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Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 16, n. 2, e91754, 2025
Submissão: 26/02/2025 • Aprovação: 30/06/2025 • Publicação: 03/09/2025
5 A ENAÇÃO DA CONSCIÊNCIA DOS PERSONAGENS
Artigos
Imaginação, experiência, emoção: a teoria enativista da leitura da ficção de Marco Caracciolo
Imagination, experience, emotion: Marco Caracciolo's enactivist theory of fiction Reading
Pedro Dolabela ChagasI, Letícia OliveiraI
I Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, PR,
Brasil
RESUMO
Para investigar a afetivização da leitura da ficção, este artigo discute a teoria da narrativa de Marco Caracciolo. Investigar como textos literários produzem efeitos afetivos no leitor demanda encontrar uma teoria da cognição humana capaz de integrar, num único modelo descritivo, os componentes sensoriais e representacionais envolvidos no processo, explicando como o texto estimula uma experiência imaginária capaz de gerar respostas afetivas. Dentro do campo emergente da narratologia cognitiva, este artigo encontra esse modelo na teoria enativista de Marco Caracciolo, para a qual a leitura envolve o apelo a memórias experienciais do leitor a partir do estímulo de dispositivos expressivos do texto. Para testar a aplicabilidade da sua teoria, fazemos uma análise de excertos de O Cemitério, de Stephen King, com foco na articulação de dispositivos expressivos que podem suscitar a experiência enativa de percepções e afetos, culminando na experiência do horror. Pontualmente, são comentadas teorias complementares à nossa discussão, como o enativismo radical de Daniel Hutto, a teoria evolutiva das emoções de Stephen Asma e Rami Gabriel e a teoria da linguagem de Daniel Dor. Desse modo, o artigo fomenta a discussão sobre as contribuições potenciais do enativismo para a teoria da literatura, mediante a introdução das proposições de Caracciolo, um dos fundadores dessa pesquisa transdisciplinar emergente.
Palavras-chave: Narratologia cognitiva; Enativismo; Teoria da leitura; Teoria das emoções; Marco Caracciolo
ABSTRACT
Keywords: Cognitive narratology; Enactivism; Theory of reading; Theory of emotions; Marco Caracciolo
Como nos envolvemos afetivamente com narrativas ficcionais escritas? Esse é o objeto de pesquisa dos autores deste artigo, recebendo importância central na discussão a seguir. Para abordá-lo adequadamente, porém, precisamos de uma teoria da cognição humana apta a fundamentar uma teoria da leitura que explique como a afetivização acontece. Uma teoria da leitura que se contente em explicar o processamento semântico do texto é de pouca valia; o entendimento do conteúdo não leva, por si, ao engajamento afetivo do leitor. Daí que, neste artigo, a leitura seja descrita pelos efeitos mentais produzidos pelo processamento semântico do texto, e pelos efeitos produzidos por dispositivos expressivos articulados, no texto, para dotar a experiência de componentes sensoriais e afetivos variados, mediante o estímulo à imaginação do leitor.
Seguimos a abordagem transdisciplinar típica da narratologia cognitiva, que busca suporte na filosofia da mente, neurociência e psicolinguística, dentre outras disciplinas, para compreender o texto literário como um conjunto de estímulos informacionais organizado para provocar efeitos mentais e corpóreos no leitor[1]. Buscamos uma teoria da cognição humana capaz de explicar como os leitores experienciam emocionalmente as narrativas ficcionais, e como um texto é construído para emocionalizar a experiência da leitura: é o que encontramos em Marco Caracciolo, cujas proposições discutiremos aqui.
Caracciolo[2] se fundamenta no enativismo para teorizar a leitura da ficção. Seu trabalho nos dá a oportunidade de discutir a contribuição – potencialmente inovadora – do enativismo para o estudo da literatura, bem como para a discussão filosófica. Pois, apesar dos esforços de um Hutto e Myin[3] ou de um Nöe[4], o enativismo ainda precisa avançar o trabalho de estabelecer continuidade entre a cognição primária e processos cognitivos de ordem superior. Este artigo apresenta um esforço desse tipo, avaliando suas condições de articulação e os resultados obtidos.
Se a cognição pode ser genericamente entendida como a capacidade de processar informações internas e externas ao corpo, gerando processos mentais e respostas comportamentais diversas, Caracciolo parte do pressuposto enativista de que a cognição humana ocorre, em seu nível mais primário, não mediante a elaboração de representações mentais, mas pela interação corporificada do organismo com o ambiente. Até aqui, estamos no terreno explorado por Hutto e Nöe, em quem Caracciolo busca fundamento. Mas, ao invés de partir da cognição primária para explicar o processamento de produções culturais semioticamente estruturadas e simbolicamente saturadas, Caracciolo parte de objetos desse tipo para entender como o enativismo ajuda a descrever seu processamento cognitivo. Focada na experiência de leitura, sua teoria destoa de um século de produção narratológica nos estudos literários ao afirmar que o processamento da linguagem textual produz não apenas compreensão semântica, mas uma experiência corporificada do mundo ficcional, à medida que a imaginação dos conteúdos textuais é mediada pela memória experiencial do leitor.
O componente de inovação dessa proposição fica claro numa comparação com as teorias da recepção e do efeito de Jauss e Iser, de grande influência na teorização da leitura de ficção desde a década de 1970. Em Jauss[5], o texto era observado em seu componente de diferenciação em relação à história anterior do gênero em que se inscreve, e em sua remissão ao horizonte temporal – sócio-histórico – do leitor. Em Iser[6], mais próximo de uma concepção cognitiva do processo da leitura, o conceito de “lugar vazio” remetia às lacunas de codificação textual de conteúdos importantes para a compreensão da narrativa, conteúdos que caberá ao leitor inferir, de maneira personalizada, em sua interpretação do texto. Em ambos os casos a noção de “experiência” se inscrevia numa tradição hermenêutica focada na interpretação dos conteúdos textuais, e não nos seus efeitos corpóreos – afetivos, enativos –, que nos parecem importantes tanto para o engajamento com a leitura, quanto para a própria explicação do interesse pela literatura. O privilégio de concepções de leitura como interpretação explica, afinal, que um livro como o de Patrick Colm Hogan[7] antecipasse uma recepção polêmica numa data tão recente, pelo simples fato de colocar a teoria das emoções no centro da compreensão do fenômeno literário, destacando um tema virtualmente ignorado durante a institucionalização da teoria literária como disciplina acadêmica.
Em contraste com o foco na interpretação textual favorecido por teorias de fundamentação hermenêutica, em Caracciolo a “experiencialidade” de uma narrativa ficcional emerge na interface das estratégias narrativas do autor e das memórias corporificadas de experiências vividas pelo leitor, em conjunto com a atribuição, e eventual enação, dos estados conscientes dos personagens. Em tempo, veremos como esse modelo funciona, com a linguagem do texto estimulando o leitor a reconstruir os eventos experienciais representados a partir de suas próprias experiências sensório-motoras, emocionais e socioculturais.
As próximas páginas se ocuparão de apresentar a teoria de Caracciolo, cuja plena apreciação demanda a sua aplicação a um texto literário – o que faremos tratando da experiência do horror visada pela construção textual de O Cemitério[8], de Stephen King. Essa escolha se justifica porque a literatura de horror obviamente busca emocionalizar a leitura do texto, oferecendo-nos um material adequado para a identificação de dispositivos expressivos direcionados a isso – é o tipo de texto que permite identificar, com baixa necessidade de apelo à interpretação, a intenção autoral de produção de medo e as funções enativas dos dispositivos textuais para tanto empregados.
De início, falaremos um pouco sobre o enativismo, antes de passarmos a Caracciolo e aos dispositivos expressivos de O Cemitério. No caminho, dialogaremos com algumas proposições de Dor[9] sobre a linguagem humana, de Asma e Gabriel[10] sobre as emoções humanas, e de Asma[11] sobre o fenômeno do horror. Asma e Gabriel[12] serão particularmente importantes para demarcarmos a diferença entre emoções e afetos, termos que, da maneira como eles os definem, situam os afetos na função básica de orientação à satisfação de necessidades homeostáticas e conativas elementares – com implicações para os estados corporais, psíquicos, comportamentais e cognitivos de cada indivíduo –, posicionando as emoções como expressões corporais daqueles afetos primários, a operar mediações entre motivações e comportamentos, sob a influência de fatores contextuais relevantes – incluindo normas culturais e expectativas sociais.
Passemos à discussão.
Para uma teoria enativista, investigar como narrativas ficcionais geram efeitos mentais implica uma abordagem corporificada do fenômeno, algo historicamente ausente dos estudos literários. Esta seção examina genericamente os fundamentos do enativismo, segundo as proposições “radicais” de Daniel Hutto, autor que Caracciolo toma como referência.
Um conceito preliminar de cognição pode tratá-la como a capacidade de processar informações externas pelo recurso a capacidades mentais de certo tipo; por muito tempo, foi comum compreendê-la por modelos que tratavam a mente humana como um computador que processa informações mediante a categorização, conceitualização e esquematização de dados obtidos de um mundo pré-dado[13], i.e., um mundo que seria neutro em relação ao processamento das informações que ele oferece. Para aquela primeira geração das ciências cognitivas, a cognição equivaleria à produção de representações mentais, às quais não raro se atribuía um núcleo proposicional, um certo conteúdo. Tal perspectiva pressupunha a separação entre mente, corpo e ambiente nos processos cognitivos, situando o processamento a encargo do cérebro – algo que, no entender do enativismo, impede a explicação de muitas experiências humanas, em seus componentes sensoriais e afetivos.
Pela definição de Caracciolo[14], tem-se “experiência” naquelas interações (de um organismo com o ambiente) que produzem a gama de efeitos mentais e corpóreos tipicamente aglutinados pelo conceito de qualia. Experiências se caracterizam pelo seu aspecto qualitativo, aglutinando sensações e percepções num estado consciente integrado. Para Hutto e Caracciolo, não está claro que a formação de representações mentais deva integrar a explicação desse fenômeno; especialmente à medida que passa a atribuir capacidades cognitivas a outras espécies de seres vivos, o enativismo torna impossível postular que todos eles sejam capazes de produzir representações. Pelo contrário, passa-se a entender que representações devem ser reservadas a processos culturalizados, envolvendo a linguagem e outros tipos de produção simbólica – e mesmo então é difícil precisar o que as representações mentais de fato são, especialmente no que tange à sua consistência ou granularidade. Como essas representações emergem na mente individual, que nitidez elas têm? Considerações desse tipo fizeram com que representações deixassem de ser consideradas indispensáveis a processos básicos de interação com o mundo. Opondo-se às teorias da “primeira geração”, Varela, Thompson e Rosch introduziram o conceito de “enação”, segundo o qual a construção de sentido é condicionada pelo histórico de interações corporificadas entre um organismo e seu ambiente[15]. Em seus processos elementares, a cognição pressupõe a não produção de representações mentais, mas a interação corpórea com o mundo; abandona-se uma concepção da mente desconectada do corpo e apartada do mundo físico, em nome de uma concepção de cognição como exploração ativa do ambiente. De acordo com esses novos fundamentos explicativos, pelo corpo o organismo recebe informações do mundo, guiado por padrões sensório-motores, perceptuais, emocionais e avaliativos.
É assim eliminada a dicotomia mente-corpo: para o enativismo, a mente existe numa interação constante com o ambiente, mediada pelo corpo. Se a “primeira geração” pressupunha a construção de representações na atividade mental, no enativismo a mente é integrada ao corpo, em sua inscrição no ambiente físico: é uma tríade em interação contínua. Se o mundo, enquanto conjunto de estruturas físico-químicas, existe independentemente do agente, como ambiente e domínio de significação ele só existe enquanto integrado pela cognição corporalizada[16]. Se uma maçã existe como estrutura físico-química de maneira independente da cognição humana, como “fruta” (conceito perceptual e/ou linguístico), dotada de boas propriedades para a alimentação e nutrição humana, ela pressupõe interações históricas entre a mente, o corpo e o ambiente do agente. É a exploração ativa e corporalizada do mundo que constitui para o agente um mundo pleno de sentido.
Se o corpo estrutura a cognição, é central no processo a sua capacidade de autorregulação, a sua “autonomia biológica”[17]. De maneira constante, seres vivos processam dinamicamente informações internas e externas ao corpo para preservar suas condições de bem-estar, buscando formas autonômicas de adaptação ao ambiente e, com isso, preservar sua homeostase. Além da regulação interna do corpo, Hutto[18] destaca duas instâncias basilares de autorregulação: 1) interações sensório-motoras por meio de ações, percepções e emoções; 2) interações intersubjetivas com outros seres humanos. Compreendendo a cognição enativa como a construção de sentido a partir de interações ativas entre o organismo e o ambiente, por meio da qual a mente e o mundo adquirem as propriedades constitutivas da própria relação entre ambos, a autonomia biológica permite que seres vivos sejam seres cognoscentes. Desse pressuposto, retornamos às representações para apreciar seu lugar no esquema enativista.
Se elas são desnecessárias para a cognição básica, a mesma afirmação não vale para a cognição complexa, que é de óbvio interesse na abordagem de práticas socioculturais como a literatura. O problema agora se inverte: ao contrário da “primeira geração”, o enativismo deve enfrentar o desafio de explicar a cognição complexa a partir de fundamentos não representacionalistas. Mesmo um enativista “radical” como Hutto[19] admite que não podemos descartar o papel das representações na cognição complexa, mas ele propõe que esse papel pode ser explicado num continuum com a cognição básica. Se a cognição complexa emerge de interações em práticas socioculturais, e se pelas experiências que essas práticas proporcionam as pessoas se tornam capazes de compreender e se apropriar de conteúdos de vários tipos, é possível, no âmbito das práticas discursivas, tratar a linguagem falada ou ouvida, lida ou escrita, como uma forma de ação, de exploração ativa do mundo, mesmo que sob a mediação de categorias simbólicas e convenções semióticas. Nesses termos, assim como quaisquer outros tipos de experiência, as experiências mediadas por símbolos representacionais englobariam aspectos emocionais, avaliativos, perceptuais – corporais, enfim. Hutto[20] exemplifica esse processo falando de contextos de aprendizado nos quais as crianças desenvolvem capacidades cognitivas superiores na interação corporal constante com outras crianças e seus instrutores – decerto um tema que poderia ocupar um artigo inteiro, mas nosso interesse é saber como essas proposições se aplicam à leitura individual e silenciosa de um texto literário. Passemos a Caracciolo.
De acordo com Caracciolo[21], narrativas ficcionais são objetos semióticos representacionais, cujas estruturas simbólicas articulam a representação de eventos, pessoas e coisas numa lógica temporal e causal. Um objeto semiótico é lido como estória quando ele 1) leva os leitores a construir um mundo narrativo povoado por personagens e estruturado com base em uma lógica temporal-causal específica (do enredo); 2) possui certo grau de coerência temática; 3) relata eventos que se desviam das expectativas dos receptores, tornando-se suficientemente salientes para receberam atenção; 4) concentra-se nas experiências e avaliações de uma ou mais entidades antropomórficas[22]. Note-se que, nesses termos, não há diferença global a priori entre a leitura da ficção e da não ficção; ambas podem produzir experiências de leitura similares, a depender das intenções autorais implicadas na composição do texto. Em A sangue frio, por exemplo, Truman Capote escolheu a forma do romance para contar a história de um crime real, gerando o tipo de engajamento afetivo que aquele gênero literário é propenso a proporcionar. Se nós, como Caracciolo, focamos na ficção, é porque tipicamente seus autores são mais livres – moral e epistemologicamente – para explorar a emocionalização da leitura como bem entendem, para produzir os efeitos emocionais que lhes interessam, de acordo com as finalidades das estórias que inventam, nos mundos ficcionais que eles constroem. Chega a ser difícil imaginar como algum gênero não ficcional daria ao autor o estímulo e a autonomia de produzir no leitor uma experiência do horror dissociada do claro comprometimento com alguma função social relevante; um escritor, no entanto, pode explorar a produção do horror como finalidade em si mesma. Tal liberdade de exploração da afetivização torna a ficção, na comparação com outras práticas narrativas, um campo preferencial para o estudo que nos interessa; ademais, dada a frequência e intensidade com que a ficção emocionaliza a leitura do texto, é comum que autores de gêneros não ficcionais apelem a técnicas tradicionalmente exploradas na ficção – ainda que não sejam dela exclusivas – para afetivizar a leitura do texto, quando é interessante fazê-lo – lembremos que Capote, jornalista, também era romancista. Por esses motivos, centramos o foco na ficção, para entender como uma estória gera experiências imaginárias corporificadas que transcendem a compreensão das proposições escritas para suscitar sensações, emoções e avaliações ao estimularem o leitor a construir mentalmente e a explorar ativamente o mundo ficcional codificado no texto, incluindo a simulação imaginativa de padrões corporais e emocionais, a partir da sua familiaridade com aquilo que Caracciolo chama de “experiencialidade” do texto. Vamos aos poucos.
Os fatores que constituem a condição narrativa de um produto semiótico não se limitam às suas propriedades representacionais, como a criação do mundo ficcional e seus personagens ou o desenvolvimento do enredo. Esse produto existe para produzir experiência, especialmente a partir do envolvimento afetivo com os personagens. A condição representacional não resume o fenômeno narrativo, pois mesmo que representações mentais possam emergir da leitura, por serem modeladas por “esquemas baseados em objetos” (object-based schemas), elas serão dotadas, em algum grau, do tipo de consistência visual ou proposicional à qual, de acordo com Hutto[23], uma experiência não pode ser resumida, pois uma experiência não tem, nem pode ter, a condição de objeto. Experiências resultam da interação corporal e avaliativa de um ser cognoscente com o ambiente; elas são bem mais ricas, complexas e granulares do que aquilo que um objeto ou representação é capaz de oferecer. Elas não são a coisa representada, mas um conjunto de sensações, virtualmente não representáveis, da interação presencial com essa coisa. E pela teoria de Caracciolo, narrativas ficcionais, em que pese sua dimensão representacional, têm a capacidade de estimular experiências desse tipo, a partir de estímulos à imaginação de um leitor cuja imersão na leitura estaria relacionada à intensidade com que o texto o instiga a reconstruir imaginariamente as experiências dos personagens.
Nesse ponto, o uso reiterado do termo “imaginação” impõe um pequeno desvio de rota. Para que o enativismo opere produtivamente nos termos em que Caracciolo o aplica, a análise de produções representacionais deve ser enquadrada não pelo estudo das representações em si, mas pelos estímulos das representações à atividade mental do leitor, sobre a qual elas não têm poder de determinação. É preciso entender não como as palavras são compreendidas, mas como elas são apropriadas, de maneira individualizada, por cada leitor em sua exploração da informação textual. Nesses termos, a compreensão da sua teoria pode ser fertilizada com um breve desvio pela teoria da linguagem de Daniel Dor[24].
Dor entende que cada mente vive isolada de outras mentes por lacunas experienciais: das maneiras como as vivenciamos, nossas experiências – em seus componentes corpóreos, sensoriais, espaciais, biográficos – são inacessíveis a outras pessoas; não há representação que as comunique com precisão. A linguagem mitiga essa lacuna ao permitir que o falante instrua o ouvinte a imaginar certas coisas; nas metáforas de Dor, ele utiliza um “código” (um “plano” de coordenadas compartilhadas) que o ouvinte usará como “andaime” para uma experiência imaginária, em que conteúdos de memória serão reconstruídos e recombinados para imaginar os conteúdos articulados pelo interlocutor. Sentimentos, pensamentos, desejos, reações do sistema nervoso são individuais, mas semelhanças e analogias entre nossas experiências permitem construir generalizações – analógicas, holísticas, fuzzy, contextuais – com símbolos abstratos. Nós não experienciamos o mundo como falamos sobre ele, mas a linguagem estabelece modelos mutuamente identificados, conectados em redes de relações semânticas: símbolos se correlacionam apenas parcialmente com experiências privadas, mas oferecem pontos de referência que permitem que um indivíduo organize a própria experiência e instrua a imaginação alheia. Em suma, a linguagem oferece um modelo simbólico, codificado e coletivizado do real, e um conjunto de regras que normatizam a comunicação, permitindo que um escritor socialize a expressão de conteúdos que o leitor privatizará ao recorrer à própria memória para imaginá-los à sua maneira.
Significantes ligados a teias de conexões semânticas apontam significados ligados a teias de significados, dirigindo-se a conjuntos relativamente vagos e coerentes de experiências que permanecem privadas, mas que serão socializáveis pela linguagem mediante processos de identificação mútua. Tal identificação é sempre uma questão de grau, podendo não funcionar; no mínimo, cada leitor imagina coisas diferentes em cada processo de leitura. Nessa interface entre a linguagem e a vida mental se insinua a potência da ficção, pois Dor entende que a linguagem atinge o pico da sua influência sobre a experiência privada ao substituir a experiência direta, levando à construção de um mundo experiencial imaginário. Assim, a imaginação pode trazer ao domínio da experiência algo que o leitor conhece apenas como linguagem; para imaginar o conteúdo comunicado, ele deverá ir além do código para ter uma experiência imaginativa complexa, talvez inexprimível. Mas sejam quais forem as intenções do autor, o ato de instrução não controla seus resultados.
A partir desses pressupostos, vejamos como uma narrativa pode codificar, no texto, as experiências dos personagens de ficção. Publicado originalmente em 1983, O Cemitério acompanha Louis Creed, um médico que se muda com a esposa, Rachel, os filhos, Ellie e Gage, e o gato da família, Church, para uma cidade pequena. Sua casa é vizinha de uma rodovia perigosa e de um cemitério de animais, onde mais adiante há ainda um segundo cemitério, um lugar sobrenatural, em que os mortos podem ser trazidos à vida, mas eles voltam possuídos por um espírito maligno. E quando morre o gato e um vizinho o leva a esse segundo cemitério, para a surpresa de Louis o gato de fato retorna, mas agressivo e com cheiro de decomposição. Esse primeiro experimento com a reversão da morte inicia o dilema moral que absorveria Louis quando o filho morre atropelado, e ele não resiste a repetir o procedimento. Gage retorna transformado numa criatura demoníaca que mata a mãe, levando Louis a matá-lo uma segunda vez. No final, incapaz de aceitar a irreversibilidade da morte, ele enterra a esposa no solo amaldiçoado, dando continuidade ao terror presente há décadas naquela cidade. A partir deste resumo, importa destacar que a representação da transição do personagem, que perde o poder de autocontrole após o sofrimento pela perda do filho, é lenta o suficiente para dar tempo para que o leitor empatize com o seu drama e se habitue com seus sucessivos estados emocionais.
Passando aos dispositivos textuais, observemos como Louis e sua família têm o primeiro contato com o local onde as crianças da cidade enterravam seus animais de estimação:
Ali não havia um tapete de folhas. Havia um círculo quase perfeito de mato cortado, alcançando quase 13 metros de diâmetro. Três quartos do perímetro faziam fronteira com uma vegetação rasteira muito densa, e no espaço restante um amontoado de velhas árvores derrubadas pelo vento dava ao lugar um aspecto um tanto sinistro e perigoso. Um homem tentando encontrar seu caminho através do bosque e passando por ali podia muito bem levar um susto, Louis pensou.
A clareira estava cheia de lápides, obviamente feitas por crianças com quaisquer materiais que pudessem encontrar ou pedir emprestado: tábuas de caixotes, ripas, pedaços amassados de lata. [...] As matas ao fundo concediam ao lugar um tipo absurdo de solenidade, um fascínio que não era cristão, mas pagão[25].
A descrição da cena não visa apenas estimular o leitor a criar mentalmente uma imagem física do cenário, mas experienciar imaginariamente o local, pela mediação de imagens, sensações, avaliações e emoções do personagem. Isso nos leva a um ponto central da teoria de Caracciolo, pois como poderia um texto proporcionar experiências comparáveis às do personagem, produzindo uma fenomenologia da leitura semelhante à fenomenologia da experiência real de um certo ambiente físico? Segundo ele, isso ocorre porque o leitor infraconscientemente apela à própria memória experiencial para construir imaginativamente a visão e as avaliações de Louis no cemitério. O círculo de mato cortado e o aspecto “sinistro” das árvores derrubadas e das lápides improvisadas podem produzir experiência ao apelarem a experiências análogas àquelas que o leitor teria vivido, ou conhecido de certa maneira. As descrições do ambiente não interessam por si mesmas, mas para apelar à memória visual do leitor, orientando o senso de espacialidade que estruturaria a sua imaginação visual do lugar, que será valorado pela afetivização das imagens evocadas.
Como toda experiência, a leitura envolverá avaliações e emoções, estruturadas pelas reações e considerações de Louis. A sua primeira reação ao cemitério o deixa atônito; de algum modo o lugar o surpreendera. A estranheza resulta tanto da morbidez das árvores e lápides, quanto da própria decisão das crianças de construir e manter o local. Esse contato antecipa o conhecimento do segundo cemitério além da barreira de árvores derrubadas, local repleto de espíritos com o poder de ressuscitar os mortos, que iniciará o componente de terror da narrativa.
Vimos que, apesar de serem artefatos representacionais, para Caracciolo narrativas ficcionais são construídas para gerar “experiências” afins àquelas da vida real, incluindo seu condicionamento corpóreo. Pelo conceito de “expressão” – buscado em Wittgenstein –, Caracciolo[26] indica que a escrita tem uma propriedade expressiva que é simultaneamente indicativa, a qual pode ser ligada à dimensão representativa das narrativas ficcionais (indica eventos, pessoas, coisas em determinada ordem); e condutiva, que se relaciona a essa característica das histórias como desencadeadoras de respostas do leitor que é a dimensão da experiencialidade. Caracciolo identifica “dispositivos expressivos”[27] que permitem engatilhar reações dos leitores, mesmo sem determiná-las – em cada caso, as respostas dos leitores podem variar em qualidade e intensidade, a depender do apelo às suas memórias experienciais.
Dispositivos expressivos operam em diferentes níveis. Eles atuam no nível geral da história, estruturando as respostas experienciais dos leitores pela remissão a questões de interesse sociocultural ou pessoal[28]: em O Cemitério, a temática do luto, especialmente a perda de um filho, pode provocar respostas emocionais intensas. Dispositivos expressivos podem atuar no nível do discurso, em que declarações avaliativas do narrador podem expressar certo posicionamento em relação ao narrado, caracterizando o evento experiencial dos personagens e incitando o leitor a alguma avaliação[29]: quando o narrador diz que algo é assustador, repulsivo ou perigoso, podemos reagir conforme essas avaliações.
No nível do estilo, escolhas como o uso criativo da linguagem ou a indicação do estilo mental (mind style) do personagem podem gerar respostas experienciais[30] ao levar a uma desfamiliarização que tensione a relação entre o texto e o leitor, intensificando sua experiência imaginária. O acesso direto à consciência do personagem, por exemplo, pode estimular empatia, intensificando o compartilhamento das experiências narradas. Por fim, no nível da estruturação do texto estão os dispositivos expressivos relativos à organização temporal da narrativa, particularmente eficientes em provocar respostas emocionais como a surpresa, a curiosidade e o suspense[31]: o modo como o autor organiza os eventos influencia a experiência da leitura, inclusive ao motivar a antecipação de eventos futuros.
Articular e explorar dispositivos expressivos em todos esses níveis é o que enreda o leitor na “rede de experiencialidade” (the network of experientiality) possibilitada pelo texto – vejamos do que se trata.
Tem-se, pois, que uma narrativa ficcional engaja o leitor numa experiência imaginária a partir de dispositivos expressivos capazes de apelar, de diferentes maneiras e em diferentes graus de intensidade, a experiências passadas – memórias experienciais. Traços experienciais buscados na sua memória de longo prazo são evocados pelos estímulos textuais, ou seja: o leitor é instigado a simular os eventos narrados a partir de traços de experiências acessados como memória, simulação que gera os efeitos corporalizados, emocionais e avaliativos integrados à experiência da leitura. O fenômeno que Caracciolo chama de “experiencialidade” não é unilateralmente determinado, pois, pelo texto ou pelo leitor, mas pela tensão entre o texto e as experiências passadas do leitor:
devemos entender a experiencialidade como uma espécie de rede que envolve, no mínimo: o receptor da narrativa, seu background experiencial e as estratégias expressivas adotadas pelo autor. Portanto, na essência da experiencialidade está a tensão entre o projeto textual e o background experiencial do receptor[32].
Experiencialidade refere-se às formas como a narrativa mobiliza a familiaridade dos leitores com a experiências por meio da ativação de parâmetros cognitivos “naturais” (ver Fludernik, 2003), em especial: a corporalidade das faculdades cognitivas, a compreensão da ação intencional, a percepção da temporalidade e a avaliação emocional da experiência[33].
A experiencialidade é vinculada às capacidades cognitivas corporalizadas às quais as estórias apelam – i.e., aquelas capacidades que o leitor mobiliza para explorar o mundo ficcional, compreendendo e engajando-se com o narrado. Classificar a experiencialidade como uma tensão entre o texto e as experiências passadas do leitor é identificar uma interação dinâmica entre eles: enquanto a narrativa articula estratégias representativas e expressivas para orientar a imaginação do leitor e engajá-lo no enredo, ao imaginar os conteúdos textuais sob a mediação das suas próprias memórias, num efeito feedback, o leitor tem uma experiência de leitura personalizada[34]. A partir disso, uma segunda tensão entrecruza a primeira e complexifica o engajamento do leitor: é a tensão entre a atribuição de consciência aos personagens e a enação da consciência dos personagens, pela qual o leitor experiencia os eventos de duas perspectivas diferentes – a sua e a do personagem[35]. A partir das nossas capacidades de empatia, essa tensão entre atribuir e simular a experiência do outro pode gerar respostas experienciais significativas, favorecendo o engajamento na leitura.
Como a experiencialidade é uma interação dinâmica, as experiências geradas pela leitura são fluidas, variando de qualidade e intensidade a depender das memórias, valores e emoções evocados em cada leitor, em cada sequência do texto[36]. Quanto mais intensa for essa dupla tensão, mais intenso será o engajamento. Em sua estrutura, a story-driven experience – voltaremos ao conceito adiante – não difere de outras experiências vividas, pois todo tipo de experiência é mediada pela projeção do background experiencial do sujeito da experiência. Para uma mesma pessoa, sentir medo na leitura ou ao caminhar numa rua escura são igualmente “experiência” – em seus componentes emocionais, sensórios e avaliativos –, igualmente incidindo sobre o seu background experiencial. Nesse ponto, torna-se importante o conceito de “background”, que Caracciolo toma emprestado de John Searle.
Em Searle, o background abrange um conjunto de fatos, noções, valores, entre outros tipos de informação que, armazenados na memória de longo prazo, estruturam e orientam nossa relação e comportamento no ambiente[37]. Na condição de subconjunto do background global, o background experiencial é moldado por memórias de vida e pelo condicionamento linguístico, biológico e cultural que elas podem trazer para cada indivíduo. Caracciolo[38] divide o background em diferentes níveis: o nível mais profundo compreende as experiências corporais, incluindo sensações e a consciência do próprio corpo. A partir dele todos os fenômenos cognitivos ocorrem, pois experiências corpóreas informam os outros níveis do background experiencial, alcançando a linguagem e o pensamento.
Experiências perceptuais estão no nível seguinte: numa perspectiva enativista a percepção é uma forma de exploração ativa do mundo por meio de “padrões sensório-motores”; em cada movimento do corpo, diferentes informações são recebidas e processadas, guiando nossa interação com o mundo[39]. Adiante estão as experiências emocionais, explicadas por Caracciolo[40] como respostas corporalizadas e avaliativas de situações significativas para o organismo, conforme a teoria construtivista de Jesse Prinz[41]. Como respostas às interações do organismo com o ambiente, emoções são experienciais e geradoras de qualia.
Acima estão as funções cognitivas de ordem superior, envolvendo a linguagem, o pensamento e a imaginação proposicional, sempre implicados na interpretação textual. Processos situados nesses níveis pressupõem as experiências corporais, mesmo quando certa atividade – como a leitura da ficção – só é possível por meio dessas capacidades superiores[42]. Por fim, está o nível das práticas socioculturais, envolvendo valores, crenças, noções e convenções culturais, que, embora não sendo experienciais e providas de qualia, moldam o nosso engajamento com o mundo (mesmo que não o determinem)[43].
Todos esses níveis do background experiencial interagem entre si. O corpo é o fundamento, mas a expressão das emoções, por exemplo, é modulada pelo contexto cultural em que o agente está inserido. Em direção inversa, a linguagem é capaz de modular experiências perceptuais e emocionais, tanto em recordações e relatos sobre experiências passadas, quanto na comunicação de experiências reais ou inventadas. Nesse ponto, podemos discutir, afinal, como narrativas ficcionais são capazes de mobilizar o background experiencial do leitor, de acordo com intenções autorais específicas.
Voltando à análise de O Cemitério, a descrição da morte de Victor Pascow é marcada pelo horror gráfico e pela primeira aparição do sobrenatural no enredo. Se os dispositivos expressivos do texto visam produzir experiência, e se para tanto eles devem instigar uma reestruturação do background do leitor, os efeitos da leitura da cena viriam da maneira como os dispositivos expressivos do texto acessam o seu background experiencial, levando-o a construir imaginativamente a sequência, tendo uma experiência de certo tipo. Essa reorganização do background experiencial inicia um efeito de feedback, em que o leitor responde ao texto na intensidade e medida em que o texto estimula seu background. Mesmo que seja impossível antecipar os efeitos que o texto teria em todo e qualquer leitor, essa tensão entre dispositivos expressivos e background experiencial seria capaz de explicar cada um deles, incluindo a experiência dificilmente verbalizável da imaginação sensorial. No excerto abaixo, vejamos como dispositivos expressivos são mobilizados para estimular a imaginação do leitor nos níveis corporal e perceptual:
Louis curvou-se sobre seu primeiro paciente na Universidade do Maine, em Orono.
Era um jovem de cerca de 20 anos de idade, e Louis levou menos de três segundos para fazer o único diagnóstico possível: o jovem ia morrer. Metade da cabeça fora esmagada. O pescoço estava quebrado. Uma clavícula se projetava do ombro direito contorcido e dilatado. Da cabeça, sangue e um fluido amarelo, purulento, vertiam vagarosamente para o tapete. Louis podia ver o cérebro do rapaz, um cinza esbranquiçado pulsando através da parte despedaçada do crânio. Era como olhar através de uma janela quebrada. O ferimento teria talvez 5 centímetros de largura; se houvesse um bebê naquele crânio, Louis quase poderia tirá-lo por ali (se o homem fosse como Zeus, parindo pela testa). Era incrível que ainda estivesse vivo. Em sua mente ouviu de repente a voz de Jud Crandall: às vezes podíamos sentir que dava um beliscão na nossa bunda. E sua mãe: a morte é a morte. Experimentou naquele instante um absurdo ímpeto de rir. A morte é a morte, tudo bem. Isso é categórico, meu chapa[44].
O autor explora a representação de imagens de um corpo mutilado, com detalhes dos ferimentos, dos ossos retorcidos, do sangue e do fluido amarelo e purulento escorrendo pelo chão. Não é possível postular que cada um desses elementos provocará todo leitor da mesma maneira, mas é improvável que nenhum deles exerça impacto: as representações textuais remetem a elementos reconhecíveis e facilmente associáveis a experiências de dor e sofrimento físico. Não é preciso que o leitor tenha vivido uma experiência semelhante para imaginar uma versão mais intensa de algumas das suas experiências de dor, engatilhada pelos dispositivos expressivos dos sons angustiantes emitidos por Pascow, do cheiro do sangue e dos fluidos corporais, da visão dos ferimentos. Ao imaginar a experiência corporal do personagem, associando-a às suas próprias memórias experienciais, o leitor reage corporalmente ao que é narrado. Decerto a leitura do estado de Pascow jamais provocará aquela dor no leitor, mas a focalização naquela experiência corpórea, ao evocar sua memória experiencial, pode causar-lhe uma sensação corporificada de desconforto. Isso também pode ocorrer em relação ao médico Louis, em sua reação ao paciente.
A passagem é finalizada com uma focalização interna de Louis, mediada pela sua referência a Zeus ao descrever o tamanho do ferimento na cabeça de Pascow. A hipérbole imprevista numa referência erudita reforça seu próprio absurdo de maneira bem-humorada, mudando o enquadramento dos pensamentos de Louis: o foco é retirado do corpo de Pascow para a perturbação emocional do personagem. Mais uma vez, dispositivos textuais direcionam o acesso ao background do leitor, para alterar a afetivização da leitura.
Se o leitor for pessoalmente familiarizado com as emoções dos personagens, reconhecidas pelas estratégias narrativas usadas para expressá-las, seu engajamento emocional pode aumentar. Pela mobilização das suas capacidades de empatia e simpatia, ele pode se emocionar ao simular as emoções dos personagens. Caracciolo[45] distingue a empatia como um mecanismo de simulação que nos permite entender o outro ao nos colocarmos em seu lugar (o que não se resume à experiência emocional), enquanto a simpatia apenas implica nos importarmos com outras pessoas. A enação da consciência – voltaremos ao tema no próximo item – pressupõe a simpatia, mas apela à empatia como mecanismo de intensificação da simulação das experiências dos personagens. Se o estímulo for elevado, o leitor pode sentir essas emoções, que passariam a integrar seu background experiencial, potencialmente integrando sua memória de longo prazo.
Caracciolo propõe o conceito de story-driven experience como a imaginação sensorial construída a partir da memória de experiências passadas dotadas de qualia. Essa imaginação sensorial também pode ser chamada de “imaginação enativa” (enactment imagination), como a simulação mental de estar experienciando algo pela familiaridade do narrado com padrões sensório-motores conhecidos pelo leitor em primeira mão. Em si a imaginação não é a enação de experiências passadas, mas uma reorganização dessas experiências estimulada por dispositivos textuais[46]. A imaginação enativa tem efeitos similares à percepção porque a leitura, no caso de palavras relativas à corporalidade, pode estimular as mesmas áreas do cérebro que uma situação real: num efeito confirmado pela neurociência da leitura[47]. Quando lemos a palavra “correr”, por exemplo, o cérebro é estimulado na mesma área quando estamos de fato correndo[48], o que explica as reações corporais e emocionais da experiência imaginária.
Assim, o leitor é estimulado a se projetar virtualmente no mundo ficcional e a explorá-lo a partir de padrões sensório-motores, tal como no mundo real. Mesmo que a descrição do ambiente narrativo seja vaga e incompleta, ela é capaz de encetar a simulação da percepção do leitor, que não notará as lacunas da representação ao ter a experiência virtual corporificada de estar no mundo ficcional. A imaginação enativa ocorre tanto na leitura de descrições do espaço, quanto no engajamento com personagens; alguns dispositivos expressivos são particularmente eficazes em conduzir o leitor à experiência de qualia. Se a qualia é inefável, ou seja, se não é possível descrever com precisão a sensação de experienciar algo, o uso da linguagem metafórica, segundo Caracciolo[49], pode evocar, no leitor, a memória de alguma experiência. Pela sua teoria da experiencialidade, é possível que quanto mais diferente e criativa for a tensão entre o texto e o background experiencial do leitor, mais intensa será a experiência quálica do leitor.
Narrativas dependem de funções cognitivas de ordem superior, e é a partir de nossas habilidades de imaginação proposicional, leitura, memória e interpretação textual que os outros níveis do background são estimulados. A seguir discutiremos em maior detalhe a enação na tensão entre a atribuição e a enação da consciência dos personagens.
5 A ENAÇÃO DA CONSCIÊNCIA DOS PERSONAGENS
A experiencialidade das narrativas ficcionais surge de uma rede de tensões, incluindo a tensão entre a atribuição e a enação da consciência dos personagens pelos leitores. Ela diz respeito à capacidade de identificar e atribuir uma experiência subjetiva ao personagem e, nalguns casos, de simular mentalmente essa experiência projetando-se no seu lugar. Essas estratégias apelam ao aprendizado construído em interações com pessoas reais: como seres sociais, desenvolvemos capacidades sociais que orientam nosso convívio com outros indivíduos. Uma delas é a intersubjetividade primeira, a atribuição de consciência a outras pessoas pela interpretação de gestos e da linguagem[50]. É claro que personagens não são seres conscientes e não têm experiências subjetivas; a experiência atribuída ao personagem, especificamente os qualia da story-driven experience, é uma construção do leitor, que reorganiza seu background experiencial a partir de sinais como gestos e linguagem. Vejamos, no excerto abaixo (que aborda o luto pela morte de Gage, filho de Louis), como essa atribuição pode ser feita:
Louis jamais esqueceria aquele momento. Quando se sentiu subindo com a pipa, como uma criança, sentiu-se também mais próximo de Gage. Era como se tivesse encolhido até caber dentro do corpo do filho e olhar pelas janelas que eram seus olhos: contemplar um mundo enorme e radiante, onde o terreno da Sra. Vinton era quase tão grande quanto o pântano de Bonnevílle, onde a pipa planava, quilômetros acima dele, a linha dando coices em seu punho como uma coisa viva, o vento soprando e lhe revirando os cabelos.
– A pipa está voando! – Gage gritou para o pai. Louis pôs o braço em volta dos ombros do filho e beijou-o no rosto, onde o vento tinha feito surgir um tom rosado.
– Gosto muito de você, Gage – disse o pai. Era uma confissão entre os dois, e era ótimo.
E Gage, que agora tinha menos de dois meses de vida, riu num tom estridente e muito alegre.
– A pipa está voando! A pipa está voando, papai![51].
O evento experiencial narrado é um momento de mútua alegria e contentamento entre pai e filho. Louis se sente conectado com Gage enquanto soltam a pipa juntos. O leitor pode ter a enação da experiência dos personagens devido aos dispositivos expressivos mobilizados para apresentar gestos, linguagem psicológica e as avaliações do narrador, os quais podem ser interpretados como correspondentes a uma experiência emocional de alegria.
A passagem começa com uma avaliação do personagem pelo narrador: jamais ter esquecido aquele momento mostra como o evento é relevante, o que orienta a atenção do leitor. Em seguida há uma justificativa dessa valoração, a alegria de Louis ao compartilhar o momento com o filho. A comparação do sentimento com o voo da pipa pode ser associada, por exemplo, a uma sensação de leveza e contentamento. A sensação de bem-estar é reforçada pela comparação seguinte, em que, para mostrar a conexão de Louis com o filho, é dito que ele se sente como se tivesse encolhido e coubesse no corpo de Gage, experienciando o mundo por meio dele – com o seu ingênuo encanto ao gritar “A pipa está voando!”. As falas de Gage imerso na experiência de ver a pipa voando e de Louis reafirmando o amor pelo filho, além do abraço e do beijo que demonstram a ligação de afeto, são indicativos de uma experiência de alegria e amor compartilhado. Mas a passagem se encerra com a antecipação da morte de Gage: a quebra do momento feliz evidencia a efemeridade da relação, e a produção de engajamento afetivo com os personagens pode intensificar as reações emocionais do leitor com eventos seguintes da história, especificamente o luto e o descontrole de Louis.
Podemos associar esses comportamentos a memórias experienciais dotadas de qualia, e ter uma experiência de leitura motivada pela atribuição aos personagens dos estados conscientes correlatos. Ou seja, é possível sentir uma experiência de bem-estar atribuindo bem-estar aos personagens, pois os dispositivos expressivos podem nos fazer associar o evento experiencial a nossas próprias experiências; a enação da consciência do personagem é a sobreposição da story-driven experience do leitor à atribuição de consciência ao personagem[52]. A tensão entre atribuição e enação de consciência, que rege o engajamento com os personagens, também decorre dos dispositivos expressivos que movimentam o background experiencial do leitor que atribui consciência e simula a experiência do personagem. Um fator relevante para o envolvimento do leitor é a similaridade entre a story-driven experience e aquela que é atribuída ao personagem. Quanto mais o narrado impacta o background do leitor – por ele ter vivenciado algo similar ou por compartilhar as avaliações do personagem –, maior é a possibilidade de enação. Outro fator está relacionado aos dispositivos expressivos: quanto mais detalhados são os dispositivos expressivos, mais provável é que o texto envolva diferentes níveis do background experiencial do leitor com elementos que sustentem a atribuição e enação da consciência do personagem[53]. Essa enação ocorre cumulativamente; é um processo que toma tempo. Apenas a exposição prolongada e intensa ao background experiencial do personagem estimula a imaginação mais detalhada da sua experiência[54].
Ela pode ser facilitada, por exemplo, por dispositivos expressivos que deem acesso direto à mente do personagem (a rigor, temos bem mais acesso às mentes de personagens do que às mentes de pessoas reais). Outro dispositivo expressivo propenso a envolver empaticamente o leitor é a self-narrative[55], a sequência textual que constrói uma história de vida para o personagem, conferindo-lhe certa identidade expressa em crenças, valores, memórias, além das suas intenções e motivações nos eventos e ações que lhe dizem respeito na trama – a self-narrative é a construção do background experiencial do personagem que nos fornece elementos, bem como uma base enativa, para que o leitor se engaje empaticamente com ele. Essa intersubjetividade secundária também está relacionada com a compreensão de práticas culturalizadas, que possibilitam a compreensão do self-narrative do personagem; mais uma vez, os efeitos mentais no leitor serão proporcionais à intensidade do seu envolvimento. Vejamos como a enação de consciência pode ser provocada por uma passagem como esta:
Lá estava o caixão que, durante o funeral, vira descansar sobre corrimões cromados ao lado da sepultura, então cercado por aquela horrível grama artificial. Lá estava a caixa-forte onde fora obrigado a enterrar todas as esperanças que acalentara para o filho. Uma fúria, um calor abrasador cresceram dentro dele, a própria antítese da anterior sensação de frio. Idiotice! A resposta era não!
Louis procurou a pazinha. Levantou-a até a altura dos ombros e golpeou a fechadura da urna – uma, duas, três, quatro vezes. Seus lábios estavam repuxados num esgar de raiva.
Vou tirá-lo daí, Gage, pode apostar!
O trinco havia soltado desde a primeira pancada, mas Louis continuava batendo, como se não quisesse apenas abrir o caixão, mas arrebentá-lo. Finalmente recuperou uma certa sensatez e parou, a pazinha no ar, pronta para um novo golpe.
A ferramenta estava empenada e cheia de riscos. Atirou-a de lado e cambaleou para fora da cova com pernas fracas e entorpecidas. Sentia um embrulho no estômago e a ira tinha se dissipado tão depressa quanto chegou. Uma torrente de frio começava a substituí-la e nunca sua mente se sentira tão só e confusa[56].
É o engajamento cumulativo com os personagens que propicia a enação da consciência. A narrativa de King mostra reiteradamente a relação de afeto e proteção que Louis tem com a família; passagens como aquela sobre Louis e Gage são feitas para motivar empatia e produzir um envolvimento afetivo que pode substanciar o envolvimento emocional com a experiência de Louis na invasão do cemitério. Louis se culpa pela morte de Gage e entra em uma espiral de insanidade. Ele conhece os poderes e os riscos do cemitério Micmac, mas ainda assim decide desenterrar o filho para ressuscitá-lo, como fizera com o gato. No trecho acima é perceptível seu desequilíbrio emocional por meio do apelo do texto à corporalidade, especialmente a descrição da sensação física de fúria como um calor que atravessa o corpo, em contraposição ao medo, à expressão facial com os lábios repuxados de raiva, às ações de golpear a fechadura. A linguagem orienta a imaginação enativa do leitor no xingamento no primeiro parágrafo e no acesso aos pensamentos marcados pelo autor em itálico, em que Louis promete a Gage que mudaria a sua condição. Esses elementos expressam, mas não propriamente representam, seu estado emocional e sua dor pela perda. Logo a raiva dá lugar a uma sensação de solidão e confusão mental, mostrando Louis desorientado. Ao atribuir essas experiências emocionais ao personagem, e por estar familiarizado com a sua self-narrative, o leitor pode ter uma story-driven experience que promova uma simulação dos eventos narrados em primeira pessoa, levando à enação das emoções atribuídas ao personagem.
Se a enação daquela experiência emocional pressupõe um engajamento prolongado do leitor com o personagem, é porque não basta identificar e interpretar seus sinais de consciência. Dispositivos expressivos detalhados e minudentes são decisivos, especialmente a focalização interna da experiência do personagem pelo narrador, em conjunto com a self-narrative de Louis. Sua raiva, solidão e desespero só podem despertar empatia porque o leitor terá acompanhado de perto sua relação com a família, a morte trágica de Gage e seus dilemas sobre o uso do cemitério.
Essa teoria da enação da experiência emocional dialoga com a teoria das emoções de Stephen Asma e Rami Gabriel[57], e com as considerações de Asma[58] sobre a experiência do horror. Asma e Gabriel[59] colocam os afetos no centro do desenvolvimento cognitivo dos seres humanos, defendendo que a inteligência social se fundamenta na percepção e nos afetos, como processos essenciais para a interação social e o aprendizado cultural. Num nível básico, afetos ajudam os animais a entrar num estado de bem-estar, favorecendo a homeostase ao orientarem a satisfação de necessidades corporais e psicológicas e ao direcionarem seu comportamento e processos cognitivos. No Homo sapiens, afetos são compostos por emoções e sentimentos: emoções são expressões corporais dos afetos, e sentimentos surgem quando o agente se torna consciente de suas emoções. Asma e Gabriel[60] defendem que emoções têm um papel importante no direcionamento que os afetos dão aos processos cognitivos e ao comportamento animal, pois emoções são estados neurofisiológicos que fazem a mediação entre motivações e comportamentos. O corpo tem um papel central na cognição, como ponte entre processos homeostáticos, afetivos e sensório-motores, e informações sobre coespecíficos e o ambiente[61]. Como expressões corporificadas dos afetos, emoções envolvem diferentes partes do cérebro e recrutam diferentes neurotransmissores e hormônios; o medo, por exemplo, é regulado sobretudo pela amígdala e está relacionado com a liberação de hormônios como o cortisol, adrenalina e o hormônio liberador de corticotrofina, processos que provocam efeitos corpóreos como o aumento da frequência cardíaca e do fluxo sanguíneo, esvaziamento da bexiga e desejo de fuga[62].
Na literatura de horror, essas emoções são culturalizadas. A representação dos estados emocionais dos personagens e a descrição dos seus estados corporais são estratégias importantes para o reconhecimento do evento experiencial em curso, mas Asma[63] aponta que as experiências do medo e do horror não são idênticas: há um componente existencial no horror, amplamente explorado no cinema e na literatura. A arte pode moldar nossos valores pela mobilização de nosso background experiencial nos níveis emocional e sociocultural, e ao identificar um componente existencial no horror Asma remete a H. P. Lovecraft e suas considerações sobre o horror cósmico, constituído pelo medo do desconhecido, tendo como efeito a sensação de fragilidade e vulnerabilidade[64]. De acordo com Noël Carroll[65], na ficção de horror sentimos medo e fascínio por monstros não apenas porque eles são ameaçadores e repulsivos, mas porque, no cerne do horror, há um fenômeno que não faz sentido. Monstros são insondáveis, incognoscíveis, nem vivos nem mortos, nem humanos nem animais, nem naturais, nem transcendentes: eles são “intersticiais”. Não há como compreender o monstruoso, não há satisfação genuína da nossa curiosidade; um bom filme de terror nos envolve em um mistério cuja natureza impede sua resolução. Vejamos como essa compreensão de horror, em conjunto com a teoria da experiencialidade de Caracciolo, fertiliza a leitura do desfecho de O Cemitério:
Louis se virou e foi contemplado pela visão da mulher de quem uma vez se aproximara com uma flor nos dentes. Estava estendida no corredor, morta, as pernas esparramadas como as de Jud, as costas e a cabeça esticadas obliquamente contra a parede. Parecia alguém que tivesse dormido enquanto lia na cama.
Ele se abaixou.
Oh, meu bem, você veio.
O sangue se espalhava no papel de parede em formas absurdas. Fora atacada uma dúzia de vezes, vinte vezes, quem podia saber? O bisturi cumprira sua missão.
E subitamente ele tomou consciência do que estava vendo, conseguiu realmente enxergar o que tinha diante dos olhos... e começou a gritar.
Os gritos ecoaram, vibraram com estridência por uma casa onde, agora, só a morte vivia e caminhava. Olhos esbugalhados, face lívida, cabelo arrepiado nas pontas – gritava; o som brotava na garganta dilatada como sinos do inferno, guinchos terríveis que assinalavam não o fim do amor, mas da lucidez. Em sua mente, todas as imagens hediondas soltaram-se ao mesmo tempo. Victor Pascow morrendo no tapete da enfermaria, Church voltando com pedaços de plástico verde nos bigodes, o boné de beisebol de Gage no meio da estrada, cheio de sangue, e principalmente a coisa que vira perto do Pequeno Pântano de Deus, a coisa que derrubara a árvore, a coisa que tinha olhos amarelos, o wendigo, criatura do norte, a coisa morta cujo toque desperta os mais horríveis apetites[66].
A experiência de horror é construída a partir de estratégias expressivas que estimulam a enação da consciência do personagem, especificamente o pavor de Louis ao ver a esposa morta, efeito que é ampliado pelo fato de esse fim trágico e irreversível ter sido antecipado pelo narrador. Engajar-se com Louis nas duas últimas partes do romance, em que ele é tomado pela culpa, tristeza e loucura que o levam a enterrar o filho em um cemitério amaldiçoado, é emocionalmente envolvente porque a focalização interna em Louis é intensa. Assim, a leitura do excerto acima pode levar a uma experiência de horror movida pelo medo, mas também pela vulnerabilidade do personagem, mesclando um afeto primário a um sentimento culturalizado.
Nota-se o tempo que Louis leva para se dar conta do que ocorreu e o modo afetuoso com que ele descreve o corpo de Rachel e o sangue espalhado pelas paredes, evidenciando o quanto ele não entendia perfeitamente as consequências de seus atos. Essa desconexão inicial logo dá lugar ao pavor, emoção expressa por um grito desesperado; há também a descrição da fisionomia de medo de Louis, como em outras passagens que se voltam à corporalidade para expressar processos emocionais. Esses detalhes são compreendidos pela nossa intersubjetividade primária, que nos permite identificar sinais de consciência, interpretá-los e atribuí-los aos personagens. Na enação, a atribuição de experiência guia uma simulação mental que se sobrepõe à perspectiva do personagem. O excerto destaca o fluxo de pensamentos de Louis, remetendo ao perigo do cemitério Micmac. A enxurrada de pensamentos evidencia que ele recupera os momentos terríveis que levaram à morte de Rachel. E a focalização no fluxo de pensamento dá transparência à mente de Louis, o que também funciona como um gatilho à enação.
Além de dispositivos expressivos que estimulam a atribuição e a enação da consciência do personagem, sua self-narrative substancia o engajamento do leitor. O assassinato de Rachel e o encontro de seu corpo têm maior impacto porque o leitor acompanhara o relacionamento do casal, enquadrado pelo senso de dever e proteção de Louis em relação aos filhos e à esposa. É mostrado o trauma de Rachel pela morte brutal da irmã quando elas eram crianças, e como para protegê-la Louis se envolve cada vez mais com o cemitério Micmac. Na simulação mental da experiência de Louis naquela passagem, o leitor pode ter empatia pela experiência de dor ao acessar os eventos experienciais anteriores; com isso, o horror vem da enação de uma experiência que envolve angústia, culpa, medo e sensação de impotência do personagem diante da perda de uma pessoa querida.
Na passagem seguinte, um Gage ressuscitado e possuído aparece após matar Rachel e Jud com um bisturi:
Ergueu os olhos entorpecido, o grito ainda tremendo na garganta e, enfim, lá estava Gage, a boca manchada de sangue, o queixo pingando, os lábios repuxados num sorriso infernal. Trazia o bisturi numa das mãos.
Mas quando quis dar o primeiro golpe, Louis o empurrou num reflexo instintivo. A lâmina passou rente a seu rosto, mas Gage cambaleou. Desajeitado como Church, Louis percebeu. Num movimento rápido, deu-lhe um chute no pé, ele caiu pesadamente e, antes que conseguisse se levantar, Louis se pôs sobre ele, um joelho imobilizando a mão que segurava a lâmina.
– Não – a coisa arquejou. O rosto se torcia, se contorcia. Os olhos eram de inseto, um olhar maligno cheio de uma raiva estúpida. – Não, não, não…
Louis agarrou com força uma das seringas e tirou-a do bolso. Teria de ser rápido. A coisa sob ele era como um peixe ensebado, e por mais que lhe dobrasse o pulso, não largaria o bisturi[67].
Certos dispositivos expressivos apresentam Gage como ameaça: apesar de ele fisicamente não ter se tornado um monstro, ele está possuído; seu corpo está sendo usado por uma criatura maligna, a “coisa”. A descrição do personagem é repulsiva: a boca suja de sangue, o sorriso infernal, o objeto usado para matar Rachel e Jud, as comparações aos olhos de um inseto e o corpo de um peixe ensebado, que desumanizam o personagem. Por meio de Gage, o excerto personifica o mal que habita o cemitério Micmac, estimulando uma experiência de repulsa mediada pela consciência de Louis.
A passagem se encerra com uma luta corporal entre Louis e Gage, em que o pai consegue aplicar seringas de morfina para matar a coisa que controla seu filho. O desfecho conclui a experiência de horror do personagem, focalizando o impacto que os eventos causam em Louis:
Então Gage ergueu os olhos e, por um instante, Louis viu seu filho, seu filho real, o rosto amargurado e cheio de dor.
– Papai! – Gage gritou e depois caiu de frente, batendo com o rosto no chão.
Louis ficou um instante imóvel, depois se aproximou, cauteloso, esperando algum truque. Mas não houve truque, nenhum salto repentino com as mãos arreganhadas como garras. Enfiou os dedos com perícia pela garganta de Gage, encontrou o pulso e deteve-se nele. Foi médico pela última vez na vida, sentindo um pulso, sentindo até não haver mais nada, nada por dentro de Gage, nada por fora.
Quando por fim estava tudo acabado, Louis ficou de pé e se afastou pelo corredor até um canto afastado. Agachou-se lá, encolhido como uma bola, apertando-se muito, muito, contra a parede. Achou que se humilharia mais se pusesse o polegar na boca e foi isso que fez[68].
O desfecho recebe um tom triste, marcado pela fragilidade de Louis, que parece enlouquecer. Logo antes de morrer novamente, Gage apresentara sinais de consciência ao chamar pelo pai em sofrimento. Essas poucas linhas estimulam que o leitor empatize com a dor atribuída à criança. E quando Louis percebe que ela e o espírito que a possuíra haviam partido, suas ações expressam sofrimento: ele se encolhe num canto com o dedo na boca, como que num comportamento infantil de fuga da realidade e desejo de proteção. O texto direciona o leitor à enação de uma experiência de incerteza e angústia, construída pelo acúmulo das experiências de horror do personagem.
Neste artigo apresentamos a teoria da leitura da narrativa de ficção de Marco Caracciolo, discutindo a extensão do enativismo a processos cognitivos superiores. Acreditamos que o enativismo oferece modelos adequados para o estudo da afetivização da leitura que, ao contrário das práticas predominantes no século XX, deve ocupar uma posição central na pesquisa sobre a narrativa e a ficção. Nesse caso, o enativismo pode atuar como fundamento cognitivo de um estudo transdisciplinar, em que o cotejo dos elementos materiais e processos mentais interrelacionados na afetivização da leitura envolveria o suporte da pragmática linguística para o tratamento da composição textual como estrutura de comunicação, modelos descritivos da construção de mundos ficcionais (conforme propostos, por exemplo, pela narratologia baseada em teorias de mundos possíveis), modelos neurocientíficos dos processos atencionais e efeitos conscientes mentais estimulados pela leitura, a análise semiótica do uso dos símbolos linguísticos, em conjunto com o tratamento das formas de juízo moral tipicamente associadas ao engajamento afetivo com os personagens. Nos limites deste artigo, procuramos a fundamentação que o enativismo pode conferir à cognição do texto narrativo ficcional a partir de Marco Caracciolo, um dos maiores expoentes dessa interface. Esperamos que esta exploração de um campo emergente de pesquisa sirva de inspiração para explorações futuras.
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Contribuição de autoria
1 – Pedro Dolabela Chagas
Professor Adjunto de Literatura Brasileira e Teoria Literária da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
https://orcid.org/0000-0003-0336-489X • dolabelachagas@gmail.com
Contribuição: Escrita - Primeira Redação
1 – Leticia Oliveira
Bacharel em Letras pela UFPR
https://orcid.org/0009-0006-1693-4504 • leti.edu.1999@gmail.com
Contribuição: Escrita - Primeira Redação
Como citar este artigo
Chagas, P. D.; Oliveira, L. Imaginação, experiência, emoção: a teoria enativista da leitura da ficção de Marco Caracciolo. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria - Florianópolis, v. 16, n. 2, e91754, 2025. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378691754. Acesso em: dia, mês abreviado, ano.
[1] Chagas, P. R. D.; Moreira, A. C. A.; Almada, L. F. Narratologia Cognitiva: Uma Introdução.
[2] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach.
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[12] Asma, S.; Gabriel, R. The Emotional Mind: The Affective Roots of Culture and Cognitions.
[13] Hutto, D. Enactivism.
[14] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 106.
[15] apud Hutto, D. Enactivism.
[16] Hutto, D. Enactivism.
[17] Hutto, D. Enactivism.
[18] Hutto, D. Enactivism.
[19] Hutto, D. Enactivism.
[20] Hutto, D. The Narrative Practice Hypothesis: Origins and Applications of Folk Psychology.
[21] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 30.
[22] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 32.
[23] apud Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 30.
[24] Dor, D. The Instruction Of Imagination: Language As A Social Communication Technology.
[25] King, S. O Cemitério, p. 43-44 (grifo do autor).
[26] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 36.
[27] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 41.
[28] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 42.
[29] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 43.
[30] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 43-44.
[31] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 44.
[32] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 49.
[33] Caracciolo, M. Experientiality, p. 149.
[34] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 50.
[35] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 50.
[36] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 50.
[37] apud Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 56.
[38] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 57.
[39] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 59.
[40] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 59.
[41] Prinz, J. J. Gut Reactions: A Perceptual Theory Of Emotion.
[42] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 59-60.
[43] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 60.
[44] King, S. O Cemitério, p. 75 (grifos do autor).
[45] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 130.
[46] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 56.
[47] Dehaene, S. Os neurônios da leitura.
[48] Cavalcanti, I. V.; Mota, H. R. Cognição e linguagem: seria a linguagem um desafio para abordagens enativistas?, p. 152-153.
[49] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 106.
[50] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 117.
[51] King, S. O Cemitério, p. 232-233 (grifo do autor).
[52] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 122.
[53] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 123.
[54] Caracciolo, M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 123.
[55] Caracciolo. M. The Experientiality of Narrative: An Enactivist Approach, p. 139.
[56] King, S. O Cemitério, p. 350-351 (grifo do autor).
[57] Asma, S.; Gabriel, R. The Emotional Mind: The Affective Roots of Culture and Cognitions.
[58] Asma, S. Monsters on the Brain: An Evolutionary Epistemology of Horror.
[59] Asma, S.; Gabriel, R. The Emotional Mind: The Affective Roots of Culture and Cognitions, p. 75.
[60] Asma, S.; Gabriel, R. The Emotional Mind: The Affective Roots of Culture and Cognitions, p. 27.
[61] Asma, S.; Gabriel, R. The Emotional Mind: The Affective Roots of Culture and Cognitions, p. 78.
[62] Asma, S. Monsters on the Brain: An Evolutionary Epistemology of Horror, p. 02.
[63] Asma, S. Monsters on the Brain: An Evolutionary Epistemology of Horror, p. 15.
[64] Asma, S. Monsters on the Brain: An Evolutionary Epistemology of Horror, p. 15.
[65] apud Asma, S. Monsters on the Brain: An Evolutionary Epistemology of Horror, p. 08.
[66] King, S. O Cemitério, p 412-413 (grifo do autor).
[67] King, S. O Cemitério, p. 413 (grifos do autor).
[68] King, S. O Cemitério, p. 414 (grifo do autor).