Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 15, esp. 1, e89374, 2024
Submissão: 15/10/2024 • Aprovação: 05/12/2024 • Publicação: 18/12/2024
Schopenhauer: Sociedade e Cultura
Schopenhauer na obra de Roland Jaccard
Schopenhauer in the works of Roland Jaccard
José Thomaz Brum I
I Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro , Rio de Janeiro, RJ, Brasil
RESUMO
Palavras-chave: Roland Jaccard; Arthur Schopenhauer; Niilismo
ABSTRACT
This article aims to present the references to Arthur Schopenhauer in the works of Roland Jaccard.
Keywords: Roland Jaccard; Arthur Schopenhauer; Nihilism
Roland Jaccard (1941-2021), escritor e crítico suíço, ensaísta, jornalista, editor e especialista em psicanálise, pertenceu ao círculo mais próximo de Cioran em Paris. Era amigo e cúmplice do pensador romeno.
Para os psicanalistas e estudiosos de Freud ele é o autor de duas joias da coleção “Que sais-je?”: Freud (1983) e La Folie (1979), esta revista a seu pedido por Michel Foucault, um de seus amigos. Ele também dirigiu uma Histoire de la psychanalyse em dois volumes, publicada em 1982 pela editora Hachette. Além de escrever um estudo sobre O homem dos lobos (L’homme aux loups, Ed. Universitaires, 1973).
Filho de uma austríaca embebida dos clássicos vienenses (Schnitzler, Zweig, Vicki Baum...), Jaccard sempre foi uma referência no campo da Viena fin-de-siècle: leia-se os seus prefácios a Otto Weininger (Sexe et caractère, ed. L’Age d’homme, Lausanne, 1975), Arthur Schnitzler (Mademoiselle Else, ed. Le Livre de poche, 1993) e à correspondência Zweig-Freud (Rivages Poche/ Petite Bibliothèque, 2013).
Como editor construiu um “catálogo de sonho” em sua coleção Perspectives Critiques que dirigiu na PUF. Lá publicou os estudos de Jacques Le Rider, o grande especialista na Mitteleuropa, sobre a modernidade vienense e sobre Weininger. Também publicou os diários de Wittgenstein de Cambridge e da cabana norueguesa, esses traduzidos para o francês pelo meu professor Jean-Pierre Cometti (Carnets de Cambridge et de Skjolden). Falei para Silvia Faustino (hoje professora titular da UFBA) que era fundamental para compreender Wittgenstein a leitura desses diários, e também de seus Cadernos secretos de 1914-1916 também traduzidos por Cometti. Neles se percebe como, para Wittgenstein, os problemas intelectuais se revestiam de uma dimensão moral. Afinal ele era vienense, leitor de Spengler e, na juventude, de Schopenhauer.
Suíço de Lausanne, Jaccard tinha um culto pelos diários íntimos e por seu ícone helvético, Amiel. Em longa entrevista sobre sua paixão pelo filme noir americano ele disse: “Ma formation a été le film noir américain et la psychanalyse viennoise”[1]. Mas reconhecia que a cultura vienense era “um continente desaparecido” (un continent englouti).
Para os cinéfilos Jaccard é importante por ter ressuscitado a atriz Louise Brooks ( a Lulu de Pabst, A caixa de Pandora, Die Büchse der Pandora, 1928, e a “Garota perdida”, de Das Tagebuch eines Verlorenen, 1929, do mesmo Pabst). Jaccard se correspondeu com ela e lançou o primeiro livro sobre a atriz: Louise Brooks: portrait d’une anti-star (1977), que foi responsável pelo revival nos EUA dessa schopenhaueriana convicta que foi Louise Brooks, modelo da personagem Valentina de Guido Crepax.
Sobre Louise Brooks escreveu Jaccard: “Nós nos perguntamos como pôde existir uma mulher como ela, niilista e devastada. Ela que só jurava por Schopenhauer e Proust, consciente até a morte de ser o punhal de sua própria ferida”[2].
Como ensaísta, além de ter escrito livros essenciais sobre psicanálise, Jaccard é sobretudo o autor de L’exil intérieur (1975), onde dizia mais ou menos o mesmo que Guy Debord em La Société du spectacle (1967): A impossibilidade no mundo moderno para os seres encontrarem outros seres e, pior ainda, a impossibilidade para o homem de coincidir com ele mesmo. Jaccard dizia no livro que, nas sociedades modernas, o outro é reduzido a uma função instrumental. Nós nos aproximamos dele, mas não o encontramos nunca. Vivemos socialmente em uma espécie de ‘coito interrompido’. O “exílio interior” seria a “esquizoidia”, a fuga da realidade vibrante, humana, direta. Em nossa contemporaneidade de celulares e Internet avançamos nesse ponto? Pergunta.
Jaccard acreditava no “suicídio assistido”, que aliás foi o que fez o seu conterrâneo genial Jean-Luc Godard (em Rolle, às margens do lago Léman), e escreveu um Manifeste pour une mort douce (1992) com seu amigo Michel Thévoz, diretor da coleção de Art Brut em Lausanne na Suíça.
Mas não é por essas brilhantes qualidades que Jaccard será mencionado aqui. Roland publicou em 1989 um excelente ensaio, La tentation nihiliste, no qual, com sua pena irônica e afiada, descreve uma galeria de heróis niilistas: Rée, Weininger, Amiel, Cioran, etc.. O título La tentation nihiliste é certamente uma piscadela de olho para a obra de seu mestre Cioran, La tentation d’exister, de 1956, onde a palavra “tentation” já era colorida por uma ironia lírica. Nessa obra de Jaccard, pelo menos dez páginas são dedicadas a Schopenhauer (Cf. p. 78 a 88 da edição original). Cito:
“Schopenhauer, figura tutelar do niilismo segundo Nietzsche...Sua filosofia, Schopenhauer a alimenta de suas experiências, de suas vergonhas, de suas dúvidas, de suas exasperações. Com ele, como mais tarde com Kierkegaard e Nietzsche, a filosofia deixa de ser uma explicação a distância: doravante, ela pretende ser una com a experiência mesma, encontrando sua origem não no assombro, mas em uma dolorosa estupefação (“douloureuse stupéfaction”)[3].
Sente-se nesse trecho a marca de seu mestre Cioran, do “penser contre soi”, primeiro capítulo de A tentação de existir.
Na página 87 há uma perfeita descrição de Schopenhauer:
“Os professores o apresentam como o herdeiro de Platão e de Kant; os escritores como o herdeiro de La Rochefoucauld e de Chamfort, mas talvez ele seja apenas a reencarnação do Buda, um Buda que teria querido exercitar-se nas excentricidades da alma ocidental e degustar a volúpia de passar despercebido vestindo as roupas de um rentista do pessimismo”[4].
Nessa e em outras passagens de Jaccard sobre Schopenhauer nota-se a presença do famoso artigo de Challemel-Lacour sobre o filósofo: “Un Bouddhiste contemporain em Allemagne: Arthur Schopenhauer”[5]. Schopenhauer como personagem romanesco.
Esqueci de mencionar, aliás, que o mergulho de Jaccard na Psicanálise e seu gosto pelas femmes fatales levou-o até a escrever uma autobiografia ficcional de Lou Andreas-Salomé [6], a femme des lettres russa-alemã e pioneira da psicanálise conhecida por suas relações com Nietzsche, Rilke, Freud e significativamente Wedekind, que teria baseado o caráter de Lulu em Lou Andreas-Salomé.
Mas é em um texto mais recente de seu blog, publicado em março de 2021, que surge uma de suas mais interessantes observações sobre Schopenhauer:
“O Eu, para Schopenhauer, é o ponto negro da consciência. Não pode existir aí introspecção, por falta de um Eu transcendental, mas apenas uma análise limitada, sem fim, inútil, condenada a explicações que não explicam nada. E, no entanto, construir ficções a partir de nossas vidas não é um passatempo pior do que qualquer outro. Quando nossas angústias são serenadas ainda somos capazes de compreendê-las? Duvido. Mas mesmo se fôssemos, preferiríamos abandoná-las”[7].
Esse trecho mostra uma profunda compreensão, por parte de Jaccard, da filosofia de Schopenhauer e me lembra a página 23 do opúsculo de Jean-Paul Sartre, La transcendance de l’ego (1965):
“A concepção fenomenológica da consciência torna o papel unificador e individualizante do Eu totalmente inútil. É a consciência ao contrário que torna possível a unidade e a personalidade de meu Eu. O Eu transcendental não tem portanto razão de ser... O Eu transcendental é a morte da consciência”[8].
Menciono Sartre não só porque há aí uma recusa do “eu transcendental”, mas também para lembrar que, em meu artigo “Clément Rosset e Schopenhauer”[9], indiquei as raízes schopenhauerianas de A Náusea de Sartre.
Roland Jaccard, que publicou sua tese de doutorado sobre a pulsão de morte segundo Mélanie Klein em 1971[10], era um “faux superficiel” (um falso superficial); alguém que sabia, como seus queridos vienenses Karl Kraus, Arthur Schnitzler e sobretudo Peter Altenberg (o mais próximo dele), rir melancolicamente de suas próprias angústias.
Por horror à velhice, Jaccard matou-se antes de completar oitenta anos. Publicara, antes de morrer, um livro de mais de 800 páginas, diário de suas aventuras na Paris dos anos 1980. Intitulou-o Le monde d’avant (O mundo de antes)[11], um clin d’oeil a Le monde d’hier (Die Welt von Gestern) de seu “cher” Stefan Zweig. A heroína desse diário, Linda Lê, tornou-se depois reconhecida escritora de língua francesa, ela que era exilada vietnamita.
Jaccard dizia que “uma futilidade assumida é a única proteção contra o espírito de seriedade e o ódio de si”[12].
Eu precisava falar dele, figura e pessoa fundamental para mim, elo entre Cioran e Rosset, afinidade que busquei cultivar até sua morte digna e aplicada. Afinal, como escreveu um dia Michel Foucault:
“La plus belle chose qu’on puisse offrir aux autres, c’est sa mémoire” (A mais bela coisa que se pode oferecer aos outros é a sua memória)[13].
BRUM, J. T. “Clément Rosset e Schopenhauer”. In: Costa; Arruda; Carvalho (orgs.), Nietzsche, Schopenhauer: Gênese e significado da genealogia. Fortaleza: ed. UECE, 2012. p.13 a 19.
CHALLEMEL-LACOUR. “Un Bouddhiste contemporain en Allemagne: Arthur Schopenhauer in. Cf. Revue des Deux Mondes, n. 86, p. 296-332.
HÜBSCHER, Arthur. Schopenhauer-bibliographie. Stuttgart-Bad Cannstatt: Friedrich Fromann Verlag, 1981.
JACCARD, Roland. La pulsion de mort chez Mélanie Klein. Lausanne: ed. L’Age d’Homme, coll. Sphinx, 1971.
JACCARD, Roland. La tentation nihiliste. Paris: PUF, coll. Perspectives critiques, 1989.
JACCARD, Roland. L’Exil intérieur: schizoïdie et civilisation. Paris: Seuil, 1975.
JACCARD, Roland. Le monde d’Avant. Journal 1983-1988. Paris: Serge Safran éditeur, 2021.
JACCARD, Roland. Lou, autobiographie fictive de Lou Andreas-Salomé. Paris: ed. Grasset, 1982.
JACCARD, Roland. Penseurs et tueurs. Paris: ed. Pierre-Guillaume de Roux, 2018, cap. 4, “Michel Foucault dans mes souvenirs”.
JACCARD, Roland. Sexe et sarcasmes. Paris: PUF, 2009.
JACCARD, Roland. Le Blog de Roland Jaccard, le 25 avril 2021. Disponível em: https://leblogderolandjaccard.wordpress.com. Acesso em 22 de agosto 2024.
JACCARD, Roland. Cinéphiles #4. Canal Youtube Exil H, 17 de fevereiro de 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3SzK_9moXKc. Consultado em 22 agosto de 2024.
SARTRE, Jean-Paul. La transcendance de l’Ego. Paris: Vrin, 1978.
Contribuição de autoria
1 – Jose Thomaz Almeida Brum Duarte
Doutorado em Filosofia pela Universidade de Nice, França
matildelima36@yahoo.com
Contribuição: Escrita – Primeira Redação
Como citar este artigo
BRUM J. T. Schopenhauer na obra de Roland Jaccard. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria - Florianópolis, v. 15, esp. 1, e89374, p. 01-07, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378689374. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
[1] Cinéphiles #4 -Roland Jaccard, Canal Youtube Exil H, 17 de fevereiro de 2018.
[2] JACCARD, Le Blog de Roland Jaccard, le 25 avril 2021. Tradução J. T. Brum.
[3] JACCARD, La tentation nihiliste, p.78 e 84. Tradução J. T. Brum.
[4] Idem, p. 87.
[5] Referência 603ª na Schopenhauer Bibliographie de Arthur Hübscher. Stuttgart-Bad Cannstatt: Friedrich Fromann Verlag, 1981, p. 106.
[6] JACCARD, Lou, autobiographie fictive de Lou Andreas-Salomé. Paris: ed. Grasset, 1982.
[7] JACCARD, Le Blog de Roland Jaccard, 1er mars 2021. Tradução J. T. Brum.
[8] SARTRE, La transcendance de l’Ego, p. 23. Tradução J. T. Brum.
[9] BRUM, J. T, “Clément Rosset e Schopenhauer”, p. 13-19.
[10] JACCARD, La pulsion de mort chez Mélanie Klein. Lausanne: ed. L’Age d’Homme, 1971.
[11] JACCARD, Le monde d’Avant. Journal 1983-1988.
[12] JACCARD, Sexe et sarcasmes, p. 10. Tradução J. T. Brum.
[13] JACCARD, Penseurs et tueurs, p. 35. Tradução J. T. Brum.