comparações que buscam hierarquizá-las, sugerindo que uma dor é maior ou mais legítima do que a outra. Dessa forma, como esclarece a filósofa alemã, o discurso de ódio não apenas nega as experiências de sofrimento dessas comunidades, mas também abre espaço para a normalização da intolerância, elevando-a à condição de virtude para aqueles que se recusam a conviver com a diversidade.
Emcke argumenta que o preconceito e o ódio, manifestados por aqueles que, na verdade, temem a diversidade, são produtos de uma construção discursiva e social. Esse temor decorre da percepção do outro como uma ameaça significativa. Com base nessa reflexão, a autora também critica aqueles que testemunham essas violências – seja na vida real, seja ao consumir postagens com discursos agressivos – sem intervir, pois, para ela, a passividade funciona como uma forma de legitimação. Ela também alerta para o impacto da repetição dos estereótipos e para a maneira como os discursos de ódio constroem uma realidade distorcida, que deve ser combatida por meio do reconhecimento da singularidade do outro, do diálogo e da empatia.
Mas, como poderíamos frear todos esses discursos de ódio? Emcke apresenta sua proposta teórica baseada em Foucault e na investigação que ele fez sobre a parresía grega. A autora recorre ao conceito de parresía desenvolvido por Michel Foucault para construir uma resposta teórica à necessidade contemporânea de resistência às práticas de exclusão, desprezo e invisibilização social. Segundo a interpretação dessa filósofa, a parresía configura-se como um ato corajoso e ético de dizer-a-verdade de modo comprometido e combativo, em oposição às manifestações e discursos de ódio que estão impondo a naturalização da discriminação e da exclusão como livres manifestações de pensamento.
O discurso parresiástico operaria como um mecanismo de reintegração dos sujeitos marginalizados à esfera pública, ao desvelar a natureza dos discursos de ódio que, sob o pretexto de veicular verdades, promovem efetivamente a desumanização social. Tais discursos instrumentalizam o direito à liberdade de expressão para mascarar práticas de violência simbólica, permitindo que ofensas baseadas em sexualidade, etnia ou orientação ideológica sejam proferidas sem que seus agentes assumam as devidas responsabilidades – inclusive jurídicas – por esses atos.
É fundamental, no âmbito de uma análise crítica como a que uma resenha se propõe a fazer, destacar, ainda que de forma sintética, os aspectos fortes e insuficientes de uma obra. No caso de Contra o Ódio, de Carolin Emcke, a autora combina um conhecimento profundo do tema com uma clareza argumentativa excepcional, conduzindo o leitor a refletir sobre a intrincada relação entre democracia (como um espaço aberto de diálogo e aprendizado), memória histórica (enfatizando a importância de não esquecer, para evitar que crimes e genocídios, como a Shoah, se repitam) e o papel das sociedades no enfrentamento do extremismo (valorizando a pluralidade de perspectivas, culturas, memórias e vivências). Além disso, a obra oferece uma crítica incisiva à polarização contemporânea e ao impacto das redes sociais na propagação da intolerância, reforçando a urgência de um debate público inclusivo e democrático.
Entretanto, a abstração, em alguns trechos, pode dificultar a conexão imediata com o cotidiano, e o foco predominante na Alemanha pode limitar a identificação de leitores de outros contextos culturais e geográficos. Embora a autora destaque a importância crucial de preservar o aprendizado reflexivo sobre a memória da Shoah, ela poderia ter ampliado sua análise com outros casos de genocídios e experiências traumáticas, como o dos ciganos – um tema ainda pouco explorado. Além disso, embora Emcke proponha o diálogo como ferramenta essencial para combater o ódio, ela não avança em exemplos práticos ou estratégias concretas sobre como estabelecer esse diálogo em sociedades profundamente divididas e polarizadas.
No âmbito da escolha teórica, a opção de Emcke pelo conceito foucaultiano de parresía como antídoto ao discurso de ódio apresenta tanto méritos quanto limitações significativas. Entre os méritos, destaca-se a adoção de um dispositivo ético-político potente que permite confrontar diretamente os discursos de ódio sem reproduzir sua lógica violenta, rompendo assim com as estruturas de percepção que naturalizam a exclusão. Essa abordagem ainda tem o mérito de ressaltar a responsabilidade individual no âmbito coletivo, conscientizando cada sujeito sobre seu papel ativo na desconstrução de manipulações discursivas que alimentam preconceitos.
Contudo, em termos de limitação, a proposta teórica da parresía apresenta restrições estruturais: (1) no conceito de parresía, embora o dizer-a-verdade se inicie no sujeito, ele se orienta também para um impacto coletivo. Ao longo da reflexão de Emcke, nota-se que, ainda que o conceito seja mobilizado a partir de sua dimensão inicialmente individual, dependente da iniciativa pessoal de sujeitos dispostos a confrontar seus próprios preconceitos internos, tal perspectiva não anula a necessidade de seu potencial transformador coletivo, nem suas pretensões ético-políticas mais amplas; (2) sua insuficiência em transformar as relações materiais de poder que sustentam o ódio (desigualdades econômicas, aparatos midiáticos, arcabouços legais discriminatórios) –, o dizer-verdade pode desestabilizar narrativas, mas não altera estruturas sem ações políticas coordenadas; (3) seu pressuposto problemático de que ainda existem espaços democráticos para a circulação da verdade, quando em contextos de radical fechamento discursivo, o discurso parresiástico corre o risco de ser sistematicamente neutralizado ou invisibilizado.
Contra o Ódio é uma leitura fulcral e necessária para quem deseja romper com a passividade, compreender e enfrentar os discursos de intolerância por meio de resistência ativa, diálogo inclusivo e pensamento crítico. Carolin Emcke nos relembra que a democracia só se sustenta quando há um compromisso genuíno com a diversidade e o respeito à dignidade humana.
EMCKE, Carolin. Carolin Emcke. [S.l.]: [s.n.], [s.d.]. Disponível em: https://carolin-emcke.de/. Acesso em: 09 mar. 2025.
EMCKE, Carolin. Contra o Ódio. Tradução de Maurício Liesen. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2020.
Contribuição de autoria
1 – Thayenne Nascimento
Formada em Bacharelado e Licenciatura de História e Mestra em História social da cultura
https://orcid.org/0000-0003-3974-5897 • thayhistoria@gmail.com
Contribuição: Escrita - Primeira Redação
Como citar este artigo
Nascimento, T. Resenha de Contra o Ódio, de Carolin Emcke. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria - Florianópolis, v. 16, n. 2, e91770, 2025. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378691770. Acesso em: dia, mês abreviado, ano.