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Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 15, esp. 1, e88801, 2024
Submissão: 30/08/2024 • Aprovação: 31/10/2024 • Publicação: 20/11/2024
[III 27] FANTASMAS E SONHOS. FANTASIA
Schopenhauer: Sociedade e Cultura
Doutrina dos sonhos: uma lacuna na filosofia
de Schopenhauer
Dream theory: an interruption in Schopenhauer’s philosophy
I Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil
RESUMO
O que é sonho, que relação tem com a efetividade, como pode ser diferenciado dela e, finalmente, o que antes de tudo o torna possível? Eis o tipo de questões que uma doutrina dos sonhos deveria responder. De fato, algumas linhas a respeito disso eram encontradas na obra sobre o princípio de fundamento suficiente, de 1813, mas Schopenhauer abandonou sua tese original no decorrer das décadas seguintes. O presente artigo pretende destacar as mudanças de pensamento de Schopenhauer ao longo do tempo e apontar um conjunto de problemas deixados para trás sem solução. Inclui uma tradução do § 22 da Dissertação para o português.
Palavras-chave: Sonhos; Fantasia; Efetividade; Causalidade; Memória; Vontade
ABSTRACT
Keywords: Dreams; Fantasy; Reality; Causality; Memory; Will
É notável que o pensador que reconhecia a si mesmo como o primeiro a estabelecer o primado da vontade sobre a consciência racional, por um lado, e, por outro, reiterava que o mundo empiricamente conhecido “é sonho”, não haja estabelecido em sua obra uma doutrina dos sonhos, muito embora não fosse difícil encontrar para ela algum lugar, no corpo mesmo de sua doutrina principal.
Antes de prosseguir, vale colocar em evidência que “lacuna” específica seria essa anunciada no subtítulo do presente trabalho. Que é sonho (em sentido estrito), que relação tem com a efetividade, como pode ser distinguido dela e, finalmente, o mais crucial, o que o torna possível, como é produzido? Parecem perguntas cujas respostas são exigíveis no contexto de tal pensamento. De fato, breves palavras a respeito constavam na rubrica § 22 da dissertação Sobre a quadrúplice raiz do princípio de fundamento (Diss), de 1813, à qual se fazia remissão na versão original do § 5 de O mundo como vontade e representação (W I), em meio à discussão acerca da realidade externa, precisamente em suas páginas 22 e 23 (18 e 19 na segunda edição). No contexto da primeira edição da obra capital, e ainda na segunda edição, lia-se “nós temos fantasia, temos sonhos”, sendo tratados em conjunto na tese de 1813: “Denomino tais repetições Phantasmata e, a capacidade para elas, fantasia ou imaginação [Phantasie oder Einbildungskraft].” (Diss, p. 38 [Deussen: III, 27]). Naquela época, Schopenhauer pretendia oferecer uma resposta melhor do que a de Kant sobre como podemos distinguir sonho e efetividade, a saber, conforme Diss, mediante a “reentrada do objeto imediato na consciência” (Diss, p. 39-41 [Deussen: III, p. 28-29]). Schopenhauer ia ainda mais longe, recusando que os sonhos e fantasias estivessem sob a mesma lei que rege o mundo natural, estando antes sob a lei da motivação na condição de “ações do mero arbítrio” (Diss, p. 38 [Deussen: III, p. 27-28]) – aliás, o capítulo dedicado à quarta figuração de representações é o que sofre mudanças mais radicais em vista da Metafísica da Vontade, pois deixa de haver algo como uma “causalidade da vontade sobre o conhecer” (Diss, § 47); a nova edição admite apenas uma “influência” (G, § 44). Isso fornecia uma resposta algo precária às três primeiras perguntas (Que é sonho (em sentido estrito)? Que relação tem com a efetividade? Como pode ser distinguido dela?), porém, olhando-se mais de perto, se considerarmos rigorosa e amplamente a questão sobre o que é sonho, o sonhar, a ausência de resposta sobre sua possibilidade, epistemologicamente fundamentada como é usual na obra de Schopenhauer, deixa muito frágil tudo o que se erige sobre o que é dito a respeito. Enfim, por exemplo: como opera a imaginação na repetição de representações na ausência da autoconsciência, de onde provém seu material, como lhe chega durante o sono e como ou em que momento pode ser efetivamente experimentado?
Dando um primeiro passo em direção ao que ocorreu desde então no pensamento de Schopenhauer, não apenas a possibilidade do sonhar se manteve problemática; o mesmo se deu com sua fantasia, de que não podemos nos ocupar no presente trabalho, já que o próprio filósofo, como será visto, viria a fazer questão de distinguir esta daquele – de todo modo, o problema deve ter uma raiz comum.
Na primeira edição de O mundo, a referida passagem seguia dizendo (p. 23-24, p. 19 na segunda edição): “Expliquei em meu tratado sobre o princípio de fundamento, § 22, como se diferenciam sonho e efetividade e verificou-se que o critério para essa diferenciação não é nenhum outro senão aquele inteiramente empírico do despertar, a reentrada do objeto imediato na consciência”. O trecho tem origem em um manuscrito de 1814 já pertinente à “Gênese do Sistema” que nos oferece uma versão bem próxima do que seria publicado (HN I, § 198 [218], p. 124-125; trad. br.: 2023, p. 82-83). O manuscrito póstumo ainda acrescenta ao trecho correspondente uma nota que, curiosamente, faz um notável paralelo entre o sonho e o mundo (como um todo), como se o primeiro estivesse para o indivíduo como o segundo para o puro sujeito do conhecimento – sublinhe-se aqui o parentesco entre o sonho (particular) e a fantasia (universal) do gênio. Ora, se nos lembramos do papel da fantasia na contemplação estética, por exemplo, o paralelo até soa bem, mas o correr dos anos trará resultados absolutamente diversos – por ora, basta ter em conta que o sonho seria produto (ainda inexplicado) de uma faculdade intelectual. De volta ao § 5 da obra capital, nota-se o significado original das menções a Kant e a Hobbes que imediatamente precedem e sucedem o trecho a ser substituído: o critério sugerido por Kant é insuficiente por desconsiderar que os sonhos, ao menos enquanto sonhados, apresentam ou podem apresentar encadeamento causal interno, ao menos para o sonhador – isso se verifica na medida em que, enquanto sonhamos, muitas vezes não nos surpreendemos com mudanças súbitas de lugar ou das pessoas que se encontram à nossa volta ou em nossa própria aparência –; além disso, mesmo que se adote a quebra do nexo causal entre a vigília e o sono, o critério não se torna mais seguro, sendo precisamente aqui que tem lugar o contraexemplo de Hobbes envolvendo situações em que notamos tão pouco o termos adormecido quanto o despertar. A menção a Hobbes também traz uma sutil e importantíssima pista que se deve ter em mente daqui em diante: a confusão corriqueira entre o que efetivamente ocorreu e o que foi meramente sonhado supõe que seja possível recordar o conteúdo sonhado, além de admitir expressamente que os pensamentos da vigília interferem e determinam tais conteúdos, ao menos na medida em que excitam o nosso interesse, sendo isso o que “borra” a fronteira entre o “sonho longo” que é a vida e os sonhos breves que são os sonhos em sentido estrito. Resta, contudo, indecidido como tais sonhos são produzidos e como são possíveis em geral.
A substituição feita na terceira edição não apenas suprime a remissão ao tratado sobre o princípio de fundamento, modifica o contexto profundamente (conforme destaco a seguir), ainda que pareça superficial à primeira vista: “O único critério seguro para a diferenciação entre o sonho e a efetividade é, de fato, nenhum outro senão aquele inteiramente empírico do despertar, por meio do qual a ligação causal entre acontecimentos sonhados e os da vida desperta é mesmo expressa e sensivelmente quebrada.” (W I, p. 19-20[1]; grifos meus). Além de isso entrar em direto confronto com o que é dito imediatamente antes, sem qualquer ponderação ou justificativa, explícita ou implícita, servindo, pelo contrário e contraditoriamente, para corroborar a proposta kantiana, a concordância com Hobbes é desviada para uma espécie de conciliação com Kant que, até então, só servia para os casos particulares em que se tem consciência do despertar como tal. Ter consciência do despertar e/ou lembrança de que adormeceu são circunstâncias subjetivas de que depende a diferenciação entre o que ocorre no estado de sono e no estado de vigília. O juízo de Schopenhauer sobre a insuficiência desse critério é, sem menção a Kant, o que encerra o texto de 1813. A reentrada do objeto imediato, ou seja, a retomada da autoconsciência, é, pelo contrário, um dado objetivo – trata-se do momento em que a percepção de objetos tem correlato efetivo, algo que de fato atua sobre os sentidos, não sendo meramente imaginado. Assim, “o critério empírico do despertar” não é o mesmo na terceira edição e a palavra “despertar” passa a indicar a mera sucessão de estados externos, não um fenômeno interno da consciência. No manuscrito original de 1814, Schopenhauer era ainda mais taxativo: “Através de meu tratado sobre o princípio de fundamento foi primeiramente liquidada e removida a questão sobre a realidade das representações (ou conhecimentos). A questão sobre a diferença entre vida e sonho foi ali mesmo respondida [...]”. Abrir mão assim tão facilmente da própria originalidade não lhe é usual, muito pelo contrário – algo seriamente comprometedor há de ter surgido pelo caminho.
O grande obstáculo trazido pela Metafísica da Vontade para uma doutrina dos sonhos parece residir precisamente na separação absoluta entre vontade e conhecimento. Sonhos são, certamente, representações, mas ocorrem durante o sono, que é o repouso do cérebro e, como reiterado por Schopenhauer em diversos contextos, a completa suspensão da consciência e de todo representar – aí temos a recorrente analogia entre sono e morte, sempre mantida. Nesse ínterim, Schopenhauer também parece dar-se conta de que a fantasia deve ser tratada à parte, de maneira que também suprime mais acima “nós temos fantasia” – com efeito, a fantasia é obra da inteligência desperta e, à parte o conhecido parentesco entre loucura e genialidade, a loucura, tal como o sonho, deve ser obra da vontade. A relação entre sonho e loucura, tal como aquela entre sonho e vida, bem como entre o gênio e o sonhador, já é reconhecida em uma anotação de 1826 (HN III, [140], p. 261-262; trad. br.: 2023, p. 87-88), reelaborada para inclusão nos Parerga e paralipomena (P I, p. 219-220 [Deussen: IV, p. 258-259]; trad. br.: 2023, p. 71). Eis o que explica a supressão do trecho relativo à “reentrada do objeto imediato na consciência”: essa representação (o objeto imediato) deixa de sê-lo para, em maior conformidade com a Metafísica da Vontade (inexistente em 1813), passar a ser tratada como objetidade da vontade enquanto organismo (W II, cap. 19). Pode-se afirmar, com suficiente segurança, que a concepção original de “objeto imediato” foi abandonada naturalmente com o desenvolvimento da Metafísica da Vontade, quase imperceptivelmente, deixando resíduos como o acima em apenas três outras seções do primeiro volume da obra capital (§§ 4, 6 e 18), desaparecendo desde então para nunca mais ser utilizada nas edições subsequentes nem em outras obras. Exige-se, portanto, explicar de que maneira a vontade, que não tem poder causal sobre o conhecimento – causas se aplicam exclusivamente à relação entre objetos, sendo esse o papel de um “objeto imediato” –, produz representações oníricas que independam do cérebro em sentido estrito, já que a vontade é algo inteiramente outro de uma faculdade de conhecimento.
A despeito de resíduos deixados na obra capital, a noção de “objeto imediato” é decididamente recusada na nova edição de Sobre a quadrúplice raiz, da qual é minuciosamente expurgada, tendo como resultado, entre outros, a completa supressão do texto do antigo § 22, ficando o sonhar e os sonhos negligentemente apontados como questões de “psicologia empírica” (G, § 19, p. 30 [Deussen: III, p. 139]; trad. br.: p. 91). A antiga rubrica dedicada ao objeto imediato, todavia, não é suprimida: é inteiramente reescrita apenas para desdizer o que outrora havia sido dito a seu respeito. O conjunto das profundas mudanças introduzidas no tratado original constituem um complexo problema à parte, pleno de tensões e dificuldades de que não podemos nos ocupar aqui. Por questões de economia, que se tome, por ora, como simplesmente abandonada qualquer teoria original sobre os sonhos, exceto por uma observação digna de espanto. Não obstante o que acaba de ser dito, a edição de 1844 da obra capital traz uma robusta e original doutrina da (dupla) memória, além de toda uma série de considerações psicológicas e fisiológicas que, por sua vez, em nada aparecem diretamente vinculadas aos sonhos e ao sonhar ou se aproximam da questão muito rapidamente, sem uma explicação propriamente aprofundada, ou seja, sem elaborada e suficientemente fundamentada resposta para as questões destacadas de início. Tomando-a como base, bem como outros elementos e ocorrências do tema do sonho na obra capital, seria possível levantar hipóteses acerca das condições de possibilidade do sonhar, mas não há nenhum rastro de semelhante empreitada nem na obra capital nem na nova versão da Quadrúplice. Mais curioso é que, no lugar disso, o segundo volume de O mundo traga algumas considerações que parecem barrar semelhante caminho: quando Schopenhauer, por exemplo, contrariando o § 5 do primeiro volume, como que para fazer “funcionar” a resposta kantiana, enfatiza a dificuldade de se recordar do sonhado em virtude do rompimento do fio da recordação (W II, cap. 14, p. 147; trad. br.: 2014, 1, p. 215-216), resposta retomada mais adiante (W II, cap. 19, p. 272; trad. br.: 2014, 1, p. 360-361) contra a tese da atividade ininterrupta do cérebro, pois este teria de repousar. Estes e outros trechos, no entanto, já apontam que a atividade onírica proviria, de algum modo, da vontade, sem explicar que modo seria esse.
Ocorre que não nos ajuda muito, se estivermos pensando em sonhos no sentido estrito, contar com passagens algo alegóricas em que Schopenhauer chega a se referir a um “infinito Espírito da Natureza” do qual somos sonhos curtos (W I, § 58, p. 379)[2], ou que a História nada é senão o “sonho da humanidade” (W II, cap. 38, p. 504; trad. br.: 2014, 2, p. 122). Tais imagens, todavia, ganham maior peso no ensaio incluído no primeiro volume dos Parerga e paralipomena sob o título “Especulação transcendente sobre a aparente intencionalidade no destino do indivíduo”. Aqui a alegoria já presente na primeira edição de O mundo se torna ainda mais ousada quando se fala em “harmonia preestabelecida” entre os inúmeros “sonhos longos” dos humanos[3] (P I, p. 208 [Deussen: IV, p. 246]; trad. br.: 2023, p. 59-60), os quais, tomados em seu todo, como o mundo em geral, têm a Vontade como “sujeito”: “o sujeito do grande sonho da vida é, em certo sentido, somente um, a Vontade de Viver” (P I, p. 209 [Deussen: IV, p. 247]; trad. br.: 2023, p. 60)[4]. Chama a atenção a Vontade tomar o lugar do puro sujeito do conhecimento referido na antiga nota de 1814. Como pode ser, todavia, a Vontade, um sujeito que representa? “Sujeito”, “subjetivo” – categorias epistêmicas – só parecem cabíveis à vontade no sentido de tratar-se do que não pode ser conhecido, do que é íntimo. Não é precisamente – conforme sugerido acima – em virtude da absoluta diferença entre querer e conhecer que se abandona a tese sobre o sonhar como produto da faculdade de imaginação, uma vez que o órgão cerebral está inerte durante o sono, ao contrário da vontade (coração) sempre em atividade? Que não haja representações quaisquer sem a participação do cérebro não é o que se encontra no fundo da analogia entre sono e morte como estados de completa inconsciência e inexistência para si mesmo?
Em verdade, o ensaio não parece tão preocupado em dar sentido a uma doutrina dos sonhos quanto em cumprir duas outras “agendas”: uma, mais particular, de complementar as reflexões acerca das manipulações hipnóticas, da possibilidade da profecia e questões afins, geralmente reunidas sob a rubrica de paranormalidade; outra, de maior alcance e relevante para a doutrina schopenhaueriana em geral, que trata da possibilidade de compartilharmos um mundo objetivo (efetivo, wirklichen) ao mesmo tempo em que esse mundo não passa de algo que se encontra apenas em nossa mente desperta conformado pela formas subjetivas de tempo, espaço e causalidade. Quanto à última, a despeito das suspeitas de solipsismo que podem ser levantadas, Schopenhauer já havia oferecido elucidações na obra de 1818 sem nenhuma apelação à excêntrica doutrina da harmonia preestabelecida, que deve supor uma inteligência infinita por trás da cena: por exemplo, a partir da admissão de cada vontade individual como idêntica à coisa em si e por meio da doutrina da unidade da Vontade, desvendada pela experiência da compaixão, o que pretende superar a necessidade de compatibilização entre o uno macrocósmico e o múltiplo microcósmico, já que a individualidade é a ilusão resultante do princípio de individuação. A “harmonia do todo”, expressa na noção de “justiça eterna”, tem muito mais a ver com uma economia de forças – equilíbrio necessário de atividade e passividade – do que com uma unidade de plano, de sentido, como pretendem as teodiceias. Para além disso, a necessidade de “conectar os sonhos” não parece ter sido sentida por muito tempo. Com relação à primeira, o assunto já interessava a Schopenhauer muito antes de virar moda na Europa, em meados do século, ocasião em que ele talvez se sentisse mais e mais à vontade para publicar a respeito – as primeiras linhas do ensaio “Investigação sobre a visão de espíritos” parecem confirmá-lo. A primeira edição da obra capital (§ 25, p. 187-188) já apontava para a questão da “magia da Vontade”, que teria sobre a Natureza um poder comparável ao de um feiticeiro (Zauberer). O parágrafo, todavia, é completamente substituído pelo célebre trecho que começa se referindo à aniquilação completa de um indivíduo qualquer como que levar consigo todo o mundo como representação (W I, p. 153). Mais adiante (§ 27), a segunda edição também substitui a expressão thierischen Magnetismus (magnetismo animal) por magnetischen Hellsehen ((clari)vidência magnética) (W I, p. 180).
Em 1912, na França, o ensaio sobre o destino foi reunido àquele que o sucede nos Parerga e paralipomena, “Investigação sobre a visão de espíritos e o que se relaciona com ela”, e ao capítulo “Magnetismo animal e magia”, originalmente publicado em Sobre a vontade na Natureza, em uma tradução intitulada Mémoires sur les sciences occultes, que, diga-se de passagem, traz um belo prefácio do tradutor. É certamente na “Investigação” que, finalmente, encontramos algo mais apropriado para responder à questão sobre as condições materiais de possibilidade do sonhar profético, desenvolvendo, a partir de uma imagem homérica, uma hipótese registrada pela primeira vez em 1826: tratava-se de tentar dar conta da possibilidade do sonho – a questão ainda inteiramente sem resposta –, surgindo a tese de que os sonhos adviriam da atividade do sistema ganglionar, trazendo ainda o reconhecimento de diferentes níveis de sono (HN III, [102], p. 236; trad. br.: 2023, p. 87), aqueles mais próximos do adormecer e do despertar e o sono profundo, que hoje se denomina sono-REM.
Pode-se encontrar na “Investigação” a decidida diferenciação entre os produtos do sonhar e aqueles da imaginação (P I, p. 218-219 [Deussen: IV, p. 256-258]; trad. br.: 2023, p. 69-71), parágrafo que se encerra com a enfática contraposição à tese de 1813: a fantasia não é o meio, ou órgão do sonho. Isso porque, ao menos do ponto de vista subjetivo, “o mais vívido jogo da fantasia em nada se compara à palpável efetividade que sonhos nos exibem”. Isso porque, antes, a vivacidade do fantasma era proporcional ao embotamento da consciência, por assim dizer, mas se pode, de fato, estar consciente de estar fantasiando – todos vivem fazendo isso, não sendo necessários quaisquer exemplos. No entanto, “fantasia” não parece ter uma acepção tão ampla quanto na Dissertação. Por outro lado, estará o gênio consciente de estar fantasiando quando contempla a Ideia, que pode ser considerada como a mais vívida e real das fantasias? Ora, tal vivacidade, também aqui, vem diferenciar a (clari)vidência – a sobreposição de uma imagem ao mundo efetivo presente – do mero delírio, quando, a propósito, não se tem consciência alguma de se estar fantasiando, derivando-se daí mesmo seu efeito sobre o sujeito. Nesse sentido, o argumento fundamental afirma que, diferente do que ocorre com a imaginação, o sonho traz algo diante de nós como estando de fato presente, de maneira irresistível e mesmo contra nossa vontade (wie die Auβenwelt, ohne unser Zuthun, ja wider unsern Willen aufdringendes). Tal imposição alheia ao querer individual é o que confere objetividade a esses fenômenos oníricos ou paranormais e, justamente em virtude daquela “palpável efetividade”, podem ser recordados e até mesmo se confundirem com os fatos. Ora, isso não pode ser dito do delírio de um louco ou da intuição estética de um gênio? Tudo isso indica que o conceito de “fantasia” foi deflacionado. Todavia, contrariamente ao que diz o contraexemplo de Hobbes, de resto, tão reconhecido por todos como verdadeiro, nega-se em seguida toda possibilidade de continuidade do fio entre sono e vigília, o que se pensava instantes antes de adormecer desaparece com o adormecimento, como sinal de que a faculdade de imaginação se apaga junto com a razão.
Mas que órgão seria responsável por essa função tão diferente da imaginação? Mais à frente, Schopenhauer o nomeará um tanto prosaicamente “órgão do sonho” (Traumorgan). A mais antiga menção a esse órgão misterioso encontra-se em uma anotação de 1847[5] na qual aparece a relação entre as aparições de espíritos e os sonhos proféticos cuja explicação também lhes serviria: “a vontade desperta o cérebro para que ele possa lhe conservar a revelação do órgão do sonho”, de maneira que este desperta ao mesmo tempo que a faculdade de intuição, portanto, objetivamente (HN IV, Spicilegia, p. 395 [150], p. 302). Contudo, o principal problema dessa distinção estrita entre sonho e fantasia toma esta última no sentido mais corriqueiro de um divagar arbitrário ou de algo que emerge por mera associação de pensamentos, voluntariamente ou não. Sendo assim, não são considerados por Schopenhauer aqueles delírios e alucinações que podem eventualmente tomar conta de uma pessoa sã, menos ainda os chamados “sonhos lúcidos”, algo que é do conhecimento geral e não se justifica que não recebam qualquer menção. A natureza da intuição genial também parece completamente desconsiderada.
O que importa a Schopenhauer é romper por completo a receptividade externa, consistentemente com sua cisão completa entre querer e conhecer, fazendo provir o material do sonho de uma fonte inteiramente diversa dos órgãos sensoriais, sem poder, contudo, explicá-lo com clareza, já que não poderia haver outra para os conteúdos oníricos e, ao mesmo tempo, na ausência de razão, tampouco estaria disponível a memória (Gedächtniβ) para resgatar aquele material empírico – também sobre isso, o filósofo só oferece exemplos de mudanças abruptas de cenário entre vigília e sonho. Tais deficiências encontráveis nas páginas iniciais da “Investigação” sugerem algo, em verdade, confesso: a fisiologia dos sonhos mais parece uma espécie de “escada” para conferir, a partir de um fenômeno trivial, confiabilidade em fenômenos menos dignos de crédito entre a gente ocidental “esclarecida” – trata-se de contrapor a visão idealista, crítica, à falsa explicação espiritualista, conforme as palavras do filósofo ao final do segundo parágrafo (P I, p. 217 [Deussen: IV, p. 255]; trad. br.: 2023, p. 67). De todo modo, passemos a ela, já que consiste no que há de mais positivo na obra publicada no que concerne ao esforço de preencher a principal lacuna referida de início. Transcrevo a seguir como o processo fisiológico de elaboração dos sonhos é descrito no referido ensaio (P I, p. 222-226 [Deussen: IV, p. 261-265]; trad. br.: 2023, p. 74-79). O trecho inicia dizendo que,
[...] no surgimento dos sonhos, seja em meio ao adormecer, ou no sono já iniciado, tanto a excitação externa por meio dos sentidos quanto a interna por meio dos pensamentos estão afastadas do cérebro, esta sede exclusiva e órgão de todas as representações; assim, não nos resta nenhuma outra suposição senão a de que ele receba alguma excitação puramente fisiológica para isso desde o interior do organismo. Para a influência deste sobre o cérebro estão abertos dois caminhos: o dos nervos e o dos vasos.
Assim se caracteriza a suspensão das atividades cognitivas durante o sono, ou seja, não apenas a atividade racional, mas, com ela, todas as funções animais, a saber, aquelas relativas ao entendimento, que, desse modo, fica insensível a dados sensoriais. O que resta são as funções vegetativas, orgânicas, que, como se sabe, correspondem à ininterrupta atividade da vontade cega que se apresenta aí como “força vital”, já referida nos escritos Sobre a vontade na Natureza e Sobre a liberdade da vontade. Tal atividade é ordinária e periodicamente dirigida, como que instintivamente, ao restabelecimento e à conservação do organismo mesmo, que é vontade, por meio daquilo que Schopenhauer passa a denominar “poder de cura da natureza” (vix naturæ medicatrix), que age, sobretudo, durante o sono, aproveitando-se do repouso das atividades físico-motoras e intelectuais. O trecho retoma o que já aparece brevemente nos capítulos 19 e 27 do segundo volume na obra magna (W II, p. 240, 273, 396; trad. br.: 2014, 2, p. 324-325, 362, 501-502). O cérebro, estando inerte, portanto, prossegue Schopenhauer, “recebe sua nutrição principalmente no sono”, pois isso não se pode dar adequadamente durante a vigília (P I, p. 222 [Deussen: IV, p. 261]; trad. br.: 2023, p. 74). Assim descrito o estado fisiológico em que se encontra o indivíduo adormecido, chega-se à hipótese sobre como uma “excitação puramente fisiológica” chegaria ao cérebro a ponto de influenciá-lo, mesmo em repouso:
Todas essas operações [da força vital] estão sob a direção e controle do sistema nervoso plástico, portanto, do conjunto dos grandes gânglios, ou nós nervosos, os quais, ligados entre si por feixes de fibras nervosas condutoras por toda a extensão do tronco, constituem o grande nervo simpático ou centro nervoso interno (P I, p. 222-223 [Deussen: IV, p. 261-262]; trad. br.: 2023, p. 74-75).
Sem qualquer comunicação com o cérebro – parte do sistema nervoso responsável pelas percepções do mundo externo –, as referidas operações não são normalmente sentidas, não chegando à consciência. No entanto, ainda deve restar uma conexão fraca e indireta com o sistema cerebral, por meio de nervos finos e mais distantes, em virtude da qual, em estados anormais do organismo, sentimos alguma dor interna ou temos alterações de humor (Stimmung) sem fundamento objetivo. Se, durante a vigília, tudo isso tende a passar despercebido em meio à ocupação do cérebro com os objetos sensíveis e com os pensamentos, o sono seria a ocasião análoga àquela em que “as imagens da lanterna mágica só podem aparecer quando se suprimiu a iluminação da sala”, de acordo com a analogia feita no parágrafo anterior (P I, p. 220 [Deussen: IV, p. 260]; trad. br.: 2023, p. 72).
[...] quando as impressões externas cessam de atuar e também a atividade dos pensamentos no interior do sensório [Sensoriums] aos poucos se extingue, aquelas fracas impressões que empurram para cima, por caminho indireto, desde o centro nervoso interno da vida orgânica, igualmente a cada pequena modificação na circulação sanguínea, se tornam sensíveis [fühlbar] uma vez que se comuniquem com os vasos cerebrais – como a vela que começa a brilhar quando chega o anoitecer, ou como ouvimos à noite correr a fonte que o ruído do dia tornava inaudível. Impressões que são muito fracas para poder ter efeito sobre o cérebro desperto, isto é, ativo, são capazes de produzir uma leve excitação de suas partes individuais e de suas forças representativas quando a sua atividade própria é totalmente interrompida, – como uma harpa não ressoa som estranho enquanto está sendo tocada, mas sim quando pendurada em silêncio. Portanto, aqui tem de estar a causa do surgimento e, por seu intermédio, também de se situar a completa determinação mais próxima daquelas figuras oníricas que emergem no adormecer, e não menos daquelas dos sonhos que têm nexo dramático, que se erguem do absoluto repouso mental do sono profundo [...]. (P I, p. 223-224 [Deussen: IV, p. 262-263]; trad. br.: 2023, p. 75-76).
De saída, chama a atenção que, no caso dos sonhos, Schopenhauer defenda sua vivacidade com base no repouso do cérebro, algo que ele, poucas páginas antes, recusava categoricamente, como “totalmente falso”, servir de explicação para a fraqueza e fugacidade das fantasias ocorridas durante a vigília, como que deslegitimando a expressão “sonhar acordado”. Isso à parte, pode-se acolher sem ressalvas que abstrações (e mesmo a apreensão das Ideias) sejam de natureza inteiramente diversa daquilo que ocorre no sonhar. Todavia, ainda soa estranho e um tanto forçado que a completa ausência de comunicação entre os “grandes nervos” e o cérebro possa ser mantida por “nervos finos” de maneira que este possa ainda produzir intuições. O inusitado dessas intuições oníricas, conforme diz Schopenhauer na sequência, se deve a que teriam sua fonte em “ecos” advindos de um lado diferente e por via inabitual em relação ao que ocorre com o cérebro desperto, cuja atividade sensorial (sensorielle Thätigkeit des Gehirnes) ainda consegue, em estado de apatia, tomar a ocasião e o material para suas figuras oníricas, não importando o quanto essas impressões e imagens derivadas sejam heterogêneas entre si. Os exemplos de Schopenhauer nessa direção não são muito convincentes, especialmente se temos em conta sonhos dotados de sentido e/ou com imagens familiares, já que – devemos recordar – ele declarou rompido o fio da recordação entre sono e vigília, bem como o completo repouso da razão, faculdade que nos permite representar o passado e o futuro. Não se trata, naturalmente, de fazer passar uma pressão no interior do ouvido por uma ritmada batida de tambor, tampouco de recordar uma antiga residência mediante um aroma que sentimos sem qualquer causa externa... Trata-se da possibilidade de ter diante de si cenas complexas. Fazendo reserva quanto ao argumento das ligações nervosas e à interferência ou não dos estímulos recebidos durante a vigília, mais importante parece ser a admissão da seguinte hipótese cuja possibilidade material não foi suficientemente demonstrada, qual seja:
[...] como todos os nervos dos sentidos podem ser excitados tanto de dentro quanto de fora para suas sensações [Empfindungen] peculiares, de igual maneira o cérebro também pode ser determinado por estímulos provenientes do interior do organismo para cumprir sua função de intuir figuras que preenchem o espaço; as aparições [Erscheinungen] assim surgidas não diferirão daquelas ocasionadas por meio de sensações nos órgãos sensoriais, provocadas por causas externas. [...] o cérebro também reage a todas as excitações que o atingem, mediante o cumprimento de sua função peculiar. Esta consiste primeiramente na projeção [Entwerfen] de imagens no espaço, que é forma de sua intuição, segundo as três dimensões, movendo-as em seguida no tempo e pelo fio condutor da causalidade, que também são as funções de sua atividade peculiar [...]. (P I, p. 224-225 [Deussen: IV, p. 263-264]; trad. br.: 2023, p. 77).
Eis, então, o que explicaria o sonho e seu enredo: a reprodução de imagens comuns às da vigília, só que durante sua completa ausência aos sentidos, sem apoio da memória ou da associação de pensamentos; apenas cega repercussão. O porquê de cada imagem e de cada ligação parece indevassável, fazendo algum sentido apenas para o sonhador, como o maníaco que remete tudo a sua ideia fixa.
O promissor insight de 1826 acerca do papel do sistema ganglionar não se desenvolveu suficientemente ao logo das duas décadas subsequentes, pois ali mesmo já se negava qualquer papel à recordação pelo simples fato de, no sonho, não nos lembrarmos da vigília enquanto tal – porém, que dizer do conteúdo do sonho tomado em si mesmo? Como, afinal, o cérebro reproduz imagens já conhecidas? Por que também abrir exceção para a tese de que nenhuma imagem ou pensamento nos vêm à mente senão por uma ligação com outra imagem ou pensamento, se a associação de pensamentos é regida pela vontade sempre ativa em nós? Com efeito, o tratamento em separado da vontade sonhadora no ensaio sobre o destino e da fisiologia do sonho na “Investigação” dificulta sobremaneira o preenchimento da lacuna ou, caso se prefira, a sustentabilidade dessa tentativa. O essencial da fisiologia aqui apresentada já se encontrava esboçado em 1828, incorporando alguns elementos nos anos imediatamente seguintes. Contudo, parte desses pensamentos jamais veio à luz pelas mãos do autor, nem mesmo a resposta provisória de 1826 para o problema do conteúdo dos sonhos que repetem acontecimentos efetivos (HN III, [140], p. 261-262; trad. br.: 2023, p. 88), tampouco a explicitação metafísica do papel da vontade agindo sobre o cérebro em 1847 (HN IV, Spicilegia, p. 395 [150], p. 302). Nada disso encontrou seu lugar nos Parerga e paralipomena. No que concerne à obra magna, o que esta tem a oferecer de melhor é uma rápida comparação entre a atividade instintiva dos animais e o sonambulismo, ocasião em que se menciona o papel do sistema ganglionar e dos nervos simpáticos (W II, cap. 27, p. 393; trad. br.: 2014, 1, p. 498). Os casos noticiados de supostos “sonhos fatídicos”, que imediatamente se seguem – acrescidos na edição de 1859 –, antes soam como “sentimentos premonitórios” e, uma vez que se os admita como verdadeiros sonhos esquecidos, isso não corrobora a tese do esquecimento dos sonhos mais do que uma petição de princípio o faria – não há nenhum motivo para crer que as pessoas mencionadas teriam sonhado com algo que determinaria suas atitudes inexplicáveis. O completo silêncio daqueles elementos e outros relevantes na obra publicada não nos autoriza a tirar conclusões sobre o que Schopenhauer poderia fazer com eles, todos com data bem anterior às edições finais de suas obras.
Estranho não é, propriamente, que Schopenhauer tenha se empenhado tanto em dar sustentação à efetividade de fenômenos extraordinários, excepcionais. O que surpreende é que, em vista disso, tenha tergiversado e negligenciado na oferta de uma explicação mais robusta para um fenômeno tão relevante no mundo humano e tão corriqueiro, como entre os animais em geral, mesmo o polvo: o sonhar. Eventos extraordinários são de interesse para as ciências particulares; à Filosofia interessam o essencial e o universal, não é mesmo? Por que não pensar, por exemplo, que, na condição de modo de apresentação da vontade de conhecer, como vemos no primeiro capítulo de Sobre a vontade na Natureza e no capítulo 20 de O mundo como vontade e representação, o cérebro seja mais do que um órgão de conhecimento, que ele seja em si mesmo vontade e, como tal, nele haja algo cuja atividade é ininterrupta, tal como hoje é sabido ser o caso. O cérebro não é mero parasita que “come e dorme”, ou melhor, que trabalha fora por apenas 18 horas para então deixar todo o organismo a seu serviço durante a noite. Não parece necessário levar tão longe a separação entre querer e conhecer a ponto de eleger apenas o coração como órgão da vontade e o cérebro como órgão dedicado exclusivamente ao conhecimento – ambos, enquanto órgãos físicos, são meras aparências; que serão em si, como vontade objetivada? Toda a sua doutrina ensina que tudo tem de poder ser elucidado por uma dupla via – por que não aqui?
Parece certo que Schopenhauer, atualmente, minimamente inteirado dos estudos sobre o cérebro, teria de admitir nele uma atividade mais fundamental do que a vital, tão perene quanto ela, uma força quiçá mais originária do que a da gravidade, uma força em virtude da qual podemos dizer que há Natureza. O cérebro, como vontade de conhecer objetivada; o intelecto, como vontade de conhecer conhecida a partir de dentro: sua misteriosa atividade escapa aos olhos e aos instrumentos e, assim também, seus produtos mais imediatos.
SCHOPENHAUER, Arthur. Die Welt als Wille und Vorstellung. Erster Band. Zweite, durchgängig verbesserte und sehrvermehrte Auflage. Leipzig: F. A. Brockhaus, 1844.
SCHOPENHAUER, Arthur. Mémoires sur les sciences occultes. Trad. G. Platon. Paris: Librairie des Sciences Psychiques, 1912.
SCHOPENHAUER, Arthur. Komplettausgabe. Schopenhauer im Kontext III. 1. Aufl. Berlin: Karsten Worm - InfoSoftWare, 2008.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação: tomo II – Complementos. Trad. Eduardo Ribeiro da Fonseca. Curitiba: UFPR, 2014. 2 v.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad. Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2015. 2 v.
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a quadrúplice raiz do princípio de razão suficiente. Trad. Oswaldo Giacoia Jr. e Gabriel Valladão Silva. Campinas: UNICAMP, 2019.
SCHOPENHAUER, Arthur. Die Welt als Wille und Vorstellung. Kritische Jubiläumsausgabe der ersten Auflage (1819) mit den Zusätzen von Arthur Schopenhauer aus seinem Handexemplar. Hrsg. Matthias Koβler und William Massei Júnior. Hamburg: F. Meiner, 2020.
SCHOPENHAUER, Arthur. Para uma metafísica do sonho. Org. Trad. Márcio Suzuki. São Paulo, Iluminuras, 2023.
Apêndice: tradução do § 22 da dissertação
[III 27] FANTASMAS[6] E SONHOS. FANTASIA
Mas o sujeito é capaz de, posteriormente, repetir as representações que uma vez estiveram presentes a ele por meio do objeto imediato[7] sem essa intermediação, arbitrariamente e até mesmo com modificação na sua ordem e na sua conexão. Denomino tais repetições fantasmas e, a capacidade para elas, fantasia ou força imaginativa[8] [Phantasie oder Einbildungskraft], cujas representações são, decerto, completas (segundo a explicação dada em § 18[9]). Todavia, não pertencem ao todo da experiência, de modo que elas também não se encontram sob a lei de causalidade que reina ali, mas, enquanto ações do mero arbítrio, sob a / III 28 / lei de motivação que governa a classe de objetos da faculdade de representação que será abordada por último. As menciono aqui porque elas, enquanto representações completas, encontram-se aqui em seu lugar, ainda que, pelo predicado de arbitrariedade, sejam subtraídas à lei do todo da experiência e confiadas a outra. Menciono-as, ademais, porque, enquanto fantasmas, diferem bastante dos conceitos, de que trataremos no próximo capítulo[10].
Que saibamos diferenciar entre fantasmas [Phantasmen] e objetos reais decorre de que, no estado de vigília, o objeto imediato está sempre imediatamente presente à nossa consciência, uma vez que a presença imediata de todas as outras representações que pertencem ao todo da experiência tem como fundamento uma modificação no objeto imediato, o qual, portanto, acompanha toda vez como parte integrante cada representação presente pertencente ao todo da experiência[11]. Os fantasmas contêm, de igual maneira, as representações de mudanças no objeto imediato (enquanto repetições) e também funções do entendimento aplicadas a eles aqui e ali: ora, apesar de a presença imediata do objeto imediato à consciência se tornar tão mais fraca quanto mais vívido for o fantasma nesse instante, ele permanece quase sempre tão presente para nós que, sendo os fantasmas objetos para nós na medida em que contêm modificações do objeto imediato, nós, então, ao mesmo tempo reconhecemos o objeto imediato sem essas modificações. Mas, se os fantasmas atingem um grau superior de vivacidade a ponto de expulsar completamente da consciência o objeto imediato, podemos reconhecer que se trata de fantasmas mediante a reentrada do objeto imediato na consciência, cuja entrada tem de ocorrer novamente já que o objeto imediato, enquanto representação pertencente ao todo da experiência, de acordo com as leis desta, persiste. Afinal, de acordo com a regra que será abordada a seguir neste capítulo[12], de que todo acontecimento tem de ter um lugar necessário em alguma série de causas e efeitos, nós consideramos o objeto imediato, tal como os demais objetos, relativamente à experiência e o conhecemos segundo as / III 29 / leis dessa experiência; não se trata, na maioria dos casos, de ele poder não ter sofrido a ação [Einwirkung] cuja representação estava contida no fantasma, já que raramente podemos prosseguir até muito longe na série de efeitos e causas, e nunca até o fim. Se imaginei, por exemplo, que alguém tenha entrado em meu quarto, somente a partir da maneira indicada de início (mediante a reentrada do objeto imediato na consciência) posso reconhecê-lo como um fantasma: pois raramente pode ir muito longe o exame dos estados que teriam de preceder a entrada dessa pessoa em meu quarto.
No sono, o objeto imediato é arrebatado da consciência e, com ele, todo mediado: sem objeto, nenhum sujeito: logo, sono privado de consciência. Fantasmas [Phantasmen], isto é, renovações de representações outrora mediadas, sem essa mediação, são também possíveis durante o sono, sonhos, como sabemos. Se, no sono, o objeto imediato nos é arrebatado, durante o sono nós não podemos diferenciar entre os fantasmas e os objetos reais, pois nos falta o mencionado critério. É somente no despertar, enquanto reentrada do objeto imediato na consciência (necessariamente em virtude da persistência de todas as representações pertencentes ao todo da experiência, independentemente de sua presença imediata na consciência), que reconhecemos como tais os fantasmas [Phantasmen]. O despertar é, portanto, o único critério para a diferenciação entre o sonho e a efetividade. Quando duvidamos se um acontecimento é sonhado ou efetivo, isso ocorre porque o instante do despertar é esquecido. Teremos, então, de recorrer ao critério muito mais incerto da investigação sobre o acontecimento ter tido ou não lugar em uma cadeia qualquer de efeitos e causas.
Contribuição de autoria
1 – Dax Moraes
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
https://orcid.org/0000-0002-7634-3611 • dax.moraes@ufrn.br
Contribuição: Escrita – Primeira Redação
Como citar este artigo
MORAES, D. Doutrina dos Sonhos: uma lacuna na filosofia de Schopenhauer. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria - Florianópolis, v. 15, esp. 1, e88801, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378688801. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
[1] A paginação é referida, exceto quando indicado, conforme a edição Deussen, adotada na edição Im Kontext, bem como na tradução de O mundo como vontade e representação pela editora Unesp (localizada nas margens do texto). As traduções são de minha responsabilidade.
[2] V. tb. W II, p. 571-572 (trad. br.: 2014, 2, p. 199-200). A Vontade, como "Espírito do Mundo", sonha sonhos desconexos, cada indivíduo é um sonho e a ruptura se dá entre esses “sonhos curtos”.
[3] A ousadia consistiria em incorporar esse conhecido princípio leibniziano após ter sido tão criticado, por exemplo, no contexto de ironias dirigidas a Kant na primeira edição da obra capital, quando Schopenhauer procurava tirar consequências do modo incerto com o qual Kant tentava estabelecer a relação entre as coisas em si e suas aparências na representação. Em termos gerais, o princípio da harmonia preestabelecida só parece ser requerido para validação da unidade de uma multiplicidade real em um todo cujas partes são incomunicáveis, seja por se tratarem de “mônadas fechadas”, seja pela absoluta diferença entre mente e corpo, vontade e representação. Aqui, para nossa surpresa, Schopenhauer parece recorrer à harmonia preestabelecida para dizer que os “sonhos da vida” de cada um, embora ocorram apenas para indivíduos, coexistem no universal “sonho da Vontade”, tal como as perspectivas de cada mônada conjugam-se no Deus leibniziano ou as percepções de cada espírito finito são sempre presentes ao espírito infinito berkeleyano. Essa extravagante analogia, que supõe serem os inumeráveis cursos de vida, presentes, passados e futuros, sempre atuais para a Vontade una, talvez explique, no entanto, estranhos e, quiçá, inconsistentes acréscimos feitos na terceira edição do O mundo no que concerne à indestrutibilidade do ser em si, questão que, naturalmente, excede os objetivos e o tema do presente artigo.
[4] Comparar com W II, cap. 41, p. 561 (final) (trad. br.: 2014, 2, p. 189): “O que propriamente o sonhou é diferente dele [o intelecto e suas formas] e o que unicamente resta”. V. nota 2, acima: faz sentido que, alheia ao princípio de fundamento, a Vontade não possa estabelecer conexões entre os seus sonhos curtos, mas até que ponto isso justifica negar que os indivíduos, que existem em conformidade à lei de causalidade e agem em conformidade à de motivação, não possam fazê-lo, como de fato fazem? Apenas a Vontade deveria ser incapaz de lembrança, tal como qualquer indivíduo desprovido de entendimento.
[5] O Traumorgan não parece se confundir, como logo se pode observar, com a menção feita ao intelecto como órgão do “sonho da vida” no contexto citado acima (nota 4), cuja publicação se deu em 1844. Parece indicar, em vez disso, uma tentativa de tratar objetivamente do assunto, ou seja, do sonhar em sentido estrito.
[6] N.T.: Isto é, produtos da imaginação, não se referindo a aparições de espíritos, que, ao menos no período inicial do pensamento schopenhaueriano, seriam, talvez, um caso inteiramente à parte – o texto não oferece informações suficientes para que se decida sobre isso e as mudanças de posição analisadas acima não facilitam o caminho para alguma hipótese a esse respeito. De fato, a obra posterior e manuscritos poderiam permitir a inclusão, aqui, dos espíritos. No título, emprega-se o germanizado Phantasmen, que aparece minoritariamente no corpo do texto, quando indicado na tradução – nas demais ocasiões, o autor prefere a transliteração do grego, Phantasmata, que tem o sentido original de “aparições”. Vale observar que se trata de “aparições”/”aparências” destituídas de realidade objetiva (efetividade), razão pela qual não se confundem com as Erscheinungen, que traduziriam o grego Phainomena. Não sendo obra do entendimento a partir de intuições sensíveis de objetos efetivamente presentes, o fantasma é uma espécie de Schein (ilusão), tal como o autor virá a considerar a natureza dos objetos na filosofia fichteana. Por isso mesmo podemos compreender a ressalva, já no parágrafo inicial, de que esse tema não pertence propriamente ao presente capítulo, mas àquele dedicado aos objetos da quarta figuração do princípio de fundamento, que também trata da memória, regidos pela lei de motivação, não pela de causalidade.
[7] N.T.: V. § 21, inteiramente modificado em § 22 da segunda edição.
[8] N.T.: Embora o mais usual e até conveniente seja a tradução por “faculdade de imaginação” ou, simplesmente, “imaginação”, sigo a instigante sugestão alternativa de Giacoia Jr. e Silva ao traduzirem Urtheilskraft por “força judicativa” na versão brasileira da Quadrúplice. De fato, a imaginação, em particular, conforme dito aqui pelo autor, não consiste em mera faculdade ou potencialidade inerte, mas em um poder pelo qual o indivíduo pode voluntariamente jogar com as imagens mentais, ou que pode até mesmo realizar esse jogo por si mesmo, como que impondo seus produtos ao sujeito, tal como nos sonhos e delírios.
[9] N.T.: Reformulada na segunda edição (§ 17).
[10] N.T.: Não obstante, ver § 24 no mesmo capítulo (Deussen: III, p. 36).
[11] N.T.: O objeto imediato não é um objeto propriamente dito, projetado no espaço pelo entendimento. Não é um corpo visto, tocado por nós, mas aquilo mesmo que se percebe como submetido à ação de algo sensível anteposto (vorstellt) a si como sendo a causa/origem (Ursache) da sensação – é o correlato subjetivo do entendimento (cuja função é posicionar – stellen – objetos no espaço-tempo) e não se confunde com o eu abstrato, que só é construído a partir da experiência dessa relação empírica sujeito-objeto. Assim é que o objeto imediato deveria ser pressuposto em todo representar, em vez do “eu penso” kantiano. Nesse sentido, a sua “presença imediata” consistiria em, em dado instante, encontrar-se efetivamente afetado, sofrendo o efeito (Wirkung) de um objeto. Essa diferença entre o objeto imediato schopenhaueriano e o eu-penso kantiano é crucial para que se reconheça, já aqui, o rompimento com a doutrina kantiana do entendimento humano, muito embora Schopenhauer, na Dissertação, apenas ressignifique, em vez de rejeitar, a tábua das categorias, uma vez que, conceitos, a seu ver, são objetos exclusivos da razão, não consistindo em representações do entendimento. Ainda assim, como em Kant, o entendimento é uma faculdade ordenadora.
[12] N.T.: § 23, revisto e muitíssimo ampliado na segunda edição (§ 20).