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Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 16, n. 1, e90671, 2025
Submissão: 23/01/2025 • Aprovação: 07/04/2025 • Publicação: 25/04/2025
Traduções
Há uma antecipação da Vontade schopenhaueriana na metafísica de Leibniz?
Is there an anticipation of Schopenhauer's Will in Leibniz's metaphysics?
I Universidade
de São Paulo , São Paulo, SP, Brasil
RESUMO
Nos Fragmentos sobre a História da Filosofia, Schopenhauer afirma que a tese de Gottfried W. Leibniz, segundo a qual matéria e espírito compartilham um mesmo princípio, pode ser vista como um "pressentimento" de sua própria metafísica. O ponto de convergência entre essas duas filosofias residiria na noção de forma substancial, que sugere que o funcionamento da matéria não se limita às leis mecânicas ou químicas, mas deve ser compreendido à luz da metafísica. Neste artigo, proponho explorar os sentidos da afirmação de Schopenhauer, analisando os conceitos leibnizianos de forma substancial, força, harmonia preestabelecida, expressão e mônada. A intenção é evidenciar possíveis paralelos entre esses conceitos e a metafísica da natureza de Schopenhauer, que entende o mundo material como a objetivação da Vontade. Sugiro que o conceito leibniziano de força, central para compreender a forma substancial, abre espaço para um diálogo com a metafísica schopenhaueriana porque aponta para uma atividade metafísica primordial que, embora se exprima na ordem física e possa ser matematizada pelas ciências, não é de natureza física. De maneira análoga, em Schopenhauer, o mundo material é compreendido à luz da metafísica da Vontade e a matéria é o palco que torna perceptível os seus diferentes graus de objetivação.
Palavras-chave: Metafísica; Forma substancial; Vontade
ABSTRACT
In the Fragments for the History of Philosophy, Schopenhauer asserts that Gottfried W. Leibniz’s thesis, which holds that matter and spirit share a common principle, can be regarded as a "presentiment" of his own metaphysics. The point of convergence between these two philosophies lies in the notion of substantial form, which suggests that the functioning of matter is not limited to mechanical or chemical laws but must be understood through metaphysical principles. In this article, I propose to explore the meanings of Schopenhauer’s assertion by analyzing Leibnizian concepts such as substantial form, force, pre-established harmony, expression, and monad. The aim is to highlight possible parallels between these concepts and Schopenhauer’s metaphysics of nature, which views the material world as the objectification of the Will. I argue that Leibniz’s concept of force, essential to understanding substantial form, opens the door to a dialogue with Schopenhauer’s metaphysics because it points to a primordial metaphysical activity that, while expressed in the physical order and capable of being mathematized by the sciences, is not itself physical in nature. Similarly, in Schopenhauer's framework, the material world is understood through the metaphysics of the Will, with matter serving as the stage where the various degrees of its objectification become perceptible.
Keywords: Transcendental optimism; Arthur Schopenhauer; Better consciousness; Eva Kühn Amendola
A crítica de Arthur Schopenhauer à filosofia de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) é bastante conhecida e envolve tanto divergências fundamentais sobre seu próprio projeto filosófico quanto a herança da filosofia crítica de Kant. Uma de suas expressões mais enfáticas está no Capítulo 46 dos Complementos d’O Mundo como Vontade e representação (1819) em que, contra o “sofismo” da tese do “melhor dos mundos possíveis” de Leibniz, Schopenhauer defende que vivemos no pior deles, já que ele é compatível com a maior quantidade de mal possível[1].
O capítulo estende-se em uma longa
argumentação baseada, sobretudo, no sentido metafísico do mundo: a observação
dos fenômenos e a intuição de si apontam para uma atividade primordial,
insaciável e irracional, a Vontade enquanto coisa-em-si. Todo o mundo
fenomênico é, em diferentes graus, a representação desse princípio metafísico,
logo, o sofrimento, o mal e a dor são partes constituintes dele.
Em Leibniz, por sua vez, a fundamentação metafísica dos fenômenos é
feita mediante a noção de infinito positivo designado como Deus e
caracterizado como um ser perfeito cujos atributos de poder, razão, bondade e
vontade são perfeitamente proporcionais. A criação do mundo é resultado do
balanço perfeito entre essas qualidades. Dentre as infinitas ideias de mundos
possíveis na mente de Deus, a escolha da criação de um deles se dá mediante o
critério de razão suficiente[2],
pois, caso contrário, a criação do mundo seria um ato tirânico no qual
poder e vontade se sobrepõem ao conhecimento e à bondade. O conhecimento do
detalhe de todas as ideias faz com que a escolha seja feita a partir dos graus
de perfeição que esses mundos contêm, “cada possível tendo o direito de
pretender à Existência segundo a medida da perfeição que envolva”[3].
Essa escolha prévia baseada na perfeição dos atributos divinos e das criaturas
que são compossíveis leva à célebre afirmação de que o mundo atual é o melhor
dos mundos possíveis e que ele é regido pela lei da harmonia preestabelecida.
Esse é um dos sentidos que podemos entender a afirmação de que a metafísica de Schopenhauer pode ser lida como uma antítese de várias teses leibnizianas[4]. Esse ponto também é ratificado na análise que Schopenhauer faz da filosofia moderna nos seus Fragmentos sobre a História da Filosofia (1851). Ao avaliar algumas doutrinas filosóficas à luz de suas próprias prerrogativas de pensamento, ele destaca que os princípios leibnizianos de harmonia preestabelecida e substância permaneceram longe da verdade que a filosofia moderna pretendia alcançar. Mesmo propondo uma filosofia amparada no método matemático, o que sugeriria que os problemas tivessem resoluções exatas, “sem restos”, o enigma do mundo, objeto principal da metafísica, não pôde ser decifrado por Leibniz e por outros modernos. Isso porque todos eles tomavam o conceito de substância como ponto de partida incontornável de suas análises. Leibniz recebeu a aporia cartesiana do influxo físico entre substâncias radicalmente distintas como herança, e desenvolveu sua teoria das mônadas a partir dela. Na leitura de Schopenhauer, Leibniz propôs, paradoxalmente, substâncias infinitas que eram “ora extensas, ora pensantes ou ambas as coisas ao mesmo tempo, dependendo da circunstância”, e que só podiam se harmonizar com os fenômenos por meio da “lei de harmonia preestabelecida da mônada central”[5].
A
tese da harmonia preestabelecida, junto à noção paradoxal de mônada,
deixa, segundo Schopenhauer, um grande “resto” na adequação da filosofia de
Leibniz com o mundo. Isso porque, como vimos, a noção de harmonia é
consequência da tese do melhor dos mundos possíveis, já que deriva da escolha a
partir do princípio do melhor. Deus, por ser bom e racional, fez com que
previamente todas as criaturas se acomodassem, expressando não só umas às
outras, mas também todo o mundo dos fenômenos de maneira ideal. Assim, defender
a noção de harmonia preestabelecida implica na adesão de um princípio
metafísico racional, benevolente e justo que é diametralmente oposto à proposta
schopenhaueriana de uma metafísica da Vontade.
Além disso, para Schopenhauer, o conceito de harmonia leva a
uma “cisão” do mundo em duas metades completamente distintas e “incapazes de
agir uma sobre a outra”[6].
Ela retira a dimensão do problema da relação entre mundo e representação,
fundamental para a filosofia pós Kant e para o sistema proposto por
Schopenhauer, e o substitui “por um dogma que afirma um mundo corporal e outro
espiritual”[7].
Isso leva o filósofo a considerar que com a postulação do conceito de harmonia
preestabelecida, “tudo é resto” na filosofia de Leibniz[8].
Contudo, mesmo com críticas que atingem o núcleo da metafísica leibniziana, ainda nos Fragmentos Schopenhauer afirma que a tese defendida por Leibniz, de que o material e o espiritual têm um único e mesmo princípio, merece reconhecimento. Da perspectiva schopenhaueriana, essa tese implica em considerar que a matéria não é “absolutamente morta, passiva e isenta de vontade” e não pode ser “reduzida a forças mecânicas e submetida a leis matemáticas”[9]. Ele destaca que o conceito de forma substancial adotado por Leibniz explicita o contrário: são essas leis que devem ter algo espiritual como fundamento. Isso leva Schopenhauer a afirmar que a tese leibniziana de que há um único princípio para matéria e espírito pode ser entendida como “um pressentimento” de sua própria doutrina embora Leibniz não tenha conseguido “ver por trás da névoa tal como era”[10].
Essa última afirmação é, no mínimo, curiosa. Se, por um lado, Leibniz é acusado de sustentar o “sofisma do melhor dos mundos possíveis” que é previamente organizado de maneira harmônica, por outro, ele é exaltado na medida em que definiu que as duas metades que o compõem tinham um único princípio. O conceito de forma substancial indicaria exatamente isso. Ora, se esse princípio é postulado, qual é o sentido da afirmação de que Leibniz “cinde” o mundo em duas metades incomunicáveis, e como, ainda assim, o estabelecimento de um único princípio para matéria e espírito pode ser entendido como o “pressentimento” da metafísica de Schopenhauer?
No texto a seguir, busco responder essas questões pela análise dos conceitos leibnizianos de forma substancial, força, mônada, expressão e harmonia preestabelecida. O conceito de força confere inteligibilidade à noção metafísica de forma substancial e é fundamental para aproximar as duas metafísicas, já que é um conceito que opera no limite entre o físico e o metafísico. Ele nos indica primeiro que para compreender o movimento na matéria é preciso não só da mecânica, mas da dinâmica, e segundo, que há uma atividade primordial metafísica que se exprime na ordem física e pode ser matematizada e teorizada pelas ciências.
Penso que depois dessa exposição será possível refazer o paralelo proposto por Schopenhauer entre aquilo que Leibniz sugere como fundamento comum do mundo material e espiritual e sua própria metafísica da natureza que busca sustentar que o mundo material é a objetivação da Vontade. Na Metafísica schopenhaueriana, a matéria tem um papel central no estudo da essência dos fenômenos, já que é por meio da posse dela que os graus de objetivação da Vontade se tornam visíveis. Tendo isso em vista, proponho também analisar brevemente o Segundo Livro d’O Mundo como Vontade e representação, a fim estabelecer possíveis pontos de confluência entre suas teses e as de Leibniz, para então elucidar a associação feita nos Fragmentos.
A análise de Schopenhauer sobre a herança que René Descartes legou à filosofia moderna é bastante precisa. Desde a publicação das Meditações concernentes à Primeira Filosofia nas quais a existência de Deus e a distinção do real entre a alma e o corpo do homem são demonstradas[11], em 1641, a filosofia ocidental passou a lidar com o dilema entre a subjetividade do sujeito do conhecimento e a objetividade do mundo. A deliberação a respeito da essência do mundo material foi uma de suas consequências e a posição de Leibniz a respeito das substâncias pode ser entendida como uma reelaboração do problema legado por Descartes.
Em Descartes, a substância pensante
é resultado irredutível do processo de dúvida proposto no início das Meditações
metafísicas e sua existência é a primeira certeza indubitável.
Pensamento e ser são identificados como uma só coisa. A essência do mundo
material, por outro lado, é garantida por meio das ideias inatas da matemática
que têm, por sua vez, a objetividade e a veracidade garantidas por Deus. É por
meio da ideia de extensão geométrica que a identidade da matéria se
preserva, independentemente das mudanças sensíveis dos corpos. Ela garante,
portanto, a objetividade do mundo material. O mundo físico enquanto plenum
material só pode ser conhecido clara e distintamente por meio da ideia de extensão.
O mecanicismo proposto por Descartes sustenta que a matéria só se diversifica
pelo movimento, que é a translação de uma parte da matéria ou de um corpo para
aquelas que lhe são imediatamente contíguas. Quando uma parte age, ela
desencadeia uma série de outros movimentos naquelas que estão próximas e o
choque ou contato entre elas gera uma diferenciação entre os corpos. Essa
translação é sempre proporcional e imutável em cada uma das partes da matéria
porque é determinada por Deus, que conserva a mesma quantidade de movimento no
mundo.
Entre res cogitans e res extensa há, portanto, uma distinção real. O termo, que remete aos escolásticos, é usado para explicitar a tese de que corpo e alma são realmente diferentes e independentes. Nos Princípios de Filosofia (1644), Descartes esclarece que “duas substâncias são realmente distintas uma da outra pelo fato de podermos conceber clara e distintamente uma delas sem pensar na outra[12]”. Substâncias cuja essência pode ser estabelecida sem referir-se a outra, tal como ocorre com o corpo e a alma, resulta não só na possibilidade de concebê-las separadamente, mas também na tese de que elas são ontologicamente, logo, realmente distintas.
Ainda assim, mesmo com essa distinção,
Descartes propõe que há uma conjugação entre essas duas substâncias. Mesmo que
tudo ocorra no mundo natural por meio das leis da mecânica, a alma, imaterial,
de alguma maneira afeta e é afetada pelo corpo, mesmo que esses movimentos
sejam, nela, apetições e pensamentos[13].
Esse influxo é destacado nas Meditações metafísicas, quando o filósofo
analisa a faculdade da imaginação e percebe que o sentimento de mudar de
posição ou lugar não pode ter o cogito, substância espiritual, como
causa. Atrelado a isso, a inclinação natural nos persuade e ensina que há uma
conjugação entre corpo e espírito e que os corpos existem visto que produzem
esses sentimentos. O entendimento, entretanto, não pode conhecer o corpo como
faz com o espírito, pois trata-se de duas naturezas distintas.
As considerações de Descartes a respeito do objetivo e do
subjetivo, da essência do mundo material e da posição do sujeito em relação a
ele contou com diversos discípulos, opositores e reformadores. Gottfried
Wilhelm Leibniz insere-se nessa discussão sobretudo a partir do Sistema novo
da natureza e da comunicação das substâncias[14],
publicado no Journal des Savants, em 1695, e na Monadologia
(1714), que permaneceu inédita até sua morte, em 1716. Nesses textos, as noções
de forma substancial, força, bem como a de harmonia preestabelecida,
expressão e mônada surgem como alternativas às explicações
cartesianas.
Na perspectiva leibniziana, a reforma realizada pela filosofia natural moderna, sobretudo a partir das teses de Descartes, foi longe demais. É inadmissível reduzir o mundo material à ideia geométrica de extensão e explicar todos os fenômenos naturais por meio do mecanicismo. Essa redução é equivocada tanto no âmbito da Física, já que os fenômenos seriam completamente diferentes se os corpos obedecessem apenas às leis do choque e fossem meramente res extensa[15], como também é um erro filosófico, na medida em que não considera a finalidade da natureza nem a diferença entre as máquinas artificiais e as orgânicas. Tendo em vista esses dois problemas, o autor sugere que a natureza seja interpretada não apenas a partir dos conceitos da mecânica e da geometria, capazes de descrever os movimentos e mensurar os corpos, mas também da dinâmica e da metafísica, que consideram a razão e a finalidade pela qual eles se movem.
Sobre o primeiro equívoco, Leibniz nota que, no mundo físico, a extensão geométrica implica em massa extensa que é passiva e infinitamente divisível e, portanto, não pode ser a essência de uma substância[16]. Toda substância deve ser una, ativa e indestrutível. Se é assim, a massa, que não é una e não contém em si a causa de suas próprias mudanças, não pode ser o atributo essencial de um ser. Leibniz também confronta a afirmação cartesiana de que, embora corpo e alma sejam realmente distintos, eles estejam unidos e se influenciem.
É por esse motivo que ele resgata a noção aristotélica de forma substancial e propõe dar a ela um caráter inteligível a partir do conceito de força [vis]. Ele sustenta que a “natureza das formas substanciais consiste na força”[17] que “não contém apenas o ato ou o complemento da possibilidade, mas ainda uma atividade original” da qual se segue “algo de análogo ao sentimento e ao apetite”[18]. Tendo isso em vista, Leibniz as concebeu “à imitação da noção que temos das almas”[19]. A força é o “princípio absoluto da composição das coisas”, possui algo de vital e uma “espécie de percepção”[20]. Ela difere da mera potência, porque não é apenas uma possibilidade de agir próxima, que ainda depende de um estímulo externo para ser atualizada. Ela “contém uma espécie de ação interna e está entre a faculdade de agir e a própria ação; envolve um esforço, e por si mesma se direciona para a ação, sem precisar de auxílio”[21].
A defesa de uma substância dotada de princípio interno de ação também é sustentada na Monadologia, embora o vocabulário seja reelaborado. Ali, Leibniz retoma a tese de que a natureza das substâncias/mônadas é a força ativa primitiva, isto é, o princípio interno de ação que faz com que as mônadas tenham percepção e autonomia[22]. Todas as ações são, para as mônadas, percepções, e a passagem de uma percepção a outra ocorre por “seus próprios meios”, já que nenhuma substância interfere em outra. A percepção dessas mônadas leva a expressão de todo o universo a partir de seu próprio ponto de vista, contudo, posto que são criaturas, a expressão do universo ocorre de maneira confusa, enquanto a de seu corpo e de coisas próximas ocorre de maneira mais distinta.
Em ambos os textos, a força é um conceito que se situa no limite entre o físico e o metafísico, já que é tanto um princípio estruturante e fundamental quanto pode ser matematizado a partir de alguns de seus efeitos físicos estudados pela dinâmica (f = mv²). Nas ciências, o conceito de força implica na negação da ideia cartesiana de que os corpos se diferenciam por meio do choque e do movimento. Leibniz propõe que os corpos são elásticos e preservam sempre a mesma quantidade de força, já que ela é tanto a tendência quanto a razão pela qual eles se movem. Do ponto de vista metafísico, a força confere a uma coisa o estatuto de substância porque é por meio dela que a autonomia e vitalidade se efetuam.
Nos corpos orgânicos (animais humanos
e não humanos), a força primitiva é idêntica à forma substancial ou
alma que confere a eles uma unidade substancial e, no caso dos humanos,
a noção de um eu que permanece mesmo com o fluxo constante da matéria
extensa dos organismos. O corpo orgânico, tal como o “navio de Teseu”, muda a
cada instante, mas a forma substancial, noção metafísica, garante a ele
uma unidade e o diferencia dos demais corpos[23]. No vocabulário
da Monadologia, o corpo orgânico é dotado de uma mônada dominante
cuja percepção mais distinta que as demais garante a unidade dele mesmo com as
transformações a que está sujeito[24].
Se esse princípio de vitalidade e ação é imaterial e a massa
extensa não pode ser uma substância, Leibniz concede que não há uma influência
física entre forças primitivas e os fenômenos materiais, tampouco união.
A comunicação que acreditamos ver entre as substâncias e os fenômenos é uma
relação de expressão e de harmonia preestabelecida.
O conceito de expressão indica que há uma relação biunívoca entre força primitiva e fenômeno, ou seja, uma relação constante e regrada entre “x” termos que se correspondem, embora não haja semelhança entre eles. Trata-se de uma analogia entre termos que ocorre de modo invariável. A natureza da substância é representativa, o que significa que ela é “capaz de exprimir os seres fora dela por meio da relação de seus órgãos”[25]. A mônada fundamenta os fenômenos por meio de sua natureza representativa de tal maneira que eles podem ser “verdadeiros” porque a tem como fundamento.
É possível perceber que a expressão envolve o princípio da harmonia preestabelecida porque, embora as substâncias imateriais executem suas ações por sua própria espontaneidade, seus fenômenos, regidos por leis físicas, se harmonizam. Na correspondência com Arnauld, anos antes da escrita do Sistema novo, Leibniz já indicava que a lei da harmonia estava envolvida na correspondência entre os movimentos do corpo e as percepções ou pensamentos na alma e vice-versa[26]. Assim, ainda que cada substância/mônada exprima todo o universo e Deus, ela exprime seu corpo mais distintamente do que todos os demais, e este, considerado em sua extensão, responde às leis físicas.
Desse modo, as noções de mônada e forma substancial têm a função de indicar que a matéria extensa tem um princípio estruturante que é metafísico, qual seja, a força. Além disso, elas também cumprem a tarefa de garantir unidade aos corpos orgânicos. A metafísica leibniziana indica, portanto, que, embora os fenômenos possam ser descritos pelas leis da física, eles só encontram sua significação completa quando são associados a noções metafísicas.
No Segundo Livro d’O Mundo como Vontade e representação, Schopenhauer, assim como Leibniz, critica a redução da natureza feita pelas ciências naturais. Ele divide essas ciências entre morfologia e etiologia: a primeira trata da identificação, descrição e classificação das figuras permanentes da natureza, enquanto a segunda indica como uma mudança condiciona outra por meio da lei de causa e efeito. A etiologia demonstra a ordem regular segundo a qual os fenômenos se produzem no tempo e no espaço conforme uma regra fixa. Essas explicações sempre pressupõem uma essência que é apenas indicada pelo nome de força natural e que é derivada de leis naturais. Isso implica que a própria força que se manifesta, a natureza íntima dos fenômenos constantes e regulares, “é para ela [etiologia] um segredo que não lhe pertence”[27] ou uma qualitates occultae[28]. O mesmo ocorre com o estudo da morfologia: a força vital é pressuposta embora não se saiba o que ela é nem porque se manifesta em plantas e animais de determinada maneira.
A limitação do discurso científico não seria um problema se não fosse acompanhada da constante tentativa de reduzir o mundo orgânico e inorgânico ao quimismo, à eletricidade e ao mecanicismo. Schopenhauer observa que a “etiologia de todos os tempos” tendeu para essa redução e sua gênese remete ao mecanicismo, à geometria e à aritmética, podendo ser identificada desde as propostas de Demócrito sobre os átomos e a de vórtice de Descartes até a física mecânica de George Louis Lesage. Essa tradição etiológica foi, no século XIX, associada ao materialismo e a morfologia a incorporou como maneira de “explicar os fenômenos da vida a partir de forças físicas e químicas e estas, por seu turno, a partir do fazer-efeito mecânico da matéria, posição, figura e movimento de átomos”[29].
A redução das forças ao movimento suprime “a verdade imediatamente certa de que todo movimento voluntário e involuntário é fenômeno de um ato da vontade”[30]. Assim, na medida em que Schopenhauer propõe fazer uma metafísica da natureza e não uma ciência, ele se dispõe a tratar exatamente desse fundamento “incondicionado” pressuposto por ela. Contudo, ao contrário dos modernos, que partiram da noção de substância, ele analisa o corpo individual como ponto de partida de sua metafísica tendo em vista a distinção fundamental entre os fenômenos e a coisa-em-si, entre o que se manifesta e aquilo que possibilita essa manifestação.
Segundo ele, o corpo [Leib] é a única coisa que se nos apresenta, ao mesmo tempo, como representação e Vontade[31]. O indivíduo só é sujeito do conhecimento porque tem antes, como condição necessária, a existência de um corpo que “tem suas raízes no mundo”[32] e as modificações dele são o ponto de partida do entendimento para a intuição do mundo. O corpo aparece tanto como um objeto fenomênico, isto é, uma representação, quanto como Vontade e, por isso, é a chave para a compreensão do enigma do mundo. Se de um lado ele é fenômeno, de outro ele aponta para algo fora do campo da representação, a coisa-em-si. Cada movimento corporal, seja ele voluntário ou não, é ao mesmo tempo “ato real da Vontade”[33], logo, o corpo pode ser entendido como uma Vontade objetivada, ou seja, tornada perceptível para a consciência.
É pela analogia entre o corpo individual e a natureza que Schopenhauer se refere às objetivações da Vontade. Enquanto representação, ela está submetida ao princípio de razão suficiente que conta quatro raízes: causalidade, conceitos, intuições a priori e lei de motivação. Os objetos da primeira classe são regidos por três formas de causalidade [Kausalität]: a causalidade [Ursächlichkeit], que rege os objetos do reino inorgânico; a excitação [Reiz], que diz respeito ao reino orgânico; e o motivo [Motiv], que se refere às ações humanas. Cada uma delas funciona como base conceitual que possibilita – do ponto de vista do conhecimento – compreender a Vontade como essência de todas as atividades que qualificam os fenômenos.
Sendo
assim, a objetidade da Vontade ocorre sob diferentes formas e graus. Entre ela
e os fenômenos particulares, como o corpo individual, há uma espécie de etapa,
uma exigência, não da Vontade – que como coisa-em-si é totalmente
diferente de suas representações –, mas do processo de constituição das
representações, isto é, da objetivação dela. Essa etapa é a Ideia. Fora
do princípio de razão suficiente, ela representa a unidade da Vontade,
“espelha esta unidade no fenômeno”[34].
Aquilo que há de essencial nos fenômenos deve-se ao fato de que neles se revela
a Ideia, que é a objetidade adequada da Vontade. Os fenômenos
individuais são suas objetidades inadequadas, posto que já se encontram
submetidos ao princípio de razão suficiente e, portanto, ao conhecimento
mediato segundo suas formas a priori de espaço, tempo e
causalidade [Kausalität]. Contudo, dado que a ideia está fora do princípio
de razão, ela é insuficiente para explicar o processo de individualização
dos fenômenos, logo, é preciso que entre Vontade, Ideia e fenômeno haja mais um
“mediador”.
É nesse sentido que o conceito de matéria se torna
fundamental para a metafísica da natureza de Schopenhauer. Se, por um lado, ela
é definida na primeira edição de O Mundo como Vontade e representação
como causalidade e, consequentemente, como submetida ao princípio de razão
suficiente, a partir da segunda edição do livro o conceito passa a ser
pensado por meio da compreensão de que a matéria deve viabilizar tanto a
sucessão dos fenômenos quanto deve ser o “elo de ligação entre a ideia e o
fenômeno” e, portanto, deve ser entendida “em termos de substrato”[35].
Schopenhauer utiliza, assim, dois sentidos no uso do termo matéria. Ela é Stoff quando é pensada como a perceptibilidade do espaço e tempo, a ligação de ambos por meio da causalidade. Nesse sentido, ela é a mudança de diferentes estados [Zustände] que a qualificam e a formam como fenômeno. Dentro do registro kantiano de representação, Schopenhauer define Stoff como uma realização do entendimento.
Por outro lado, ela é Materie e se configura como “uma abstração que, não sendo dada em nenhuma experiência, é pressuposta em todas elas”[36]. Enquanto o primeiro sentido de matéria pode ser intuído pelo sujeito do conhecimento porque está submetido ao princípio de razão suficiente, a Materie não o pode porque ela é uma pressuposição para a própria experiência. Ela é um conceito, ou seja, uma realização da razão sobre a noção de matéria que se associa à noção de substância ou substrato sem forma e sem qualidade ou ainda como uma atividade em geral. Como consequência, é possível considerá-la como o “correlato” da Vontade no plano da representação:
A essência da matéria [Materie] consiste em fazer-efeito: a matéria é o fazer-efeito mesmo, in abstracto, portanto o fazer-efeito em geral, à parte toda diversidade dos modos de efeito: ela é absolutamente causalidade. Justamente por isso, ela mesma, conforme sua existência, não está submetida à lei da causalidade, logo, é irascível e imperecível: do contrário, a lei de causalidade seria aplicável a si mesma[37].
Como Stoff, a matéria é acidental e seus
estados consistem na ligação do espaço e do tempo através da causalidade. Ela
é, como Materie, o elo de ligação entre a Ideia e o fenômeno. É na
medida em que os graus de objetivação da Vontade lutam pela Materie que
ela se torna “matéria formada”, ou seja, Stoff, e, consequentemente, Vontade
objetivada. Enquanto Materie, ela é a “arena [Tummelplatz] em que
os graus de objetividade da Vontade lutam por dominação”[38].
Ela pode ser entendida, portanto, como uma potencialidade apta a se atualizar
em diferentes formas e qualidades[39].
As forças naturais são classificadas como o grau mais baixo
de objetidade da Vontade. A causalidade [Ursächlichkeit] ordena o
aparecimento delas em conformidade com a distribuição do espaço, tempo e
matéria determinando, portanto, os limites dos fenômenos das forças naturais
que se distribuem na posse da matéria. Elas disputam a posse pela matéria
[Materie] e o domínio temporário sobre ela a partir de formas e
qualidades específicas. É assim que a matéria [Stoff] torna
perceptível o ímpeto inconsciente, uma espécie de inquietação essencial que a
põe em movimento específico.
Tendo isso em vista, fica claro que uma lei da natureza, matematizada e descrita pelas ciências etiológicas, sobretudo a Física, é apenas a “relação da ideia à forma dos seus fenômenos”[40], ou seja, a relação entre a força natural e as formas do conhecimento a priori do espaço, do tempo e da causalidade. É por isso que Schopenhauer distingue forças e leis da natureza e destaca que as primeiras “jamais podem ser chamadas de efeitos ou causas” porque elas são “as condições prévias e pressupostas de qualquer efeito ou causa, mediante os quais a sua essência íntima se desdobra e manifesta”[41].
Se, no mundo inorgânico, a Vontade se objetiva por meio das forças naturais que, através da causa [Ursache] disputam a posse temporária da matéria [Materie], no mundo orgânico, sua objetivação ocorre não só por meio delas, mas também pela força vital, guiada pela excitação [Reiz]. A excitação se diferencia da causa porque nela os efeitos produzidos pela causa não são proporcionais entre si. A causa diz respeito aos corpos inorgânicos, enquanto a excitação, aos organismos[42]. Trata-se de um grau mais elevado de objetidade da Vontade que adiciona um nível de conflito na posse pela matéria. A força vital não lida “diretamente” com a matéria, mas "mantém coesas e dirige" as outras forças naturais para conservar a vida que é definida em termos de “preservação de uma forma por meio da troca de matéria”[43]. Ela “guia” a matéria tendo em vista a preservação e reprodução de uma determinada forma e age independente da consciência ou da causalidade mecânica, conferindo a ela a capacidade de sensibilidade e reprodutibilidade. Esse é um dos sentidos da afirmação de Schopenhauer de que a forma substancial aristotélica[44] designa exatamente aquilo que ele mesmo nomeia de “grau de objetivação da Vontade em uma coisa”[45].
Ainda assim, cabe ressaltar que embora a força vital seja diferente das forças naturais dado o grau de objetidade da Vontade que representa, ambas agem conforme sua essência, isto é, como representação da Vontade enquanto coisa-em-si. Não há diferença entre matéria orgânica e inorgânica, a não ser o fato de que diferentes forças agem nelas, organizando-as de acordo com diferentes fins, a saber, a resistência a graus inferiores de força e a manutenção da vida por meio da espécie, respectivamente. Por meio da força vital, um grau de complexidade é adicionado ao ímpeto e inquietação essencial a todas as representações: no mundo orgânico é preciso um esforço coerente e organizado para que a matéria seja utilizada de tal maneira a compor um organismo que se autorreplica por meio da reprodução de sua espécie.
A metafísica da natureza proposta por Schopenhauer destaca a limitação do materialismo vulgar do discurso científico e aponta que ela ocorre exatamente porque as ciências consideram as condições isoladas dos fenômenos sem remetê-los à ideia de finalidade. A etiologia tende a eleger “uma força natural como origem de todas as outras”[46], pretendendo que o enigma do mundo seja resolvido por um cálculo. Esse foi, por exemplo, o erro de todos os que, como Descartes, “remeteram o movimento dos corpos ao impacto de um fluido e as qualidades à conexão e figura procurando explicar tudo na natureza como fenômeno da impenetrabilidade e coesão”[47]. O mesmo ocorre na morfologia que pressupõe “que o organismo é apenas um agregado fenomênico de forças físicas, químicas e mecânicas que casualmente reunidas geram um organismo”[48]. O equívoco é, portanto, remeter os graus mais elevados de objetidade da Vontade, como os organismos, aos mais baixos, a saber, às forças naturais.
Antes de tratar da identificação feita por Leibniz de um denominador comum da matéria e do espírito que seria o pressentimento da metafísica schopenhaueriana, a primeira coisa que podemos notar é que ambos fazem da crítica às ciências/filosofias naturais um ponto de partida para o desenvolvimento de suas teorias. Em certa medida, os dois denunciam as sucessivas tentativas de redução da natureza a conceitos derivados da matemática. Leibniz acusa o mecanicismo cartesiano de reduzir a natureza a uma “oficina de um artesão”[49] incapaz de mostrar tanto sua finalidade quanto de explicar o movimento dos corpos e a diferença entre os organismos e os demais corpos. De maneira semelhante, Schopenhauer nota que as ciências que ou descrevem formas ou que explicam mudanças da natureza através de leis perdem de vista a significação última do motivo pelo qual estas são da maneira que são. Fixadas nas causas que só podem determinar “o ponto de exteriorização de cada força no tempo e no espaço”, as ciências não alcançam “a essência íntima da força que se exterioriza”[50].
É a partir da crítica à filosofia natural que Leibniz propõe um único princípio ao mundo material e espiritual. Ao negar que a massa extensa possa ser considerada uma essência, o filósofo resgata o conceito aristotélico de forma substancial e, posteriormente, de mônada a fim de indicar que é preciso que o mundo físico seja remetido à metafísica. A força primitiva é o fundamento metafísico da extensão e tem uma natureza representativa capaz de exprimir os fenômenos materiais. Ela é a tendência tanto à ação quanto à vida que se exprime em tudo e se desdobra no tempo e no espaço.
De maneira semelhante, Schopenhauer indica que a matéria pode ser considerada a partir de um duplo ponto de vista. De um lado, como Stoff, ou seja, como perceptibilidade do espaço e do tempo e da dominação sucessiva de forças naturais que lhe dão diferentes qualidades e formas, e de outro, como Materie, que é a condição necessária a priori para que os graus de objetivação da Vontade se tornem visíveis. Nesse sentido, a matéria é o palco onde as manifestações da Vontade se efetuam. Todo fenômeno é um grau de objetidade da Vontade em um processo crescente de individualização.
Assim, em certa medida, tanto para Leibniz quanto para Schopenhauer, o mundo fenomênico deve ser remetido a uma realidade não fenomênica que se exprime ou se objetiva de alguma maneira. Embora para Leibniz essa realidade seja definida como imaterial e substancial e para Schopenhauer seja a Vontade enquanto coisa-em-si, em ambos os casos, o mundo material e o espiritual têm um único e mesmo princípio. As noções de expressão e objetivação permitem uma aproximação entre essas teses metafísicas. Nesse aspecto, a força de que trata Leibniz pode ser vista como o “pressentimento” da metafísica da Vontade na medida em que é o fundo metafísico pelo qual tudo se exprime, inclusive os fenômenos materiais, tal como a Vontade é o fundamento de todas as representações, inclusive da matéria.
Reconhecida a partir dos efeitos nos corpos, Leibniz destaca que, nos organismos, a força é idêntica à forma substancial ou mônada dominante já que neles a unidade permanece, mesmo com as mudanças da massa extensa no decorrer do tempo. De maneira semelhante, para Schopenhauer a forma substancial tem a função de conservar a forma de um organismo ao longo do tempo mesmo tendo em vista sua manutenção por meio da espécie.
Ainda assim, cabe notar que, para Leibniz, a admissão da força e das formas substanciais implica uma perspectiva vitalista do mundo. Tudo é vivo na natureza já que tudo é fundamentado pela força capaz de exprimir os fenômenos e de perceber, em diferentes graus, todo o universo. Em Schopenhauer, a metafísica da natureza não resulta na conclusão de que tudo é vivo, mas, ao contrário, destaca que a vida, definida como a permanência da forma em detrimento das mudanças da matéria [Stoff], é apenas uma objetivação da Vontade própria aos objetos que estão submetidos a excitação.
Além
disso, Leibniz tomou a expressão da força primitiva como algo
regrado, o que implicou na hipótese de que o princípio ordenador do mundo era o
de harmonia preestabelecida. É por isso que Schopenhauer indica as
limitações da tese leibniziana. Embora seja digna de reconhecimento porque
sustentou que a matéria não era “morta e passiva” porque era expressão de
uma realidade espiritual, a tese implicou que essa expressão fosse
racional, harmoniosa e invariável. Leibniz foi induzido ao erro exatamente
porque “estabeleceu como fundamento e conditio sine qua non [condição
indispensável] de todo o espiritual o conhecimento em vez da vontade”[51].
Ao fazer da harmonia uma implicação necessária à noção de expressão,
Leibniz submeteu a força primitiva àquilo que é próprio da
representação: o princípio de razão. Isso impossibilitou a conclusão de
que o fundamento metafísico do mundo é infundado, irracional e insaciável, e
levou a uma “inadequação” com o mundo tal como ele se nos apresenta.
Embora Leibniz fosse um crítico da redução da natureza feita pela
filosofia natural, ele buscava uma conciliação entre o discurso filosófico e a
razão científica, o que o levou a considerar que a relação entre a realidade metafísica
e o mundo fenomênico era ordenada e o princípio de harmonia preestabelecida
era o único capaz de “se adequar em tudo à razão, não deixando nada que lhe
possa ser oposto”[52].
Na metafísica schopenhaueriana, por outro lado, a Vontade predomina sobre a
razão e é nela que deve ser buscado o “fundamento explicativo da finalidade da
natureza”[53].
Para Schopenhauer é impossível sustentar, “como nas opiniões correntes, que a
Vontade é um acidente do conhecimento e, portanto, da vida”[54].
Pelo contrário, ele propõe uma inversão, até então inédita na História da
Filosofia, de que “a vida é apenas um dos fenômenos da Vontade e o conhecimento
é um acidente da vida, já que é específico dos humanos. A própria vida é um
acidente da matéria e esta, por sua vez, como vimos, é a perceptibilidade dos
fenômenos da Vontade”[55].
Por último, cabe indicar também que o registro crítico pós Kant da filosofia de Schopenhauer traz um limite epistemológico à sua metafísica. Embora ele determine o que é a coisa-em-si, o repertório crítico o obriga a permanecer no campo da representação e sua descrição da Vontade é muito mais negativa do que afirmativa. Como nota Brandão, “o sentido da concepção de mundo em Schopenhauer é justamente preservar a especificidade do ideal face ao real (ou da representação face à Vontade), é apresentar o mundo sob um duplo ponto de vista”[56]. Leibniz, por sua vez, visto que fundamenta sua metafísica na semelhança entre a razão humana e a divina, pode tratar da “realidade” das coisas. Esse é um dos motivos que levam Schopenhauer a sustentar que a ideia de harmonia preestabelecida conduz ao dogmatismo.
Assim, depois de considerar alguns aspectos da metafísica leibniziana, é possível compreender porque Schopenhauer afirma nos Fragmentos que embora Leibniz tenha se aproximado da verdade, ao estabelecer que matéria e espírito têm um único princípio, ele não pôde “ver por trás da névoa tal como era”. Leibniz, como boa parte da tradição filosófica ocidental, partiu da representação e do princípio de razão para conhecer o mundo e não da Vontade, tomando, assim, a representação como a coisa-em-si.
Agradeço ao professor Eduardo Brandão pela disposição e auxílio durante a escrita deste artigo e à Fapesp pelo financiamento do projeto de pesquisa nº 2023/15475-6.
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1 – Beatriz Cardoso Silveira
Mestranda pelo departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (DF-USP)
https://orcid.org/0000-0002-2413-552X • beatriz.cardoso.silveira@gmail.com
Contribuição: Escrita – Primeira Redação
Silveira, B. C. Há uma antecipação da Vontade schopenhaueriana na metafísica de Leibniz?. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 16, n. 1, e90671, p. 22-22, 2025. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378690671.
[1] W II, p. 695.
[2] O princípio é resumido na Monadologia nos seguintes termos: “nada pode ser tido como verdadeiro ou existente sem que haja uma razão suficiente pela qual ele é assim e não de outro modo. Ou seja, esse princípio indica não só a exigência de uma razão para que algo exista, mas também exige que essa razão elucide porque a coisa é de um jeito e não de outro”. (Leibniz, G. W. Monadologia, p. 145).
[3] Leibniz, G. W. Monadologia, p. 189.
[4] Cf. Salviano, J. Schopenhauer, os afetos e o pior dos mundos possíveis. Voluntas: Revista Internacional De Filosofia, Santa Maria, Florianópolis, Vol. 12, N. 03, p. 01-13, 2022. DOI: 10.5902/2179378665897.
[5] P I, § 12, p. 108.
[6] P I, § 5 p. 08.
[7] P I, § 5, p. 09.
[8] P I, § 12, p. 108.
[9] P I, § 12, p. 108.
[10] P I, § 12, p. 110.
[11] Citado doravante como Meditações metafísicas.
[12] Descartes, R. Princípios de filosofia, p. 97.
[13] Cf. Descartes, R. As paixões da alma. 2ª ed. Introdução de Gilles-Gaston Granger, prefácio e notas de Gérard Lebrun, tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
[14] Citado doravante como Sistema novo.
[15] Cf. Leibniz, G. W. God. Guil. Leibnitii. Opera Philosophica quae exstant latina gallica germanica omnia. Berlin: Eichler, 1840, p. 112.
[16] Leibniz, G. W. Sistema novo da natureza e da comunicação das substâncias, p. 17.
[17] Leibniz, G. W. Sistema novo da natureza e da comunicação das substâncias, p. 17.
[18] Leibniz, G. W. Sistema novo da natureza e da comunicação das substâncias, p. 18.
[19] Leibniz, G. W. Sistema novo da natureza e da comunicação das substâncias, p. 19.
[20] Leibniz, G. W. Sistema novo da natureza e da comunicação das substâncias, p. 24.
[21] Leibniz, G. W. God. Guil. Leibnitii. Opera Philosophica quae exstant latina gallica germanica omnia, p. 122.
[22] Leibniz, G. W. Monadologia, p. 133.
[23] Leibniz, G. W. Sistema novo da natureza e da comunicação das substâncias, p. 23.
[24] Leibniz, G. W. Monadologia, p. 144.
[25] Leibniz, G. W. Sistema novo da natureza da comunicação das substâncias, p. 25.
[26] Leibniz, G. W. Discours de métaphysique et correspondance avec Arnauld, p. 81.
[27] W I, § 17, p. 152.
[28] W I, § 24, p. 182.
[29] W I, § 24, p. 183.
[30] W I, § 20, p. 166.
[31] Sigo a sugestão do tradutor da edição usada neste trabalho, Jair Barbosa, de grafar Vontade com “V” maiúsculo quando me refiro à Vontade como coisa-em-si e com “v” minúsculo quando se trata da vontade individual, ou seja, uma objetidade da Vontade. (W I, p. 169).
[32] W I, § 18, p. 156.
[33] W I, § 18, p. 157.
[34] Brandão, E. A concepção de matéria na obra de Schopenhauer, p. 54-55.
[35] Brandão, E. A concepção de matéria na obra de Schopenhauer, p.114.
[36] Brandão, E. A concepção de matéria na obra de Schopenhauer, p.143.
[37] W II, § I, p. 60.
[38] W I, § 28, p. 218.
[39] Cabe notar que essa relação entre potência e ato não resulta em um estatuto ontológico da matéria. Trata-se antes de um resultado da maneira pela qual os humanos descobrem a essência do mundo pela metafísica da natureza. Considerar a Materie como visibilidade da Vontade é compreendê-la apenas no plano da representação. Ela é a abstração, a condição da experiência dada a priori.
[40] W I, § 26, p. 196.
[41] W I, § 26, p. 192.
[42] W I, § 23, p. 175.
[43] Brandão, E. A concepção de matéria na obra de Schopenhauer, p.106.
[44] A aproximação entre os conceitos de Ideia e forma substancial feita por Schopenhauer é bastante problemática e remete à sua leitura dos escolásticos a respeito das filosofias de Platão e Aristóteles. Contudo, discutir esse problema excede os limites do recorte proposto por este trabalho. Eduardo Brandão dedica boa parte de seu livro “A Concepção de Matéria na Obra de Schopenhauer” (2009) à tarefa de refazer as referências e leituras de Schopenhauer sobre o tema e nos mostra como elas impactam as reformulações do conceito de matéria em sua filosofia.
[45] W I, § 27, p. 206.
[46] W I, § 27, p. 205.
[47] W I, § 27, p. 205.
[48] W I, § 27, p. 205.
[49] Leibniz, G. W. Sistema novo da natureza e da comunicação das substâncias, p. 23.
[50] W I, § 23, p. 175.
[51] P I, § 12, p. 109.
[52] Leibniz, G. W. God. Guil. Leibnitii. Opera Philosophica quae exstant latina gallica germanica omnia, p. 430.
[53] Cacciola, M. L. Schopenhauer e a Questão do Dogmatismo, p. 82.
[54] N, § 15, p. 138.
[55] N, § 15, p. 138.
[56] Brandão, E. A concepção de matéria na obra de Schopenhauer, p. 89.