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Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 15, esp. 1, e89373, 2024

DOI: 10.5902/2179378689373

ISSN 2179-3786

Submissão: 15/10/2024 Aprovação: 17/12/2024 Publicação: 18/12/2024

REFERÊNCIAS. 17

 

Schopenhauer: Sociedade e Cultura

Aspectos das teorias do direito em Kant e Schopenhauer

Aspects of legal theories in Kant and Schopenhauer

Margit RuffingIÍcone

Descrição gerada automaticamente

I Johannes Gutenberg-Universität , Mainz, Alemanha

 

Tradução de Felipe Durante. Aspectos das teorias do direito em Kant e Schopenhauer. UFAC, 2024

 

RESUMO

O artigo tem como objetivo comparar as teorias do direito de Immanuel Kant e Arthur Schopenhauer, com ênfase nos conceitos de direito e moral. Apesar das profundas divergências filosóficas, ambas as teorias possuem pontos de convergência estruturais, particularmente na forma como concebem o direito como uma ferramenta necessária para regular o comportamento humano e garantir a coexistência social. A análise parte da crítica de Schopenhauer à doutrina kantiana, em especial as formuladas em Sobre o Fundamentos da Moral, O Mundo como Vontade e Representação e o apêndice de crítica à filosofia kantiana, questionando a separação rigorosa entre ética e direito proposta por Kant, e explorando como os dois filósofos tratam conceitos-chave como dever, coerção e o princípio neminem laede. Com isso, espera-se mostrar que, embora as abordagens de Kant e Schopenhauer sejam metodologicamente distintas — com Kant fundamentando-se em princípios racionais e Schopenhauer em uma metafísica empírica —, a filosofia do direito de ambos provam ser a expressão de uma concepção do ser humano muito semelhantes e ambos reconhecem a necessidade de um sistema jurídico que lide com o egoísmo humano e assegure a liberdade dentro de uma sociedade organizada.

Palavras-chave: Arthur Schopenhauer; Immanuel Kant; Doutrina do direito

ABSTRACT

The article aims to compare the theories of right of Immanuel Kant and Arthur Schopenhauer, with an emphasis on the concepts of right and morality. Despite their profound philosophical differences, both theories have structural points of convergence, particularly in the way they conceive of law as a necessary tool for regulating human behavior and guaranteeing social coexistence. The analysis starts from Schopenhauer's critique of Kantian doctrine, especially those formulated in On the Foundations of Morals, The World as Will and Representation, and the appendix of criticism on Kant's philosophy, questioning the strict separation between ethics and law proposed by Kant and exploring how the two philosophers treat key concepts such as duty, coercion, and the neminem laede principle. With this, it is hoped to show that, although Kant's and Schopenhauer's approaches are methodologically distinct - with Kant basing himself on rational principles and Schopenhauer on an empirical metaphysics - their philosophy of right proves to be the expression of a very similar conception of the human being, and both recognize the need for a legal system that deals with human selfishness and ensures freedom within an organized society.

Keywords: Arthur Schopenhauer; Immanuel Kant; Doctrine of right

 

Uma consistente justificativa filosófica do conceito de direito e suas consequências construtivas para uma teoria do direito são de interesse não meramente acadêmico, tendo em vista a insegurança geral causada pela atual situação mundial. As doutrinas filosóficas do direito interferem na convivência das pessoas em comunidade, da qual todos dependem e, portanto, é necessário que as regras sejam consideradas de modo global. Na fundamentação dessas regras na forma do direito positivo, sua função constitutiva para uma comunidade organizada pelo Estado e a relação entre direito e moral diferem-se nas abordagens jusfilosóficas, bem como na consideração de elementos empíricos. Pessoalmente, sempre tive interesse em comparar elementos centrais das teorias de Schopenhauer e de Kant; nesta conferência, gostaria de fazer isso em relação à compreensão do direito. Os dois pensadores são sem dúvida incompatíveis em muitos aspectos, mas suas reflexões são muitas vezes menos discrepantes do que parecem. [1] Uma vez que tanto para Kant quanto para Schopenhauer a doutrina do direito faz parte da ética, surge a questão de saber até que ponto a moralidade do ser humano é um pré-requisito para uma teoria realista do direito e do Estado (por isso, nesta palestra, irei me concentrar na teoria do direito). Diretamente relacionada a isso está a questão da autocompreensão do ser humano, a partir da qual sua relação com o Estado também pode ser compreendida.

Esta conferência não fornecerá uma comparação completa das teorias do direito ou uma nova abordagem da teoria do direito com base em uma interpretação comparativa das “doutrinas do direito” de ambos os pensadores. A doutrina do direito de Schopenhauer, como parte da filosofia prática de sua “metafísica imanente”, é, em grande parte, caracterizada pelo debate com seus predecessores. Apenas por causa da exigência empirista de fundamentação, ele se distância conscientemente das concepções idealistas; no que se refere a Kant, ele faz isso integrando a crítica ao seu grande predecessor em sua argumentação, ou até mesmo (como no caso do escrito Sobre o Fundamento da Moral) fazendo dela o ponto de partida. Portanto, discutirei primeiro em mais detalhes a crítica de Schopenhauer à doutrina kantiana do direito.

Numerosas observações críticas pontuais e comentários mais longos, por vezes polêmicos, podem ser encontrados nos Manuscritos Póstumos, em seus Studienhefte [Cadernos de Estudos]1811-1818. Neles também se encontra um comentário sobre Kant; existem duas folhas sobre a doutrina do direito de Kant (que Schopenhauer já possuía, publicada na  segunda edição na Metafísica dos Costumes de 1798). Se o assunto fosse exclusivamente a crítica de Schopenhauer a Kant, seria necessário dedicar um estudo específico a esses comentários. No nosso contexto, vou me limitar à passagem publicada no apêndice de MVR e aos dois pontos que Schopenhauer considerou dignos de crítica, o que nos leva primeiro ao problema da relação entre direito e moral nas perspectivas de Kant e Schopenhauer. Nessa relação sistemática, a fundamentação metafísica dos conceitos jurídicos e dos princípios jurídicos deles derivados é relevante. Para explicá-los, ambos os pensadores usam parte da mesma terminologia com ênfases diferentes, mas também com pontos de contato. Por exemplo, o conceito de dever e o neminem laede. Voltarei a eles mais tarde. –

Depois de vários trabalhos publicados na primeira metade do século XX sobre a filosofia (penal) do direito e da concepção do Estado de Schopenhauer e de algumas contribuições no contexto do 200º aniversário de seu nascimento, a doutrina do direito de Schopenhauer foi negligenciada na pesquisa por um longo tempo;

 a comparação com Kant só foi feita por Mario Cattaneo[2]  em 1988 por ocasião do congresso em comemoração ao 200º aniversário de Schopenhauer, em seu artigo que tratou explicitamente da crítica de Schopenhauer à doutrina do direito de Kant[3]. A análise de Cattaneo mostra que Schopenhauer (mesmo que ele mesmo veja isso de maneira diferente) compartilha com Kant uma visão negativa do direito.  Cattaneo quer mostrar que Schopenhauer, por causa de duas objeções que devem comprovar dois erros básicos da perspectiva kantiana, cai em uma contradição com a sua própria teoria. Em última análise, ele interpreta que essa contradição, no mínimo, põe em questão o distanciamento crítico pretendido por Schopenhauer em relação a Kant. Compartilho esse ponto de vista, que explicarei brevemente com Cattaneo a seguir.

O primeiro ponto de crítica de Schopenhauer refere-se ao fato de Kant querer “separar rigorosamente” o direito e a ética, mas ao mesmo tempo insistir em um conceito a priori de direito, que ele “não quer tornar dependente da lei positiva, ou seja, da coerção arbitrária” (Cf. ZA II, 643-644). Isso não é possível, no entanto, porque o conceito de direito se refere à ação que, "além de seu significado ético e além de sua relação física com os outros e, portanto, com a coerção externa, não permite sequer uma terceira visão" (ibid.). O direito, de acordo com Kant, deve ser entendido como puramente ético ou puramente físico, o que Schopenhauer demonstra da seguinte forma: “[...] quando Kant diz: ‘Dever jurídico (Rechtspflicht) é aquele que PODE (Kann) ser objeto de coerção’, este PODE (Kann) deve ser entendido ou fisicamente, e assim, todo direito é positivo [i.e., definido, M.R.] e arbitrário, e, portanto, toda arbitrariedade que se pode impor é direito; ou este PODE (Kann) deve ser entendido eticamente e estamos aqui de novo no reino da ética (ZA II, 643f.). Os comentários de Cattaneo sobre essa acusação se resumem ao fato de que a afirmação de que Kant quer separar rigorosamente direito e ética só se aplica de forma limitada, porque Kant também lida com a teoria do direito dentro da ética, que também é objetivamente necessária, e a posição “o direito pertence à ética” não pode, portanto, ser considerada específica da teoria schopenhaueriana do direito. A alternativa excludente - ou o direito é positivo (estabelecido arbitrariamente) ou é ético (moralmente justificado) - não pode ser comprovada pelos próprios textos de Kant.

Pelo contrário, como eu gostaria de acrescentar à conclusão de Cattaneo e ir um pouco mais além, há explicações explícitas em Kant sobre esse “ser-objeto-de-coerção” do dever jurídico, que explica a relação interna, a priori, entre o dever fisicamente compelido e o  livre/voluntário (freiwillig). Até mesmo a passagem de Kant à qual Schopenhauer se refere aqui o faz na medida em que o cumprimento de uma promessa é considerado o núcleo do contrato jurídico, que permite a coerção, mas não necessariamente a exige: [Kant] “Não é um dever virtuoso manter sua promessa, mas sim um dever legal que se pode obrigar uma pessoa a cumprir. Mas, ainda assim, é um ato virtuoso (prova de virtude) fazê-lo mesmo quando nenhuma coerção pode ser imposta.” A capacidade de obrigar é, portanto, uma forma de exigir obrigações contratuais jurídicas exteriores quando elas não são voluntariamente honradas no sentido da promessa moral interna na qual todo contrato se baseia.

No entanto, a coerção é apenas constitutiva para o conceito de direito em Kant, muito mais como um meio permitido pelo direito natural de impor leis positivas, mesmo contra resistência. Isso ocorre porque a distinção de Kant entre direito e virtude – e, consequentemente, dever legal e dever virtuoso –  na Metafísica dos Costumes é, na verdade, feita com base no fato de que apenas o direito está “ligado ao poder de coação”.

Nos RL (Primeiros Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito, MS), a “capacidade de coerção” está  vinculada ao direito à liberdade “de acordo com o princípio de contradição”, ao se opor ao uso errôneo da liberdade (que é, por sua vez, injusta porque viola a liberdade de outros). Considerando em termos negativos, a coerção serve para “o impedimento dos obstáculos da liberdade” e, assim, em termos positivos, promove a liberdade “de acordo com as leis universais” (MS, AA 06: 231).

A disposição moral, que é uma atitude interior, está sujeita a uma legislação diferente; por outro lado, não pode haver outra autoridade para Kant: “A legislação ética é aquela que não pode ser externa (quando muito os deveres podem ser também externos); a jurídica é aquela que também pode ser externa”. (MS, AA 06: 220).

O conceito a priori ou metafísico de direito em Kant, que para Schopenhauer é um indício da suposta contradição ou incompatibilidade entre o direito positivo e o direito baseado na ética, remonta, portanto, ao conceito de lei.

Agora, no entanto, Schopenhauer acusa a “lei”, o imperativo categórico, de uma origem teológica e rejeita a lei ética kantiana como a base de uma moral interna e, na medida em que ela também pode ser externa como ação, a legislação jurídica como infundada. A acusação de que Kant também introduziu o conceito de lei na ética a fim de incorporar o conceito de direito na ética pressupõe que o conceito de "lei" é idêntico à legislação moral da razão ou ao imperativo categórico. Se esse fosse o caso, no entanto, Schopenhauer não poderia, ao mesmo tempo, criticar o fato de que, na Metafísica dos Costumes, a lei é considerada puramente positiva ou puramente ética. A delimitação de Schopenhauer em relação a Kant parece um tanto artificial aqui.

A segunda crítica de Schopenhauer está relacionada ao fato de que a “definição de Kant do conceito de direito é negativa e, portanto, completamente insuficiente” (ZA II, 644). Deve-se fazer aqui uma distinção entre negatividade formal e material: do ponto de vista formal, a determinação de direito de Schopenhauer também é negativa: “[...] o conceito de injustiça é positivo e anterior ao de direito, que é negativo e designa apenas as ações que se pode realizar sem prejudicar os outros, ou seja, sem cometer injustiça”, diz o § 17 do tratado Sobre o Fundamento da Moral. O fato de Schopenhauer não considerar essa (sua própria) definição do conceito de direito como insuficiente, em contraste com a definição kantiana, só pode ser explicado pela definição positiva de fazer o mal como ferir os outros. A crítica da negatividade filosoficamente insuficiente implica, portanto, que a definição formalmente negativa do conceito de direito é permitida se for acrescentada uma definição positiva no sentido de uma definição de conteúdo. Em Schopenhauer, isso é duplamente presente: O direito inicialmente significa apenas “ação justa”, ou seja, torna-se um atributo de determinadas ações e, portanto –  novamente negando formalmente o conceito de injustiça – denota uma ação que não prejudica os outros. No início do § 17 sobre a virtude da justiça, Schopenhauer descreve a diferença entre os deveres legais e virtuosos como aquela entre o “negativo e o positivo, entre não ferir e ajudar”; assim, ele até mesmo usa o conceito de negativo em relação ao conteúdo de seu próprio conceito de justiça, e isso sem necessidade, uma vez que a diferença entre não ferir e ajudar também pode ser entendida como gradual, ou seja, quantitativa.

A definição kantiana do direito como o “conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode conciliar-se com o arbítrio de outro segundo uma lei universal da liberdade (RL, AA 06: 230, § B) é consideravelmente mais abstrata do que a de Schopenhauer, mas formalmente sem negação. Para sustentar a crítica de Schopenhauer, teria de ser demonstrada uma negatividade materialmente existente, entendida como um vazio de conteúdo. Schopenhauer faz isso reinterpretando a liberdade exterior com a qual Kant lida na Teoria do Direito: ele a entende como as “liberdades dos indivíduos uns ao lado dos outros” e a equipara à “liberdade empírica, ou seja, física” e ao “não-ser-impedido” (Nichtgehindertseyn). Não é preciso explicar com mais detalhes que essa interpretação é insuficiente, pois, mesmo que se trate apenas de uma questão de liberdade empírica e essa seja definida como liberdade física, trata-se de um conteúdo, e “não-ser-impedido” (pelo quê?) é apenas uma negação incompleta.

A crítica de Schopenhauer ao conceito kantiano de direito como "negativo e, portanto, insuficiente" pressupõe, assim, uma certa interpretação do conceito kantiano de liberdade como negativo em seu conteúdo, na medida em que é usado para descrever algo que não existe. Na estrutura do argumento formal, por outro lado, há semelhanças se é uma questão de negação na definição do conceito ou de dupla negação – de acordo com o princípio de contradição – na legitimação da coerção ou da lei coercitiva.

A legislação positiva é vista por ambos os pensadores como um sistema de leis para impedir determinadas ações que violam a integridade física e moral de outras pessoas, restringindo sua liberdade contra sua vontade, ou seja, impondo sua vontade pela violência ou por artimanhas manipuladoras. Essas regras legislativas são - e isso se aplica a ambas as teorias - negativas, pois proíbem ações, quer elas violem a liberdade ou provoquem injustiças a outros.

Particularmente no que diz respeito à relação entre o direito e a moral, existem certas semelhanças estruturais. embora o fundamento da moralidade e o princípio da ética permaneçam incompatíveis, mesmo que apenas por causa da metodologia (empírica versus racional). Agora abordarei isso com mais detalhes.

Em primeiro lugar, gostaria de relembrar através de passagens centrais como Kant e Schopenhauer relacionam as suas próprias doutrinas do direito à filosofia moral.

Para Kant, tanto a doutrina do direito quanto a doutrina da virtude são vistas como uma expressão da legislação da liberdade em contraste com a lei natural. Nisso, elas têm uma fundamentação metafísica e moral comum, mesmo que elementos empíricos sejam adicionados à doutrina do direito por meio da reivindicação de aplicabilidade. Na introdução da Metafísica dos Costumes, Kant escreve:

Essas leis de liberdade, à diferença das leis da natureza, chamam-se morais. Na medida em que se refiram apenas às ações meramente exteriores e à conformidade destas à lei, elas se chamam jurídicas; mas, na medida em que exijam também que elas próprias devam ser os fundamentos de determinação das ações, então são éticas. [...] A Liberdade a que se referem as primeiras leis só pode ser a liberdade no uso externo do arbítrio, enquanto aquela a que se referem as últimas pode ser a liberdade em seu uso tanto externo como interno, contanto que ela seja determinada pela lei da razão. (MS, AA 06: 214)

Não se trata aqui de liberdade empírica, mas sim do uso externo da liberdade no sentido da autonomia, que é apenas uma, fundamental para a possibilidade da moral em geral. A doutrina do direito é, portanto, uma parte determinada da ética,  devido ao uso externo da liberdade, que se exterioriza no comportamento humano. As ações dos indivíduos devem além disso ser reguladas pelo estabelecimento de leis gerais (positivas) – precisamente porque elas não são determinadas per se por leis morais da razão – a fim de permitir que o arbítrio de uma pessoa possa coexistir com o arbítrio de outra. E, portanto, o “poder de coagir”, que já foi mencionado acima, está ligado ao direito: o direito é sempre também um direito de coerção, na medida em que, na ausência de uma motivação moral para um ato, a igualdade de todos perante a lei universal da liberdade, ou seja, a coexistência do arbítrio de um indivíduo com a liberdade de todos, caso necessário, é garantida pela coerção.

Schopenhauer vê a relação sistemática entre direito e moral da mesma forma:

A doutrina do direito é urna parte da moral que estabelece as ações que não se podem fazer se não se quer prejudicar outros, quer dizer, cometer injustiça. A moral tem portanto em vista aí a parte ativa. A legislação porém toma em consideração este capítulo da moral para usá-lo no seu lado passivo, portanto ele modo inverso, e para considerar as mesmas ações como as que ninguém deve padecer para que nenhuma injustiça eleva suceder-lhe. Contra estas ações o Estado ergue o baluarte da lei como direito positivo. (E II, §17. Die Tugend der Gerechtigkeit, III 689 [N.T.])

De acordo com sua reivindicação de começar a partir do que é encontrado no mundo, Schopenhauer vê o critério para o moralmente bom em ações compassivas que ocorrem no mundo; uma ação que respeita a vontade de vida (Lebenswillen) do outro como sendo tão justificada quanto a própria é um “não causar dano”, uma ação justa que leva em conta a igualdade “metafísica” dos seres vivos. Aqui já se encontra um momento apriorístico, derivado do conceito de justiça, que também é concebido como “Justiça Eterna”, que interpreta a existência dolorosa da humanidade como uma punição para a inevitável ação injusta de indivíduos egoístas. A justificativa a priori propriamente dita do conceito de direito de Schopenhauer reside, portanto, apesar de sua derivação do conceito de injustiça, no princípio de compaixão da ética, metafisicamente fundado, que também se aplica à subárea da doutrina do direito, na medida em que a justiça como virtude, uma disposição interior, é o fundamento das ações justas perante seres humanos essencialmente semelhantes e iguais.

Além disso, Schopenhauer quer partir de uma doutrina do direito natural que não seja apenas independente da legislação positiva empírica, mas que também reconheça conceitos de justo e injusto que sejam independentes da experiência, que surjam da interação da experiência empírica de uma violação e de um “princípio de entendimento puro”. Esse princípio afirma que a causa de uma causa também é a causa do efeito, e é interpretado por Schopenhauer aqui como uma “lei moral de repercussão”, ou seja, o direito de defesa: Resistir ao dano infligido por outros (de fora) não é, portanto, uma injustiça. Essa elucidação é necessária; dado que Schopenhauer identifica a injustiça com ações prejudiciais, ele deve, obviamente, explicar por que ações externamente semelhantes, como, por exemplo, empurrar outra pessoa para longe, o que resulta em uma queda e uma lesão física, às vezes é injustiça e às vezes não. A qualidade moral da ação não pode ser reconhecida no caso do empurrão – queda – lesão, que é removido de seu contexto.

Essa conexão sistemática interna entre o direito e a moral, que pode ser vista nas duas diferentes teorias, também pode ser vista em certos conceitos (in einzelnen Begriffen) das doutrinas do direito. Devido à abordagem empírica ou racional, esses conceitos têm interpretações específicas, mas, para a sistemática, significados básicos comparáveis. Como exemplo, escolhi o conceito de dever, cujo significado básico é a obrigatoriedade.

Para Kant, o conceito de dever como obrigatoriedade encontra-se implícito em toda promessa ou na celebração de um contrato; o significado de dever é, em última análise, “aquela ação a que cada um está obrigado. Ela é, pois, a matéria da obrigação, e o dever pode ser o mesmo (segundo a ação), ainda que possamos ser obrigados a ele de diversos modos”, de acordo com as definições nos Conceitos Preliminares da Metafísica Costumes (AA 06: 222). A ação que é ordenada implica “necessidade moral” e, se for feita “por dever”, a lei da razão é realizada, o que exige que os seres humanos tratem a si mesmos e aos outros de uma forma que seja adequada à dignidade humana. Não apenas como cidadãos perante a lei, mas também como (co-) humanos capazes de agir moralmente [moralitätsfähiger (Mit-)Mensch][4] perante a lei da razão, todos são iguais.

Schopenhauer define o dever, com base em sua teoria do Direito-Agir (Theorie des Recht-Handelns), de uma maneira diferente, novamente com uma dupla negação: “O dever [...] é [...] uma ação pela mera omissão da qual alguém prejudica outro, ou seja, comete injustiça”. Portanto, aqui também o dever é expresso como uma ação moralmente necessária que é injusta se for omitida. Em seguida, o texto menciona a condição de possibilidade do dever: Isso requer uma decisão interna, a saber, assumir a obrigação, ou seja, realizar a ação exigida, isto é, prometer aquilo a que a obrigação assumida se refere – em Kant, isso é chamado de unir-se e estar unido à ação. Para Schopenhauer, a promessa também tem o caráter de um acordo e de uma convenção:

Isto só pode acontecer se quem se omite tinha se empenhado em executar tal ação, quer dizer, estava mesmo obrigado. Assim, todos os deveres repousam sobre urna obrigação contraída. Esta é, via de regra, um contrato expresso bilateral, como, por exemplo, entre o príncipe e o povo, o governo e os funcionários, o senhor e o serviçal, o advogado e os clientes, o médico e os doentes, em geral, entre alguém que tomou a seu cargo um trabalho ele qualquer espécie e quem o encomendou, no sentido mais amplo da palavra. (E II, §17. Die Tugend der Gerechtigkeit, III 691 [N.T.])

É muito semelhante o argumento de Kant quando descreve o cumprimento de uma promessa como “uma obrigação jurídica que pode ser forçada a ser cumprida”, que, conforme mencionado acima, é a base de todo acordo mútuo. Deixar de honrar uma promessa não é apenas uma questão moral privada, mas é fundamentalmente uma quebra de contrato, que, dependendo do assunto, também se reflete na legislação positiva de acordo o dever jurídico. Schopenhauer da mesma forma relaciona o momento (das Moment) moral da promessa com o momento jurídico do contrato, mas de forma negativa; em MVR, § 62, ele afirma de maneira breve: “A mentira mais perfeita é a quebra de um contrato”.

Outro aspecto que, apesar das diferenças em suas abordagens, contém uma semelhança é o uso de regras pseudo-ulpianas. Embora isso tenha sido bastante comum na tradição jusfilosófica desde a antiguidade, as regras ocupam um lugar de destaque no trabalho de nossos dois pensadores.

Schopenhauer se refere, sobretudo, à segunda regra: neminem laede, não causar dano ou injustiça a ninguém, que se torna o princípio ético e jurídico central em seu tratado sobre a moral. A razão para isso é simples: há séculos nas doutrinas do direito o princípio, que emerge confirma literalmente a doutrina de Schopenhauer da ação justa, que é a ação moral, embora ainda não na qualidade superior da ação compassiva, as ações de ajuda. Isso corresponde à continuação da regra omnes, quantum potes, juva. Ambas as regras são usadas por Schopenhauer como princípios morais, não jurídicos. Mas é exatamente por isso que sempre me pareceu marcante, ou devo dizer alarmante, o fato de que Schopenhauer aqui não parece ter problemas com o fato de formular os princípios de sua ética da justiça na forma de imperativos, ou seja, mandamentos, leis.

Kant usa as três regras honeste vive, neminem laede e suum cuique tribue menos para confirmar seus próprios princípios do direito do que como uma explicação de sua categorização dos deveres jurídicos pelas “três fórmulas clássicas”, como ele as chama, “em internos, externos e aqueles que contêm a derivação dos últimos a partir do princípio do princípio dos primeiros por subsunção” (MS, AA 06: 236 e ss.). Através da interpretação de Kant, as regras geralmente conhecidas devem ser ampliadas para incluir novos aspectos de significado. A primeira das regras, que ele traduz como “Seja uma pessoa correta”, visa uma postura, a disposição interior; pode-se entendê-la como um imperativo para proteção da liberdade interior, que ninguém deve abandonar como parte da humanidade, uma proibição de autorreificação. [nos Primeiros Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito responsável por (zuständig): direito privado]. O ‘neminem laede’ diz respeito à relação entre sujeitos de direito, mas não é suficiente para garantir a coexistência pacífica em comunidade. A regulamentação jurídica da coexistência de indivíduos egoístas é necessária para garantir a compatibilidade das vontades de acordo com a lei da liberdade; é assim que Kant entende o “suum cuique tribue”:

A última fórmula proferiria um absurdo se fosse traduzida assim: “dê a cada um o seu”. Pois não se pode dar a ninguém o que ele já tem. Se ela deve ter, portanto, um sentido, então teria de dizer assim: “entre em um estado no qual a cada um possa ser assegurado o seu diante dos demais”.

As obrigações jurídicas externas em questão aqui levam à entrada em um status juridicus, um estado constitucional. [na RL responsável por: direito constitucional]. – É aqui que a possibilidade de comparação termina, porque a filosofia política de Kant não merece nem mesmo ser criticada por Schopenhauer, e a ideia completamente persuasiva de Schopenhauer sobre o Estado como uma instituição de proteção do direito é digna de uma análise própria e detalhada, que não pode ser feita aqui.

Mesmo se, em última análise, as teorias do Estado de Kant e de Schopenhauer como consequências dos conceitos subjacentes de direito permanecerem tão incompatíveis quanto a vontade schopenhaueriana e a razão kantiana, a filosofia do direito de ambos provam ser a expressão de uma concepção do ser humano muito semelhantes. Foi demonstrado que tanto uma ética fundamentada empiricamente quanto uma ética fundamentada racionalmente baseiam-se, por um lado, na constante antropológica do egoísmo natural, que deve ser contido por leis coercitivas, e, por outro lado, necessitam de elementos a priori, seja na forma de ideais razoáveis ou de virtudes morais.

Vou fazer um breve resumo: em minha opinião, existem similaridades estruturais essenciais e semelhanças pontuais no conteúdo em relação às doutrinas do direito, das quais Schopenhauer provavelmente nem estivesse ciente, caso não se queira acusá-lo de ter deliberadamente entendido mal as pretensões de Kant: 1) O conceito fundamental do direito é um conceito a priori que remonta ao princípio da ética em questão – mesmo que Schopenhauer dê uma explicação adicional da aprioridade construída com a ajuda de um “princípio do entendimento puro” lógico. 2) Ao se referir a um fundamento filosófico moral, a doutrina do direito pode ser entendida como uma parte da ética. 3) A legislação positiva trabalha com a coerção para evitar ações injustas, seja a lesão física de outros ou a restrição da liberdade alheia, em favor de seus próprios objetivos egoístas. 4) há um uso claramente reconhecível da figura da negação e da dupla negação em termos de forma e conteúdo. 5) a ação como dever e obrigatoriedade e 6) o princípio imperativo do neminem laede mostra semelhanças na terminologia.

Em minha opinião, a filosofia do direito de Kant é a expressão mais pragmática de seu pensamento filosófico moral, que é fundamentalmente caracterizado pelos ideais da razão prática. Kant também pressupõe que as injustiças produzidas na convivência humana são um fato antropológico (não uma ocorrência empírica), mesmo que a esperança de “paz perpétua”, muitas vezes rotulada de “utopia” pelos críticos, sobreviva em sua filosofia. Por outro lado, a ideia de “justiça eterna” de Schopenhauer é uma espécie de inversão da esperança: mas pelo menos a justiça é feita aos moralmente indignos, pois “o próprio mundo é o tribunal do mundo” (W I, § 63; I, 415). Apesar de todo o pessimismo atribuído a Schopenhauer: sua filosofia do direito também se baseia na convicção de que os seres humanos também são capazes de agir por caridade e em prol da justiça.

REFERÊNCIAS

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Contribuição de autoria

1 – Margit Ruffing

Doutora em estudos de Filosofia na Johannes Gutenberg-Universität

https://orcid.org/0000-0003-4754-223X • mruffing@uni-mainz.de

Contribuição: Escrita – Primeira Redação

Como citar este artigo

RUFFING, M. Aspectos das teorias do direito em Kant e Schopenhauer. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria - Florianópolis, v. 15, esp. 1, e89373, p. 01-16, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378689373. Acesso em: dia mês abreviado. ano.



[1] Eu já tentei mostrar isso em relação às teorias de ambos os pensadores sobre o fundamento da moralidade, Cf. ‘Mysterium der Ethik’ vs. ‘corpus mysticum’ - Moralitätsverständnis bei Schopenhauer und Kant. In: Kant und seine Kritiker - Kant and His Critics. Editado por Antonino Falduto e Heiner F. Klemme. Hildesheim/Zurique/Nova York, 2018. p. 203-213.

[2] Nos últimos anos, a filosofia política de Schopenhauer voltou a ser estudada com mais intensidade, inclusive nas contribuições do volume editado por Christina Kast intitulado Pessimistischer Liberalismus. Arthur Schopenhauer's State (Nomos 2021); veja em particular Manja Kisner: Schopenhauers Staats- und Rechtslehre im Ausgang von Kant, Fichte und Hegel, op. cit., 123-143; Dominik Hotz: Arthur Schopenhauers Rechtsphilosophie. Der Staat als Schutzanstalt des Rechts, op. cit., 63-82, ou Jan Kerkmann: Pessimismus, Ethik und die soziale Frage, op. cit., 43-62.

[3] Mario A. Cattaneo: „Schopenhauers Kritik der Kantischen Rechtslehre.“ In: Schopenhauer in der internationalen Diskussion. 69. Schopenhauer-Jahrbuch 1988. Zur 200. Wiederkehr seines Geburtstages. Hrsg. von Rudolf Malter et al. Frankfurt a. M. 1988, 399–407.

[4] Fiz um esforço para manter o jogo de palavras empregado pela autora em alemão. Mensch é comumente traduzido por ser humano; Mitmensch é definido pelo dicionário Duden como “Mensch als Geschöpf, das mit andern in der Gemeinschaft lebt, den Lebensraum mit andern teilt”, isto é, “Seres humanos como seres que vivem em comunidade com outros, que compartilham seu espaço de vida com outros”.

Aventurei-me em utilizar o prefixo “co-”  da língua portuguesa que denota companhia, conjunto, concomitância – empregado em palavras como co-herdeiro, coigual, codependente – com o substantivo “humano”, na esperança da palavra co-humano transmitir a ideia de indivíduos que compartilham a humanidade ou que cooperam uns com os outros. [N.T.].