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Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 15, n. 1, e88925, 2024
Submissão: 08/09/2024 • Aprovação: 17/12/2024 • Publicação: 18/09/2024
Schopenhauer: Sociedade e Cultura
Materialismo e ser humano em Schopenhauer e Marx
Materialism and human beings in Schopenhauer and Marx
I Universidade Estadual Paulista (Unesp), São Paulo, SP Brasil
RESUMO
Palavras-chave: Materialismo; Ser humano; Marxismo
ABSTRACT
Keywords: Materialism; Human being; Marxism
Em 1888, aproveitando a ocasião oferecida pelo primeiro centenário de nascimento de Schopenhauer, Karl Kautsky publica um artigo sobre o filósofo na revista Neue Zeiten. Mas não se trata de nenhuma homenagem. Já ao início se percebe qual será o tom dominante do texto: “E a burguesia alemã”, lê-se ali, “tem plena razão quando celebra Schopenhauer. Nele, ela celebra a si mesma, pois ele pertence a ela total e completamente, é carne de sua carne.” O sucesso da filosofia schopenhaueriana na segunda metade do século XIX é então explicado como consequência do fracasso da revolução de 1848, quando a burguesia alemã perde todas as suas ilusões revolucionárias e ao mesmo tempo percebe que a partir daquele momento qualquer agitação dessa natureza não mais viria em seu proveito, mas sim no da classe por ela explorada. Cria-se assim o terreno propício ao pessimismo. O burguês filisteu, espécime típicamente schopenhaueriano, ansiava ardentemente por alguma doutrina que demonstrasse de forma cabal a inalterabilidade do mundo e a vanidade de todos os esforços no sentido de melhorar a sociedade, permitindo-lhe assim condenar retoricamente a maldade do mundo e dos homens, mas ao mesmo tempo retirar-se para a interioridade segura de sua individualidade e de suas posses, com o gesto altivo de quem possui a inabalável certeza de sua superioridade intelectual e moral. Schopenhauer, sugere Kautsky, ter-lhe-ia vindo a calhar. Como não podia deixar de ser, é então o autor de O mundo como Vontade e representação contrastado com Hegel, “o filósofo da evolução, da revolução, por mais conservador que se tenha mostrado em seu comportamento”. Schopenhauer, pelo contrário, seria “o negador da evolução” e “um teórico do conservadorismo” (Kautsky, 1955).
Curioso é que a mesma sociedade alemã e européia da primeira metade do século XIX, que o “filósofo da revolução” sacralizou como encarnação necessária do Espírito Absoluto, tenha sido vista pelo “filósofo do conservadorismo” como assentada na exploração, na injustiça e na violência. (E que outra visão da sociedade se poderia esperar de uma filosofia que vê espoliação, violência, sofrimento e conflito como inscritos na própria essência do mundo?) Mas não ficou essa intuição sobre a essência da sociedade no terreno das generalidades e abstrações, senão que serviu de guia para o ajuizamento de fatos bastante concretos e cotidianos. A esse respeito, trouxe recentemente Vilmar Debona à discussão passagens do segundo volume de O mundo como Vontade e Representação e dos Parerga e Paralipomena em que Schopenhauer deplora a crueldade das condições de trabalho nas fábricas, que obrigam a seres humanos a partir de cinco anos de idade a esgotarem suas forças vitais apenas para incrementar o luxo e poderio de poucos, e em que o filósofo equipara a pobreza (que naquela época atingia níveis e proporções inauditos na Europa) à escravidão (Debona, 2021, p. 835,836). O proletário moderno, argumenta o filósofo, cumpriria o mesmo papel na sociedade que o escravo antigo e o negro escravizado de então, pois tanto uns como outros viam-se obrigados pelas circunstâncias (a chibata num caso, a pobreza no outro) a dispender sua energia de vida em proveito de outrem e não no seu próprio. Mas não devemos esquecer que a fundamentação filosófica para essa equiparação entre o proletário e o escravo já aparece no primeiro volume da obra máxima de Schopenhauer, nomeadamente, no capítulo 62. Define ali o filósofo como injustiça (Unrecht) o ato pelo qual um indivíduo nega a Vontade que se expressa no corpo de outro, o que pode dar-se pelo assassinato, pela mutilação, pela contusão (Verletzung), pela subjugação, pela escravização ou também pela apropriação do fruto do trabalho, considerado este como a única fonte legítima do direito de propriedade. A posse de uma coisa só é legitimada, diz Schopenhauer, pelo emprego de um determinado esforço, por pequeno que seja, através do qual essa coisa é “trabalhada, melhorada, protegida de acidentes, armazenada, ainda que seja esse esforço apenas o apanhar ou o colher do solo de um fruto silvestre (einer wildgewachsenen Frucht) (W I, § 62, p. 405-406)”. A apropriação dessa coisa por outrem equivaleria à apropriação das forças corporais e intelectuais de seu legítimo proprietário, e portanto a um ato pelo qual o corpo deste é forçado a servir não à Vontade individual que nele se expressa, mas àquela que se manifesta no corpo do agressor:
Aquele que se apropria dessa coisa subtrai manifestamente ao outro o resultado das forças que nela empregou, fazendo então que o corpo deste sirva à sua Vontade, e não à dele próprio, afirma a sua Vontade para além de seu fenômeno, até a negação da Vontade alheia, ou seja, pratica injustiça (W I, §62, p. 406).
Traduza-se tais teses em linguagem sociológica e econômica e avalie-se a que distância estaríamos aqui de uma teoria da alienação do trabalho ou da mais-valia! E isso em 1818, quando tanto o capitalismo alemão quanto o próprio Marx, nascido nesse mesmo ano, mal começavam a engatinhar! Quer-nos parecer, enfim, que o “filósofo do conservadorismo”, no dizer de Kautsky, teve pelo menos suficiente honestidade intelectual para não negar o que se oferecia diretamente à vista, reconhecendo o fundamento violento da sociedade em que vivia, e mesmo para denunciar firmemente a situação escandalosamente degradante a que estava submetida grande parte da humanidade de seu tempo, sem tentar escamoteá-la apelando a qualquer astúcia da razão ou coisa parecida. É certo que isso não faz de Schopenhauer um pensador revolucionário ou “de esquerda”. Nisso Kautsky tinha razão: o autor de O mundo como Vontade e representação foi sim um homem conservador, ninguém o pode nem o quer negar. Pelo contrário: essas considerações têm lugar aqui justamente para sublinhar o quanto pensadores que ocupam posições claramente divergentes no campo da luta política e ideológica, como Schopenhauer e Marx, podem, no entanto, apresentar convergências significativas e sumamente interessantes no plano teórico e filosófico. Não se trata, portanto, de negar o papel exercido pelos condicionamentos de classe na constituição de uma filosofia, mas sim de negar que a simples menção a esses fatores seja suficiente para dar conta da complexidade do pensamento de intelectuais do porte de Schopenhauer, como parece crer Kautsky. Nas linhas seguintes, procurarei explorar justamente esse tema, que já atraiu para si a atenção de intérpretes da estatura de Alfred Schmidt e Ludger Lütkehaus, para não falar de Max Horkheimer, que é o das relações filosóficas entre Schopenhauer e Marx. A perspectiva, porém, através da qual desejo abordar esse tema não se relaciona diretamente com as questões acima mencionadas, mas sim com o problema do conflito entre materialismo e idealismo, particularmente no que respeita às relações com a concepção de ser humano de ambos os pensadores.
Nesse contexto, torna-se referência óbvia e incontornável o texto de Alfred Schmidt Schopenhauer und der Materialismus, datado de 1977 (Schmidt, 1980). Quase cem anos após o artigo de Kautsky, o ex-assistente de Horkheimer procura abordar o tema das possíveis relações teóricas entre o pensamento de Schopenhauer e o de Marx a partir de uma reflexão sobre a posição de Schopenhauer no contexto do debate entre idealismo e materialismo. Seu marcado interesse em investigar aquelas relações teóricas se faz manifesto já na forma como ele introduz a oposição materialismo X idealismo, nomeadamente, através de uma famosa passagem de Engels, em “Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, na qual o autor apresenta como “a mais alta questão de toda a filosofia” exatamente “a questão sobre a relação entre o pensamento e o ser, entre o espírito e a natureza”. Trata-se aqui, esclarece Engels, de determinar-se a qual lado, pensamento ou ser, espírito ou natureza, ou ainda, em linguagem mais schopenhaueriana, sujeito ou objeto, deve-se atribuir prioridade ontológica. “De acordo com a resposta que é dada a essa questão”, diz Engels, “dividem-se as filosofias em dois grandes campos” (1895, cap.2, p.14). Os idealistas defendem a primazia de uma consciência, pensamento ou razão autônoma, original ou “pura”, no sentido de independente de qualquer realidade exterior, chegando, em suas mais consequentes formulações, à tese de que o mundo exterior, material, nada mais é que produto dessa consciência ou razão pura. Já os materialistas, expõe Engels, atribuem a primazia à “matéria”, concebida como realidade exterior à consciência, dela independente e portadora de uma legalidade própria, sendo que, em suas mais consequentes manifestações, o materialismo compreenderia a consciência como produto da matéria. É esta, evidentemente, a posição assumida pelo próprio Engels: “A matéria não é um produto do espírito, senão que o espírito é ele próprio o mais alto produto da matéria. Isto, naturalmente, é puro materialismo” (1895, cap 2, p.18).
A meu ver, essa apresentação engelsiana sobre o conflito materialismo-idealismo se expõe a duas objeções principais. Primeiramente, a idéia de que a relação entre pensar e ser, ou consciência e matéria, ou como quer que a dicotomia se coloque, seja a questão fundamental e primeira de toda a filosofia é bastante questionável, pois já parte de uma interpretação particular da essência e do sentido da filosofia. Ela pressupõe que toda filosofia particular se coloque, de uma forma ou de outra, essa questão, e que sua opção pela primazia de um lado ou do outro influencie definitivamente todo o seu conteúdo, de modo que seria possível traçar uma linha demarcatória mais ou menos clara entre dois grupos antagônicos de filosofias, conforme essa opção. Simplifica-se assim flagrantemente a grande multiplicidade exibida pela história da filosofia. Pois há manifestamente muitas e importantes filosofias em que não se pode determinar uma clara posição em relação à questão colocada, sem que se faça notável violência a seu conteúdo, circunstância que seguramente tem a ver com a irredutível multiplicidade das formas pelas quais “consciência”, “matéria”, “ser” e “pensar” são concebidos. Aristóteles, por exemplo, que na Escola de Atenas de Rafael aponta para o chão, enquanto Platão aponta para o céu: podemos com rigor chamá-lo de materialista? Quiçá de idealista? E Nietzsche, de que lado estaria? Ele, que tão veementemente nega a criação do mundo por um ente divino, como também a “pureza” da razão: não nega ele também a matéria[1]? Outras filosofias há em que a questão mal chega a se colocar, e ainda outras em que a oposição entre consciência e matéria, pelo menos na forma como Engels a coloca, não se apresenta como originária, mas sim como dependente de pontos de partida ainda mais fundamentais.
Justamente este será o caso, a meu ver, das filosofias de Marx e Schopenhauer, e é exatamente sob essa perspectiva que me parece interessante tentar entrever alguma proximidade entre ambos. Se nos mantemos dentro da demarcação proposta por Engels, e além disso nos deixamos seduzir pelo “senso comum” filosófico ao gosto dos manuais e dos propagandistas, essa possibilidade simplesmente não existe. Schopenhauer é idealista e Marx materialista, e ponto final: não há aproximação nem diálogo possível. Isto bem pode ser conveniente para fins de popularização-massificação do pensamento filosófico, mas não pode satisfazer aqueles(as) que se dedicam a interpretar seriamente um ou ambos os pensadores. Este é o caso de Schmidt, que no texto já mencionado demonstra com clareza como seria arbitrário e impreciso situar Schopenhauer em um dos campos litigantes. Pois, apesar de seu ponto de partida kantiano e seu consequente comprometimento original com uma perspectiva idealista, o pensamento do filósofo adquire progressivamente colorações materialistas, o que se tornaria particularmente visível no segundo tomo de O mundo como Vontade e representação[2]. No caso de Marx, a situação é apenas aparentemente mais clara. De fato, a insistência com que seu pensamento é designado como materialismo dialético, materialismo histórico ou ainda histórico-dialético, contrasta fortemente com a flagrante insuficiência das tentativas até agora feitas de se explicitar de forma clara em que consistiria tal suposto materialismo. De uma definição consensual se está, e sempre se esteve, bastante longe. O que se sabe é que o próprio Marx jamais caracterizou seu próprio pensamento através de alguma dessas fórmulas, a não ser de maneira bastante indireta, como quando critica o materialismo de Feuerbach por não ser histórico, apontando para a possibilidade uma nova forma de materialismo[3]. Porém, que esse possível materialismo se identifique com aquele definido por Engels é algo que o próprio texto de Marx, como veremos, parece afastar.
Com isso, chegamos à segunda objeção que teria a fazer à apresentação que Engels faz do conflito materialismo-idealismo: a imagem que ele fornece do materialismo nos parece um tanto quanto restritiva, já que por demais comprometida com o pensamento científico. De fato, a assunção de uma realidade material essencialmente independente do sujeito humano como princípio de explicação do mundo, e não apenas do mundo, mas também, pelo menos tendencialmente, desse próprio sujeito, é reconhecidamente traço característico da visão de mundo científica, tal como esta se consolida no século XVIII na posição de principal opositora do pensamento metafísico e religioso. E a intenção de Engels, na obra citada por Schmidt, é claramente a de estabelecer uma continuidade entre o desenvolvimento da ciência moderna - desde os tempos de Galileu, Bruno e Newton - e o surgimento do marxismo: “Com cada descoberta inovadora, já no campo das ciências naturais, teve ele [o materialismo, n.a.] de alterar sua forma, e desde que até a História foi submetida à abordagem materialista, abriu-se também aí uma nova rota de desenvolvimento” (Engels, 1895, cap 2, p.19). Representaria então o marxismo o último e definitivo capítulo da longa batalha travada pelo pensamento científico (ou seja, materialista) contra o pensamento mítico-metafísico (ou seja, essencialmente idealista), que com seu atavismo reacionário retardaria a inexorável evolução da humanidade. O surgimento do marxismo se daria no contexto de uma evolução do próprio pensamento científico que se haveria concretizado já no século XIX. Em contraste com as ciências mais básicas, meramente mecânicas, e, portanto, antidialéticas[4], do século anterior, disciplinas como a geologia, a embriologia, as fisiologias vegetal e animal, bem como a química orgânica são saudadas por sua capacidade de compreender totalidades (e não mais apenas fenômenos isolados), especialmente em sua evolução no tempo. Nesse novo estágio de materialismo, as antigas leis meramente mecânicas da matéria conservam sua validade, mas são suplantadas por outras mais altas, que permitem a compreensão do processo evolutivo de totalidades orgânicas, ou mesmo inorgânicas, como no caso da geologia:
“Esta aplicação exclusiva do padrão da mecânica a processos de natureza química e orgânica, nos quais as leis da mecânica sem dúvida conservam sua validade, mas são deslocadas a um plano mais básico (Hintergrund) por outras leis mais altas, configura a limitação específica, mas ao seu tempo inevitável, do materialismo clássico francês (Engels, 1895, p.19-20).
Tais leis, cumpre acrescentar, ainda que mais altas, continuam a ser leis da matéria, guardando, portanto seu caráter necessário e independente da vontade humana. Inserindo-se no contexto desse desenvolvimento do pensamento científico, surge enfim o marxismo, que dirige o foco do pensamento materialista (porém dialético), para o último rincão que, em virtude de sua extraordinária complexidade, ainda restava por conquistar, o da História, com o que logra enunciar, com a mesma certeza com que Newton enunciou as leis que regem os movimentos dos astros, as leis que governam a evolução da sociedade humana. Mas não é ao meramente mecânico Newton que Engels, em seu famoso necrológio a Marx, compara este último, mas sim ao dialético Darwin: “Assim como Darwin descobriu as leis do desenvolvimento da natureza orgânica, Marx descobriu a lei de desenvolvimento da História humana (Engels, 1987, p.335).”
É inegável o efeito político e propagandístico desse encadeamento de idéias, pois através dele a derrocada da sociedade burguesa e a revolução socialista são vistas, não como mera possibilidade, mas como certeza garantida cientificamente, e nenhum argumento é mais apto a encorajar uma massa de combatentes do que a certeza inevitável (pois estabelecida pela ciência) da vitória. Mas ele tem o inconveniente de implicar uma concepção de História como processo determinado por leis objetivas e necessárias, determinadas, em última análise, pelos movimentos e transformações da matéria, o que o torna incompatível com o fundamento humanístico do pensamento de Marx. Pois este fundamento demanda que o curso da História seja determinado pela vontade livre e racional dos serem humanos, e não por qualquer tipo de necessidade pensada, por princípio, como independente dessa vontade, a não ser que se admita alguma espécie de harmonia preestabelecida entre os “desígnios” da matéria e os reais interesses da humanidade (e então não seria de se estranhar se, algum dia, se viesse finalmente a erigir templos em louvor e devoção à Matéria!).
O que estou chamando de fundamento humanístico do pensamento de Marx se expressa de forma particularmente interessante para nossos propósitos em uma passagem dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, especificamente do texto intitulado Crítica da dialética de Hegel e de sua filosofia em geral:
Vemos aqui como o naturalismo plenamente acabado, ou humanismo, se diferencia tanto do idealismo como do materialismo, sendo, ao mesmo tempo, a sua verdade unificadora. Vemos também como apenas o naturalismo está em condições de compreender o ato da História universal (Marx, 1968, p. 577).
Como se vê, a citação contém uma surpreendente tomada de posição acerca do debate entre materialismo e idealismo. Com efeito, aqui, para surpresa de muitos, Marx rejeita explicitamente uma simples identificação de seu pensamento com o materialismo, sem, obviamente, deixar de distanciar-se também do idealismo. De fato, a passagem nos parece sugerir que o naturalismo-humanismo, com o qual Marx identifica sua própria perspectiva teórica, seria o ponto de vista a partir do qual, segundo ele, a oposição entre materialismo e idealismo precisaria ser enfocada. Isso nos parece, por sua vez, autorizar a suposição de que o problema da relação entre sujeito e objeto, ou entre pensar e ser, em Marx, deva ser apreciado a partir de seu modo particular de conceber o ser humano, hipótese a ser explorada mais adiante. Por ora, cabe apenas indicar que, a meu ver, a maneira como Schopenhauer concebe o ser humano também determina decisivamente a perspectiva a partir da qual ele se defronta com o problema da oposição entre materialismo e idealismo, e, por isso, será esse o viés por meio do qual tentarei, no que se segue, traçar um paralelo entre seu pensamento e o de Marx.
A posição central que o ser humano ocupa em ambas as filosofias se apresenta como um ensejo, pelo menos, a uma comparação mais atenta. No caso de Marx, dificilmente essa centralidade do humano seria contestada, mas no que se refere a Schopenhauer não me parece que o tema já tenha recebido suficiente atenção. Porém, o fato é que, excetuando-se a noção da Vontade, dificilmente alguma outra poderia aspirar a uma posição de centralidade no pensamento de Schopenhauer senão a de ser humano, pois é neste que a Vontade atinge sua expressão mais completa no mundo fenomênico. E se do ponto de vista ontológico a prioridade cabe inequivocamente à Vontade, do ponto de vista da cognição é o ser humano que vem em primeiro lugar, pois é apenas através dele que a Vontade se torna conhecida. A Vontade humana e o sofrimento humano são os fatos primeiros que franqueiam diretamente a Schopenhauer o acesso à essência do real, e é por isso que o em-si do mundo é designado por meio do nome de sua manifestação característica no ser humano. É verdade que a Vontade se espelha na totalidade do mundo, da qual o ser humano é apenas uma ínfima parte, mas também é verdade que essa ínfima parte resume em si, por assim dizer, o mundo inteiro, pois é apenas nela que todos os graus de objetivação da Vontade se reúnem em unidade. É por isso que, no sistema de Schopenhauer, o ser humano ocupa uma posição de centralidade no mundo natural que não deixa de ter certa analogia com a posição que ele ocupara no humanismo renascentista, se bem que uma analogia, por assim dizer, em negativo. Pois se o ser humano não é, para Schopenhauer, algo como a imagem e semelhança do criador, ele não deixa de ser a mais completa e clara objetivação da Vontade; ele não é certamente o ponto elevado em que a natureza se avizinha ao divino, mas, não obstante, ocupa o topo da pirâmide dos seres naturais[5], culminância apenas a partir da qual se torna possível o misterioso ato metafísico pelo qual a Vontade se conhece plenamente e se nega.
Essa centralidade do humano em Schopenhauer torna compreensível seu conhecido interesse pelas discussões científicas de seu tempo a respeito da natureza humana. E, de fato, tal discussão se apresentava como uma versão médico-biológica da oposição clássica entre materialismo e idealismo: como o debate sobre se o ser humano deveria ser considerado essencialmente como animal corpóreo e orgânico ou como alma intelectual e racional. O próprio Schmidt acentua a importância que têm para Schopenhauer os trabalhos de Cabanis e Bichat, teóricos que notadamente adotavam, neste debate, a posição de uma natureza essencialmente orgânica e vital do ser humano (Schmidt, 1980, p.142). Mas essas posições se inserem em um amplo debate científico-filosófico cujo início se dá pelo menos uma geração antes. Desde o final do século 17, médicos-cientistas como Boerhaave e Haller defendiam a posição vitalista-orgânica contra a posição animista-espiritualista de Georg von Stahl[6]. Um testemunho filosófico direto da importância adquirida por esse debate é o tratado que o jovem acadêmico de medicina Friedrich Schiller escreve, em 1780, como trabalho de conclusão de seus estudos, o Ensaio sobre a interdependência entre as naturezas animal e espiritual do homem (Schiller, 2004, 287-324). O título desse ensaio nos mostra com particular clareza os termos em que o debate entre idealismo e materialismo vinha se traduzindo nas discussões médico-biológicas desde o século anterior, a saber, em termos da oposição entre razão-consciência e animalidade-instintualidade, como dois aspectos constitutivos da natureza humana. Nesses termos, não se investiga exatamente a relação entre pensamento e ser, mas sim aquela entre pensamento e vida, correspondendo à posição “materialista” a tentativa de compreender a consciência e o pensamento como funções vitais.
São claríssimos os ecos dessa discussão no pensamento de Schopenhauer, que faz do ser humano, pelo menos do ponto de vista da história natural, um resultado final de um processo evolutivo em que os graus inferiores de objetivação da Vontade vão sendo sucessivamente superados e integrados em uma unidade superior. A consciência representa o último degrau do processo evolutivo, mas ela não deixa de estar assentada nos degraus inferiores, e, diretamente, no da vida animal, da qual ela surge como um instrumento. “Para o homem comum, sua faculdade de conhecimento é o lampião que ilumina o seu caminho” (W I, 1912, §. 36, p.228). Com isto está declarada tanto a origem quanto a função do conhecimento: ele surge como instrumento da Vontade individual, com a função de permitir aos seres conscientes guiar-se no mundo de modo a perseguir de forma eficiente os objetivos que a Vontade estabelece. Exatamente essa concepção da consciência como resultado da evolução orgânica da matéria acaba por enredar Schopenhauer em um paradoxo que ele mesmo reconhece como tal e que, no entender de Schmidt, apenas aparentemente ele consegue contornar. Deixemos que o próprio Schopenhauer exponha o dilema:
Por outro lado, a lei de causalidade e a consideração e investigação da natureza que dela se seguem conduzem-nos necessariamente à afirmação segura de que, no tempo, qualquer estado da matéria mais complexamente organizado deve ter sido precedido de um mais simples, vale dizer, que os animais existiram antes dos seres humanos, os peixes antes dos animais, as plantas antes destes e o inorgânico antes de qualquer orgânico; por consequência, a massa originária passou por uma longa série de mudanças antes que o primeiro olho pudesse abrir-se. E no entanto a existência daquele mundo inteiro permanece sempre dependente desse primeiro olho que se abriu, tenha ele pertencido até mesmo a um inseto: pois tal olho é o intermediador necessário do conhecimento, para o qual e no qual unicamente existe o mundo, que sem o conhecimento não pode ser concebido uma vez sequer […] Assim, vemos de um lado a existência de todo o mundo necessariamente dependente do primeiro ser que conhece, por mais imperfeito que seja; de outro, vemos esse primeiro animal cognoscente também necessariamente dependente de uma longa cadeia de causas e efeitos que o precede, na qual aparece como um membro diminuto. Essas duas visões contraditórias, pelas quais somos, de fato, conduzidos com igual necessidade, poderiam decerto ser denominadas uma ANTINOMIA da nossa faculdade de conhecimento (W I, 2005, § 7, p. 75-76).
Em seu característico estilo de escrita, em que ousadia poética e rigor filosófico mal se distinguem, Schopenhauer apresenta o momento de nascimento do conhecimento e do mundo que ele conhece como o momento em que o primeiro olhar se abriu. Com o abrir-se do primeiro olho, ou seja, com o aparecimento da consciência e do conhecimento, assoma simultaneamente o mundo fenomênico, e o tempo abraça, num átimo, os infinitos do passado e do futuro. Ao conhecimento, esse mundo infinito no espaço e no tempo se apresenta como visibilidade da Vontade, ou seja, como matéria, com o que esta revela sua absoluta dependência do sujeito do conhecimento, fechando-se assim as portas ao materialismo: “Pois ‘nenhum objeto sem sujeito’ é a proposição que torna para sempre todo materialismo impossível” (W I, 2005, § 7, p. 75). Ocorre que essa mesma matéria é já aparentemente pressuposto daquele primeiro abrir de olhos, pois é apenas por meio de sua evolução através de todos os graus de objetivação da Vontade que se pode formar tanto o olho do inseto quanto o cérebro humano, em que o conhecimento alcança sua máxima potência. Schmidt interpreta a colocação dessa antinomia como um movimento pelo qual Schopenhauer procuraria apresentar posições características do materialismo e do idealismo como igualmente justificadas, porém limitadas e unilaterais. Mas a pretensa equivalência, argumenta o intérprete, baseia-se em um nivelamento indevido entre dois planos diferentes: a idéia de que o conhecimento surge historicamente a partir da matéria não é, de forma alguma, o correlato oposto daquela que afirma que a matéria é representação do sujeito. Esta última afirmação pertenceria a um plano cognitivo, pois diz respeito às relações de conhecimento entre sujeito e objeto, enquanto que a primeira tem caráter real-genético, já que se relaciona a processos que ocorrem no plano da evolução biológica dos organismos. “O ser do espírito conhecedor está relacionado ao ser da matéria de maneira qualitativamente diversa da forma como a matéria, como objeto do conhecimento, se relaciona ao espírito.…Ele [Schopenhauer, n.a.] une crítica do conhecimento e fisiologia, Kant e Cabanis” (Schmidt, 1980, p.150-151). Dir-se-ia estarmos aqui diante de duas concepções diferentes de matéria, pois a matéria concebida como visibilidade da Vontade não coincide com aquela que é pressuposta nas teses defendidas por Schopenhauer sobre a evolução dos organismos. Nestas, sugere Schmidt, “A matéria é inadvertidamente reconhecida como ser independente da consciência” (1980, p.150). Nesse contexto, faz ele oportuna citação de Bloch:
O mundo da Vontade ascende a partir do mecanismo, passando pelo quimismo, animalidade e coisas semelhantes, até a consciência; os degraus dessa subida chamam-se, porém – sem qualquer relação ao sujeito – objetidades ou objetivações da Vontade. Retorna aqui a matéria, uma segunda matéria, por assim dizer, diferente da mera aparência da causalidade (Kausalitätsschein). Em lugar de ser o “puro formal da representação” (bloß Formelles der Vorstellung), torna-se a matéria aqui o núcleo da coisa (Kern der Sache), não mais conceito abstrato, porém até mesmo intuição (Bloch,1972, p.273-274).
De fato, quando Schopenhauer nos diz que “dentes, esôfago, canal intestinal são a fome objetivada; os genitais são o impulso sexual objetivado; as mãos que agarram e os pés velozes já correspondem ao empenho mais indireto da vontade que eles expõem” (WWVI , 2005, § 20, , p.167), a matéria que compõe esses órgãos não nos parece poder reduzir-se à mera representação da Vontade, ou sua visibilidade, mas ganha o caráter de veículo imediato da vontade, sua encarnação. Ainda no dizer de Bloch:
Ao mesmo tempo, ao ascender em suas objetivações, ou seja, ao adentrar o patamar orgânico, especialmente nos animais e homens, a matéria adquire uma nova função: ela deixa de ser mera visibilidade da Vontade e se torna material da Vontade. Mais exatamente, ela se torna a carne que o animal devorador, como objetivação da Vontade mais forte, arranca aos devorados, de Vontade mais fraca, e em torno da qual toda a luta se dá (Bloch, 1972, p.275).
Essa interpretação de Bloch, assumida por Schmidt e com a qual me ponho de acordo, nos sugere que a posição materialista que Schopenhauer pretende contrapor a seu próprio ponto de partida idealista sobre o caráter fenomênico do mundo material identifica-se muito mais com aquele materialismo vitalista, de extração biológica, defendido por Cabanis, Bichat, Boerhaave e Haller do que com aquele de feição cognitiva, que é delineado por Engels. Seria então esse “materialismo da força vital schopenhaueriano” (Schopenhauerscher Lebenskraft-Materialismus) (Bloch, 1972, p. 276-277) que estaria presente nas teses do filósofo sobre a evolução da matéria orgânica, as quais Schmidt situa em um plano real-genético de sua argumentação. Acrescentaria apenas que a superposição apontada pelo intérprete entre este plano e o plano cognitivo reflete a duplicidade que está presente na forma como, para Schopenhauer, o indivíduo consciente, e, particularmente o ser humano, se relaciona com o mundo, a saber, por um lado, como sujeito do conhecimento, e, por outro, como sujeito da Vontade individual. E é essa duplicidade o que nos permite apreciar a originalidade da posição adotada pelo filósofo diante do debate clássico entre materialismo e idealismo. Pois este, em sua formulação tradicional, situa-se totalmente nesse plano que Schmidt chamou de cognitivo, o plano das relações de conhecimento entre sujeito e objeto, ou, para utilizar a expressão de Engels, entre “pensamento e o ser, entre o espírito e a natureza”. Está claro que se assumimos que o mundo é a representação do sujeito do conhecimento, a “a mais alta questão de toda a filosofia” (também no dizer de Engels) permanece sem resposta, e na verdade se mostra como uma falsa questão, pois a consciência e o mundo objetivo são assim declarados como polos que se exigem mutualmente e que só podem ser pensados um por meio do outro, de maneira que perde todo o sentido a pergunta sobre a qual deles caberia prioridade ontológica. É o próprio plano cognitivo que surge da dimensão mais profunda da Vontade, e como instrumento desta. Como diz Schmidt, apoiando-se no texto de Schopenhauer: “ ‘O homem’, conforme se lê nos manuscritos póstumos (im Handschriftlichen Nachlaß)[7], ‘é…um ser prático, pois o primário nele, a Vontade, predomina sobre o intelecto’. Este é secundário. Suas funções estão normalmente a serviço da vida, que incansavelmente procura se preservar e se intensificar” (Schmidt, 1980, p.136). Por isso, nem o sujeito do conhecimento pode gerar seu objeto nem vice-versa, pois é o próprio par sujeito-objeto que é gerado simultaneamente a partir da dimensão mais profunda da Vontade, em que o ser consciente revela ao mesmo tempo sua identidade e sua dependência prática em relação ao mundo exterior. A novidade introduzida por Schopenhauer no contexto do debate entre materialismo e idealismo consiste, pois, em que, em seu pensamento, e, salvo melhor juízo, pela primeira vez na história da filosofia, o par sujeito-objeto é visto como dependente e determinado pelo processo vital, no qual o indivíduo não se depara com o mundo como sujeito do conhecer, mas se liga ativa e praticamente a ele por laços de carecimento, desejo e sofrimento.
Podemos então retornar à sentença dos Manuscritos de Marx, em que o filósofo afirma que “o naturalismo plenamente acabado, ou humanismo se diferencia tanto do idealismo como do materialismo, sendo, ao mesmo tempo, a sua verdade unificadora”. Comentando-a acima, sugeri que o problema da relação entre sujeito e objeto talvez devesse ser enfocado, no contexto do pensamento de Marx, a partir da maneira como o autor concebe o ser humano. E é exatamente uma tal concepção que a sequência imediata do trecho acima citado nos oferece:
O ser humano é imediatamente ser natural. Como ser natural e como ser natural vivente é ele, por um lado, dotado de forças naturais, de forças vitais (mit natürlichen Kräften, mit Lebenskräften ausgerüstet), um ser natural ativo. Essas forças existem nele como disposições e capacidades, como instintos; por outro lado, como ser natural, corpóreo, sensível, objetual, é ele um ser sofredor, condicionado e limitado, como o é também o animal e a planta, ou seja, os objetos de seus instintos existem fora dele, como objetos independentes dele.… A fome é uma necessidade natural; ela necessita, portanto, de uma natureza fora dela, de um objeto fora dela, para se satisfazer, para se aquietar. A fome é o anseio confesso de meu corpo por um objeto existente fora dele, indispensável à sua integridade e à exteriorização de seu ser (Marx, 1968, p.578).
Estamos aqui diante de uma concepção do ser humano que se poderia seguramente chamar de materialista, justamente naquele sentido vitalístico que historicamente se desenvolve nas discussões médico-biológicas setecentistas e oitocentistas e que está implicado quando Bloch nos fala do “materialismo da força vital schopenhaueriano”. Pois, em contraposição a concepções espiritualistas ou idealistas tradicionais, aponta-se aqui a dimensão corpórea, vital e instintual do ser humano como sua dimensão essencial. Já essa dimensão é concebida como relação profunda do ser humano com o meio natural, caracterizada pelo intercâmbio material ininterrupto e inelutável entre ambos, o qual, por sua vez, é determinado por um eterno desejar, fruto de um carecer essencial e inextinguível. Facilmente se percebe as similaridades existentes entre essa concepção marxiana do ser humano e aquela de Schopenhauer, que também situa no campo corpóreo da instintualidade e do desejar o seu fundamento essencial. A proximidade que aqui se insinua é tornada bem mais eloquente logo adiante no texto dos Manuscritos, em que vemos exposto com mais clareza o aspecto vitalístico da concepção marxiana de ser humano:
O homem, como ser objetual sensível é, por isso, um ser sofredor, e como seu sofrimento é o sofrimento de um ser senciente, ele é um ser passional (ein leidenschaftliches Wesen). A paixão, die Passion, é a força essencial do ser humano, que luta energicamente pelo objeto (Marx, 1968, p. 579).
Creio que, exceto por alguma reverberação do linguajar hegeliano, uma tal passagem não nos surpreenderia significativamente se figurasse em um texto de Schopenhauer. Em todo o caso, não difere essencialmente da afirmação schopenhaueriana de que o ser humano, em sua essência, é nada mais que Vontade. Pois vemos aqui figurar nada menos do que a paixão-sofrimento como força motora essencial do homem. Carecimento, sofrimento e desejo são as forças anímicas que mais profundamente determinam a ação do homem, e, portanto, também sua essencialidade. E assim é que a concepção de ser humano se revela um ponto temático convergente ou, pelo menos, capaz de estabelecer um diálogo interessante, entre essas filosofias que em tantos aspectos drasticamente divergem. Creio, aliás, que essa convergência se mantém no que respeita às consequências que essa concepção do ser humano tem em relação ao debate entre materialismo e idealismo. Com efeito, a sentença dos Manuscritos da qual partimos aponta para uma complementaridade entre ambas as posições, sendo que o ponto de vista a partir do qual essa complementaridade se revela é o que o filósofo chama de o naturalismo plenamente realizado ou humanismo. A verdade de ambos, portanto, se revelaria justamente na medida em que são absorvíveis no interior de uma perspectiva humanista unificadora, enquanto que sua falsidade se mostraria na medida em que tendem a negar a possibilidade de uma tal perspectiva, vale dizer, em sua tendência em afirmar-se de maneira unilateral, recusando-se a reconhecer o momento de verdade de sua oponente. Ao fazer isso, torna-se o materialismo, para usar expressão do próprio Marx, hostil ao ser humano (menschenfeindlich) (Marx, 1962, p.136).
Essa expressão aparece em uma subdivisão do sexto capítulo de “A sagrada família”[8], em que Marx aprecia criticamente o materialismo moderno, especialmente o francês do século XVIII. Ela designa justamente o materialismo que concede primazia ontológica a uma matéria concebida como realidade absolutamente objetiva, exterior e independente do ser humano, tendendo a fazer derivar dela tudo o que pertence ao âmbito do humano, inclusive a consciência. A rigor, sugere o texto de Marx, a tese de que a consciência deriva da matéria não é necessariamente anti-metafísica, já que o teólogo escolástico Duns Scotus já se perguntava, em pleno medievo, se a matéria quiçá não poderia pensar. Ao perseguir esta idéia, ele teria forçado “a própria teologia a pregar o materialismo” (Marx, 1962, p.135). Mas o foco de Marx é o materialismo moderno e, segundo sua própria designação, mecânico, culminação radicalizada de uma tendência intelectual geral pela qual pensadores setecentistas franceses e ingleses procuraram se contrapor à metafísica. Tendo como ponto de partida a física de Descartes e o Novum Organum de Bacon, passaria esse materialismo mecânico e moderno por Hobbes e Locke até encontrar em La Mettrie sua mais acabada expressão, quando este, atualizando Scotus, declara a alma como um modus do corpo e explica as idéias como movimentos mecânicos (Marx, 1962, p.133). Durante essa trajetória vai a matéria despojando-se de toda projeção subjetiva até tornar-se substrato morto totalmente objetivo e estranho ao ser humano. Ponto decisivo nesse caminho teria sido Hobbes. Em Bacon, o fosso profundo entre matéria e ser humano ainda não se haveria aberto. Ali, a matéria ainda “sorri ao homem como um todo, em brilho poético e sensível” (Marx, 1962, p.135). Em seu desenvolvimento hobbesiano, torna-se o materialismo, diz Marx, unilateral:
A sensibilidade perde suas flores e se torna a sensibilidade abstrata do geômetra. O movimento físico é sacrificado em proveito do movimento mecânico ou matemático; a geometria é proclamada a ciência principal. O materialismo se torna hostil ao ser humano (1962, p.136).
A matéria não é mais então apenas exterior e independente do ser humano, mas a origem de tudo o que é humano: “todo sofrimento humano é um movimento mecânico, que acaba ou se inicia. … O homem está sujeito às mesmas leis que a natureza. Poder e liberdade são idênticos” (1962, p.136).
Está claro que se o homem está sujeito às mesmas leis que governam a natureza a liberdade é ilusão e está excluída toda possibilidade de emancipação humana. As leis da matéria excluem, por definição, a indeterminação e, portanto, a liberdade, de modo que sujeitar o humano ao material é o mesmo que negar que algum dia a História humana possa ser o produto da decisão racional e livre dos seres humanos. Pensamento e corporeidade pertencem ao humano, mas tanto a consciência pura quanto a matéria pura o negam. Como diz Marx: “A fim de poder superar o Espírito descarnado e hostil ao homem (den menschenfeindlichen, fleischlosen Geist) em seu próprio terreno, o materialismo tem de mortificar sua própria carne e tornar-se ascético” (1962, p.136). E assim é que, se Bauer, Feuerbarch, Stirner, etc… rejeitavam a metafísica de Hegel por supor esta uma razão em si, independente do ser humano, como determinante da História, Engels e muitos marxistas posteriores arriscaram-se a cair no extremo oposto, ao subordinar o humano a uma realidade absolutamente exterior ao homem e concebida, por princípio, como independente dele – diante do que bem se poderia questionar se não teria sido melhor permanecer com a idéia absoluta.
Já no que se refere à origem da consciência, o materialismo vitalístico que se desenha nos Manuscritos abre o caminho para outra comparação interessante com Schopenhauer. A esse respeito, cabe trazer à memória algumas passagens de A ideologia alemã, como a seguinte, por exemplo: “A produção das idéias, representações, da consciência, está primeiramente imbricada de forma imediata na atividade material e no intercâmbio material dos homens, linguagem da vida efetiva” (Marx-Engels, 2004, p.115). Vê-se que, embora Marx fale em atividade material, ou intercâmbio material, a consciência não é, para ele, de forma alguma um produto da matéria, mas sim da vida, pois ela é nada menos que linguagem da vida efetiva. Aquilo que se pode corretamente chamar de o materialismo marxiano se expressa de forma clara e sucinta logo adiante: “Não é a consciência que determina a vida, mas a vida[9] que determina a consciência” (Marx-Engels, 2004, p.116). Mas - e aqui reside a diferença decisiva em relação a Schopenhauer, no que refere à relação entre consciência e vida - não se está falando da vida orgânica individual, mas sim da vida social, a qual apenas é tornada possível pelo trabalho, como processo pelo qual o ser humano transforma a natureza e a si mesmo. Pode-se distinguir o ser humano dos animais, diz a Ideologia Alemã pelo que se quiser: pela consciência, pela religião, ou o que mais seja, mas os seres humanos mesmos apenas começam historicamente a se distinguir dos animais a partir do momento em que passam a criar as condições de sua existência mediante o trabalho (Marx-Engels, 2004, p.107). A partir de então, toda a sua relação com a natureza tende a ser mediada pelo trabalho e é isso que os torna efetivamente humanos. Mas o trabalho, em sua definição marxiana, é essencialmente atividade coletiva, social, é processo vital, ativo e metabólico pelo qual a sociedade como um todo interage com a natureza. Por isso, ele não pensa o surgimento da consciência a partir da vida individual e da interação do indivíduo com a natureza, mas sim a partir da vida social, entendida a sociedade como entidade vivente e cuja vida se compõe do entrelaçamento de todas as vidas individuais que a compõem. E sendo o processo de trabalho, como fator determinante desse entrelaçamento, essencialmente coletivo, ele demanda o surgimento de meios de comunicação e interação intersubjetivos, dos quais o mais importante é a linguagem. E a linguagem, diz Marx, é nada menos que a primeira forma da consciência, que, portanto, é, desde sua origem, fato coletivo[10]. “A consciência [Bewusstsein]”, diz Marx, “não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente [bewusste Sein], e o ser dos homens é o seu processo de vida real” (2004, p.115). A consciência individual não pode jamais ser outra coisa que a consciência das relações que perfazem o processo de vida social, ou seja, das relações entre o indivíduo e os outros seres humanos e com a natureza.
Porém essas relações não estão dadas como fatos brutos, mas são postas justamente pela vida da sociedade, apresentando-se assim como resultado histórico da interação transformadora em que esta se mantém com a natureza. Consciência e pensamento são, portanto, fatos históricos. A historicidade afeta, entretanto, ambos os polos da relação sujeito-objeto. Não apenas a consciência é histórica, mas também aquilo com que ela se defronta, designemo-lo por objeto, matéria ou natureza. Esse é um dos pontos principais da crítica de Marx a Feuerbach: o materialismo deste não seria histórico, pois concebe a natureza ou matéria como fato bruto, sem perceber que se trata de um produto do mesmo processo que deu origem à consciência. Para Marx, não há nenhum mundo objetivo senão aquele que surge do processo histórico do trabalho, que tanto conforma o aspecto exterior e objetivo do mundo quanto as formas subjetivas pelas quais necessariamente ele é percebido. É por isso que, assim como para Schopenhauer, para ele é um contrassenso postular-se um objeto puro, totalmente independente do sujeito. A suposta natureza intocada, da qual ainda se podia falar em sua época, assim como a intocável e imperscrutável coisa-em-si, ou a matéria pura daquele materialismo que ele designa como mecânico, nada representam para o sujeito humano, simplesmente não existem para ele, motivo pelo qual não podem, a rigor, serem consideradas como objeto. E note-se que nem mesmo aquela matéria que surge dos laboratórios científicos poderia, segundo Marx, aspirar ao status de “objeto puro”: “Feuerbach fala nomeadamente da intuição da ciência da natureza, ele alude a segredos que apenas se revelam aos olhos do físico e do químico; mas, sem a indústria e o comércio, onde estaria a ciência da natureza?” (2004, p.10) A postulação desse objeto puro seria então a principal deficiência, não apenas de Feuerbach, mas de todo materialismo até ele:
A principal deficiência de todo materialismo até agora (o de Feuerbach inclusive) é que o objeto, a efetividade, a sensibilidade são compreendidos apenas sob a forma do objeto, da intuição (der Anschauung), porém não como atividade sensível humana, práxis, não subjetivamente (Marx, 1998, p.19).
Nesta conhecidíssima primeira tese contra Feuerbach, há uma clara refutação da tese do objeto ou matéria puros. Pois vemos aqui Marx, para escândalo de muitos materialistas, demandando que o objeto seja concebido subjetivamente, ou seja, em sua relação com o sujeito. Esta, porém não é uma relação essencialmente cognitiva, mas sim uma relação ativa, pela qual o objeto do conhecimento é constituído. Por desconhecer o papel desempenhado pela atividade humana na conformação histórica do objeto sensível, Feuerbach só pode contemplá-lo, diz Marx, “ ‘com os olhos’, ou seja, através dos ‘óculos’ do filósofo” (Marx-Engels, 2004, p.8). Em suma, Feuerbach permaneceria preso ao paradigma do conhecimento, que opõe o sujeito ao objeto, ou, para falar como Engels, o pensar ao ser, no interior do qual também se mantém cativa toda a tradicional disputa entre materialismo e idealismo. Mutatis mutandis, creio que algo de essencial dessa crítica é antecipada em 30 anos por Schopenhauer, quando este, ao início do segundo livro do primeiro tomo de O mundo como Vontade e Representação, critica toda a filosofia anterior por haver-se mantido no interior desse paradigma do conhecimento, vale dizer, na oposição sujeito-objeto, no que respeita ao problema do conhecimento da coisa-em-si. Esta teria de permanecer inalcançável e incognoscível sempre que a consciência fosse considerada como consciência pura, como cabeça de anjo alada, sem corpo, ou que o objeto fosse considerado como realidade independente do sujeito. A solução do enigma só seria possível se a própria relação sujeito-objeto fosse compreendida como enraizada em uma dimensão mais essencial da existência humana, nomeadamente sua dimensão vital e pulsional, na qual a relação entre o homem e o mundo não se dá na forma do conhecer, mas é determinada pela identidade profunda entre ambos como manifestações da mesma Vontade[11].
Assim sendo, a forma pela qual Marx procura superar a dicotomia entre sujeito e objeto o aproxima significativamente de Schopenhauer: pois ele também a concebe como dependente e derivada de uma dimensão básica da existência humana em que sua unidade com a natureza se revela, e que é determinada, em última análise, pela sua inescapável condição de ser natural vivente e da daí resultante luta por garantir as condições de sua existência. Mas desse enraizamento da consciência na dimensão prática da vida humana resulta, tanto para Schopenhauer como para Marx, a imposição de sérios limites à razão humana. Nascida como instrumento, para Schopenhauer, da Vontade, para Marx, da produção, mas, em todo o caso, como instrumento da luta humana pela existência, a razão aparece como condicionada pelos objetivos em virtude dos quais veio à luz. Mas o fato é que, para ambos, esse enraizamento da consciência no plano da vida não significa sua determinação absoluta, seja pela Vontade, seja pelo modo de produção, pois do contrário chegariam ambos, por caminhos diferentes, ao mesmo impasse a que se chega pela via daquele materialismo que Marx designou como mecânico: o impasse da impossibilidade da emancipação, e tanto a filosofia de Marx quanto a de Schopenhauer só ganham sentido sob a suposição dessa possibilidade. Em Schopenhauer, a emancipação é possível na medida em que o conhecimento pode libertar-se da tirania da Vontade, criando as condições para que esta negue a si mesma, seja momentaneamente, na contemplação da obra de arte, ou permanentemente, na renúncia ascética ao mundo. Em Marx, a emancipação é possível porque a consciência, apesar de todos os seus condicionamentos sociais, pode colocar-se de forma crítica diante do mundo e exigir a sua negação, não a negação ascética, mas a prática, por meio das forças revolucionárias da sociedade. Sem dúvida são concepções absolutamente divergentes sobre a natureza da emancipação possível. Kautsky, em seu texto sobre Schopenhauer apóia-se justamente nessa notável diferença para estigmatizar o filósofo como o pensador da resignação burguesa, conservadora e reacionária. “O proletariado”, afirma triunfante, peremptório, “ainda não forneceu nenhum convertido à nova religião, e tampouco fornecerá…
…Trabalha, muito mais, zelosamente por sua redenção, e crê que, até certa medida, essa será a redenção da humanidade, pelo menos enquanto essa estiver sob a influência do capitalismo; mas ele não busca a redenção na santidade, e nenhum reaquecimento do budismo, tampouco como as revivescências do cristianismo, mudarão isso (Kautsky, 1955).
O irônico é que o próprio Kautsky não passa à História exatamente como pensador revolucionário, e tampouco ele escapou da pecha de conservador e reacionário. Também ele pregou sua forma de resignação, não a metafísica, é certo, mas a do reformismo, que é uma espécie de “reaquecimento do budismo” no campo da Realpolitik. Talvez não seja ocioso perguntar qual das duas formas de resignação mais se afasta do pensamento de Marx. Mas nem é preciso perguntar qual das duas influenciou de forma mais danosa a consciência das massas exploradas.
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Contribuição de autoria
1 – Márcio Benchimol Barros
Doutorado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas
https://orcid.org/0000-0002-3137-9098 • benchimolbarros@gmail.com
Contribuição: Escrita – Primeira Redação
Como citar este artigo
BARROS, M. B. Materialismo e ser humano em Schopenhauer e Marx. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria - Florianópolis, v. 15, n. 1, e88925, p. 01-26, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378688925. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
[1] Cf. por exemplo: texto número 12 do primeiro capítulo de “Para além de bem e mal” (Nietzsche, 1992, p.18-19).
[2] A temática é abordada em profundidade por Eduardo Brandão, que, em seu A concepção de Matéria na obra de Schopenhauer, chama a atenção para o movimento do pensamento schopenhaueriano pelo qual a matéria passa de mera visibilidade da Vontade, como pressuposto formal da representação, à posição de substrato eterno e indestrutível de tudo o que aparece no mundo fenomênico (Brandão, 2009).
[3] Cf, por exemplo: a primeira das Teses sobre Feuerbach (Marx, 1998, p.19).
[4] Engels identifica como uma limitação específica do materialismo do século XVIII “[…] a sua incapacidade de compreender o mundo como um processo, como realidade envolvida em uma evolução histórica. Isto correspondia ao estágio em que se encontravam as ciências naturais e a maneira metafísica, ou seja, antidialética de filosofar que a ele correspondia” (Engels, 1895, p.19).
[5] “A fim de que pudesse aparecer em sua significação própria, a idéia do homem precisou ser apresentada, não de forma isolada e apartada, mas sim acompanhada da sequência dos degraus inferiores, através de todas as formações dos animais, através do reino vegetal até o inorgânico: todos estes degraus se complementam em uma objetivação total da Vontade; eles são pressupostos pela idéia do homem assim como a floração das árvores pressupõem folhas, galhos, tronco e raiz: eles constituem uma pirâmide cujo vértice é o homem” (W I, 1912, §. 28, p.189).
[6] Sobre o tema, ver: (Safranski, 2010, capítulo 5, p.78-99)
[7] Schmidt (1980, p.161) apresenta a seguinte referência para o trecho citado: Schopenhauer, Der handschrifiliche Nachlaß, herausgegeben von Arthur Hübscher, III. Band, Frankfurt am Main 1970, S. 578.
[8] O texto, intitulado “Batalha crítica contra o materialismo francês” (Kritische Schlacht gegen den französischen Materialismus) está incluído em uma subdivisão maior do sexto capítulo intitulada “Terceira incursão da crítica absoluta” (Dritter Feldzug der absoluten Kritik).
[9] No texto original não há marcação em itálico.
[10] “Die Sprache ist so alt, wie das Bewußtsein – die Sprache ist das praktische auch für andre Menschen existirende, also auch für mich selbst erst exisitirende wirkliche Bewußtsein, & die Sprache entsteht, wie das Bewußtsein, erst aus dem Bedürfniß, der Nothdurft des Verkehrs mit andern Menschen. Das Bewußtsein ist also von vornherein schon ein gesellschaftliches Produkt, & bleibt es, solange überhaupt Menschen existiren" (Marx-Engels, 2004, p.16).
[11] Cf: (WI, 2005, § 17 e 18, p.151-160).