|
|
Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 15, n. 1, e88802, 2024
Submissão: 30/08/2024 • Aprovação: 26/11/2024 • Publicação: 01/12/2024
1 A FUNDAMENTAÇÃO DA TEORIA DO CONHECIMENTO DE SCHOPENHAUER: UMA CRÍTICA A KANT
2 O DECLÍNIO DA SUPREMACIA HUMANA EM RELAÇÃO AOS ANIMAIS NÃO HUMANOS
Schopenhauer: Sociedade e Cultura
Como a teoria do conhecimento influencia a ética: a derrocada da supremacia humana através da crítica de Schopenhauer à noção de dignidade de Kant
How the theory of knowledge influences ethics: the downfall of human supremacy through Schopenhauer’s critique of Kant’s notion of diginity
I Instituto Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil
RESUMO
A grande inovação de Schopenhauer em teoria do conhecimento tem relação intrínseca com a questão moral relacionada à consideração efetiva do animal não humano. O papel do intelecto é central em Schopenhauer e não recede o mesmo valor em Kant e, deste modo, Schopenhauer critica a noção de dignidade kantiana, fundamentada na valorização exacerbada da razão e na noção de autonomia. Para Schopenhauer, todo ser dotado de entendimento e vontade é digno porque opera intuitivamente e em conformidade com a lei de motivação. Quem opera fazedo uso da intuição, opera segundo motivos, concepção que aproxima, em alguma medida, Schopenhauer e teóricos da bioética como Richard Ryder e Peter Singer. Para Singer, a noção de interesse é suficiente para que tratemos os animais de forma digna. Deste modo, o propósito central deste artigo está na argumentação de que a teoria do conhecimento schopenhaueriana - edificada a partir de sua crítica à Kant - fundamenta a ética das relações entre humanos e animais não racionais.
Palavras-chave: Conhecimento; Entendimento; Ética
ABSTRACT
Schopenhauer's great innovation in the theory of knowledge is intrinsically related to the moral issue concerning the effective consideration of non-human animals. The role of the intellect is central to Schopenhauer and does not receive the same value in Kant. In this way, Schopenhauer criticizes the Kantian notion of dignity, based on the exaggerated valorization of reason and the notion of autonomy. For Schopenhauer, every being endowed with understanding and will is worthy because it operates intuitively and in accordance with the law of motivation. Those who operate using intuition operate according to motives, a concept that brings Schopenhauer and bioethics theorists such as Richard Ryder and Peter Singer closer to one another. For Singer, the notion of interest is sufficient for us to treat animals with dignity. Thus, the central purpose of this paper is to demonstrate that Schopenhauer’s theory of knowledge - built on his critique of Kant - settles the ethics of relations between humans and non-rational animals.
Keywords: Knowledge; Understanding; Ethics
1 A FundamentaÇÃO da teoria do conhecimento de Schopenhauer: uma crítica a kant
Seres humanos reservam a si a prerrogativa de serem detentores de conhecimento dado que, desde Aristóteles, usa-se como característica específica do homem a racionalidade. Afinal, apenas o homem poderia fazer uso da faculdade inferencial, apenas o homem dispõe da possibilidade de compreensão de leis lógicas e suas aplicabilidades. Creio que ninguém duvidaria deste diferencial quando comparamos seres humanos e animais. Porém, fazer uso dela para colocar o animal humano como ser superior pressupõe, desde o princípio, uma confusão entre teoria do conhecimento e ética.
Com base na teoria do conhecimento apresentada na obra de A. Schopenhauer, pretendemos mostrar que a racionalidade não é outra coisa que a faculdade de formar conceitos, mas não está restrita a ela a possibilidade de conhecer. Pelo entendimento, que se dá anteriormente à formação conceitual, é possível conhecer e o entendimento não é faculdade exclusiva dos seres humanos. Nessa linha argumentativa, a teoria do conhecimento schopenhaueriana - edificada a partir de sua crítica a Kant - fundamenta a ética das relações entre humanos e animais. Esta perspectiva é uma das primeiras - senão a primeira - a considerar a questão do animal não humano tanto no âmbito epistemológico quanto - e principalmente - no âmbito ético. Aliás, a consideração ética frente aos animais pode ser compreendida como decorrência da consideração epistemológica. Afinal, para Schopenhauer os animais não humanos têm entendimento e quem tem a possibilidade de entender tem, também, a possibilidade (ou talvez necessidade!) de padecer.
Sensibilidade, intelecto e razão formam o tripé através do qual se torna possível compreender tanto a teoria do conhecimento kantiana quanto aquela estabelecida por Schopenhauer. Kant considera a sensibilidade como uma faculdade receptiva através da qual nossos sentidos são afetados por tudo aquilo que está fora de nós, por tudo aquilo que nos é dado. Sendo assim, os nossos cinco órgãos sensoriais sofrem afecções a partir daquilo que se encontra fora do nosso corpo e, como somos seres distintos que percebem o mundo de forma distinta, não temos como dizer que aquilo que está fora de nós é tal qual percebemos.
Esta questão de se podemos ou não conhecer a coisa em si acaba por tornar-se um importante ponto de inflexão - fundamental, melhor dizendo - da teoria do conhecimento de Schopenhauer em relação àquela de Kant pois, para Schopenhauer, não se trata de não podermos falar da coisa em si pelo fato de que não sabemos se ela existe ou não. Para Schopenhauer, ela de fato não pode existir[1] (como um objeto a ser desvelado) porque tudo aquilo que é passível de ser percebido por nós não passa nunca de uma representação própria do sujeito que entra em contato com aquilo que pode ser conhecido.
É claro que, como bem enfatizou G. Lebrun em sua conferência sobre Kant intitulada O Subsolo da Crítica, proferida em novembro de 1995 na USP, não podemos perder de vista o sentido próprio do idealismo transcendental, qual seja, os objetos da percepção externa são apenas fenômenos, tal como aparecem aos nossos sentidos. Jamais podem ser determinados como coisas em geral. Dito de outro modo, o idealismo transcendental é, antes de tudo, uma determinação ontológica que torna o mundo externo uma representação fenomênica particular. Neste ponto, Schopenhauer concorda com Kant e enfatiza esta concordância quando afirma que o grande legado da teoria crítica kantiana é a distinção entre fenômeno e coisa em si.
Porém, conforme Schopenhauer, o equívoco de Kant começa já na crença de que o material recebido exclusivamente pelos nossos órgãos sensoriais é algo a partir do qual poderemos formar conhecimento. Para Schopenhauer, não há modo de admitir intuições sensíveis como formadoras de conhecimento porque aquilo que afeta os nossos sentidos não passa de um emaranhado de sensações sem forma alguma, sem correlato com nada. Portanto, uma vez que as determinações são dadas no entendimento, a intuição não é apenas sensível, mas intelectual. Esse tipo de intuição - a sensível -, caso queiramos assim chamar esta afecção, é algo que uma planta recebe e, até onde sabemos, plantas não produzem conhecimento algum.
A faculdade intuitiva, conforme Schopenhauer, deve ser compreendida como a união dos nossos órgãos sensoriais com as formas puras de espaço e tempo e, ainda, com a causalidade. Em outras palavras, toda intuição é intelectiva[2] porque pressupõe uma espécie de convergência entre sentidos e intelecto. Dito de outro modo, a intuição não é, a partir de Schopenhauer, coadjuvante como é com Kant. Ela ganha o papel de atriz principal e nos cabe aqui explicar como podemos compreender este complexo mecanismo. Antes do desenvolvimento de sua teoria do conhecimento no Livro I de O Mundo e em seu apêndice, Schopenhauer já havia exposto o primado da intuição intelectiva em sua dissertação de 1813:
As representações empíricas, pertencentes ao complexo da realidade de acordo com a lei aparecem, no entanto, ao mesmo tempo em ambas as formas [tempo e espaço] e, de fato, a fusão íntima delas é a condição da realidade, que deriva deles como um produto de seus fatores. O que cria esta fusão é o intelecto que, por meio de sua função própria, conecta aquelas formas heterogêneas da sensibilidade de modo que, a partir de sua interpenetração mútua surge, mesmo que apenas para si, a realidade empírica como uma representação geral a qual forma um complexo unido pelas formas do princípio de razão (W I, §18, p.87-89).
Diferente de Kant e também de toda metafísica tradicional, Schopenhauer defende a intelectualidade da intuição empírica porque compreende que o intelecto é uma função do cérebro que produz as representações a partir daquilo que a sensibilidade oferece. As intuições que provêm do intelecto passaram pelo princípio de causa e efeito e, por isso, são responsáveis pelo nosso mais genuíno conhecimento. Esse conhecimento é ainda mais seguro do que aquele que posteriormente será elaborado através de nossa capacidade abstrata, conceitual.
Lefranc enfatiza que intelecto e matéria, em Schopenhauer, são correlatos: são uma e mesma coisa considerada de pontos de vista distintos. O fenômeno é constituído justamente por essa unidade do intelecto e da matéria. Afirma Lefranc: “O intelecto e a matéria são correlativos. Eis o que todos os sistemas ignoraram, inclusive o de Kant” (Lefranc, 2011, p.78). Kant parece não alcançar esse idealismo. É como se Kant colocasse o sujeito diante do objeto em uma vitrine enquanto Schopenhauer não separa o sujeito daquele objeto, um não existe sem o outro.
A grande inovação de Schopenhauer na teoria do conhecimento tem relação intrínseca com a questão moral relacionada à consideração efetiva do animal não humano, como veremos adiante. Porém, para dar ao leitor uma ideia breve da questão, podemos afirmar que o aspecto que mais interessa neste contexto é a afirmação de Schopenhauer de que a faculdade intelectiva que permite nossas intuições - que dão origem ao conhecimento - não é própria e exclusiva dos seres humanos mas pertence também aos animais.
Schopenhauer parece ter claro - o que podemos verificar não apenas em sua bem conhecida crítica a Kant, mas em várias outras passagens de O Mundo - que se Kant tivesse uma compreensão adequada do papel do intelecto, que para Schopenhauer é uma função do cérebro que precede o uso de conceitos, ele mesmo teria reconhecido que a única categoria necessária e suficiente para a percepção de objetos é a causalidade. E não podemos deixar de lembrar que a causalidade, junto com o tempo e o espaço, são formas puras do intelecto não apenas humano, mas também dos animais. Sem a atuação da função intelectual do cérebro, ou seja, sem um sujeito, não há objeto porque nada poderá ser percebido. Em Schopenhauer e a Questão do Dogmatismo, Cacciola esclarece:
Ora, é a própria lei da causalidade, como princípio regulador para os estudos da natureza, que exige a pressuposição de um estado menos perfeito da matéria em relação a um mais perfeito, ou seja, a ideia de que muitas transformações se fizeram necessárias na natureza até que se pudesse conhecê-las. Mas essa série de graus de transformação tem, como suporte (Trager) de sua existência (Dasein), um sujeito que a conhece e que pode pensá-la na identidade de sua consciência. Assim, a série de transformações da matéria só adquire realidade e inteligibilidade como série de representações de um sujeito (Cacciola, 1994, p.78).
O mundo não é nada além da representação do sujeito cognoscente e da vontade e, assim sendo, sensibilidade unida ao entendimento são suficientes para que o sujeito desvende o mundo objetual, ou ainda, através da lei de causa e efeito unida às formas espaço-temporais, os fenômenos podem ser conhecidos. A matéria e o seu fazer efeito não podem ser desvinculados. São uma e mesma coisa. Mesmo que a cadeia de causas e efeitos seja infinita - dado que nunca conheceremos a causa prima pelo simples fato de que ela não existe - esta cadeia não se estende para além daquilo que é produzido no mundo material. Aliás, conforme Lefranc, o esclarecimento desta diferença entre explicação física e metafísica permite demonstrar os limites da explicação materialista do mundo[3].
2 O declínio da supremacia humana em relação aos animais não humanos
Se nos seres humanos os graus de acuidade do entendimento são bastante variados, nas diferentes espécies de animais são mais ainda. Em todas, mesmo as mais próximas das plantas, existe tanto entendimento quanto é exigido para a passagem do efeito no objeto imediato para o objeto mediado como causa, portanto para a intuição, apreensão de um objeto, pois justamente isso os torna animais, na medida em que lhes dá a possibilidade de movimento segundo motivos e, daí, a procura e obtenção de alimentos. [ ] Nos animais mais perfeitos admiramos a sua sagacidade, como nos cães, elefantes, macacos, raposas, cuja inteligência Büffon descreveu com tanta maestria. Em semelhantes bichos, mais inteligentes, podemos avaliar de maneira bem precisa o quanto o entendimento pode realizar sem a ajuda da razão, ou seja, sem o conhecimento abstrato por conceitos: em nós mesmos não o reconhecemos com facilidade, porque em nosso caso entendimento e razão sempre se apoiam mutuamente. Em consequência, muitas vezes encontramos nos animais as exteriorizações do entendimento ora acima, ora abaixo de nossa expectativa. [ ] Que o conhecimento de causa e efeito, como forma universal do entendimento, também seja inerente a priori aos animais é inteiramente certo graças ao fato de que tal conhecimento lhes é, como para nós, a condição prévia de toda intuição do mundo exterior: caso ainda se queira uma prova especial disso, então se considere, por exemplo, como até mesmo um filhote de cão não se aventura a pular da mesa, por mais que deseje, porque prevê o efeito da gravidade de seu corpo, sem, contudo, conhecer esse caso especial a partir da experiência (W I, §6, pp.26-27).
Animais intuem e operam, de modo causal, o que fica claro desde que nos coloquemos como expectadores de suas ações. Isso só é possível porque a faculdade de entendimento está presente neles tanto quanto em nós[4]. É também pelo fato de que os animais possuem entendimento que eles agem conforme motivos. Suspeitamos que essa noção, não mencionada à toa por Schopenhauer, possa encontrar um correlato, por exemplo, em Peter Singer - considerado o fundador da bioética e dos direitos aos animais - qual seja, a noção de interesse, utilizada por Singer ao defender um princípio de igualdade entre humanos e animais.
Aliás, não há como tratar da questão animal, no campo da bioética, sem mencionar Peter Singer. Ele próprio aponta para a dificuldade da filosofia tradicional em lidar com a questão do animal não humano e, inclusive por esse motivo - criticando a tradição filosófica - Singer percebe a necessidade de modificar esse tratamento e, então, em Utilitarianism and Vegetarianism, prescreve: “O único princípio da igualdade que eu sustento é o princípio de que os interesses de todos os seres afetados por uma ação devem ser tomados em conta e oferecido o mesmo peso como os interesses de qualquer outro ser” (Utilitarianism and Vegetarianism, 1980, p.38). Portanto, todas as nossas ações devem levar em consideração não apenas o que é de nosso interesse, mas também aquilo que é de interesse dos animais. Certamente, podemos dizer que é de interesse dos animais não sofrer qualquer dor física, qualquer ação que não esteja completamente alinhada com sua natureza, seja ela a de um animal predador ou doméstico.
É verdade que Singer principia por tratar do argumento da igualdade apenas no que diz respeito às relações humanas, mas rapidamente amplia essa noção ao tratamento de todos os seres, incluindo os não humanos. Em sua obra Libertação Animal, Singer evidencia o fato de que, ao longo da história da humanidade, os filósofos foram dando-se conta de que é muito difícil, ou até impossível, debater a questão da igualdade humana sem levar em consideração as questões que dizem respeito à consideração dos animais. Evidentemente, essa contribuição torna-se muito importante para entender a necessidade de rever as perspectivas e práticas humanas em relação aos animais não humanos.
Buscando por uma noção que possa encontrar seu fundamento no campo da moral e, consequentemente, também no campo da lei, chegamos ao argumento de Kant a respeito da defesa da dignidade humana, quando comparamos humanos a animais não humanos. Ora, é bem conhecido o uso que Kant confere à noção de dignidade, destinando-a apenas aos humanos. Humanos merecem ser tratados com dignidade porque são os únicos capazes de fazer uso da razão. Conforme Kant:
E o que é então que autoriza a intenção moralmente boa ou a virtude a fazer tão altas exigências? Nada menos do que a possibilidade que proporciona ao ser racional de participar na legislação universal e o torna por este meio apto a ser membro de um possível reino dos fins, para que estava já destinado pela sua própria natureza como fim em si e, exatamente por isso, como legislador no reino dos fins, como livre a respeito de todas as leis da natureza, obedecendo somente àquelas que ele mesmo se dá e segundo as quais as suas máximas podem pertencer a uma legislação universal (à qual ele simultaneamente se submete). Pois coisa alguma tem outro valor senão aquele que a lei lhe confere. A própria legislação porém, que determina todo o valor, tem que ter exatamente por isso uma dignidade, quer dizer um valor incondicional, incomparável, cuja avaliação, que qualquer ser racional sobre ele faça, só a palavra respeito pode exprimir convenientemente. Autonomia é pois o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional (Kant, 2007, pp.78-79).
A noção de dignidade humana pode ser encontrada já no Gênesis ao lermos que Deus criou o homem a sua imagem e semelhança tornando-o, então, segundo os cristãos, digno de entrar no reino dos céus. Esta perspectiva teológica alinha-se bem à ideia de que a dignidade pode ser entendida desde uma perspectiva tanto epistemológica quanto moral (ao mesmo tempo), ou seja, somos todos igualmente dignos - inclusive como filhos de Deus - porque somos dotados de razão, ou seja, podemos conhecer e, portanto, conhecendo o bem e o mal, optar sempre pelo bem. Ora, é propriamente Schopenhauer quem denuncia no §8 de Sobre o Fundamento da Moral, o aspecto teológico da moral kantiana. Podemos ler:
Mostra-se, ao mesmo tempo, como esta moral filosófica que é, como foi acima exposto, uma teologia travestida depende totalmente da moral bíblica. A saber, porque a moral cristã não leva em consideração os animais. Estes estão de imediato também fora da moral filosófica, são meras coisas, meros meios para fins arbitrários (E II, p.77).
Caso pretendêssemos salvar a noção de dignidade neste contexto, retirando a prerrogativa kantiana da racionalidade, poderíamos argumentar que o humano é digno porque existe e não pelas escolhas racionais que faz, ou seja, da perspectiva legal e moral a dignidade humana refere-se à manutenção de sua vida, em todos os aspectos[5]. A partir de quais argumentos seria possível, então, excluir os animais não humanos desta perspectiva da dignidade como inerente à vida?
É verdade que Kant o faz quando afirma, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, que os seres humanos possuem dignidade porque possuem autonomia, ou seja, podem dar a si mesmos a suma lei. Para Kant, pessoas têm dignidade, enquanto coisas têm valor, preço. Obviamente, para Kant, pessoa é todo ser dotado de razão. Portanto, os animais não humanos não estariam aí incluídos. Seres irracionais não possuem dignidade nem valor[6] e, assim, podem ser tratados como meios. É justamentre esta a segunda formulação do imperativo categórico: “Procede de maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como fim, e nunca como simples meio”. (Fundamentação, 2007, pp.68-69). Dignidade e respeito são, para Kant, prerrogativas humanas. Às coisas e aos animais destinamos sentimentos, tais como amor ou medo. Entretanto, não podemos esquecer que há também em Kant o chamado “princípio de humanidade”, através do qual pretende-se proibir que sejamos cruéis em relação aos animais não humanos. Não seria necessário dizer que não ser cruel para com os animais está longe, ainda, de destinar a eles um tratamento digno.
Com base em que argumento Kant sustenta que o animal humano é um fim em si? Como dito anteriormente, na prerrogativa da própria racionalidade. Na leitura de Schopenhauer, Kant não faz distinção entre racionalidade e entendimento. Por isso, numa primeira e rápida interpretação da perspectiva schopenhaueriana talvez pudéssemos dizer que os animais não humanos também têm dignidade pelo fato de que têm entendimento. Em outras palavras, todo ser dotado de entendimento e vontade é digno porque opera intuitivamente e em conformidade com a lei de causa e efeito. Mas como somos nós, seres humanos, dotados da capacidade de raciocinar, ou seja, de realizarmos abstrações conceituais, cabe a nós fazermos uso da razão para salvaguardar os animais não humanos, protegê-los de nós mesmos, dando a eles o que podemos entender por dignidade na vida prática. Afinal, os animais, como parte constituinte da natureza, do mundo, têm vontade de vida. Ela é a mesma em todo e para todo o mundo natural.
Em Sobre o Fundamento da Moral, Schopenhauer critica a noção de dignidade exposta por Kant:
Só que esta expressão, “dignidade humana”, uma vez que Kant a pronunciou, tornou-se a senha de todos os moralistas desorientados e destituídos de pensamento que esconderam sua falta de um fundamento da moral que dissesse alguma coisa sob aquela expressão impotente de “dignidade humana” […] Kant define dignidade como um “valor incondicional e incomparável”. Esta é uma explicação que, por seu sublime tom, impõe-se de tal modo que não deixa facilmente alguém, que está mais abaixo, aproximar-se para investigá-la de mais perto, descobrindo então que também ela é apenas uma hipérbole oca, em cujo interior aninha-se a “contradictio in adjecto” como um verme corrosivo (E II, pp.82-83).
Uma vez que a noção de dignidade, conforme utilizada por Kant, é uma contradictio in adjecto, daria Schopenhauer outro sentido a ela quando defende o respeito e cuidado para com os animais ou deveríamos fazer uso de um correlato para tal noção como, por exemplo, a compaixão? No § 67 do Tomo I de O Mundo, Schopenhauer afirma:
[…] o amor puro, em conformidade com a sua natureza, é compaixão; e o sofrimento que ele alivia (ao qual pertence todo desejo insatisfeito) tanto pode ser grande quanto pequeno. Em consequência, não hesitaremos ao contradizer Kant diretamente - que só quer reconhecer toda verdadeira bondade e toda virtude se elas provêm da reflexão abstrata, e em verdade do conceito de dever e imperativo categórico, explanando ele a compaixão sentida como um fraqueza e de modo algum como uma virtude -, não hesitaremos, ia dizer, em declarar contra Kant que o mero conceito é infrutífero para a autêntica virtude, assim como o é para a arte: todo amor puro e verdadeiro é compaixão, e todo amor que não é compaixão é amor-próprio (W I, p.436).
A compaixão é despertada, como sabemos, pelo reconhecimento da dor e sofrimento do outro, na medida em que estamos ou já estivemos familiarizados com semelhante dor. Parece evidente a possibilidade de identificação de uma pessoa com a dor de outra. Mas por que um ser humano não apresentaria identificação direta com a dor de um animal não humano?
Nunca é demais recordar que nem todos os seres humanos podem ser considerados agentes morais, no sentido mais amplo da palavra. É o que ocorre, por exemplo, com os bebês - ou com crianças em geral, até determinada idade - ou ainda com pessoas com severas deficiências cognitivas. Nestes casos, como procedemos? Como Kant sustentaria sua perspectiva moral assentada na racionalidade considerando tais casos? Reservamos a estas pessoas - ou ao menos sabemos que moralmente temos essa obrigação - o tratamento digno que merecem, ou seja, destinamos a elas uma vida digna mesmo que não tenham a mínima capacidade de compreenderem o que significa dignidade ou mesmo que tal coisa exista[7]. Ou o fazemos porque sentimos compaixão ou, na pior das hipóteses, porque o código civil assim manda. Espera-se que pela primeira alternativa. Cabe enfatizar que, no caso de bebês ou de pessoas com severos problemas cognitivos, de nada adianta argumentar em favor de uma “potencialidade” moral pois esse caso abarcaria determinados indivíduos tais como bebês considerados típicos, mas ainda assim o argumento não cobre o caso daquelas pessoas destituídas de capacidade mental para compreender e executar atos morais. Agora, se compreendemos que devemos destinar a estes seres humanos um tratamento de vida digno, como poderíamos sustentar o argumento de que esse mesmo tratamento não engloba o caso dos animais não humanos?
O centro desta argumentação está na consideração de que a dignidade é um valor intrínseco à vida, não relacionado necessariamente à autonomia e à racionalidade. Aliás, como muito bem enfatiza Luc Ferry, a noção de autonomia, neste contexto de discussão, é a grande responsável pela discriminação entre seres humanos e animais[8]. Cabe esclarecer que estamos fazendo uso do termo “discriminação”, aqui, tanto no sentido de diferenciação quanto no sentido de preconceito, ou seja, tanto na sua acepção mais trivial que é a de tornar algo distinto de outro, quanto na consequência (i)moral deste ato que é a afirmação da superioridade de um em relação a outro devido, justamente, às características que os discriminam. Talvez não seja imprescindível dizer que a consequência não precisaria - ou não deveria - ser esta, ou seja, da afirmação das diferenças não decorre a afirmação de superioridade ou inferioridade.
Em 1970 o cientista e filósofo Richard Ryder (2006) fez uso do termo “especismo” para denunciar o tratamento discriminatório e preconceituoso que seres humanos destinam aos animais não humanos, considerando a existência destes apenas como meios para os fins exclusivamente humanos. Mas foi a partir de Peter Singer que o termo ganhou notoriedade. Tanto Ryder quanto Singer denunciam o fato de que o especismo, ou seja, o tratamento preconceituoso de seres humanos em relação aos não humanos, leva os primeiros a não considerarem os interesses dos segundos, ainda quando tais interesses possam ser idênticos aos seus como, por exemplo, não sentir dor e não sofrer. Aliás, o especismo tem a mesma natureza preconceituosa do racismo e do sexismo, afirmam tanto Ryder quanto Singer, pois pretende fundamentar-se em aparências, ou seja, se o outro ser tem aparência diferente ele passa a ser desconsiderado do ponto de vista moral[9]. Afirma Singer:
Os racistas violam o princípio da igualdade ao conferirem mais peso aos interesses de membros de sua própria raça quando há um conflito entre seus interesses e os daqueles que pertencem a outras raças. Os sexistas violam o princípio de igualdade ao favorecerem os interesses de seu próprio sexo. Analogamente, os especistas permitem que os interesses de sua própria espécie se sobreponham àqueles maiores de membros de outras espécies. O padrão é idêntico em todos os casos. (Singer, 2004, p.11).
Não poderíamos deixar de recordar um artigo de Jair Barboza publicado sob o título Considerações, acompanhadas de um excurso estético, sobre a dignidade da natureza e dos animais na ética não-antropocêntrica de Schopenhauer, no qual Barboza denuncia a posição especista expressa por Kant na Fundamentação. Cito Barboza:
Ora, Schopenhauer é um cáustico crítico desse conceito kantiano de dignidade. De um lado porque serviria apenas para destacar uma pretensa nobreza do humano que, ao fim, escamoteia os seus defeitos e maldades essenciais, bem como a sua debilidade natural; de outro, porque é claramente especista. […] Ademais, de maneira bastante contemporânea, Schopenhauer identifica nas linhas kantianas da Fundamentação da Metafísica dos Costumes aquele especismo que reconhece e leva em conta como “a única espécie que tem valor”, precisamente a dotada de razão. Tal preconceito é reforçado pelos Metaphysischen Anfangsgründen der Tugendlehre, cuja seção §16 é citada, na qual Kant afirma que o ser humano não tem a obrigação de dever para com os outros seres senão para com os humanos; bem como no seção §17, na qual diz que evitar o tratamento cruel dos animais é dever do ser humano, porém só “para consigo mesmo”, em vista de impedir que a compaixão seja abafada, pois esta se mostra útil no trato com outras pessoas (Barboza, 2014, p.22).
Pois bem, quando dizemos algo como “isso não se faz nem a um animal” será que temos consciência de que estamos nos expressando de forma especista, considerando, portanto, a espécie humana como superior à animal? Da mesma forma que a maioria das pessoas sequer reflete sobre o verdadeiro sentido do que afirma quando faz esse tipo de julgamento, acontece algo semelhante com o argumento - supostamente em favor dos animais - de que se não considerarmos os animais desde um ponto de vista moral, sofreremos consequências no futuro. Ora, novamente, o que importa nesse argumento é a vida humana pois ela é que sofrerá consequências caso não consideremos a vida do animal não humano. Por esse motivo, argumentos utilitaristas que visam a sobrevivência humana não parecem ser, nunca, bons argumentos morais. Argumentos utilitaristas voltados aos humanos não consideram a dignidade do animal não humano, ou seja, não consideram o animal não humano por ele mesmo, mas apenas em função do que representam para os humanos.
Mais uma vez, acreditamos que o argumento schopenhaueriano que aproxima animais humanos de animais não humanos é, ainda, um dos argumentos mais convincentes quando refletimos acerca da noção de dignidade. Schopenhauer concede compaixão - e, por isso, uma vida digna - aos animais não humanos pois eles são providos de entendimento e, por isso, são seres em que intuição e lei de causa e efeito operam, tanto quanto nos animais humanos. Algum grau de consciência do dano e do prazer que se lhes causa, eles têm, não são meros autômatos. Quem opera fazendo uso de intuição e causalidade, opera segundo motivos. A racionalidade - esta, sim, constituinte apenas dos humanos - não pode ser razão suficiente para a desconsideração moral para com aqueles que são destituídos dela. O único caminho possível é a compaixão. Talvez seja o momento de, finalmente, compreendermos que não somos hierarquicamente superiores aos animais porque raciocinamos. Cabe a nós, seres racionais, compreendermos a complexa constituição dos animais e concedermos a eles a dignidade que tanto preconizamos a nós. Como brilhantemente esclareceu nossa querida Maria Lucia Cacciola na mesa de abertura deste Colóquio, compaixão e solidariedade são as virtudes mestras que podem permitir a ocorrência, mesmo que eventual, de um mundo menos pior.
BARBOZA, Jair. Considerações, acompanhadas de um excurso estético, sobre a dignidade da natureza e dos animais na ética não-antropocêntrica de Schopenhauer. In: PAVÃO, Aguinaldo; FELDHAUS, Charles; WEBER, José Fernandes (Orgs.). Schopenhauer: metafísica e moral. São Paulo: DWW Editorial, 2014. p. 21-33.
CACCIOLA, Maria Lucia de Oliveira e Melo. Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo: EDUSP, 1994.
FERRY, Luc. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal e o homem. Trad: Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Difel, 2009.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad: Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores).
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007.
LEBRUN, Gerard. O subsolo da Crítica: uma conferencia inédita de Lebrun sobre Kant. Discurso, São Paulo, v. 46, n. 2, p. 53-84, jul-dez. 2016. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/123669>. Acesso em: 25 jul. 2020.
LEFRANC, Jean. Compreender Schopenhauer. 5. ed. Trad: Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Ed. Vozes, 2011.
OLIVEIRA, Wesley Felipe de. A Importância Moral da Dor e do Sofrimento Animal na Ética de Peter Singer. 2012. 250p. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012.
RYDER, Richard Dudley. Speciesism in the Laboratory. In: SINGER, Peter (Ed.). Defense of Animals: the second wave. Oxford: Blackwell Publishing, 2006. Pp.87-103.
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação: primeiro tomo. Trad: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2015a.
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o Fundamento da Moral. Trad: Maria Lúcia Mello Oliveira Cacciola. 2. ed. -São Paulo: Martins Fontes, 2001.
SINGER, Peter. Libertação Animal. Tradução: Marly Winckler. Revisão técnica: Rita Paixão. Porto Alegre: Lugano, 2004.
SINGER, Peter. Utilitarianism and Vegetarianism. Philosophy & Public Affairs, Oakley, v. 9, n. 4, p. 325-337, 1980.
Contribuição de autoria
1 – Jaqueline Engelmann
Doutora em Filosofia pela PUC-Rio
https://orcid.org/0000-0002-4936-4396 • jqengel@gmail.com
Contribuição: Escrita – Primeira Redação
Como citar este artigo
ENGELMANN, J. Como a teoria do conhecimento influencia a ética: a derrocada da supremacia humana através da crítica de Schopenhauer à noção de dignidade de Kant. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria - Florianópolis, v. 15, esp. 1, e88802, p. 01-16, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378688802. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
[1] Porém, é fundamental aqui a ressalva de que Schopenhauer identifica a coisa em si com a vontade (em sentido metafísico; não se trata do querer individual, da vontade de um sujeito) e, portanto, afirmar taxativamente que a coisa em si não existe poderia levar à conclusão de que a vontade, de certo modo, não existe, o que já seria um absurdo dado que o mundo é representação e vontade. O que queremos dizer quando afirmamos que a coisa em si não existe é que ela não existe de modo absoluto, como um objeto a ser conhecido. Vale lembrar que já em Kant “existência” é uma categoria que apenas se aplica a objetos do entendimento.
[2] Por sugestão do prof. Domenico Fazio utilizamos a expressão “intuição intelectiva” no lugar de intelectual, para que não se caia no erro de confundir a intuição defendida por Schopenhauer com aquela proposta pelo idealismo alemão que, como sabemos, Schopenhauer critica. Comparando Schopenhauer com Fichte e Schelling, fica clara a distância incomensurável entre os dois modos de compreender “intuição intelectual” (seria algo como compreender a diferença entre as noções de ideia em Platão e Locke). O termo “intuição intelectual” em Schopenhauer diz respeito a um tipo de intuição que pressupõe a conexão entre órgãos sensoriais e intelecto. Trata-se de uma intuição do intelecto.
[4] Por vezes a biologia insiste em chamar essa conexão causal existente nos animais de “instinto”. Não poderia ser nossa intenção negar essa categoria biológica. Contudo, novamente, como bem enfatiza Schopenhauer, o instinto existe mas não pode ser confundido com aquilo que é fruto do entendimento.
[5] Quando mencionamos “em todos os aspectos” estamos nos referindo à conservação da vida prevendo a manutenção de todas as necessidade básicas, tais como alimentação, moradia, segurança, etc, não apenas a vida enquanto contraposta à morte. Em outras palavras: não basta preservar a vida, mas torná-la digna.
[6] Se algum valor os animais não humanos têm é um valor instrumental, assim como ocorre com coisas em geral, diria Kant.
[7] Não podemos deixar de mencionar aqui que Peter Singer levanta esse argumento como crítica à teoria moral de John Rawls.
[9] Em sua dissertação de mestrado intitulada A Importância Moral da Dor e do Sofrimento Animal na Ética de Peter Singer, Wesley Felipe de Oliveira realiza uma bela explanação deste argumento baseado na idea de especismo.