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Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 16, n. 1, e90772, 2025
Submissão: 07/02/2025 • Aprovação: 07/04/2025 • Publicação: 25/04/2025
1 Tradução da carta de Georg Michael Asher
2 A resposta de charles darwin
Traduções
Tradução e comentários sobre uma correspondência entre G. M. Asher e C. Darwin com menções a Schopenhauer
Translation and comments on a correspondence between G. M. Asher and C. Darwin with mentions of Schopenhauer
I Universidade
Estadual de Londrina , Londrina, PR, Brasil
RESUMO
A presente tradução apresenta integralmente o conteúdo de uma breve carta recebida por Charles Darwin em 1879 em que Schopenhauer é amplamente mencionado, exclusivamente naquilo que se refere a sua influência pela filosofia indiana e também à compaixão como fundamento principal da estrutura do seu pensamento moral. A autoria da carta é de Georg Michael Asher, um jurista alemão e provável leitor de Schopenhauer (importante não confundir com David Asher, o discípulo de Schopenhauer). Após a tradução da carta de G. M. Asher, segue ao texto a tradução da brevíssima resposta de Darwin e também comentários meus a respeito de todo o conteúdo.
Palavras-chave: Charles Darwin; Arthur Schopenhauer; Georg Michael Asher
ABSTRACT
The present translation presents the content of a brief letter received by Charles Darwin in 1879, in which Schopenhauer is extensively mentioned, exclusively in relation to his influence by Indian philosophy and also to compassion as the main foundation of the structure of his moral thought. The authorship of the letter is Georg Michael Asher, a German jurist and likely a reader of Schopenhauer (it is important not to confuse him with David Asher, Schopenhauer's disciple). Following the translation of G. M. Asher's letter, the text includes the translation of Darwin's very brief response and also some of my own comments regarding the entire content.
Keywords: Charles Darwin; Arthur Schopenhauer; Georg Michael Asher
1 Tradução da carta de Georg Michael Asher[1]
De G. M. Asher –
Caro senhor,
Você poderia gentilmente examinar a seguinte ideia de como a sociologia humana e animal são reunidas em um mesmo tema; e, se você achar a ideia digna de sua aprovação, envie esta nota com o máximo de palavras suas possíveis para a Macmillan’s Magazine[2].
Como a célula da abelha[3] recebe a sua forma hexagonal? nós sabemos
1) Que o instinto original da abelha é construir uma célula circular.
2) Que a forma hexagonal da célula é exatamente como se várias células circulares em sua forma líquida tivessem sido comprimidas umas contra as outras –semelhante, de fato, às células de espuma de sabão sopradas de um cano; ou seja, bolhas que, por uma compressão mútua, são transformadas de uma forma globular para uma forma angular.
Mesmo no caso da espuma não existe exatamente uma pressão corporal, mas meramente uma mútua repressão de tendências expansivas; e isso também é impossível no caso da abelha. A única explicação possível, portanto, é que ocorra uma repressão intelectual; isso significa que cada abelha sente em sua própria mente o reflexo dos instintos das outras abelhas, deixando espaço para o exercício desses instintos; e assim a célula circular se torna hexagonal por concessão mútua.
Se a abelha estivesse disposta a desviar para a direita ou para a esquerda, a figura da abelha vizinha, cuja província seria infringida, surge na mente da abelha; em consequência disso, surge uma dor intelectual semelhante àquela que nossa abelha sentiria se sua própria província tivesse sido invadida; um lembrete aproximadamente semelhante àquele recebido internamente por um homem disposto a infringir os direitos de outro homem. Todos os direitos humanos nascem, tal como a forma hexagonal das células das abelhas, de concessões mútuas em que as propensões individuais são controladas.
Tudo isso ilustra o princípio da filosofia indiana, introduzido no pensamento moderno por Schopenhauer e do qual ele fez a base de toda filosofia moral e religiosa. Os indianos chamam o sentimento acima descrito de “Tu és eu”[4] e Schopenhauer chama de lei da compaixão.
Schopenhauer, por sua linguagem abstrusa, sua misantropia e seu ateísmo fanático, arruinou o que poderia ter sido uma grande contribuição, e, portanto, não apenas falhou em extrair as conclusões necessárias de suas próprias premissas, mas também chegou a opiniões diametralmente opostas a elas. Nesses erros, nós não precisamos segui-lo; e para o nosso propósito é bastante suficiente entender que o seu princípio “Tu és eu” pertence tanto à sociologia animal quanto para a humana.
Essas duas sociologias estão, no entanto, longe de serem idênticas; como mostra uma investigação mais aprofundada do nosso princípio em sua aplicação tanto a uma quanto a outra dessas sociologias; um fato imediatamente óbvio quando levamos em consideração os seguintes aspectos:
1) O microcosmo humano consiste na faculdade de reproduzir cada individualidade, seja humana ou animal, animada ou inanimada, corporal ou intelectual; ao passo que não temos razão para supor que os animais sejam capazes de reproduzir, em suas mentes, qualquer individualidade que não seja exatamente igual a sua.
2) A reprodução mútua da individualidade dos homens é afetada principalmente, embora não exclusivamente, pela linguagem, uma faculdade que os animais não possuem, justamente porque lhes falta sua base: o microcosmo humano.
3) O princípio humano Tu és eu e, portanto, toda a sociedade humana, só pode ser altamente desenvolvido pela religião.
Repetindo o pedido acima, permaneço à disposição | Prezado Sr. | Respeitosamente | G. M Asher.
2 A resposta de charles darwin[5]
Caro senhor,
Pela minha idade avançada, resolvi não escrever de novo sobre assuntos tão difíceis como a origem dos instintos, sociologia, etc., portanto, não posso atender completamente ao seu pedido. O assunto é muito interessante. No passado, eu fiz muitas observações sobre a maneira em que as abelhas fazem suas células, e apresentei um resumo das conclusões a que cheguei em meu ‘Origem das Espécies’. Penso que não pode haver dúvida que cada abelha considera continuamente o trabalho de suas abelhas companheiras. Também tratei em ‘A origem do homem’ sobre a origem da consciência como sendo derivada do instinto social.
Meus sinceros cumprimentos | Fielmente | Charles Darwin.
Para os estudos que almejam tratar da intersecção entre Darwin e Schopenhauer a presente carta de George Michael Asher é uma importante descoberta, especialmente para somar ainda mais força àquele grupo de textos anteriores que já estabeleciam uma correlação histórica entre o naturalista e o filósofo.
Esses referidos textos são os seguintes:
1) O artigo lido por Schopenhauer, publicado no Jornal Times de 1859, intitulado Darwin e a origem das espécies, escrito anonimamente, mas que posteriormente se descobriu ser de autoria de Thomas Henry Huxley[6].
2) A carta que Adam von Doß questiona Schopenhauer sobre Darwin e também a resposta dada pelo filósofo, confirmando ter tomado breve conhecimento a respeito do naturalista no referido artigo de jornal[7] (cf. GBr, 2008, p. 1587).
3) O artigo de David Asher, intitulado Schopenhauer e o darwinismo[8], que foi comprovadamente lido por Darwin, que fez um apud de um trecho de Schopenhauer citado por David Asher, como acréscimo de segunda edição à importante obra A origem do homem e a seleção sexual (1874). A passagem se trata de um pequeno excerto do capítulo 44 do segundo tomo de O mundo como vontade e representação, àquele nomeado Metafísica do amor sexual. Darwin utilizou o texto para melhor explicar e abonar positivamente o seu conceito de seleção sexual (sobre como durante a conquista amorosa um animal qualquer não está ocupado com os fins individuais, mas inconscientemente ocupado com os fins da espécie). Na tradução brasileira da segunda edição de A origem do homem e a seleção sexual, pode-se ler as seguintes palavras:
No que diz respeito à forma de seleção oposta, isto é, aquela em que são as mulheres que selecionam os homens mais atraentes, embora aconteça que nas nações civilizadas elas podem escolher livremente ou quase livremente – o que não se dá entre os povos bárbaros – a sua escolha é notavelmente influenciada pela posição social e pelos recursos econômicos do homem; além disso, o êxito na vida deste último depende muito das suas energias e capacidades intelectuais, ou do fruto destas mesmas qualidades nos antepassados. Este ponto deve ser tratado esmiuçadamente porque, como diz o filósofo alemão Schopenhauer, 'o fim último de todos os enredos amorosos, sejam eles trágicos ou cômicos, constitui na verdade o mais importante de todos aqueles da vida humana. Trata-se, nada mais e nada menos da criação de uma nova geração... Não é a dor ou o prazer de um indivíduo como tal que está em jogo, e sim uma futura raça humana’[9] [em nota de rodapé: 'Schopenhauer and Darwinism,' in 'Journal of Anthropology,' Jan. 1871, p. 323][10].
4) A presente carta de Georg Michael Asher.
Como informação adicional a esses quatro pontos da intersecção histórica Darwin-Schopenhauer, vale dizer que Schopenhauer também é mencionado outras duas vezes nas correspondências de Darwin. Essas, com uma importância bem menor do que a carta de G. M. Asher. Uma delas é para agradecer ao filósofo Otto Arthur Busch pelo envio do seu livro Arthur Schopenhauer: Beitrag zu einer Dogmatik der Religionslosen. A carta de Busch enviada para Darwin juntamente com o livro infelizmente foi perdida, mas a resposta de Darwin diz: “Estou muito agradecido por sua gentil carta e pelo presente de sua obra sobre Schopenhauer. Farei o possível para lê-la, mas receio que possa ser muito difícil, pois sou apenas um modesto estudante de alemão” (Letter n°. 11019 – grifo meu e tradução minha).
A outra correspondência que se menciona Schopenhauer foi enviada para Darwin por um intelectual austríaco chamado Leopold Sirk. No seu conteúdo havia um tipo de mosaico de ideias sobre preocupações políticas da época, mencionando brevemente Kant e Schopenhauer (este último, escrito com duas letras “p”). A carta não é muito extensa e conta com poucos trechos em inglês e muitos em alemão (e como ficou claro na resposta para Otto Busch, Darwin estava longe de ser um grande leitor de alemão, embora, vale dizer, em sua obra publicada mencione muitos livros alemães). Enfim, a carta de Sirk parecia simplesmente se tratar de uma tentativa em engajar Darwin em debates públicos que ocorriam na época. Schopenhauer é mencionado apenas de um modo periférico e aparentemente com pouca importância. Darwin nunca respondeu Sirk, mas ao vermos a brevíssima anotação feita por ele na carta, fica claro que o empreendimento falhou: ele escreveu marginalmente a lápis: “Odd [esquisito]” (Latter n°. 13195 – tradução minha).
Seguindo as recomendações de Darwin dadas para G. M. Asher em que suas ideias sobre as abelhas e a formação de células hexagonais, vejamos o que é dito em A origem das espécies. No capítulo VIII da sexta e última edição do livro, que é denominado Instinto, há uma subseção intitulada Instinto de construção das células das abelhas. Na seção, Darwin busca defender que os instintos das abelhas (tal como de todos animais), foram modificações ocorridas por seleção natural[11]. Para buscar uma explicação à forma hexagonal das células, o naturalista realizou uma experiência a que descreve o passo a passo e as conclusões.
Darwin colocou, entre dois favos, uma placa de cera lisa que ainda não havia sido trabalhada pelas abelhas, para assim observá-las em sua construção. Elas começaram a cavar a cera formando pequenas bacias circulares com uma distância aparentemente exata uma da outra e com muito cuidado para não incorrerem em risco de perfuração. Depois, quando as bacias atingiram um tamanho ideal e que parecia perfeito a olho nu, elas pararam imediatamente de cavar e passaram a construir paredes lisas entre as bacias, tomando assim a forma hexagonal. Depois disso, Darwin realizou o mesmo experimento, porém com uma placa de cera mais fina e colorida de vermelho, colocado no lado oposto da primeira placa. Observou-se que as abelhas interromperam a escavação mais cedo do que na experiência anterior, evitando assim, fundirem suas células com as do lado oposto, tal como se tivessem previsto a espessura do material e também a profundidade da própria escavação[12].
Conforme os comentários de César Ades sobre essa experiência de Darwin, as abelhas "elaboraram, como fundo, uma placa fina colorida que, Darwin suspeita, teria sido feita de maneira conjugada pelas abelhas que estavam em células correspondentes, de cada lado do favo"[13]. Nas palavras de Darwin, “vários indivíduos trabalham juntos, desde o início, na construção da primeira célula”[14] e o seu corante vermelho aplicado à placa foi espalhado com delicadeza por todo o favo; “com tanta delicadeza como um pintor trabalha com seu pincel”[15], concluindo-se assim, que o trabalho de construção das células “parece manter uma espécie de equilíbrio entre muitas abelhas, todas colocadas, por instinto, à mesma distância umas das outras, todas tentando escavar esferas iguais, para depois construir ou deixar de roer os planos de interseção entre as esferas”[16].
O ponto a que quero chamar atenção é que invariavelmente as abelhas exercem um trabalho de cooperação para criação das células hexagonais e para a composição de toda a colmeia. Nas preleções berlinenses referentes à Metafísica da natureza, Schopenhauer reserva um longo espaço para a discussão das abelhas. O trecho tem início quando o filósofo quer defender que o melhor exemplo para compreender os impulsos industriosos [Kunsttrieb][17] seria observando o reino das abelhas[18]. Ele chega até mesmo a dizer que “a colmeia nos dá a melhor intelecção sobre o impulso cego da natureza ou da vontade”[19].
Embora Schopenhauer não trate especialmente da forma hexagonal das células tal como a discussão travada por Darwin em A origem das espécies e também retratada na correspondência de G. M. Asher, ele expressamente diz que na “colmeia de abelhas cada parte trabalha apenas para a conservação do todo [...] [na colmeia] tudo conspira para o fim comum”[20]. Também no segundo tomo de O mundo como vontade e representação, no capítulo Do instinto e do impulso industrioso, para seguir a ideia de que nas sociedades de insetos a vida de cada parte está subordinada a vida do todo[21], interessantemente pode ser lido o seguinte: “As abelhas adaptam desde o início a sua construção às circunstâncias que encontram, e incidentes que ocorrem, como destruições intencionais, são remediados por elas da forma mais conveniente em cada caso particular”[22]. Já em Sobre o fundamento da moral, é igualmente interessante a passagem em que se diz que “do mesmo modo que um impulso habita as abelhas para construir em comum celas e uma colmeia, também no homem deve haver um impulso para representar conjuntamente uma grande e rigorosa comédia moral mundial”[23].
O que é sugerido por G. M. Asher é que Darwin investigue o conceito tat twam asi adotado por Schopenhauer para fazer uma leitura mais profunda do reino das abelhas: ele parece estar certo de que tal assimilação representaria um ganho (ao menos um ganho filosófico) para os estudos darwinianos. Seguindo o que G. M. Asher parece sugerir, é como se cada abelha pudesse transmitir à outra uma imagem mental que produz um comportamento colaborativo: isso atesta a observação dos seus engenhosos alvéolos, que por conseguinte, também deixa transparecer uma semelhança com o princípio indiano, tat twam asi. Suas ações individuais na construção de uma colmeia seriam uma representação clara da ideia “Tu és eu”. Embora assim seja, G. M. Asher reconhece que o reino dos animais inferiores é muito diferente dos seres humanos, especialmente pela maior consciência de individualidade humana e também pela capacidade de linguagem, que é limitada nos outros animais. Sugere-se ainda, que a religião seria a única forma capaz de fazer com que os seres humanos se unificassem em prol de entenderem o princípio tat twam asi.
Aquilo que G. M. Asher identifica como sendo a lei da compaixão, pelo qual Schopenhauer identifica a ideia de tat twam asi, é transmitido especialmente em Sobre o fundamento da moral. Após expor um trecho dizendo que a individualidade é aquilo que ocorre no mundo fenomênico, isto é, no mundo como representação, Schopenhauer então diz: “Este conhecimento, para o qual, em sânscrito, a expressão corrente é ‘tat twam asi’, quer dizer, ‘isto é tu’, é aquilo que irrompe como compaixão, sobre a qual repousa toda a virtude genuína, quer dizer, altruísta, e cuja expressão real é toda ação boa”[24].
Darwin certamente não estava ciente da dimensão do conceito tat twam asi e nem tampouco de seu conteúdo inegavelmente metafísico. Penso que em certa instância e nas entrelinhas, a mensagem de G. M. Asher pode ser interpretada como uma tentativa de fazer Darwin investigar concepções metafísicas e relacioná-las à evolução das espécies, em especial à evolução dos instintos e da moralidade (a que o próprio, indica na resposta, já ter tratado em demasia em A origem do homem). Em verdade, a compaixão e todas as outras virtudes morais, para Darwin, são meras consequências tardias do instinto de solidariedade [sympathy] que no ser humano se desenvolveu por outras características culturais complexas, mas que nem por isso descarta a primazia da importância da pressão seletiva exercida pela seleção natural: disso resulta não haver nenhuma moralidade cunhada na metafísica.
Em A origem do homem, são abundantes os trechos em que tal ideia fica explícita, aqui, destaco apenas um deles, retirado da tradução da primeira edição. Penso que ele seja suficiente para abonar o que foi dito:
as qualidades morais evoluem, direta ou indiretamente, muito mais devido aos efeitos do hábito, do raciocínio, da instrução, da religião, etc., do que devido à seleção natural, embora se possa atribuir tranquilamente a esta última os instintos sociais, que forneceram a base para o desenvolvimento do senso moral [...] por certo, e infelizmente, [tal conclusão] causará desgosto a muitas pessoas. Todavia, dificilmente haverá alguém que duvide de que descendamos de bárbaros. A primeira vez que tive a oportunidade de assistir a uma festa dos fueguinos, numa região costeira, escabrosa e selvagem, senti uma estranheza da qual nunca me esquecerei, especialmente quando imaginei que cerimônias semelhantes deveriam ser realizadas pelos nossos ancestrais [...]. Quem já viu um selvagem em sua terra natal talvez não sinta vergonha de admitir que corre em suas veias o sangue que herdou de ancestrais tão primitivos quanto aqueles pobres diabos[25].
Em uma visão darwinista, pode-se até dizer que o ser humano só é capaz de sentir compaixão, porque tal sentimento representou, sem dúvida, um ganho adaptativo em favor da maior qualidade e maior tempo de sobrevivência (o que ocorre, também com as abelhas e com toda a natureza).
Sendo assim, seria difícil esperar que Darwin recorresse a um conceito metafísico como tat twam asi para explicar a moralidade, seja a humana ou a das abelhas (mesmo que tenha mostrado algum interesse legítimo pela carta de G. M. Asher). De todo modo, fazer concessões à metafísica não era do perfil de Darwin, principalmente em suas obras publicadas. Digo isso, porque talvez possamos, no futuro, expandir nossas investigações da correlação entre Darwin e Schopenhauer para textos como aqueles do caderno de Darwin, intitulado Notas velhas e inúteis sobre o senso moral e algumas questões metafísicas[26], a que veio a ser conhecido postumamente.
Ainda que o convite de G. M. Asher para que Darwin publicasse suas palavras na Macmillan’s Magazine não tenha sido aceito (pois como se sabe Darwin não publicou nada sobre isso), é de se considerar que a presente correspondência serve especialmente para mostrar que outros já pensavam em uma possível correlação entre Darwin e Schopenhauer e que isso inclusive chegou até o conhecimento do naturalista.
Da posição em que nos encontramos hoje, olhando para o passado e para todos os resultados positivos que o evolucionismo possibilitou para a ciência[27], temos sempre de lidar com a dificuldade que envolve a incompatibilidade entre a física e a metafísica, respectivamente os modos de atuação de Darwin e de Schopenhauer, no entanto e mesmo assim, é possível que a discussão avance para outras reflexões conceituais de correlação especialmente porque devemos nos lembrar que a metafísica de Schopenhauer é reconhecidamente uma metafísica imanente: isso significa que por mais que os sistemas físicos e metafísicos sejam aparentemente inconciliáveis, a metafísica schopenhaueriana favorece a investigação por ter seus fundamentos contidos na natureza.
Mas essas são discussões que fogem ao escopo do presente comentário, portanto, me resta dizer apenas que o que defendo e o que espero poder mostrar com mais desenvolvimento em um futuro próximo e em um trabalho dedicado exclusivamente para isso, é a tese de que a seleção natural darwiniana pode ser considerada e compreendida como um mecanismo de ação da vontade metafísica de Schopenhauer: outros chegaram próximos dessa ideia[28], porém, a meu ver, ela ainda não foi suficientemente detalhada e debatida da maneira que merece.
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CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA
1 – Antonio Alves Pereira Junior
Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); Doutorando em Filosofia (UEL); Professor de Filosofia (UniCesumar)
https://orcid.org/0000-0001-9284-0864 • antonio.alves.pereira@uel.br
Contribuição: Conceptualização, Metodologia, Investigação, Análise Formal, Redação – Rascunho, Visualização.
COMO CITAR ESTE ARTIGO
Pereira Junior, A. A. Tradução e comentários sobre uma correspondência entre G. M. Asher e C. Darwin com menções a Schopenhauer. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 16, n. 1, e90772, p. 14-14, 2025. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378690772.
[1] Todas as correspondências recebidas por Darwin estão organizadas em um site público e numeradas para fins de pesquisa e consulta; trata-se do Darwin Correspondence Project. A presente carta foi recebida por Darwin em 26 de outubro de 1879 e recebe o número 12272. Os grifos e a estrutura de todo o texto foram mantidos conforme às escolhas do próprio autor.
[2] Segundo o site Darwin Correspondence Project, Asher não publicou nada sobre isso na Macmillan’s Magazine. Já Charles Darwin, a partir de sua resposta a essa carta (tal como veremos na sequência), também parece deixar claro que não iria publicar nada.
[3] A palavra célula [cell], tanto aqui como em todas as outras passagens seguintes, refere-se às cavidades feitas pelas abelhas no favo de mel. As células também podem ser chamadas de alvéolos.
[4] Trata-se aqui da frase supramencionada por Schopenhauer, tat twam asi, normalmente versada nas traduções brasileiras para isto és tu. No trecho, G. M. Asher usa “Thou art I [Tu és eu]”. Em inglês, nos estudos schopenhauerianos contemporâneos, é comum o termo ser versado por “that thou art [Isto és tu]” (cf. Cartwright, 2005, p. 169) ao invés de Thou art I, como feito por G. M. Asher. Para saber mais informações sobre o contexto de como a expressão tat twam asi surge originalmente no contexto dos Upanishads, confira: Alves, 2024, p. 69-71.
[5] A resposta de Darwin leva o número 12273, enviada dois dias depois (28 de outubro de 1879).
[6] Veja a tradução do texto na Voluntas: Darwin sobre a Origem das Espécies, de Thomas Henry Huxley – Tradução do texto lido por Schopenhauer, no Jornal Times de dezembro de 1859 (2024).
[7] Para ler a carta de Schopenhauer, confira: GBr, 2008, p. 1587.
[8] Ver a tradução publicada na Voluntas, Schopenhauer e o darwinismo, de David Asher (2023).
[9] Veja o mesmo trecho em Schopenhauer, na tradução de J. Barboza, em: W II, Cap. 44, p. 637.
[10] Darwin, C. A origem do homem e a seleção sexual (2ª ed. 1874), p. 675 – grifo meu.
[11] Não é o meu objetivo aqui, explicar de modo amplo a seleção natural, portanto, para falar de maneira simplificada, ela diz respeito à sobrevivência a partir de uma ampla soma de fatores: a quantidade de alimento disponível em um dado ambiente, a luta para conquistá-lo, a seleção sexual pelos parceiros mais fortes e mais bem adaptados, o clima e até mesmo o isolamento geográfico de uma determinada população. Todos esses fatores, com o passar do tempo, são os responsáveis por causar modificações nas próximas gerações (o que não significa que sejam sempre modificações de melhoramento ou evolução gradual, pois, como Darwin defende, podem ocorrer reversões ou perdas de características ou órgãos que deixam de ser úteis). Essas referidas modificações causadas pela pressão da seleção natural podem ser, além de corporais e físicas, também comportamentais, como é o caso em se tratando das abelhas: as modificações instintivas na forma em que elas, com o tempo, se adaptaram para construir alvéolos hexagonais certamente representou uma vantagem para a espécie e por isso existe sentido no que diz Darwin: “acredito que a abelha comum tenha adquirido seus inimitáveis poderes arquitetônicos por meio da seleção natural” (Darwin, C. A origem das espécies: por meio da seleção natural ou preservação das raças favorecidas na luta pela vida, 2014, p. 305).
[12] Cf Darwin, C. A origem das espécies: por meio da seleção natural ou preservação das raças favorecidas na luta pela vida, 2014, p. 305-306.
[13] Ades, C. Cucos, formigas, abelhas e a evolução dos instintos. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., p. 187.
[14] Darwin, C. A origem das espécies: por meio da seleção natural ou preservação das raças favorecidas na luta pela vida, 2014, p. 308.
[15] Darwin, C. A origem das espécies: por meio da seleção natural ou preservação das raças favorecidas na luta pela vida, 2014, p. 308.
[16] Darwin, C. A origem das espécies: por meio da seleção natural ou preservação das raças favorecidas na luta pela vida, 2014, p. 308.
[17] O referido conceito significa, em linhas gerais, a ideia de que os animais podem trabalhar em direção a uma finalidade que não conhecem e nem foram ensinados: os pássaros que constroem seus ninhos, as aranhas que tecem as suas primeiras teias ou a tartaruga que corre do ovo que recentemente eclodiu, diretamente para o mar. Sobre esse assunto, confira, por exemplo: N, Anatomia comparada, p. 89.
[18] Cf. HN III, Cap. 9, p. 100.
[19] HN III, Cap. 9, p. 101.
[20] HN III, Cap. 9, p. 104.
[21] Cf. W II, Cap. 27, p. 416.
[22] W II, Cap. 27, p. 418. Gostaria de chamar atenção para o fato de que tanto Darwin (no trecho anteriormente citado (cf. 2014, p. 308), quanto Schopenhauer nesta passagem d’O mundo, usam a mesma autoridade como referência intelectual: Francis Huber e seu livro Des Abeilles. Pode-se também pensar que a experiência de Darwin com a cera vermelha pode servir como exemplo de incidente intencional (mencionado por Schopenhauer nesta passagem), dos quais as abelhas se adaptam para a construção perfeita da colmeia.
[23] E II, Cap. 11, p. 102.
[24] E II, Cap. 22, p. 219.
[25] Darwin, C. A origem do homem e a seleção sexual (1ª ed. 1871), p. 546-547 – grifo meu.
[26] O conteúdo do caderno é pequeno e sua investigação ainda precisa ser melhor averiguada. Aparentemente há nele algumas questões que podem convergir em um diálogo com Schopenhauer, no entanto, é bastante questionável o valor que se pode dar a esse caderno, dado que o próprio autor o chama de “inútil”. A palavra inútil [useless], aliás, é grifada por ele duas vezes (cf. darwin-online.org.uk).
[27] Na verdade, não há nenhuma discussão científica séria sobre a veracidade da evolução. A única coisa que está em aberto são as formas pela qual ela ocorre. “A evolução”, conforme muito bem dito por Daniel Everett, “é um fato bem estabelecido. Somente as explicações de como a evolução se parece ou acontece – seleção natural, processos genéticos e árvores de famílias – podem ser chamadas de teorias. Mas a evolução em si não é uma teoria” (Everett. D. Linguagem: a história da maior invenção da humanidade, 2019, p. 39-40).
[28] Veja, principalmente: Baptista e Aldana, 2017; Giaculli, 2017; Lovejoy, 2021; Weng, 1911.