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Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 16, n. 1, e90855, 2025

DOI: 10.5902/2179378690855

ISSN 2179-3786

Submissão: 14/02/2025 Aprovação: 29/04/2025 Publicação: 03/06/2025

1 INTRODUÇÃO.. 2

2 A VITÓRIA DOS IMPULSOS EGOÍSTAS. 3

3 O CARÁTER COMO UM LANCE INESPERADO.. 7

REFERÊNCIAS. 17

 

Estudos Schopenhauerianos

Egoísmo, caráter e liberdade na personagem Raskólnikov: vestígios schopenhauerianos no romance Crime e castigo

Selfishness, character and freedom in the persona Raskolnikov: Schopenhauerian traces in the novel Crime and Punishment

Ângela Lima CalouIÍcone

Descrição gerada automaticamente

I Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil

RESUMO

O presente artigo assume por horizonte a produção de uma análise filosófica do romance Crime e Castigo, no interior da qual se pretende amparar a afirmação de que o mundo literário dostoievskiano se constitui como uma fonte de interlocução artística à filosofia de Schopenhauer. Busca-se interpretar em que medida a personagem Raskólnikov traduziria, em vida literária, certos conteúdos elaborados conceitualmente pelo autor de Sobre o fundamento da moral, tais como o primado da vontade sobre o intelecto e as noções de egoísmo, caráter e liberdade.

Palavras-chave: Dostoiévski; Schopenhauer; Egoísmo; Caráter; Liberdade

ABSTRACT

This article aims to produce a philosophical analysis of the novel Crime and Punishment, within which it is intended to support the claim that Dostoevsky's literary world constitutes a source of artistic dialogue with Schopenhauer's philosophy. It seeks to interpret to what extent the persona Raskolnikov would translate, in literary life, certain contents conceptually developed by the author of On the Foundation of Morals, such as the primacy of the will over the intellect and the notions of egoism, character and freedom.

Keywords: Dostoevsky; Schopenhauer; Egoism; Character; Freedom

1 INTRODUÇÃO

A prosa madura do russo F. Dostoiévski (1821-1881) chama à cena as “verdades terríveis” do nosso mundo, ilustrando, em sua totalidade, a impossibilidade de se corrigir o funcionamento da natureza, ao ponto de eximir a existência das agruras da finitude e da impressão esmagadora da vulnerabilidade humana imbricada à ausência de controle efetivo sobre o próprio destino. 

A tentativa de fazê-lo, isto é, de rebelar-se contra a gratuidade da dor e a fragilidade do existente, permite destacar, em Crime e Castigo (1866), um dos aspectos fadários que consagram a tragicidade da experiência humana: a centralidade dos impulsos egoístas aos quais as personagens dostoievskianas estão destinadas pelo seu ser de maneira tão certeira quanto o estão para a própria morte, a obliterar o jogo das ações moralmente valoradas.

Em conformidade à antropologia negativa de Schopenhauer, nos escritos de Dostoiévski “as forças ocultas do egoísmo e do orgulho que dormitam no peito de cada ser humano”[1] são devastadoras, revelando-se como a tendência orgânica que instaura positivamente a experiência do mal, figurado como aniquilação, destruição imbricada à afirmação titânica da personalidade.

Essa inclinação humana possui raízes profundas no coração de Raskólnikov e a jornada dessa personagem consiste, fundamentalmente, em descobri-lo. Nesse percurso, é possível destacar uma zona de vizinhança entre as imagens de Dostoiévski e os conceitos de Schopenhauer. Trata-se, em ambos, de sondar o humano em seu abisso sem qualquer subterfúgio e, nisso, descobrir que não há equilíbrio entre racionalidade e afirmação cega do querer; que não se conhece previamente o próprio caráter; e que o ser humano, eivado de impulsos egoístas, se quer muito mais livre do que propriamente o seja.

2 A VITÓRIA DOS IMPULSOS EGOÍSTAS

Eu conheço Rodion há um ano e meio: carrancudo, sombrio, soberbo e altivo; ultimamente (ou talvez bem antes) anda cismado ou hipocondríaco. É magnânimo e bom. Não gosta de externar seus sentimentos e antes prefere uma crueldade a fazer falar o coração. Às vezes, porém, não tem nada de hipocondríaco, mas é simplesmente frio e insensível até a desumanidade, palavra, como se nele se alternassem dois caracteres opostos. Às vezes é terrivelmente taciturno! Nunca tem tempo para nada, tudo atrapalha, mas vive deitado sem fazer nada. Não faz galhofa, e não porque lhe falte graça, é como se não lhe restasse tempo para semelhantes futilidades. Não ouve até o fim o que os outros falam. Nunca se interessa pelo que todos os outros estão interessados em dado momento. Tem um conceito terrivelmente alto de si mesmo e, parece, não deixa de ter certo direito a isso.[2]

 

Na descrição de seu amigo Razumíkhin, a interioridade ambígua do herói Rodion Raskólnikov é radicalmente destacada. Com efeito, no início dessa obra, apresenta-se como um personagem cativante, pois mesmo em seu estado de penúria, uma inclinação à magnanimidade se deixa entrever.

Cultiva um amor sincero e devotado por sua mãe e irmã; deixa em casa de Marmieládov – um bêbado que se lhe dirige em uma taberna assim sem mais – seus últimos copeques, vindo a pagar, um pouco depois, o funeral do recém-conhecido, embora tivesse recursos tão parcos quanto o próprio. Interpõe-se entre uma jovem e um violador em potencial e chega mesmo a noivar com uma moça que em nada correspondia aos critérios da época para a aquisição de matrimônio, e o faz simplesmente por apiedar-se dela.

A moça morre e, portanto, o casamento não se realiza. Mas o estudante continua a ocupar um quarto fétido, pequeno, sufocante e obscuro nas instalações da mãe daquela, a senhoria de sua habitação cujo pagamento já não honrava. Trata-se, portanto, de um homem jovem, indignado com a própria miséria, forçado a abandonar a vida universitária. Mas, também, de uma alma extremamente revoltada diante do sofrimento que atravessa a experiência humana como uma praga resistente e inatacável, expressa em cada esquina dos bairros miseráveis de Petersburgo por onde transita, mirando rostos de súplica e degradação.

No entanto, não se demora a se fazer ver o retrato de que também comparecem no espírito do ex-estudante os demais impulsos que Schopenhauer, em seus estudos sobre a ética, destaca como constituintes dos indivíduos em maior ou menor veemência. O egoísmo, que é visar exclusivamente o próprio bem; e, também, a maldade, que é empreender forças com vistas ao mal alheio.

O herói – muito símile ao homem do subsolo em suas ruminações – é tomado por uma profunda meditação em torno de uma ideia que convoca à exaustão seus esforços reflexivos e, a um só tempo, paradoxalmente, lhe preenche de uma certa repugnância: em prol de um bem maior, um mal “menor” pode ser engendrado? O que é o bem e o mal moral? E, até que ponto, pode um homem manuseá-los? Transportando essas abstrações para o caso concreto, como é próprio à literatura dostoievskiana que encarna ideias em destinos humanos para então levá-las às últimas consequências, o que Raskólnikov se propõe é nada mais nada menos que assassinar uma velha usurária para assim, valendo-se dos recursos que lhe roubasse, ajudar sua família e empreender boas ações aos montes junto aos desamparados e sofredores. De um lado, um “piolho inútil” que presta um desserviço à sociedade, que se aproveita da pobreza de jovens como ele; de outro, a possibilidade de abrandar a miséria que grassa na cotidianidade de seu meio social.

Esse é o cálculo de Raskólnikov, que não o faz sem sentir certa repugnância, a deixar entrever o embate ativo de seus ímpetos mais íntimos. No discurso da personagem, a positividade das éticas tradicionais e da moralidade religiosa será deslocada em favor de uma ação entendida como coerência com a própria consciência, a fundar a partir da racionalidade do sujeito a sua plena justificação. A seus olhos, o mal se apresenta, naquele momento, como a perspectiva de um bem, cujo custo é o assassinato de um ser ignóbil, medíocre, nefasto para a vida social. Dentro de sua situação de marginalidade, Raskólnikov concebe que sua “ideia” de aniquilar algo que se equipararia a um inseto odioso, a uma “vergonha”, reportaria a um bem através da destinação conscienciosa dos recursos obtidos. Essa “ideia” é estranhamente recriada numa conversa entre dois homens em uma taberna, na presença do herói, reforçando a dimensão trágica do romance no peso da vida em seus anelos quase fantásticos e tão pouco evidenciados:

Mas por que justamente agora tinha ele de ouvir logo essa conversa e essas ideias, quando em sua própria cabeça acabavam de medrar... exatamente essas mesmas ideias? E por que logo agora, quando ele mal acabara de sair da casa da velha com o embrião da sua ideia, logo agora ia dar de cara com uma conversa sobre a velha?... Essa coincidência sempre lhe pareceu estranha. Aquela insignificante conversa de botequim teve uma influência excepcional sobre ele no posterior desenvolvimento do caso: como se ali tivesse mesmo havido alguma predestinação, um sinal...[3]

 

Em meio à antinomia entre a repugnância à ideia e a sedução de executá-la, a personagem pratica o assassínio. O funesto é o que escapa ao seu plano: a presença inesperada de Lizavieta, a irmã mais nova do “piolho inútil”, a assegurar que se derrame sangue uma segunda vez. Nesse sentido, o enredo do romance é talhado em definitivo no que sucede imediatamente a essa ação injuriosa: o completo embotamento da motivação de Raskólnikov ter saído de seu cubículo para matar, ressaltado à medida que seu coração não silencia depois do feito, insinuando que algo escapara à sua “ideia”:

Crime e castigo concentra-se na solução de um enigma: o mistério dos motivos do assassino. É que o próprio Raskólnikov, como se fica sabendo, descobre que não entende por que matou; ou, em termos mais precisos, toma consciência de que o propósito moral que supostamente o inspirou não pode explicar sua conduta.[4]

 

Se do ponto de vista da exterioridade, a entrada inesperada de Lizavieta na cena do crime dilacera a percuciência de Raskólnikov, responsável pela rigorosa elucubração prévia ao ato, do ponto de vista da interioridade, tudo também se arruína, pois não se sente e não se age conforme o previamente esperado. A presença inóspita de um incômodo, da falta de indiferença ao feito, da irritabilidade, da impaciência e de um certo temor, com os quais não se contava previamente, deterioram a personagem, para a qual a razão deixa de ser a capacidade de capturar a realidade para tornar-se “literalmente” uma lâmina que retalha, corta, abre caminhos e reduz a nada tudo que não condiz com a representação.

3 O CARÁTER COMO UM LANCE INESPERADO

Esse quadro, profundamente reforçado no romance em questão, ilumina artisticamente uma compreensão capital da ética schopenhaueriana, a saber, a impossibilidade de que o indivíduo conheça a priori seu próprio caráter, o que pressupõe o predomínio da vontade sobre o intelecto. Em termos dostoievskianos, isto se apresenta também em outras obras através de uma imagem constantemente destacada: a vida a esmagar a precisão do conceito que os indivíduos tantas vezes fazem de si mesmos, sem qualquer desconfiança de seu aspecto falimentar. É apenas posteriormente ao assassinato que, não somente Raskólnikov, mas também quem acompanha suas dinâmicas poderá visualizar que existe uma desfaçatez irretocável com a qual se escamoteia, no discurso, o móbile de sua ação sob uma roupagem supostamente altruísta, oriunda de um esquema mental embasado em pressupostos utilitários.

Na menção do juiz de instrução Porfiri Petrovich a um artigo de jornal escrito por Raskólnikov, revela-se mais profundamente o ponto a partir do qual o teor do romance se origina. Há ali as considerações da personagem que afirmam a existência de uma lei histórica: a distinção entre os homens ditos ordinários e extraordinários. Os primeiros referem-se aos submissos, à massa que assimila e teme as tradições éticas e a moral religiosa transpostas à lei de estado. Os segundos, por sua vez, remetem a figuras como Napoleão, que embora esqueça toda uma armada para a morte, recebe honras e monumentos à sua homenagem: “É até notável que a maioria desses beneméritos e fundadores da sociedade humana foram sanguinários especialmente terríveis”[5], afirma o protagonista.

Não se trata, porém, da defesa cínica das carnificinas empreendidas por tantas figuras históricas, mas do fascínio de um jovem misturado à revolta ante a imagem de que, para alguns, efetivamente, “tudo é permitido”. O herói de Crime e castigo acredita ter capturado uma verdadeira lei da história, isto é, a de que existem homens para os quais é lícito fazer o que lhes passa pela mente, à medida que os caminhos da humanidade amparar-se-iam no recurso de suas forças. É presente no romance uma revolta profunda em face da violência com a qual um sujeito como Napoleão submetera a existência de milhares de outros seres humanos, impondo-lhes o inferno sobre a Terra e a morte inconfundível. Porém, o fascínio – a tentação do mal – sai vitorioso no espírito de Raskólnikov, pois “agora é o reino da razão e da luz e... da vontade, e da força”[6], conforme assevera. No encontro com seu próprio caráter, a revolta da personagem em face do sofrimento e seu espanto ante a aparente condescendência social aos facínoras, produz um sentimento de titanismo diabólico que resulta na reprodução de uma postura de negação da alteridade, implicitamente atualizada na raiz de seu nome, “Raskól”, que em russo significa “cisma”. Nesses termos, penso que uma passagem de Parerga e paralipomena pode ilustrar vivamente esses desdobramentos cruciais de Crime e castigo, a explicitar que a filosofia de Schopenhauer e literatura madura de Dostoiévski iluminam-se mutuamente:

Imitação e hábito são molas mestras da maioria das ações humanas. Porém, o modo do efeito do exemplo é determinado pelo caráter de cada um: por isto um mesmo exemplo pode acarretar um efeito de sedução sobre uns, e de intimidação sobre outros. Para observar isto são oportunos certos maus modos sociais, não existentes antigamente, mas que lentamente se afirmam. Com a primeira percepção de algum deles, alguém pensará: “Quão desagradável, egoísta e inescrupuloso! Jamais farei igual”. Vinte outros entretanto pensarão: “Se ele o faz, eu também posso!”.[7]

 

Se a personagem se atormenta depois do crime é sobretudo em função do dado ao qual a consciência de seu estado de tormento parece lhe conduzir. Atormentar-se é a marca oculta do lugar subalterno que, a seu ver, ele próprio ocuparia dentro das leis da história, que antes julgara não somente ser capaz de conhecer, mas também de aplicar.

Raskólnikov sofre e, ao fazê-lo, já não pode se ver à altura da “ideia” que produzira, incapaz que é de manter a firmeza dos nervos e a serenidade resolutiva do pensamento depois do feito. Pode-se dizer que a personagem vivencia a angústia caracterizada na ética schopenhaueriana como a dor de conhecer-se a si mesmo[8]. Sente-se completamente aturdido e impressionado não apenas pelo terrível sentimento de autoapreciação em tudo oposto àquele “aplauso de consciência”[9] destacado por Schopenhauer no âmbito da ação moralmente valorada, mas sobretudo pela atroz implicação que a consciência de seu estado de espírito lhe oferece sobre si mesmo[10].

É apenas nesse sentido que o seguinte fragmento pode ser interpretado: “Atormentava-o alguma outra coisa, muito mais importante, extraordinária – que dizia respeito a ele mesmo e a ninguém mais, e no entanto era alguma coisa diferente, alguma coisa importante”[11]. Essa “outra coisa, muito mais importante” converge, por um lado, para a imagem da pobreza da condição humana expressa nos limites da razão que não tem primazia sobre o aspecto irracional endossado como corpo. Por outro, revela-se como compreensão da natureza pecaminosa do ser humano. Ao negar o primeiro aspecto, a personagem é conduzida à descoberta inevitável do segundo.

Raskólnikov rebela-se contra a precariedade da condição humana, tomado por um orgulho desmesurado e pela afirmação titânica da própria personalidade, para só então compreender precisamente o que escapara à sua ideia: “naquela ocasião o diabo me arrastou, mas já depois me explicou que eu não tinha o direito de ir lá porque eu sou um piolho exatamente como todos os outros!”[12]. Convocado à delegacia, um pouco de tempo depois do crime, à guisa do aluguel atrasado, o ex-estudante desmaia ao ouvir ali uma menção ao caso da velha usurária. Talvez porque houvesse cheiro de tinta fresca nas paredes do recinto e sua barriga estivesse vazia, mas talvez porque ele próprio não fosse, antes de tudo, consciência ou uma “cabeça de anjo alada”, guiada pela inteligência e impassível a todo o resto, o que se expressa nas falas do juiz de instrução Porfiri Pietróvitch:

Queira desculpar este velho –, é um homem ainda jovem, por assim dizer, na primeira mocidade, e por isso aprecia acima de tudo a inteligência humana, a exemplo de toda juventude. A agudeza brejeira da inteligência e os argumentos abstratos da razão o seduzem. [...] a realidade e a natureza, meu caro senhor, são uma coisa importante, e às vezes interrompem o cálculo mais perspicaz![13]

O espírito é uma coisa magnifica, é por assim dizer, o encanto da natureza e o consolo da vida, e, pelo visto, é capaz de armar tamanhos truques que, vez por outra, parece fugir à compreensão. [...] mentiu admiravelmente, mas não foi capaz de levar em conta a natureza [...] o espelho é a natureza, o espelho é a coisa mais transparente![14]

 

O pensamento abstrato que absorve Raskólnikov antes do crime não é capaz de sustentar as suas pernas depois do feito, muito menos de controlar as situações produzidas pelos arroubos aos quais a personagem é conduzida por seu caráter hipocondríaco e vaidoso. As bases de sua hipótese são postas a prova na cena mesma da vida, cuja força excede o cálculo de sua razão, por mais rigoroso que se lhe pretenda, pois “só com a lógica é impossível pular por cima da natureza!”[15]. Nesse embate, onde as pernas e as mãos tremulam irresistivelmente, o sofrimento atinge um nível insuportável e, em sua extensão, determina-se como autoconhecimento que Raskólnikov experimenta de sua natureza pecaminosa no instante em que tudo se alumia e a motivação egoísta que subjaz a sua ação se revela, finalmente, para si:

Eu... quis ousar e matei... [...] eu quis matar sem casuística, matar para mim, só para mim! A esse respeito eu não queria mentir nem a mim mesmo! Não foi para ajudar minha mãe que eu matei – isso é um absurdo! Eu não matei para obter recursos e poder, para me tornar um benfeitor da humanidade. Absurdo! Eu simplesmente matei; matei para mim, só para mim: agora, quanto a eu vir a ser benfeitor de alguém ou passar a vida inteira como uma aranha, arrastando todos para a rede e sugando a seiva viva de todos, isso, naquele instante, deve ter sido indiferente para mim! E não era do dinheiro, Sônia, que eu precisava quando matei; não era tanto o dinheiro que me fazia falta quanto outra coisa... Agora eu sei de tudo...[16]

 

O que advém à personagem, dentro da narrativa, avizinha-se como expressão literária à compreensão schopenhaueriana de que “nossos atos serão um espelho de nós mesmos. Daí se explica a satisfação ou o peso de consciência com que olhamos retroativamente para nosso caminho de vida”[17]. Como se o espelho não mentisse, Raskólnikov reconhece a si mesmo como moralmente mal: “Sônia, eu tenho um coração mal, repara nisso: isso pode explicar muito”[18]. E, assim, começa a admitir-se responsável não apenas pelo que fez (a condição de criminoso), mas também pelo que é (a condição de pecador). Essa perspectiva conecta fortemente o mundo artístico de Dostoiévski ao esquema conceitual da filosofia de Schopenhauer, pois em ambos se acolhe a alegoria das religiões pessimistas, a saber, o que ensinam sobre “uma culpa que é carregada pelo gênero humano devido à própria existência dele”[19], implicando a responsabilidade de uns perante os outros[20].  Culpa e expiação revelam-se como o próprio registro da realidade na obra desses autores, nas quais se admite um mal originário, primordial, cuja sede é o próprio coração humano e cuja experiência é o seu caráter – essa “espécie de fatalidade, um destino interior que nos constitui”[21] –, a investir de um significado mais profundo a responsabilidade; referida, aqui, à esfera do ser.

Há, na literatura madura de Dostoiévski, uma corroboração artística da noção de caráter inato, assim como a perspectiva de que este não se dá a conhecer antes da ação. É apenas no decurso da experiência que se pode, em alguma medida, tateá-lo, produzindo, com a ajuda da razão, algum nível de conhecimento da individualidade, o que na tipologia schopenhaueriana se processa na relação do “caráter inteligível” com o “caráter adquirido”. A tensão profundamente presente nos episódios que antecedem o encontro de Raskólnikov com o juiz de instrução que pretende interrogá-lo, baseia-se inteiramente em uma imagem literária que expressa a interação entre as disposições inatas do caráter da personagem e os motivos que o despertam como força dominante. Enquanto Raskólnikov teme profundamente não resistir às provocações de Porfiri Pietróvitch, este conta justamente com isso. À medida que as ações do jovem lhe produzem o retrato de uma altivez sem limites e de um orgulho inconteste, o juiz tem em vista manusear tais aspectos, despertá-los, provocá-los através da palavra e do gesto oportunos, para assim produzir, quem sabe, uma confissão. Nesses termos, ressaltando essa vizinhança de perspectivas, C. Philipps afirma:

A descrição de Schopenhauer da vontade e do caráter humano lhe rendeu muito do reconhecimento póstumo de seu trabalho. No entanto, não foram tantos os filósofos e os cientistas que exploraram sua visão de mundo, mas os escritores do final do século XIX e do século XX. Entre eles [...] Dostoiévski, em quem encontramos descrições de personagens humanos como que fechados na prisão invisível de seu próprio caráter.[22]

 

Raskólnikov não suporta em absoluto a condição humana por sabê-la mínima, insuficiente, penosa, pouca, passível de um esforço a seus olhos ofensivo e humilhante. Tratando-se da finitude, da precariedade, do sofrimento, decide ultrapassá-la através de uma ação livre no interior da qual despontaria sua salvação. A pretensa ação livre, no entanto, tropeça nos aspectos de seu caráter que ele próprio desconhece, e se relaciona mais profundamente a estes do que ele pudera então supor. A liberdade, nesse caso, é numênica, como o é para Schopenhauer, uma vez que, no mundo dos fenômenos, “no fim das contas triunfa a necessidade, porque a luta das vontades que se cruzaram conduz a um resultado inesperado, que não coincide com o que queriam os que tomaram parte na ação do herói”[23].

A personagem se quer plena de liberdade, mas seu ato pretensamente livre não passa de um embuste, pois não se revela como a escolha indiferente entre objetos presidida por uma razão primaz, mas como revolta, capricho diabólico de um homem furiosamente voluntarioso, cuja motivação egoísta mostra-se prevalente em sua compleição. Integrando a galeria das personagens dostoievskianas que “agem por si próprias e olham para as outras pelo prisma de sua individualidade, de seu caráter, de sua paixão ou de sua visão de mundo”[24], esse herói se torna, paradoxalmente, um prisioneiro de si mesmo em vista de um ímpeto de afirmação cega de si. Não fora a razão, ao fim, o móbile da ação de Raskólnikov, antes um impulso se estabelece como base: “uma vontade irresistível e implacável o arrastava”[25]. Nesse sentido, se há na obra de Dostoiévski imagens que afirmam a necessidade de imputação de responsabilidade moral aos indivíduos, esta se processa de um modo símile à afirmação da ordem moral do mundo em Schopenhauer, reconduzindo a liberdade e, portanto, a responsabilidade à esfera do ser, que é fundamentalmente vontade: essência metafísica, no caso do filósofo; potência humana de afirmação de si, irracional e sem limites, no caso do literato. Esse registro é pujante em uma passagem referente ao dia em que Raskólnikov se dirige à casa de Aliena Ivánovna para empenhar-se na materialização de seu plano:

O último dia, que começara tão por acaso e resolvera tudo de uma só vez, agia sobre ele de maneira quase inteiramente mecânica: como se alguém o segurasse pelo braço e o arrastasse, de forma irresistível, cega, com uma força antinatural, sem objeções. Como se uma nesga da sua roupa tivesse caído debaixo de uma roda de máquina e começasse a tragá-lo.[26]

 

4 Considerações Finais

Constituindo a duras penas o seu “caráter adquirido”, Raskólnikov dá continuidade, em alguma medida, à descoberta de Dom Quixote. O cavaleiro da triste figura descobre não somente que não é um herói, mas que os heróis não existem. Esse é o destino das personagens dostoievskianas, que também tomam, a seu modo, moinhos de vento por avantajados gigantes. É isto o que seus grandes romances pretendem considerar, ao elaborar um percurso em fins do qual seus heróis se revelam despidos e desorientados, conhecendo-se a si mesmos apenas através da própria ação.

É o ser humano a se encontrar consigo, desprovido de sortilégios ou prestidigitação que promova uma acepção tão favorável quanto fantasiosa de sua natureza, de seu caráter. Desse modo, afirmo que o que se descobre nessa aventura assemelha-se à observação schopenhaueriana acerca de nossa intimidade desditosa:

No coração de cada um repousa efetivamente um animal selvagem, apenas à espera de uma oportunidade para bramir com fúria e devastação, na pretensão de prejudicar outros e mesmo, quando se lhe opõem, de aniquilá-los [...]. Em todo caso, denominemo-lo mal radical, o que servirá ao menos àqueles para quem uma palavra substitui uma explicação. Eu, porém, afirmo: é o querer-viver, que, amargurado mais e mais pelo contínuo sofrimento da existência, procura aliviar seu próprio padecimento causando o dos outros.[27]

 

O forte apelo da individuação – eis o moinho de vento dos heróis dostoievskianos – é a raiz do egoísmo, que nessa prosa se apresenta como força demoníaca orientada à afirmação cega de si e expressa seja na insubmissão do titanismo ou em um tipo de acedia propensa ao cinismo. Não importa o viés, o resultado é o mesmo: a personagem aparta-se do outro, acessando-o tão somente para instrumentalizá-lo, abatê-lo, segundo a distorção do pensamento que a impede de reconhecer naquele um seu igual. Quanto mais são reforçadas tais fronteiras estabelecidas por uma visão aferrada ao mundo fenomênico, isto é, quanto mais autocentrada é a personagem, produzindo incansavelmente uma afirmação arrebatada de sua volição que não recua humildemente, mais desdita provocará a si mesma e às demais.

Nesse caso, assim como se procede conceitualmente no pensamento schopenhaueriano, nas imagens da literatura madura de Dostoiévski o desvio inepto da retina, a fantasmagoria que talha a feição do inferno, revela-se no engano de que o mundo se constitui de fenômenos estrangeiros, de que o eu e o outro possuem, essencialmente, divisas determinadas.

REFERÊNCIAS

BRUM, J. T. O Pessimismo e suas Vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo. 6 ed. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015.

FRANK, J. Dostoiévski: os anos milagrosos (1865-1871). Tradução de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: EDUSP, 2003.

KIRPÓTIN, V. Dostoiévski. Tradução de Fátima Bianchi. In Revista Caderno de literatura e cultura russa, n 2, São Paulo, maio 2008, p. 367-81.

PHILIPPS, C. Déterminisme causal et liberté chez Schopenhauer. In Scripta Philosophiæ Naturalis, n7, 2015, p. 21-39.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação, III pt; Crítica à filosofia kantiana; Parerga e paralipomena, cap. V, VIII, XIX, XIV. Tradução de Wolfgang Leo Maar e Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985 (W I; P I).

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. Tomo I. 2ª ed. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2015 (W I).

SCHOPENHAUER, A. Sobre o fundamento da moral. Tradução de Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola. São Paulo: Martins Fontes: 1995 (E I).

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA

1 – Ângela Lima Calou

Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia.

https://orcid.org/0000-0003-2661-9146 • ngelacalou@gmail.com

Contribuição: Escrita – Primeira Redação

CÓMO CITAR ESTE ARTÍCULO

CALOU, A. L. Egoísmo, caráter e liberdade na personagem Raskólnikov: vestígios schopenhauerianos no romance Crime e castigoVoluntas: Revista Internacional De Filosofia., Santa Maria, v. 16, n. 1, e90345, p. 01-15, 2025. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378690345.



[1] FRANK, J. Dostoiévski: os anos milagrosos (1865-1871), p. 189.

[2] DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo, p. 226.

[3] DOSTOIÉVSKI F. Crime e castigo, p. 81.

[4] FRANK, J. Dostoiévski: os anos milagrosos (1865-1871), p. 150.

[5] DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo, p. 269.

[6] DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo, p. 200.

[7] P I, p. 120.

[8] W I, p. 384.

[9] E I, p. 131.

[10] V. Kirpótin menciona uma anotação de Dostoiévski que embasa essa perspectiva. Em seus papéis de rascunho encontra-se uma nota a respeito de um personagem de um poema de Púshkin, onde se lê: “Aliéko – matou. A consciência de ser ele próprio indigno de seu ideal atormenta-lhe a alma. Aí está o crime e o castigo”. (KIRPÓTIN, V. Dostoiévski. In Revista Caderno de literatura e cultura russa. São Paulo, n 2, maio 2008, p. 380).

[11] DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo, p. 472.

[12] DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo, p. 428.

[13] DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo, p. 351.

[14] DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo, p. 352.

[15] DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo., p. 266.

[16] DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo, p. 284.

[17] W I, p. 350.

[18] DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo, p. 423.

[19] W II, p. 720.

[20] É a isto, a propósito, a que se referem as palavras da personagem Márkel, irmão do stárietz Zossima, na última obra escrita por Dostoiévski: “Fica sabendo que, em verdade, cada um é culpado por todos e por tudo. Não sei como te explicar isso, mas sinto que é assim, e até me dá aflição.” (DOSTOIÉVSKI, F. Os irmãos Karamázov, vol. 1, p. 396).

[21] BRUM, J. T. O Pessimismo e suas Vontades: Schopenhauer e Nietzsche, p. 36.

[22] PHILIPPS, C. Déterminisme causal et liberté chez Schopenhauer. In Scripta Philosophiæ Naturalis, n 7: 21-39, 2015, p. 34.

[23] KIRPÓTIN, V. Dostoiévski. In Revista Caderno de literatura e cultura russa.  São Paulo, n 2, maio 2008, p. 370.

[24] KIRPÓTIN, V. Dostoiévski. In Revista Caderno de literatura e cultura russa.  São Paulo, n 2, maio 2008, p. 370.

[25] DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo, p. 183.

[26] DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo, p. 85.

[27] P I, p. 104.