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Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 15, esp. 1, e88862, p. 01 – 12, 2024

DOI: 10.5902/2179378688862

ISSN 2179-3786

Submissão: 01/09/2024 Aprovação: 25/09/2024 Publicação: 30/10/2024

O PERFIL DO FILÓSOFO E SEU CARÁTER EDUCATIVO.. 2

SCHOPENHAUER, EDUCAÇÃO E CULTURA. 6

REFERÊNCIAS. 13

 

Schopenhauer: Sociedade e Cultura

Schopenhauer como educador: 150 anos da terceira Extemporânea de Nietzsche

Schopenhauer as educator: 150 years since Nietzsche's third Untimely

Flamarion Caldeira RamosIÍcone

Descrição gerada automaticamente

IUniversidade Federal do ABC, Santo André, SP, Brasil

RESUMO

Pretende-se oferecer algumas reflexões sobre os conceitos de cultura, formação e educação em Schopenhauer tendo como ensejo o centésimo quinquagésimo aniversário da terceira Consideração Extemporânea de Friedrich Nietzsche, intitulada “Schopenhauer como Educador” (1874). Não pretendemos, nesse momento, tomar em consideração a filosofia de Nietzsche e o lugar que nela desempenha o referido texto em sua filosofia juvenil ou madura. Trata-se de considerar as contribuições que a filosofia de Schopenhauer oferece para a temática abordada no texto de Nietzsche.

Palavras-chave: Schopenhauer; Nietzsche; educação; genialidade; cultura

ABSTRACT

The aim is to offer some reflections on the concepts of culture, formation and education in Schopenhauer, taking as an opportunity the one hundred and fiftieth anniversary of Friedrich Nietzsche's third Untimely Consideration, entitled “Schopenhauer as Educator” (1874). At this point, we do not intend to take into consideration Nietzsche's philosophy and the place that the aforementioned text plays in his youthful or mature philosophy. The aim is to consider the contributions that Schopenhauer's philosophy offers to the theme addressed in Nietzsche's text.

Keywords: Schopenhauer; Nietzsche; education; genius; culture

“explicar como nós todos podemos educarmo-nos, por meio de Schopenhauer, contra o nosso tempo

 “...zu erklären, wie wir Alle durch Schopenhauer uns gegen unsre Zeit erziehen können”

F. Nietzsche, Schopenhauer como Educador (1874)

Para Luís Fernandes do Nascimento in memoriam

o perfil do filósofo e seu caráter educativo

A terceira Consideração Extemporânea, publicada em 1874, é dedicada a Schopenhauer como Educador. Um texto complexo em que o filósofo de Danzig é representado como um tipo idealizado de filósofo tendo em vista uma concepção educacional que teria seu sentido no engendramento do gênio. Como o próprio autor confessará mais tarde, esse terceiro ensaio fala do seu próprio “vir a ser”, de modo que nele assume a palavra não “Schopenhauer como Educador”, mas seu oposto “Nietzsche como Educador” (Ecce Homo, p. 71). De qualquer forma em meio a suas oito seções, é na terceira que Nietzsche descreverá a trajetória do autor de O mundo como vontade e representação e os perigos com os quais ele teve que lidar para desenvolver sua filosofia. Aqui a descrição é a do vir a ser Schopenhauer enquanto filósofo, não apenas como autor, mas como homem. Se valendo dos dados biográficos disponíveis à época, Nietzsche apresenta uma penetrante imagem do filósofo de uma tal maneira em que sua obra não se separa da sua vida, descrição análoga àquela oferecida no escrito não publicado do ano anterior sobre os filósofos pré-socráticos, A filosofia na época trágica dos gregos.

Antes de narrar a trajetória do filósofo, Nietzsche descreve a “primeira impressão fisiológica” que Schopenhauer nele provocou, “aquela difusão mágica da força mais íntima de um rebento da natureza para outro, que segue do primeiro e mais leve contato” (Schopenhauer como Educador, p. 19)[1]. Confessa ainda ser um leitor ávido e atento: “Faço parte dos leitores de Schopenhauer que, depois de terem lido a primeira página dele, sabem com determinação que lerão todas as páginas e ouvirão cada palavra dita por ele” (p. 15). Escrevendo para si mesmo, sem preocupação em aparecer ou representar o que não é, e sem tentar enganar a si mesmo ou ao leitor, Schopenhauer é honesto também como escritor e comparado a Montaigne[2]. Segundo Nietzsche, Schopenhauer compartilha ainda com Montaigne de uma “serenidade efetiva que alegra (eine wirkliche erheiternde Heiterkeit)” (p. 17). Em suma, “ele é honesto, porque fala e escreve por si mesmo e para si mesmo; sereno, porque venceu o mais pesado através do pensamento; e constante, porque ele assim deve ser. Sua força aumenta como uma chama na calmaria, reto e leve para cima, firme, sem tremores e inquietações” (p. 19).

O “exemplo” Schopenhauer é então analisado na terceira seção que descreve os perigos em meio aos quais o filósofo avançou em sua época. O primeiro desses perigos foi o isolamento, a melancolia que o poderia ter abatido com o silêncio dos contemporâneos em relação à sua obra. O segundo perigo, o “desespero da verdade”, perigo que acompanha “todo pensador que enceta seu caminho desde a filosofia kantiana, pressuposto que ele seja um homem forte e íntegro no sofrer e desejar, e não apenas uma máquina matraqueadora de pensar e calcular” (p. 26). Pelo exemplo daquele que sucumbiu diante desse perigo, Heinrich von Kleist e seu trágico destino, Schopenhauer é caracterizado como portando uma “natureza de bronze”, como Beethoven, Goethe e Wagner, resistindo a esses perigos e também ao terceiro pela duplicidade de sua natureza que o impelia ora para o gênio, ora para o santo. Apesar dessa duplicidade, a natureza inquebrantável do gênio Schopenhauer resistiu e superou o perigo do enrijecimento intelectual e moral. Embora descreva todos esses perigos como sendo ameaçadores para “nós todos”, Nietzsche descreve a luta de Schopenhauer contra eles e contra aquilo que ele teve que combater como homem do seu tempo. E nessa última batalha, Schopenhauer ao superar a visão estreita de sua época pôde se colocar na posição de um “juiz da vida”, lançando um olhar sobre a existência como um todo e foi assim capaz de dar uma resposta à questão definitiva: “afirmas tu, do mais profundo do coração, esta existência? Ela te basta? Queres ser seu porta-voz, seu redentor? Pois é suficiente um único sim! Verdadeiro, de tua boca – e a vida tão gravemente acusada será libertada. – O que ele responderá? – A resposta de Empédocles” (p. 35).

Sabendo que essa última indicação permaneceu sem entendimento, Nietzsche passa para outros temas a partir da seção seguinte. Naquela que talvez seja a seção mais difícil do texto, a quarta, Nietzsche desenvolve sua concepção de cultura a partir de três imagens de homem, o homem de Rousseau, o homem de Goethe e o homem de Schopenhauer. Aqui percebe-se o uso do caso Schopenhauer como exemplo do filósofo extemporâneo, que pretende superar as limitações da cultura alemã da época, contra o filisteísmo por um lado, e contra a cultura erudita, por outro. Além disso, na seção final do texto, Nietzsche empreende uma importante reflexão sobre a relação entre a filosofia e o Estado, a partir das considerações de Schopenhauer em seu texto Sobre a filosofia universitária, publicado nos Parerga e Paralipomena de 1851. Schopenhauer é abordado não apenas como aquele que colocou esse problema na modernidade – problema esse que já se colocava na filosofia grega, sobretudo a partir da teoria política de Platão – mas também como aquele que defendeu a dignidade da filosofia diante de sua degradação levada à cabo pela filosofia acadêmica da época.

Essa imagem idealizada de Schopenhauer, bastante influenciada por Wagner, essa concepção de “gênio” para a qual concorrem diversas influências, vai se transmutar ao longo da obra de Nietzsche, mas alguns traços desse perfil de Schopenhauer ainda aparecerão em alguns momentos da obra intermediária e madura de Nietzsche. Mas o que nos interessa no presente texto é o seguinte: o que Schopenhauer afirmava expressamente sobre alguns dos principais conceitos abordados no texto de Nietzsche, como formação, educação e cultura? Para abordar a presença de Schopenhauer e Nietzsche na cultura ocidental no presente (século XXI, um século e meio após a publicação do texto “extemporâneo”), valeria começar pela contribuição de Schopenhauer sobre o tema.

Abordarei nesse texto especialmente as concepções de Schopenhauer sobre cultura e educação, deixando de lado a questão sobre o gênio, tema central do escrito nietzschiano. Ao contrário dos dois primeiros, o tema da genialidade é bem mais evidente na filosofia de Schopenhauer e, portanto, melhor conhecido. Embora o conceito de gênio informe a concepção de cultura e educação em Schopenhauer, vou deixá-lo aqui em segundo plano.

SCHOPENHAUER, EDUCAÇÃO E CULTURA

Schopenhauer dedicou poucas páginas especificamente dedicadas ao tema da educação, assim como da formação ou cultura (Bildung ou Kultur). Prova disso é o fato de que nos léxicos e vocabulários sobre sua filosofia, essas palavras não são mencionadas no rol de palavras-chave de seu pensamento. O curto capítulo 28 do segundo volume dos Parerga e Paralipomena, chamado justamente “Sobre educação” (Über Erziehung) contém, entretanto, o essencial do pensamento de Schopenhauer sobre a temática.

O fundamento de sua teoria da educação é, como quase sempre, sua concepção da primazia do conhecimento intuitivo em relação ao pensamento abstrato. A educação que se baseia na experiência e no conhecimento intuitivo será chamada educação natural e a educação baseada no conhecimento abstrato receberá o nome de educação artificial. Abaixo cito o parágrafo inicial do texto que contém o essencial da concepção de Schopenhauer[3].

Segundo a natureza do nosso intelecto, os conceitos surgem por meio das intuições, as quais existem, portanto, antes deles. Quando se percorre esse caminho, como é o caso daquele que tem como mestre e livro apenas a própria experiência, então a pessoa sabe muito bem quais são as intuições que pertencem a seus conceitos e são representadas por eles: ela conhece a ambos de maneira exata e maneja, portanto, adequadamente tudo que se lhe apresenta. Podemos nomear esse caminho a educação natural.

Por outro lado, na educação artificial, o ditado, o ensino e a leitura deixam a mente repleta de conceitos, antes que exista qualquer conhecimento amplo do mundo intuitivo. As intuições para aqueles conceitos serão trazidas posteriormente pela experiência: até lá, porém, eles serão mal-empregados e, assim, as coisas e as pessoas julgadas, vistas e tratadas de forma falsa. É assim que a educação faz as pessoas parecerem tortas, e é por isso que na nossa juventude, depois de muito tempo de aprendizagem e leitura, muitas vezes entramos no mundo em parte simplórios, em parte mal-humorados e agora nos comportamos nele às vezes com medo, às vezes com presunção; porque nossas cabeças estão cheias de conceitos que agora tentamos aplicar, mas quase sempre aplicamos de forma incorreta. Esta é a consequência daquele ysteron proteron através do qual, contrariamente ao desenvolvimento natural do nosso espírito, primeiro recebemos os conceitos e depois as intuições [H: por meio do que os educadores em vez de desenvolverem na criança a capacidade de reconhecer, julgar e pensar, apenas tentam encher a cabeça de pensamentos estranhos e previamente fabricados]. Depois, uma longa experiência tem que corrigir todos os julgamentos que surgem da aplicação incorreta dos conceitos. Isso raramente dá certo. É por isso que tão poucos eruditos têm o bom senso que é frequente entre os completamente iletrados. (PP, Cap. 28, § 372, SW, VI, p. 690-1).

A ideia básica dessa concepção de educação consiste em respeitar a ordem natural das coisas, na qual o original precede a cópia, a intuição precede o conceito. E no parágrafo seguinte Schopenhauer afirma a importância do respeito a essa ordem natural que deve estar presente desde a educação básica na formação de uma pessoa:

Por isso, devemos procurar investigar a sequência propriamente natural dos conhecimentos e então de acordo com ela, dar a conhecer metodicamente às crianças as coisas e relações do mundo sem colocar penugens (Flausen) em suas cabeças que depois frequentemente não se deixam erradicar” (PP, Cap. 28, §. 373, SW, VI, p. 691).

Numa nota a esta passagem, presente na edição Hübscher, Schopenhauer descreve como desafortunada a tendência de ensinar palavras a crianças antes que elas compreendam as coisas mesmas, o que se expressa no saber erudito e acadêmico, o qual, segundo o autor, consiste num simples “palavreado” (Wortkram). E aqui chegamos num dos pontos mais conhecidos da crítica de Schopenhauer à cultura filosófica da época, a saber, sua crítica ao saber erudito e à filosofia universitária. A essas duas, que no fundo se confundem, Schopenhauer dedica dois ensaios nos Parerga e Paralipomena: o capítulo 21, chamado Sobre erudição e eruditos, ligeiramente maior que o capítulo 28, e o longo ensaio sobre a filosofia universitária no primeiro volume. No primeiro desses textos, Schopenhauer opõe ao erudito o diletante, o especialista àquele que se dedica con amore a seu objeto, sem qualquer interesse de ordem material ou política[4].

Esses ensaios, ainda que não totalmente isentos de ressentimento e rancor, guardam, contudo, uma estreita conexão com a concepção schopenhaueriana de educação e formação, a qual, por sua vez, como visto acima, se conecta estritamente com sua teoria do conhecimento. Ou seja, a principal crítica de Schopenhauer à cultura erudita de sua época consiste em rejeitar a primazia do saber abstrato que ele observava nessa cultura, a culminação da mesma sendo justamente a filosofia do assim chamado idealismo alemão em Fichte, Schelling e Hegel e também aquilo que se seguiu a essa época, o historicismo, a tendência a colocar a história da filosofia no lugar da filosofia ela mesma.

A tese central do libelo Sobre a Filosofia Universitária (Schopenhauer) está na contraposição entre a verdadeira e a falsa filosofia. De um lado está a filosofia não acadêmica, que teria como único objetivo a verdade; de outro, a filosofia como profissão, na qual o conhecimento filosófico seria praticado como meio de subsistência (ganha-pão) ou de conquista de prestígio. Então, por um lado teríamos o verdadeiro filósofo que toma a filosofia como um fim em si, e por outro, o pseudofilósofo (o sofista, segundo Schopenhauer) que a toma como meio. Essa concepção se baseia na tese segundo a qual o verdadeiro conhecimento deve estar livre de qualquer intenção prévia, isto é, livre de qualquer meta previamente assumida – a filosofia não é vista como uma atividade que serve a algum fim, seja a tentativa de alcançar uma boa “qualidade de vida”, a utilidade ou mesmo a justiça social, mas é simplesmente o exercício de conhecimento puro e objetivo do mundo. Justamente essa atividade livre do conhecimento, não submetido à servidão da vontade de viver, se revela no gênio artístico que tem acesso à forma mais objetiva de conhecimento, a intuição das ideias. Também essa forma de conhecimento se manifesta no sujeito virtuoso que se eleva acima do egoísmo e pratica o “misticismo prático” da compaixão, a qual pode leva-lo até a máxima expressão da genialidade “em sentido ético” que é a santidade[5]. Mas também o filósofo, mesmo se utilizando do instrumento de servidão da vontade, o conhecimento submetido ao princípio de razão, ao se valer de conceitos abstratos, se eleva, porém, a uma forma de conhecimento puramente objetiva e anuncia a libertação do intelecto em relação àquela servidão. Portanto, é por essa exigência de liberdade radical que Schopenhauer critica qualquer tipo de filosofia determinada por interesses alheios ao próprio conhecimento.

Quando se coloca essa crítica ao lado de suas concepções filosóficas fundamentais, vê-se que seria equivocado reduzi-la à sua experiência malsucedida como professor universitário. Quando se lê seus textos preparatórios para as preleções na Universidade de Berlim, constata-se que essa concepção é anterior ao fracasso em arregimentar estudantes para seus cursos[6].

No primeiro volume das suas Preleções, encontramos o texto Introdução ao estudo da filosofia, no qual o autor reflete sobre as expectativas que ele tem, como professor, em relação aos estudantes, assim como sobre os pressupostos que os mesmos devem trazer para a compreensão de sua abordagem. O conhecimento da história da filosofia é essencial, pois ela é vista como a sucessiva tentativa de oferecer chaves para a decifração do enigma da existência. Toda a filosofia se insere nessa história e Schopenhauer, mesmo recusando uma visão continuísta da história, não deixa de reconhecer a historicidade do pensamento. Afirmação surpreendente, mas que é logo matizada pelo caráter idealista dessa visão, pois o filósofo afirma na sequência: “o que atua sobre os filósofos é apenas a história da filosofia, não a história universal” (Schopenhauer, 1986, p. 99-100). Apesar da reconhecida importância da história da filosofia, Schopenhauer afirma que ela não deveria substituir o ensino da filosofia ela mesma – daí a necessidade de não se deter nela por muito tempo. Schopenhauer chega a afirmar que o estudo da história da filosofia deveria ocupar um único semestre!

A crítica contra o “saber erudito” decorre daí: quem se detém no saber histórico e erudito substitui a busca pela verdade pelo mero saber histórico, procura saber não o que é a verdade, mas o que foi dito sobre ela. Cito o professor Schopenhauer:

Na medida em que recomendo a vocês o estudo da história da filosofia, não quero, porém, como acontece frequentemente, que a história da filosofia mesma se torne sua filosofia. Pois isso significa ao invés de querer pensar e pesquisar, só querer saber aquilo que outros pensaram e acumular essa notícia morta ao lado de outras (1986, p. 101).

Essa visão crítica de Schopenhauer, não apenas sobre Hegel e a filosofia alemã, mas sobre a cultura universitária de sua época, o historicismo e o saber especializado, parece ter encontrado uma grande audiência e talvez seja um dos aspectos de sua filosofia mais apreciados atualmente. Vemos da parte de estudantes e estudiosos da filosofia, dentro e fora da Academia, uma grande insatisfação com a filosofia universitária. Isso nem tanto pela relação da filosofia universitária com o Estado e a Igreja, um dos principais aspectos da crítica de Schopenhauer e Nietzsche, aspecto esse em geral remetido ao contexto da época. É verdade que a retirada da filosofia como matéria obrigatória do ensino médio e os ataques dos últimos governos federais no Brasil, tanto ao saber acadêmico em geral quanto à filosofia e ciências humanas em particular, recoloca a questão. Mas a principal insatisfação parece não residir aí, mas no modo como a filosofia vem sendo ensinada nas universidades brasileiras, algo portanto anterior aos mencionados ataques governamentais. Pelo menos aqui no Brasil, essa insatisfação tem sido constante e venho observando isso desde o início de minha formação nos anos noventa e de forma cada vez mais evidente nos últimos anos. Na aula inaugural do curso de filosofia da Universidade de São Paulo em 1998, o professor Oswaldo Porchat fez um discurso que repercute muito entre os estudantes ainda hoje e que em sua autocrítica do peso dado à historiografia em seu departamento parece convergir com a visão de Schopenhauer:

Cabe lembrar um fato simples: o de que a maioria esmagadora dos pensadores filosóficos (os grandes, os médios e os pequenos...) não se prepararam desse modo para filosofar, não adquiriram primeiro uma sólida formação historiográfica haurida na prática austera do método estruturalista (inventado, aliás, quando há avançado em anos o século XX: não esqueçamos que a História da Filosofia, como tal, é coisa do século XIX) – a maioria, aliás, não adquiriu uma formação nem primeiro nem depois, não a adquiriu nunca, eles não tiveram a felicidade de ser nossos alunos (Pereira, 1999, p. 137).

É comum observar da parte de estudantes e pesquisadores especializados em outros autores e assuntos um especial apreço e interesse pelas críticas de Schopenhauer e Nietzsche à filosofia acadêmica. Não creio, porém, que as tendências predominantes na filosofia universitária contemporânea, no Brasil e no mundo, estejam indo na direção do que Nietzsche, e em alguma medida também Schopenhauer, apontavam como o principal objetivo da educação e da cultura: o engendramento do gênio. Basta nos referirmos ao sumário das condições pelas quais o gênio filosófico poderia surgir, tal como Nietzsche o apresenta na última seção de seu escrito, e observaremos algo bastante diferente das correntes mais predominantes da filosofia contemporânea: “virilidade livre do caráter, conhecimento prematuro dos homens, nenhuma educação erudita, nenhuma coação para o ganha-pão, nenhum vínculo com o Estado – em suma, liberdade e sempre de novo liberdade, o elemento maravilhoso e perigoso, no qual puderam crescer os filósofos gregos” (Nietzsche, edição citada, p. 97).

O conceito de genialidade, tão caro aos dois autores, hoje em dia é visto como suspeito, para dizer o mínimo. Não apenas a filosofia, mas o mundo da cultura parece ter mudado tanto nesses últimos cento e cinquenta anos, que o conceito de genialidade é visto como uma ideia romântica e desprovida de pertinência. A filosofia agora parece se submeter, nem tanto às exigências de um Estado ou uma Igreja que subordinariam a genialidade filosófica a seus próprios fins, mas a uma massa sedenta por mudanças, muitas vezes sem muita clareza sobre onde se quer chegar com elas. E em sua esteira, também a diretores de departamentos e dirigentes universitários que querem conquistar o favor dessas massas.

Digressões a parte, Schopenhauer parece, de fato, ter contribuído para essa reflexão sobre o sentido da filosofia e Nietzsche se colocou a tarefa de reformulá-la completamente em sua filosofia madura, muitas vezes se confrontando diretamente contra a filosofia de seu “mestre”. Ao que nos parece, a reverência permanente a Schopenhauer por Nietzsche é expressão não apenas da gratidão em relação ao mestre que possibilitou a sua própria superação, mas pelo exemplo prestado pelo filósofo em defender a dignidade da filosofia, sejam quais forem os seus inimigos, seja qual for a época, e que parece perdurar como uma das suas maiores contribuições. Por isso, as palavras finais da Terceira Extemporânea, parecem mais atuais do que nunca:

Se assim sucede em nosso tempo, então a dignidade da filosofia está reduzida a pó. Parece que ela própria tornou-se algo ridículo e indiferente, de modo que todos os seus verdadeiros amigos têm o dever de testemunhar contra esse equívoco, ou pelo menos mostrar que somente aqueles falsos servidores e representantes indignos da filosofia são ridículos ou indiferentes. Ou melhor, os verdadeiros amigos provam através da ação que o amor à verdade é algo terrível e violento. Isso tudo demonstrou Schopenhauer – e continuará demonstrando mais isso a cada dia (Nietzsche, p. 117).

REFERÊNCIAS

BARBERA, S. Um sentido e incontáveis hieróglifos. Alguns motivos da polêmica de Nietzsche com Schopenhauer nos tempos de Leipzig e de Basileia. Cadernos Nietzsche, Pisa, v. 27, p. 13-50, 2010.

FAZIO, D. La Scuola di Schopenhauer: Testi e contesti. Lecce: Pensa Multimedia, 2009. (Programa: A cura del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento).

JANAWAY, C. (org) Willing and Nothingness: Schopenhauer als Nietzsche Educator. Oxford: Clarendon Press, 1998.

NEYMEYR, Barbara. Kommentar zu Nietzsches Unzeitgemässen Betrachtungen. Berlim/Boston: Walter de Gruyter, 2020.

NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção: Os pensadores).

NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como alguém torna-se o que é. Tradução: Paulo Cesar Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na era trágica dos gregos. Tradução: Fernando de Moraes Barros. São Paulo: Hedra, 2008.

NIETZSCHE, Friedrich. Schopenhauer como Educador: Considerações Extemporâneas III. Tradução: Clademir Luís Araldi. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2020.

PEREIRA, O. P. Discurso aos estudantes de filosofia da USP sobre a pesquisa em filosofia. Revista Dissenso, São Paulo, n. 2, p. 131-140, 1999.

SCHOPENHAUER, A. Sämtliche Werke. Wiesbaden: Brockhaus Verlag, 1972.

SCHOPENHAUER, A. Theorie des gesammten Vorstellens, Denken und Erkennens. (Philosophische Vorlesungen, Parte I; V. Spierling, Ed.). Munique; Zurique: Piper Verlag, 1986.

SCHOPENHAUER, A. Sobre a Filosofia Universitária. Tradução: Maria Lúcia Cacciola e Marcio Suzuki. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Contribuição de autoria

1 – Flamarion Caldeira Ramos

Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo

 https://orcid.org/0000-0002-4757-6280 • flamarioncr@yahoo.com.br

Contribuição: Escrita – Primeira Redação

Como citar este artigo

RAMOS, F. C. Schopenhauer como educador: 150 anos da Terceira Extemporânea de Nietzsche. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria - Florianópolis, v. 15, Ed. Especial Schopenhauer: Sociedade e Cultura, v.15, esp. 1, e88862, p. 01 – 12, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378688862. Acesso em: dia mês abreviado. Ano.



[1] Cito a partir da tradução de Clademir Luís Araldi, publicada em 2020 pela Editora Martins Fontes.

[2] Essa aproximação de Schopenhauer a Montaigne talvez esclareça as palavras de Nietzsche no livro escrito em 1873 e que permaneceu não publicado, A filosofia na época trágica dos gregos, na qual o filósofo é designado como o “único moralista sério de nosso século” (Nietzsche, 2008, p. 50).

[3] Cito a partir da edição de Arthur Hübscher que contém variações em comparação com a edição letzter Hand de L. Lütkehaus. Os acréscimos dessa edição estão marcados com a sigla “H”.

[4] “Diletantes, diletantes! – Assim são chamados com desdém aqueles que praticam uma ciência ou uma arte por amor e com alegria, per il loro diletto, por aqueles que se dedicaram a elas pelo lucro, pois só se deleitam com o dinheiro que se ganha com isso. Esse menosprezo repousa em sua infame convicção de que ninguém pode se dedicar seriamente a algo sem que a necessidade, a fome ou qualquer outro aguilhão a impulsione. O público compartilha do mesmo espírito e da mesma opinião; daí surge seu inteiro respeito pela “gente especializada” e sua desconfiança contra os diletantes. Na verdade, pelo contrário, para o diletante o assunto é fim, enquanto para o especialista como tal, apenas meio; por isso, apenas praticará a coisa com toda a seriedade aquele que tem uma relação direta com ela e dela se ocupará por amor, isto é, con amore. Dele e não dos assalariados é que surge sempre as coisas realmente grandes” (PP, § 249, SW, VI, p. 524).

[5] Cf. WWV, § 68, SW, II, p. 468.

[6] Para o que segue retomo algumas observações do meu texto “Schopenhauer e o Ensino de Filosofia” In: Pavão, A.; Feldhaus, C.; Weber, J. F. (orgs) Schopenhauer: metafísica e moral. São Paulo: DWW Editorial, 2014. p. 65-78.