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Descrição gerada automaticamente

Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 15, esp. 1, e88744, 2024

DOI: 10.5902/2179378688744

ISSN 2179-3786

Submissão: 26/08/2024 Aprovação: 26/11/2024 Publicação: 04/12/2024

1 INTRODUÇÃO.. 3

2 ALGUMAS DEFINIÇÕES DE “CONSCIÊNCIA”. 9

3 PRIMEIRO ESQUEMA DOS TIPOS DE CONSCIÊNCIA. 13

4 SEGUNDO ESQUEMA DOS TIPOS DE CONSCIÊNCIA. 17

5 ESBOÇO COMPLEMENTAR DOS TIPOS DE CONSCIÊNCIA. 28

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS. 32

REFERÊNCIAS. 34

 

Schopenhauer: Sociedade e Cultura

Alguns sentidos de “consciência” em Schopenhauer e indicações preliminares acerca de sua relação com um possível inconsciente psíquico

Some senses of “consciousness” in Schopenhauer and preliminary remarks about its relation to a possible psychic unconscious

William MattioliIÍcone

Descrição gerada automaticamente

IUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

Schopenhauer usa o termo “consciência” para designar ora a cognição em geral, associada ao conceito igualmente geral de “representação”, ora modalidades específicas ou momentos específicos da cognição. Este trabalho pretende apresentar um primeiro esboço de um mapeamento conceitual em torno da noção de consciência na obra do autor. Meu objetivo é identificar sentidos distintos do termo e, ao mesmo tempo, tentar encontrar uma definição mais geral que pudesse abranger todos eles (ou pelo menos a maioria deles). Após apresentar algumas definições gerais de consciência que servirão como eixo para o desenvolvimento da argumentação subsequente, proponho dois esquemas gerais de classificação dos tipos de consciência e, na sequência, um esboço complementar com acréscimo de algumas categorias e subdivisões possíveis dos tipos indicados anteriormente. As relações possíveis entre a concepção de consciência discutida aqui e a noção schopenhaueriana de inconsciente serão objeto de um segundo artigo, que dará continuidade a este.

Palavras-chave: Consciência; Cognição; Volição

ABSTRACT

Schopenhauer employs the terms "consciousness" and "awareness" to refer, at times, to cognition in general, corresponding to the equally general concept of "representation," and, at other times, to specific modalities or particular moments of cognition. This paper aims to present a preliminary outline of a conceptual mapping of the notion of consciousness or awareness in his work. My goal is to identify distinct meanings of the term while simultaneously attempting to find a more general definition that could encompass all (or at least most) of them. After presenting some general definitions of consciousness that will serve as a foundation for the development of the subsequent argument, I propose two general schemes for classifying the types of consciousness, followed by a complementary outline that includes additional categories and possible subdivisions of the types previously indicated. The possible connections between the concept of consciousness discussed here and Schopenhauer's notion of the unconscious will be explored in a follow-up article to this one.

Keywords: Consciousness; Cognition; Volition

1 INTRODUÇÃO

Neste trabalho,[1] pretendo apresentar um primeiro esboço de um mapeamento conceitual em torno da noção de consciência em Schopenhauer. Meu objetivo é identificar sentidos distintos do termo e, ao mesmo tempo, tentar encontrar uma definição mais geral que pudesse abranger todos eles (ou pelo menos a maioria deles). Nesse sentido, o mapeamento proposto se orienta, em certa medida, na direção daquele fio condutor metodológico que Schopenhauer esboça no início da Quadrúplice raiz (G, § 1, p. 29)[2], quando diz que todo saber filosófico precisa fazer jus a duas regras ou leis fundamentais do pensamento: a lei da homogeneidade e a lei da especificação.

Após apresentar algumas definições gerais de consciência que servirão como eixo para o desenvolvimento da argumentação subsequente, proponho dois esquemas amplos de classificação dos tipos de consciência e, na sequência, um esboço complementar com acréscimo de algumas categorias e subdivisões possíveis dos tipos indicados anteriormente. As relações possíveis entre a concepção de consciência discutida aqui e a noção schopenhaueriana de inconsciente serão objeto de um segundo artigo, que dará continuidade a este.

Mas antes de passar à apresentação propriamente dita das definições e dos esquemas de classificação em questão, gostaria de indicar rapidamente o caminho que me levou ao questionamento que orienta este trabalho. A indicação desse caminho talvez sirva também para explicar a parte do título deste texto que se refere a um possível inconsciente psíquico em Schopenhauer. Não pretendo, por ora, me debruçar detidamente sobre esse ponto, mas quero apontar introdutoriamente o lugar que esse problema ocupa no escopo da minha análise e na formulação da minha questão diretriz.

A parte do título deste trabalho que se refere a um possível inconsciente psíquico em Schopenhauer pode causar algum estranhamento, já que não parece haver grande dissenso quanto ao fato de Schopenhauer ser um dos mais importantes filósofos na história do conceito de inconsciente e ter antecipado, em grande medida, muitas das ideias que viriam a nortear a formulação freudiana desse conceito no quadro de sua metapsicologia.[3]

Mas se Freud, por um lado, é bastante claro na sua insistência de que o inconsciente é uma instância propriamente psíquica – a essência mesma do psíquico, que sustenta e organiza todo o campo do mental, e cujo funcionamento responde a uma lógica particular de associação de ideias, de pensamentos, dotada de intencionalidade e estruturada em torno de representações carregadas de sentido (um sentido que pode ser decifrado, ao menos até certo ponto, por uma hermenêutica própria à interpretação analítica)[4] –, no caso de Schopenhauer, por outro lado, é muito menos claro em que medida nós podemos compreender a noção de inconsciente como passível de ser inscrita nesse registro do psíquico, do anímico ou do mental. E isso porque ele usa o adjetivo “inconsciente”, sobretudo e preferencialmente, para se referir à vontade em sua acepção originária, como aquele impulso cego que subjaz a todos os movimentos e processos que ocorrem no nosso organismo, e, por extensão analógica, a todos os movimentos e processos da natureza em sua totalidade.[5] Além desse uso, encontramos com alguma frequência o adjetivo “inconsciente” sendo empregado para caracterizar a dinâmica fisiológica que corresponde às funções igualmente cegas da vida vegetativa das plantas e dos animais, produtos da vontade encarnada no organismo na forma da força vital (W II, § 20, p. 305; § 23, p. 353).

Como sabemos, a insistência no caráter cego da vontade se deve à tese central de que ela se encontra fora do campo da representação e do princípio de razão suficiente, de modo que ela é, por um lado, essencialmente destituída da capacidade de representar em geral[6] e, por outro, sem fundamento, sem direção e sem finalidade. Essas duas características da vontade podem ser sintetizadas na tese de que ela é inteiramente destituída de intencionalidade, e eu considero essa tese como expressão do que podemos chamar de posição “oficial” de Schopenhauer.[7]

O que acaba de ser dito não é nenhuma novidade para os leitores do filósofo, mas eu sublinho esse ponto porque, à luz dessa caracterização da vontade e do vínculo entre vontade e inconsciente, a ideia de que haja em seu pensamento um inconsciente psíquico parece menos evidente. Com efeito, o psíquico (o campo do mental ou do anímico) aparece em Schopenhauer, na maioria das vezes, como coextensivo ao campo da representação, e a representação, por sua vez, aparece identificada à consciência.[8] Essa correlação entre intelecto, cognição, representação e consciência[9] faz com que sua teoria da mente e suas teses sobre a relação entre mente e consciência repercutam um modelo reminiscente daquele de Descartes ou de Locke, por exemplo. Por mais distintas (e mesmo opostas) que sejam as posições desses dois filósofos quanto à origem e aos critérios de justificação do conhecimento e quanto à polêmica tese das ideias inatas, ambos concordam que representação e consciência estão essencialmente conectadas, sendo a consciência um atributo indispensável para que um estado possa chamado de mental ou representacional;[10] ou seja, se entendermos por “representação” todo e qualquer conteúdo mental, isso significa que todo conteúdo mental é, por definição, consciente.[11]

Tendo isso em vista, como se posicionar diante dos textos em que Schopenhauer parece supor a existência de pensamentos inconscientes e mecanismos cognitivos inconscientes em ação na nossa vida psíquica em geral e, em particular, na determinação do caminho percorrido pelas nossas associações de ideias e na construção da narrativa da nossa própria história?[12] Essas afirmações são compatíveis com sua teoria geral da consciência? Em suma: como lidar com o problema da realidade psíquica do inconsciente em Schopenhauer? Devemos limitar o inconsciente, em seu sentido próprio, apenas à realidade metafísica da vontade e, derivativamente, aos processos da natureza que se dão fora da esfera da cognição, dentre eles as funções orgânicas da vida animal?[13]

Esse conjunto de problemas, somado à suspeita que me provocaram algumas críticas de Eduard von Hartmann às formulações schopenhauerianas sobre o inconsciente,[14] me conduziram à tentativa de rastrear os sentidos da noção de consciência em Schopenhauer, a fim de averiguar se, no uso que ele faz dessa noção, restaria espaço para desvincular conceitualmente o psíquico do consciente.[15] E boa parte das referências que eu pude levantar até este momento indicam que essa correlação não é exatamente uma regra, mas é uma constante que se mantém de forma mais ou menos consistente ao longo dos textos, com algumas exceções importantes.

É preciso frisar que o levantamento que serviu de base para este texto está longe de ser exaustivo. Há mais de 2500 ocorrências do termo Bewusstsein[16] espalhadas pela obra como um todo (incluindo os póstumos e as cartas). O método seguido nesta pesquisa impôs a necessidade de um recorte severo, a partir do qual realizei uma primeira coleta seletiva de algumas das passagens que considerei mais significativas para o tema, de obras que considerei igualmente mais significativas. A partir delas, foi feita a tentativa de esboçar um mapeamento dos principais sentidos em que o termo aparece.

A apresentação que se segue é, portanto, o resultado provisório desse primeiro esboço de mapeamento a partir das seguintes obras: a dissertação Sobre a quadrúplice raiz do princípio de razão suficiente, em sua segunda edição (1847); os dois volumes de O mundo como vontade e representação, em sua terceira edição (1859), sendo o primeiro volume minha principal referência;  os ensaios  Sobre a vontade na natureza, segunda edição (1854), e Sobre a liberdade da vontade, também na segunda edição (1860); e alguns capítulos dos Parerga (1851).

É importante deixar claro, ainda, que estou me restringindo à noção de consciência como Bewusstsein – portanto, à consciência em sentido cognitivo; deixo de lado inteiramente a noção de consciência moral, como Gewissen (ainda que, em certos usos do termo Bewusstsein, seja possível encontrar sobreposições importantes com o campo semântico próprio a certos conceitos pertencentes à ética, como a compaixão, a liberdade e a negação da vontade, por exemplo).

2 Algumas definições de “consciência”

Para iniciar minha análise, parto da passagem do primeiro tomo do Mundo como vontade e representação citada na nota 8 acima, que eu considero uma das mais importantes, haja vista que, ali, Schopenhauer ensaia uma definição geral de consciência. Esta será minha passagem focal, a partir da qual e em referência à qual eu tentarei desenvolver o restante da minha argumentação. A passagem é a seguinte: “Atribuímos aos animais consciência, conceito este que, embora seja derivado de saber, coincide com o de representação em geral, não importa seu tipo.” (W I, § 10, p. 60) O trecho está citado na tradução de Jair Barboza, e eu faço apenas uma rápida observação: o termo “representação”, no original alemão dessa passagem, é o verbo substantivado: das Vorstellen überhaupt, de modo que uma tradução mais literal poderia ser: “o conceito de consciência coincide com o do representar em geral”.[17] A atenção a esta nuance serve apenas para indicar que “representação”, aqui, não se refere unicamente ou diretamente ao conteúdo intencional de um ato cognitivo – conteúdo que é apreendido como objeto –, mas se refere também (talvez ainda mais fundamentalmente) ao próprio ato e à sua estrutura ou forma geral, que implica os dois polos: do sujeito e do objeto, em correlação necessária. Este ato é, com efeito, logicamente anterior à representação enquanto objeto. A consciência é, então, nos termos de Schopenhauer: “o sustentáculo da existência objetiva dos objetos” (W I, § 30, p. 420). Passarei a me referir a essa definição como definição transcendental-estrutural de consciência. O que é nela enfatizado é a correlação necessária entre a consciência, como ato cognitivo em geral, e o objeto em geral como sua contraparte intencional. Dando a palavra novamente ao autor: “uma consciência sem objeto não é consciência alguma” (W II, § 1, p. 17).

Podemos formular essa definição do seguinte modo: a consciência é a unidade da correlação necessária entre sujeito e objeto. Trata-se de uma definição inscrita num registro epistemológico, transcendental e fenomenológico, que diz respeito às condições e ao modo de acesso a objetos, a partir da perspectiva que Schopenhauer denomina ponto de vista subjetivo. Esse ponto de vista parte do interior e toma “a consciência como um dado”, com o objetivo de apresentar “por qual mecanismo o mundo expõe-se na mesma, e como, a partir de materiais que os sentidos e o entendimento fornecem, o mundo é ali construído.” (W II, § 22, p. 329) Essa mesma perspectiva é também denominada, consequentemente, “ponto de vista idealista”:  trata-se do “ponto de partida essencial, o único correto de toda filosofia e o seu verdadeiro ponto de apoio. Esse ponto de apoio absolutamente necessário e essencial é o subjetivo, a própria consciência.” (W II, § 1, p. 6)

Busquemos reter essas duas qualificações: no interior do registro de tematização transcendental-fenomenológico, encontramos uma primeira definição de consciência, segundo a qual a consciência é a unidade da correlação necessária entre sujeito e objeto. Essa primeira definição será referida por mim como definição transcendental-estrutural de consciência. Paralelamente a ela, mas ainda no mesmo registro temático (o registro transcendental-fenomenológico), é possível distinguir mais duas definições: uma que eu chamarei de definição formal, e outra que chamarei de definição noemática. Por “definição formal” eu entendo aquela que se encontra bem formulada no parágrafo 16 da Quadrúplice raiz, onde lemos o seguinte: “Nossa consciência cognoscente, surgindo como sensibilidade externa e interna, entendimento e razão, divide-se em sujeito e objeto, e não contém nada além disso.” (G, § 16, p. 135) A partir desse trecho, creio que podemos fixar a definição formal de consciência nos seguintes termos: a consciência é a unidade das faculdades cognitivas que permitem ao sujeito representar-se um objeto qualquer. É esse sentido de consciência que está implicado nas passagens em que Schopenhauer afirma, por exemplo, que as formas universais de todo objeto “residem a priori em nossa consciência” (W I, § 2, p. 6). Enquanto a definição estrutural enfatiza a correlação entre consciência e objeto a partir do conceito de representação em geral, a definição formal enfatiza o lado subjetivo dessa correlação, a unidade das faculdades que são a origem das formas universais sob as quais um objeto qualquer pode ser representado. Essas duas definições não se contrapõem uma à outra, mas se complementam, distinguindo-se apenas em termos de ênfase.

A terceira definição geral de consciência no interior desse mesmo registro conceitual, à qual me referi como “definição noemática”, desloca a ênfase da dimensão meramente formal ou estrutural para a dimensão que pode ser pensada como “material”, relativa ao conteúdo do ato cognitivo que apreende o objeto.[18] Trata-se de um sentido implícito presente em diversas formulações espalhadas pela obra de Schopenhauer,[19] à luz do qual nós entendemos por consciência algo como um estado ou conjunto de estados mentais nos quais um sujeito apreende certos conteúdos qualitativos ou objetivos, que aparecem de um determinado modo no espaço de vivência que lhe é acessível na perspectiva de primeira pessoa.[20] Está claro que os termos nos quais eu formulo essa terceira definição não acompanham literalmente o vocabulário schopenhaueriano. Dou-me a liberdade de importar, para dentro da leitura do texto, algumas noções presentes, por exemplo, no debate contemporâneo em filosofia da mente. Creio não estar cometendo, com isso, nenhuma violência hermenêutica, pois parece-me que essa definição contempla razoavelmente bem o campo semântico sobre o qual incidem os diversos tipos de consciência que Schopenhauer apresenta, sobretudo, a partir das distinções entre as classes de representações ou objetos e entre os modos de apreensão desses objetos com os quais nos confrontamos no horizonte da nossa experiência.[21]

Se retomarmos a passagem focal do primeiro tomo do Mundo a partir da qual apresentei a primeira definição geral de consciência, notaremos que já ali Schopenhauer assinala a abertura de um espaço para a determinação material do objeto que, em sua especificidade, deverá distinguir cada tipo de consciência (que mencionarei na sequência) em função do tipo de objeto ou do modo como o objeto é apreendido. Schopenhauer diz, no trecho em questão: “o conceito de consciência coincide com o de representação em geral, não importa o seu tipo.” (W I, § 10, p. 60) Da formulação do texto podemos concluir que, se a consciência em geral coincide com a representação em geral, a cada tipo de representação corresponderá, como veremos, um tipo de consciência.[22] Seguindo a lei da especificação, cada tipo deve ser distinguido dos outros de acordo com as suas características particulares e, segundo a lei da homogeneidade, deve ser compreendido sob a mesma categoria geral que compreende todos os outros. Daí a importância de trazer essas definições gerais, antes de apresentar cada espécie particular de consciência.

3 Primeiro esquema dos tipos de consciência

Diante do que foi dito, um primeiro esquema de classificação dos tipos de consciência pode ser esboçado intuitivamente a partir da divisão que Schopenhauer propõe entre as classes de objetos, para submetê-los às quatro figuras do princípio de razão suficiente. Segundo essa divisão, nós teríamos um primeiro esquema com os seguintes tipos de consciência: em primeiro lugar, o que podemos chamar de consciência empírica intuitiva (1), que corresponde à percepção dos objetos materiais no espaço, conectados causalmente segundo a ordem do tempo, e que constituem o horizonte global da nossa experiência do mundo exterior como produto da atividade do entendimento, que converte as impressões sensíveis em intuições[23]; em segundo lugar, a consciência reflexiva (2), que corresponde à cognição discursiva humana tornada possível pela razão através das representações abstratas, que nos permitem organizar o conteúdo da experiência em esquemas conceituais, armazenar esses esquemas na memória e projetá-los no tempo de forma a antecipar e planejar o futuro[24]; em terceiro lugar, o que chamarei de consciência intuitiva pura (3), dando conta da capacidade que, segundo Schopenhauer, nós temos de intuir as formas do tempo e do espaço independentemente de qualquer conteúdo, ou seja, como formas vazias, visando apenas as relações intrínsecas entre as partes do espaço e as partes do tempo, compreendidas em termos de posição e sucessão[25]; em quarto lugar, a autoconsciência volitiva (4), que corresponde à percepção íntima, direta e imediata do querer via introspecção ou sentido interno, sobretudo através dos atos de vontade que, por sua vez, se exteriorizam no corpo; mas também através das afecções de prazer e desprazer em suas diversas gradações e nos sentimentos engendrados por formações complexas dessas afecções.[26]

Com isso, temos diante de nós um primeiro esquema relativamente simples, no qual cada tipo de consciência corresponde a uma classe de representações que especifica o conceito de representação em geral, de modo que o ato cognitivo, delimitando o horizonte de visibilidade no campo da experiência, se deixa determinar a partir da especificidade do objeto que é por ele apreendido. Da mesma forma, cada tipo de consciência corresponde ainda à atividade de uma faculdade específica, que é responsável, do lado do sujeito, pela forma determinada na qual o objeto aparece.[27] Retomemos brevemente cada uma dessas correspondências.

A consciência empírica intuitiva (1) corresponde ao produto da atividade do entendimento, que une as formas do tempo e do espaço na representação da matéria. No caso da consciência reflexiva (2), é a razão que, ao espelhar o mundo intuitivo nos conceitos, torna o sujeito apto a tomar distância da imediaticidade das representações intuitivas, e isso com um tal discernimento e clareza de consciência (Besonnenheit) (G, § 27, p. 231), que ele é capaz de reconhecer a si mesmo como sujeito ao qual se referem essas representações.[28] Por sua vez, a faculdade responsável pela consciência intuitiva pura (3) é a sensibilidade pura, pela qual nós somos conscientes a priori das propriedades elementares do espaço e do tempo – consciência na qual se baseia a apodicidade das verdades matemáticas que acompanha a evidência de seu caráter a priori (W I, § 15, p. 130). Por fim, no caso da volição, o nome da faculdade correspondente é a própria autoconsciência (Selbstbewusstsein) (4), também chamada de “sentido interno” (G, § 42, p. 317), que fornece ao sujeito cognoscente o que seria, a princípio, o único conhecimento imediato de si mesmo que lhe é possível. Trata-se do conhecimento de sua interioridade essencial como vontade e do modo como essa vontade atua, a partir de dentro, como força movente por trás da produção de efeitos (as ações do corpo) sob o influxo de certas causas (os motivos).

Esse primeiro esboço dá conta de uma distinção inicial que é necessária para compreender a diferença irredutível, na perspectiva de primeira pessoa, entre os respectivos estados mentais e seus conteúdos próprios. Essa diferenciação incide sobre aquele registro temático-conceitual que eu denominei “transcendental-fenomenológico”. Minha principal motivação para especificar conceitualmente esse registro é distingui-lo do registro fisiológico, em seus sentidos tanto funcional como anatômico.[29] No registro transcendental-fenomenológico, a consciência é tematizada tendo em vista as condições e o modo de acesso aos objetos que lhe são imanentes. Como indicado anteriormente, esse modo de tematização se refere basicamente àquilo que em Schopenhauer recebe o nome de “ponto de vista subjetivo”, vinculado explicitamente à perspectiva idealista, e que ele entende como sendo uma espécie de filosofia primeira, definindo-a como “a doutrina da consciência e de seu conteúdo em geral” (W II, § 14, p. 140).

4 sEGUNDO ESQUEMA DOS TIPOS DE CONSCIÊNCIA

Avançando, agora, para um segundo nível de análise, o esquema presente neste primeiro esboço pode ser lido à luz de uma divisão geral que Schopenhauer propõe, em vários momentos, para definir a consciência tendo em vista seus dois lados ou aspectos: trata-se da divisão em “consciência de si” e “consciência de outras coisas”[30]. A consciência de outras coisas se define pelo seu direcionamento ao mundo exterior, ao mundo dos objetos que nos são dados na intuição e, portanto, que aparecem como coisas situadas fora do sujeito. Nesse sentido, ela recobriria, sobretudo, o que eu chamei de consciência empírica intuitiva (mas não apenas ela, como veremos).

A consciência de si, por sua vez, tem uma estrutura mais complexa. Na maioria das vezes em que Schopenhauer emprega essa expressão, ele tem em vista aquele âmbito da experiência delimitado pela quarta classe de objeto: o sujeito do querer. Já me referi à sua afirmação de que, através da percepção interna, apenas um objeto nos é dado: a vontade, e que ela nos é dada aí de forma imediata (G, § 40, p. 311). É com base nessa percepção interna da vontade que ele buscará subsequentemente fundamentar sua metafísica, através da tese de que, nesse espaço íntimo de vivência, a coisa em si nos aparece imediatamente (W I, § 18, p. 157; § 19, p. 163; § 22, p. 170-71). Sabemos, porém, pela própria letra schopenhaueriana, que a vontade nunca aparece ao sentido interno em sua unidade originária, como substância ou como substrato permanente do corpo, mas sempre apenas como afecções e, principalmente, como atos particulares,[31] individualizados em função do objeto ao qual se direcionam segundo a lei de motivação e dos momentos do tempo que eles ocupam na sucessão dos estados da vida interior. Submetida à forma geral da consciência, que supõe uma correlação necessária entre sujeito e objeto, além da forma do tempo e da pluralidade dos atos, a suposta imediaticidade com a qual a vontade aparece na autoconsciência é consideravelmente relativizada.

Por sua vez, cada um daqueles atos de vontade se exterioriza como movimento corporal, entrando, assim, ao mesmo tempo, na consciência de outras coisas, já que o corpo, apesar de ser objeto imediato do sujeito, é também um objeto entre outros objetos, localizado no espaço, no interior do horizonte de visibilidade da consciência empírica intuitiva.[32] Tudo isso nos deve levar a tomar com cautela a afirmação de que a autoconsciência ou sentido interno tem apenas um objeto: a vontade ou sujeito do querer. Creio que seria mais adequado dizer que ela também possui vários objetos, a saber, as volições ou atos da vontade,[33] individualizados, como eu mencionei, (1) em função da finalidade que orienta seu direcionamento à ação no mundo exterior; mas também (2) em função da qualidade específica que define a valência afetiva de cada um desses atos, ou seja, sua ligação com os sentimentos de prazer e desprazer, bem como (3) da janela temporal que eles ocupam na sucessão dos estados da vida anímica. Essa pluralidade na vivência interna das volições e de suas valências afetivas, por um lado, e o imbricamento entre essa vivência interna e a percepção espacial proprioceptiva na modulação da autoconsciência volitiva, por outro, tornam essa modalidade de consciência muito mais complexa do que a consciência de outras coisas – e isso a despeito do que sugere o próprio Schopenhauer, num dos textos mais importantes dedicados à autoconsciência, quando afirma que, comparada à consciência de outras coisas, a autoconsciência é bastante pobre.[34]

Mas olhemos com mais calma para essa contraposição. É razoável admitir que a consciência de outras coisas – com sua imensa variedade de objetos de diferentes formas, tamanhos, cores, texturas, padrão de movimento, opacidade, iluminação, relações espaciais, distâncias, cheiros, sabores, e toda a gama de qualidades primárias e secundárias que compõem a riqueza da nossa experiência do mundo externo – é quantitativa e qualitativamente mais rica do que a autoconsciência. Apesar disso, estamos justificados a afirmar que a autoconsciência é estruturalmente mais complexa e significativamente mais prolífica do que sua contraparte voltada ao exterior. Não apenas porque ela funde, numa unidade experiencial proprioceptiva intricada, a vivência interna do impulso correspondente a um ato volitivo e o movimento externo do corpo correspondente à efetivação desse ato no espaço (o que traz a consciência de outras coisas, em certa medida, para dentro do horizonte da autoconsciência), mas também porque ela compreende uma complexidade estratificada de diversas camadas de experiência afetiva qualitativamente distintas. Devemos contar entre as manifestações fenomenológicas do querer na autoconsciência:

todo desejar, esforçar-se, cobiçar, exigir, ansiar, esperar, amar, alegrar-se, jubilar e coisas semelhantes, não menos que o não querer ou resistir, e detestar, fugir, temer, irar-se, lamentar, sentir dor, enfim, todos os afetos e as paixões. Pois esses afetos e essas paixões são simplesmente movimentos mais ou menos fracos ou fortes, ora violentos e tempestuosos, ora tranquilos da própria vontade, que é ou inibida liberada, satisfeita ou insatisfeita, e todos eles se referem, em múltiplas expressões, à obtenção ou não obtenção do que é querido, a suportar ou superar o que é detestado; são, portanto, afecções determinadas da própria vontade, que é ativa nas decisões e ações ” (E I, p. 18-19; tradução ligeiramente modificada).

A partir dessa passagem, podemos formular uma segunda diferenciação que deverá ser compreendida à luz daquela primeira distinção entre consciência de si e consciência de outras coisas. No interior da própria consciência de si ou autoconsciência, temos agora dois modos básicos de manifestação daquele conteúdo substancial da fenomenologia do sentido interno: a vontade. Esses dois modos correspondem às volições e às emoções. Emoção e volição seriam, assim, duas categorias psicológicas à luz das quais nós podemos estabelecer essa segunda distinção geral a ser feita no interior da autoconsciência. Por emoção, devemos entender, nesse contexto, uma afecção primariamente passiva da vontade, que é experimentada no corpo através de sensações de prazer e desprazer complexas, ligadas a certas representações que definem o tipo de sentimento que corresponde à emoção em questão. Trata-se daquilo que, no texto de Schopenhauer citado acima, aparece com os termos Affekt (afeto) e Leidenschaft (paixão). Em oposição aos atos propriamente ditos da vontade (as volições), as emoções são definidas como movimentos mais ou menos fortes da vontade, na medida em que ela é obstruída ou liberada, satisfeita ou insatisfeita; e assim como as volições se exteriorizam em ações ou movimentos corporais, as emoções também são acompanhadas de alterações somáticas. Schopenhauer sublinha com especial ênfase essa “coafetação” no capítulo “Fisiologia e patologia” do ensaio Sobre a vontade na natureza, destacando, entre outros exemplos:

o batimento cardíaco acelerado na alegria ou no medo, o enrubescimento com a vergonha, a palidez no susto e também na ira dissimulada, o choro na tristeza, a ereção que acompanha representações lascivas, a respiração pesada e o intestino solto no medo intenso.” (N, p. 76).[35]

Essa distinção entre volição e emoção, como modos distintos de manifestação fenomenológica da vontade no interior da autoconsciência, permite que diferenciemos duas modalidades de autoconsciência volitiva, que denominarei autoconsciência agencial ou proprioceptiva e autoconsciência afetiva, respectivamente. A primeira (autoconsciência agencial ou proprioceptiva) corresponde à percepção interna do móbile de minhas ações e movimentos, caracterizando-se como um tipo de sentimento de poder agencial, ao qual Schopenhauer se refere como o sentimento do “posso fazer o que quero” (E I, p. 29). O “fazer”, aqui, corresponde à efetivação do ato, que é então vivenciado (percebido) como movimento do meu próprio corpo (daí o caráter proprioceptivo dessa modalidade de autoconsciência). A segunda (autoconsciência afetiva) corresponde ao pathos característico da vivência afetiva da vontade em primeira pessoa, cujas manifestações mais elementares são as sensações de prazer e desprazer: “afecções imediatas da vontade em seu fenômeno, o corpo, vale dizer, um querer ou não-querer impositivo e instantâneo sofrido por ele.” (W I, § 18, p. 158) Se a primeira modalidade de autoconsciência volitiva pode ser caracterizada como proprioceptiva, parte importante dessa segunda modalidade está associada ao que atualmente se chama nocicepção, isto é, à captação de estímulos nocivos que se traduzem na percepção da dor, ao passo que o correlato de valência positiva desse sistema fisiológico-perceptivo seria a hedonia, que corresponde à detecção e processamento de estímulos que produzem prazer. No modelo schopenhaueriano, essas sensações se complexificam em formações estratificadas de qualidades afetivas que passam a se ligar a certos conjuntos de representações e, assim, constituem-se as emoções, cujas raízes se estendem às profundezas da vida orgânica.[36]

Contudo, há ainda um outro complicador na noção de autoconsciência. Apesar da dissertação sobre a Quadrúplice raiz não se debruçar detidamente sobre esse tema, podemos afirmar, a partir da leitura de algumas passagens do Mundo como vontade e representação e de Sobre a vontade na natureza, por exemplo, que o termo autoconsciência pode se referir não apenas à percepção interna da vontade (que nós, aliás, compartilhamos com os animais), mas também, ainda que num número menor de ocorrências textuais, ao estado cognitivo no qual o sujeito cognoscente se volta sobre si mesmo reflexivamente, de modo a apreender sua própria atividade cognitiva e representacional como um objeto passível de ser tematizado por si mesmo.[37] É esse voltar-se reflexivamente sobre si que abre para o sujeito o horizonte da reflexão filosófica do qual emerge o sentido do idealismo transcendental. Essa modalidade de autoconsciência só é possível pela circunspecção racional: uma capacidade reflexiva, referida pelo termo Besonnenheit, que nos distingue fundamentalmente dos animais, na medida em que somos dotados da faculdade da razão.

Nesse sentido, podemos dizer que essa modalidade específica de autoconsciência pertence à categoria da consciência reflexiva; e que também a consciência reflexiva, ela mesma, pode ser dividida entre consciência de si e consciência de outras coisas. A consciência reflexiva de outras coisas[38] seria aquela atividade cognitiva que organiza os conteúdos da experiência do mundo externo em esquemas conceituais, de modo a manejar, no campo das representações abstratas, categorias de classificação e ordenação hierárquica, fixando esses esquemas em estruturas judicativas e proposicionais complexas e construindo, a partir disso, todo um corpo de saberes sobre o mundo. A autoconsciência reflexiva, por sua vez, pode ser entendida como o saber que o sujeito constrói sobre si mesmo pelo espelho do conceito: por um lado, ao reconhecer-se como polo de uma correlação necessária na qual o mundo aparece como objeto para si; e, por outro lado, ao fazer remontar aqueles esquemas conceituais à unidade de um “eu”, atribuindo a si mesmo essa unidade à qual se referem todas as representações que se encontram ligadas numa experiência. Essa modalidade de consciência depende fundamentalmente de uma capacidade metacognitiva ou metarrepresentacional, que torna o sujeito apto a tomar sua própria experiência como objeto de um ato intencional e realizar o movimento de autoatribuição de estados mentais que caracteriza a reflexividade. O indexical “eu” que aparece como objeto desse estado de consciência metacognitivo é o ponto no qual se unem todos os conteúdos intencionais representados pelo sujeito, e cuja identificação conceitual permite a emergência da “clarividência filosófica” (W I, § 1, p. 43) que sustenta toda a reflexão transcendental.[39]

Quanto a essa dimensão em particular da autoconsciência reflexiva, Schopenhauer não está tão distante de Kant, em que pesem suas críticas ao modo como o autor da Crítica da razão pura formula seu teorema da “apercepção transcendental”.[40] Com efeito, se nos deslocarmos do registro transcendental-fenomenológico para o registro funcional e fisiológico, veremos Schopenhauer se referir a essa “unidade da consciência” como o ponto focal no qual convergem todos os raios de atividade cerebral (W II, § 20, p. 284; § 22, p. 314).

Muito ainda haveria de ser dito acerca deste tópico, incluindo um último elemento de complexificação: o fato de que, naquela unidade do “eu”, não se encontra apenas o sujeito do conhecimento, mas o sujeito do conhecimento está fundido e identificado ao sujeito do querer, numa modalidade de autoconsciência que já não é mais, portanto, propriamente reflexiva, mas de outra ordem. Nós poderíamos chamar essa modalidade mais complexa de “autoconsciência egóica”, e diferenciá-la da autoconsciência reflexiva pelo fato de que, nela, o que é visado não é o sujeito cognoscente como polo da correlação na qual o mundo aparece como objeto, mas a unidade e identidade “inexplicável” (G, § 42, p. 317) entre aquele que conhece e aquele que, identificando-se com o coração do mundo, dá ao sujeito a possibilidade de um conhecimento metafísico.[41] A autoconsciência reflexiva ganha destaque na consideração do mundo como representação, a partir do ponto de vista transcendental-idealista; a autoconsciência egóica, por sua vez, ganha destaque na consideração do mundo como vontade, a partir do ponto de vista da metafísica e, posteriormente, da psicologia funcional que identifica o primado da vontade na consciência de si (W II, § 19).

Esses são pontos difíceis que demandam uma análise mais detida e cuidadosa do que a que pode ser dada neste espaço. Mas o que eu gostaria de assinalar, por ora, é que aquele primeiro esboço, que contempla basicamente quatro tipos de consciência num esquema relativamente simples, é ainda incompleto e não dá conta adequadamente da amplitude do termo e do espectro dos tipos de consciência presentes no texto de Schopenhauer. Além das subdivisões e da reorganização das categorias que acabei de indicar, creio haver pelo menos mais três tipos distintos e algumas outras subdivisões relevantes para os tipos já presentes no primeiro esboço. Mencionarei cada um deles rapidamente na sequência, a título de conclusão.

5 Esboço complementar dos tipos de consciência

Os tipos de consciência que, segundo penso, poderiam ser ainda incluídos num esquema mais detalhado do mapeamento proposto aqui, estão listados abaixo.

(1) O primeiro deles é um tipo peculiar de consciência que, apesar de ser pressuposto como esfera cognitiva elementar a partir da qual o entendimento realiza sua função, não se enquadra em nenhuma das categorias delimitadas a partir daquelas quatro classes de objetos: trata-se da percepção imediata das sensações (Empfindungen) como impressões qualitativas primárias ainda não referidas a objetos segundo o princípio da causalidade. Essa percepção primária das qualidades sensíveis da experiência surge como consciência imediata das alterações do organismo apreendidas pela sensibilidade animal (W I, § 6, p. 63). Nesse sentido, eu denomino esse tipo de consciência de “consciência fenomenal pré-objetiva”, pois, apesar de fornecer os dados e o material que será convertido na intuição de um objeto, essa percepção imediata não é ainda objetiva, mas permanece inteiramente subjetiva – nos termos de Schopenhauer: “limitada ao domínio subcutâneo” (G, § 21, p. 133). Ainda assim, trata-se de uma modalidade de consciência, que é caracterizada metaforicamente como uma “consciência abafada e vegetal das mudanças do objeto imediato” (W I, § 4, p. 14). A compreensão do corpo como objeto imediato – ou seja, como ponto de partida da intuição empírica e medium das sensações – está, portanto, diretamente vinculada a essa consciência fenomenal pré-objetiva.[42]

(2) O segundo e penúltimo tipo de consciência que eu gostaria de mencionar nesta conclusão é a consciência estética. Ela se refere ao estado no qual o sujeito apreende intuitivamente e de forma pura as ideias, impulsionado pela contemplação do belo e do sublime, de modo a transcender a percepção empírica do objeto individual, submetida ao princípio de razão e aos interesses da vontade, e espelhar de modo inteiramente objetivo o arquétipo universal do ente.[43] Essa consciência tem dois lados ou dois componentes: um lado ou componente “objetivo” e um “subjetivo”.[44] O lado objetivo se refere à apreensão da ideia enquanto conteúdo do ato cognitivo, ao passo que o lado subjetivo se refere à consciência que o sujeito tem de si mesmo nesse estado, ao reconhecer-se como puro sujeito do conhecimento destituído de vontade:

Encontramos no modo de conhecimento estético dois componentes inseparáveis. Primeiro o conhecimento do objeto, não como coisa isolada, mas como ideia platônica, ou seja, como forma permanente de toda uma espécie de coisas; depois a consciência de si daquele que conhece [Selbstbewußtseyn des Erkennenden], não como indivíduo, mas como puro sujeito do conhecimento destituído de vontade. (W I, § 38, p. 266-67).

É interessante notar que esse é um dos raríssimos momentos em que Schopenhauer parece vislumbrar a possibilidade de uma apreensão direta e imediata do puro sujeito do conhecimento por si mesmo, mobilizando o termo Selbstbewusstsein para se referir a esse estado de autoapreensão em que o sujeito se reconhece como instância cognitiva pura – poderíamos dizer, brincando com a pena do autor: “cabeça de anjo alada destituída de corpo” (W I, § 18, p. 156). Assim, teríamos algo como uma consciência estética objetiva e uma consciência estética subjetiva ou autoconsciência estética.

Em ambos os casos, trata-se de um estado contemplativo ao qual corresponde um tipo de cognição superior, no qual se abre ao sujeito o espectro global composto pela totalidade dos arquétipos ou graus de objetivação da vontade, e ao qual Schopenhauer se refere como “autoconsciência da vontade”[45], pois aqui ela adquire a representação mais plena e perfeita de si mesma no espelho da contemplação.

(3) Para concluir, menciono ainda, muito rapidamente, o último tipo de consciência que fecha o segundo esquema proposto aqui: a consciência mística. Com essa expressão, refiro-me ao estado em que é intuída, em maior ou menor grau, a unidade metafísica dos seres, por meio de uma visão ou de um sentimento que ultrapassa o princípio de individuação e rompe as barreiras entre o eu e o restante do mundo. Esse tipo de consciência encontra modalizações ou ramificações às quais correspondem vários estados distintos que entram em cena, sobretudo, pela vivência profunda de imersão na totalidade ou pelo vínculo da simpatia: com o sentimento de compaixão, os fenômenos magnéticos, a magia, a clarividência sonambúlica, a visão de espíritos e os sonhos premonitórios. Aqui seria necessário, portanto, proceder a uma análise mais detida da especificidade de cada um desses estados, de modo a destacar os traços próprios de sua fenomenologia. Meu intento, por ora, é somente indicar o sentido mais geral desses tipos.[46]

A consciência mística é também aquela que, por fim, conduz o indivíduo ao estado de negação da vontade. Esse estado talvez já não possa mais ser denominado, em si mesmo e propriamente, de “consciência”, já que, nele, não é visado um objeto ou um conteúdo em geral, mas a própria visada, a própria intencionalidade, se encontra como que suspensa e anulada. Trata-se de um estado de esvaziamento; no limite, um vácuo intencional, cuja fenomenologia nenhuma semântica pode alcançar.[47]

6 cONSIDERAÇÕES FINAIS

Cada um dos modos de consciência apresentados neste esboço de mapeamento – com a possível exceção do último (a consciência mística na negação da vontade) – corresponde a uma certa especificação tipológica da definição noemática de consciência proposta na primeira seção, segundo a qual a consciência é um estado ou conjunto de estados mentais nos quais um sujeito apreende certos conteúdos qualitativos ou objetivos, que aparecem de um determinado modo no espaço de vivência que lhe é acessível na perspectiva de primeira pessoa. Essa definição, por sua vez, se inscreve no registro transcendental-fenomenológico, juntamente com a definição estrutural e a definição formal. Nestas últimas, a consciência é entendida, em termos mais gerais, como a unidade da correlação necessária entre sujeito e objeto e como a unidade das faculdades cognitivas do sujeito, respectivamente.

A proposta desse mapeamento conceitual se baseou em diversas ocorrências do termo Bewusstsein em textos selecionados de Schopenhauer, e a classificação sugerida aqui é ainda incipiente e incompleta, servindo, antes, como pontapé inicial para um trabalho mais substantivo de elucidação conceitual. Mas ela nos permite vislumbrar a complexidade e as dificuldades envolvidas no empreendimento de esclarecer conceitualmente este que é o dado mais imediato da nossa experiência: a vivência factual do horizonte de objetos do nosso campo perceptivo, por um lado, e da dinâmica interna da nossa vida afetiva e pulsional, por outro; isto é, a consciência em suas duas modalidades fundamentais: consciência de outras coisas e autoconsciência.

Um resultado importante dessa análise, que já pode ser apresentado com alguma segurança, é que Schopenhauer é um pluralista quanto à definição e aos tipos de consciência. Fomos capazes de identificar e discutir três definições no registro transcendental-fenomenológico e apontar para outras definições nos registros fisiológico, funcional e anatômico. Além disso, descortinamos ao menos oito tipos distintos de consciência (com algumas ramificações), que eu listo, na sequência, seguindo uma ordem didática, e não a ordem em que eles aparecem no texto: consciência fenomenal pré-objetiva, consciência empírica intuitiva, consciência reflexiva de outras coisas, autoconsciência reflexiva, autoconsciência volitiva, consciência intuitiva pura, consciência estética, consciência mística.

 O que se encontra fora do campo de vivência circunscrito pelas perspectivas desses diversos modos de consciência, e que só pode ser acessado de forma indireta, ou através de desvios por vias cognitivas obscuras e acidentadas – bem como aquilo que não pode ser acessado de modo algum –, pertence ao vasto continente do inconsciente. A relação entre a noção de consciência em Schopenhauer, tal como desdobrada nas definições, tipos e modalidades apresentados neste trabalho, e sua concepção de inconsciente (entendido em sentido psicológico ou psicofisiológico, e não apenas metafísico) será objeto de outro artigo. Nele, tentarei oferecer uma resposta à questão colocada na seção introdutória deste trabalho: a questão acerca da compatibilidade entre, por um lado, as afirmações de Schopenhauer em torno da existência de mecanismos cognitivos, pensamentos e conteúdos motivacionais inconscientes (ou seja, representações inconscientes), e, por outro, sua definição geral de consciência, segundo a qual “consciência” equivale a “representação”.[48]

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Contribuição de autoria

1 – William Mattioli

Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais

https://orcid.org/0000-0003-2894-548X • william.mattioli@gmail.com

Contribuição: Escrita – Primeira Redação

Como citar este artigo

MATTIOLI, W. Alguns sentidos de “consciência” em Schopenhauer e indicações preliminares acerca de sua relação com um possível inconsciente psíquico. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria - Florianópolis, v. 15, esp. 1, e88744, p. 01-31, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378688744. Acesso em: dia mês abreviado. ano.



[1] O trabalho que se segue é uma versão substancialmente expandida do texto apresentado no X Colóquio Internacional Schopenhauer, realizado entre 18 e 22 de março de 2024 na USP. Ele foi elaborado durante o período de pós-doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo.

[2] Salvo indicação contrária, as páginas dadas nas referências remetem às edições das traduções brasileiras listadas na bibliografia. Farei eventualmente pequenas modificações nas traduções quando achar necessário ou oportuno.

[3] Há uma vasta literatura dedicada às interfaces entre a filosofia de Schopenhauer e a psicanálise, e os pesquisadores brasileiros têm também contribuído significativamente para o aprofundamento desse debate (cf. por exemplo Zentner, 1995; Gardner, 1999; Gödde, 2009; Fonseca, 2012; Soria, 2017; Brook e Young, 2018; Germer, 2023). Ou seja, já é consenso que Schopenhauer possui uma noção robusta de “inconsciente” que se aproxima, em vários aspectos, da concepção freudiana.

[4] Cf. por exemplo Freud, 2019, p. 127, p. 131, p. 318, p. 353-4 e passim; Freud, 2010, p. 101-2; Freud, 2021, p. 324-5 e passim. Isso certamente não significa que não haja uma dimensão corporal, somática e fisiológica essencial à definição freudiana do inconsciente; significa apenas que o traço fundamental do conceito psicanalítico de inconsciente diz respeito à sua intencionalidade enquanto complexo de estados motivacionais (cf. Gardner, 1999, p. 381).

[5] Cf. por exemplo W II, § 19, p. 243: “A vontade, como coisa em si, constitui a essência íntima, verdadeira e indestrutível do ser humano: porém, em si mesma, ela é inconsciente [bewußtlos]”; W II, § 22, p. 313: “A vontade em si mesma é inconsciente [bewußtlos] e assim permanece na maior parte dos seus fenômenos”; HN III, p. 439: “Tudo que é originário, todo ser verdadeiro, é inconsciente [unbewußt]: o que passou pela consciência se tornou representação.”

[6] Cf. por exemplo N, p. 66: “O traço fundamental de minha doutrina, que a distingue de todas as que jamais existiram, é a separação completa da vontade em relação à cognição.”

[7] A tese contrária nos levaria a atribuir a Schopenhauer uma concepção pampsiquista – uma posição que, ao menos explicitamente, ele não parece estar disposto a admitir. Quanto a isso, concordo com Janaway (1999, p. 147).

[8] Uma das passagens mais importantes no que diz respeito a essa definição de consciência se encontra no parágrafo 10 do primeiro tomo do Mundo: “Atribuímos aos animais consciência, conceito este que, embora seja derivado de saber, coincide com o de representação em geral, não importa seu tipo.” (W I, § 10, p. 60) Luis de Sousa, num importante artigo sobre a relação entre percepção, cognição e autoconsciência em Schopenhauer, comenta esses termos: “As we know, ‘cognition’ means in this quote the same as perception. These concepts are also equivalent to the ones of representing (Vorstellen) and consciousness (Bewusstsein).” (Sousa, 2017, p. 148) Voltarei a esse trecho na sequência; ele será meu ponto de partida e minha passagem focal.

[9] Sobre isso, cf. Mattioli, 2013, p. 71.

[10] Discuto essa posição com mais detalhes em Mattioli, 2017.

[11] Essa aproximação do modelo de Schopenhauer àquele de Descartes pode soar estranha e incomum. Isso se deve, sobretudo, à radical divergência do filósofo da vontade em relação ao racionalismo clássico quanto ao lugar que a consciência e a razão ocupam na definição da essência do ser humano. Contudo, os intérpretes tendem a reconhecer na teoria da cognição de Schopenhauer uma certa proximidade com o modelo de Locke (cf. W II, § 7, p. 98; sobre isso, ver Janaway, 2014, p. 36; Sousa, 2017, p. 152s.) – ainda que ele critique a versão estritamente sensualista da teoria da percepção lockeana (W II, § 2, p. 25-6) – e, tendo em vista que Locke e Descartes compartilham da tese de que consciência e representação são definicionalmente interdependentes, a aproximação com relação a Descartes, neste ponto em particular, estaria justificada.

[12] Os momentos paradigmáticos da obra em que Schopenhauer opera com essas hipóteses são os capítulos 14, 15, 19 e 32 do segundo tomo do Mundo. Estes são também, não por acaso, os textos nos quais os intérpretes encontraram, seguindo indicações do próprio Freud, as ressonâncias mais significativas com conceitos fundamentais da psicanálise freudiana, como o conceito de “recalque” e o próprio conceito de “inconsciente”. Sobre isso, cf. por exemplo Zentner, 1995, especialmente o cap. 2; Gardner (1999, p. 376) menciona os capítulos 14, 15, 19, 22, 32, 42 e 44 como contendo “a maior parte do material relevante” no que diz respeito às antecipações schopenhauerianas de conceitos-chave da metapsicologia freudiana; cf. ainda Fonseca, 2011; Janaway, 2022, p. 24ss.

[13] Há um tom retórico na formulação dessas questões, na medida em que somos obrigados a reconhecer, a partir das passagens mencionadas na nota anterior, que deve sim haver espaço no pensamento de Schopenhauer para a ideia de um inconsciente propriamente psíquico. Tentarei delinear algumas hipóteses de leitura acerca desse problema num trabalho futuro.

[14] Cf. Hartmann, 1873, p. 24-5.

[15] Como indicado, buscarei desenvolver esse tópico com um pouco mais de detalhes num próximo artigo.

[16] Há mais de 2000 ocorrências com a grafia Bewußtseyn, e cerca de 400 com a grafia Bewußtsein.

[17] No mesmo sentido dessa definição, temos uma outra que identifica “consciência” a “conhecimento/cognição”: “consciência consiste no conhecer” (W II, § 19, p. 225).

[18] Tomo de empréstimo a qualificação “noemática”, um tanto livremente, dos debates mais contemporâneos no campo da fenomenologia, que, como sugerem alguns autores, Schopenhauer antecipou (cf. em especial Schmicking, 2016 e 2018). O sentido geral de “noemático” a que me refiro nessa definição pode ser compreendido nos termos com os quais Carlos Tourinho (2013, p. 483) apresenta o conceito de “noema” em Husserl, como designação para a “vivência orientada objetivamente”, constituindo o polo da estrutura da consciência intencional correspondente à “projeção dos dados hyléticos que, uma vez informados pela intencionalidade, são como se fossem 'polarizados', em ordem à designação imediata do objeto.” Trata-se, portanto, do objeto em sua constituição material determinada, ou: “o aspecto objetivo da vivência, ou seja, o objeto considerado […] em seus diversos modos de ser dado” (Abbagnano, 2007, p. 713).

[19] Cf. em especial as muitas passagens em que Schopenhauer se refere a algum tipo de conteúdo (sensação, percepção, intuição, pensamento, sentimento, volição) que “entra na consciência”, por exemplo: W I, § 6, p. 65; § 14, p. 116; § 41, p. 283; p. 543 e p. 550-51; W II, § 2, p. 26; § 18, p. 236; § 22, p. 333, entre outras. Cf. ainda W II, § 22, p. 336.

[20] A formulação proposta acima para a definição noemática acompanha o sentido geral que Peter Welsen atribui ao conceito de consciência em Schopenhauer no verbete “Bewusstsein” de seu Handbuch (cf. Welsen, 2021, p. 98).

[21] Cf. G, § 41, p. 315: “é a mesma coisa se digo: os objetos têm tais e tais determinações que a eles são pertinentes e características; ou se digo: o sujeito conhece de tais modos; e também se digo: os objetos devem ser divididos em tais classes” (itálicos meus).

[22] Em continuidade com a explicação dada na nota 18 acima, podemos compreender a distinção entre a definição transcendental-estrutural e a definição noemática de consciência em analogia com a distinção possível entre Objekt, por um lado, como objeto em geral (Objekt überhaupt) da correlação sujeito-objeto, e Gegenstand, por outro, como objeto determinado de um ato intencional específico.

[23] Estamos aqui no domínio da primeira figura do princípio de razão suficiente: o princípio de razão do devir, ao qual corresponde a primeira classe de objetos no esquema da quadrúplice raiz proposto por Schopenhauer (cf. G, cap. 4). Quanto a isso, ver ainda, por exemplo: W I, § 6, p. 63-4; p. 550-51; W II, § 2, p. 26-27; § 5, p. 69 e p. 71; § 6, p. 78-9; § 7, p. 99; § 22, p. 332.

[24] Essa segunda modalidade de consciência se conecta à segunda figura do princípio de razão suficiente: o princípio de razão do conhecer, ao qual corresponde a segunda classe de objetos: os conceitos ou representações abstratas (cf. G, cap. 5). Quanto a isso, ver ainda, por exemplo: W I, § 1, p. 43; § 6, p. 65; § 8, p. 82-3; § 10, p. 100; § 14, p. 113 e p. 116; § 27, p. 216-17; § 52, p. 340-41; § 55, p. 385; § 56, p. 400; p. 551 e p. 643; W II, § 2, p. 5-6; § 5 , p. 71; § 6, p. 78-79; § 19, p. 248; § 22, p. 338; § 30, p. 441.

[25] No esquema da quadrúplice raiz, essas representações pertencem ao domínio da terceira figura do princípio de razão, o princípio de razão do ser, sendo o tempo e o espaço seus objetos correspondentes (cf. G, cap. 6). Quanto a isso, ver ainda, por exemplo: W I, § 4, p. 50; § 10, p. 99; § 15, p. 130; p. 560.

[26] A vontade ou sujeito do querer, como objeto da autoconsciência, se dá ao conhecimento, segundo o esquema da quadrúplice raiz, no horizonte da quarta figura do princípio de razão: o princípio de razão do agir, como o único objeto da quarta classe (G, § 40, p. 311 e, em geral, cap. 7). Quanto a isso, ver ainda, por exemplo: W I, § 18, p. 159-60; § 19, p. 160-61; § 21, p. 168; § 22, p. 170-71; § 23, p. 172; § 29, p. 230; § 56, p. 399; § 60, p. 422; p. 548; W II, § 1, p. 8-9; § 4, p. 43-4; §17, p. 217 e p. 222-23; § 18, p. 236-38; § 19, p. 244 e passim.

[27] Cf. G, § 41, pp. 313-15: “Alguém poderia […] perguntar: se o sujeito não é conhecido, de onde nos seriam conhecidas suas diferentes faculdades de conhecimento, tais como sensibilidade, entendimento, razão? – Estas não nos são conhecidas porque o conhecer se tornou objeto para nós […]. Elas são, muito antes, inferidas, ou, mais corretamente, são expressões gerais das classes de representações estabelecidas, que a todo tempo distinguimos de modo mais ou menos determinado, precisamente naquelas faculdades cognitivas. Mas elas foram abstraídas daquelas representações com vistas a seu correlato necessário como sua condição, o sujeito, e, consequentemente, comportam-se em relação às classes de representações precisamente como o sujeito em geral (Subjekt überhaupt) em relação ao objeto em geral (Objekt überhaupt).” Em Mattioli, 2019, p. 253-264, lido mais detidamente com o esquema geral da quadrúplice raiz e com cada uma de suas especificações.

[28] Voltarei a este ponto à frente.

[29] E isso porque Schopenhauer também se ocupa profundamente com esse modo de abordagem fisiológico, sobretudo a partir do que ele designa como “ponto de vista objetivo” ou “visão objetiva do intelecto” (W II, § 22, p. 329). Desse ponto de vista, interessa a ele oferecer, por um lado, uma explicação empírica sobre o papel que a consciência cumpre na economia da vida orgânica, tendo em vista a conservação do indivíduo no sentido biológico e a perpetuação da espécie: essa é a abordagem que denomino funcional (cf. sobre isso Mattioli, 2018 e 2021). Por outro lado, a abordagem anatômica se concentra na tentativa de fornecer um mapeamento topológico da neurofisiologia da cognição, mergulhando na geografia do cérebro e do sistema nervoso a fim de especificar os locais, superfícies, filamentos ou conjuntos de nervos e gânglios cuja atividade responde, do ponto de vista material, por cada tipo ou modalidade de consciência, bem como pelas operações inconscientes que estão na base de certos processos cognitivos. Apenas a título de ilustração, veja-se o que Schopenhauer diz acerca disso no § 40 do capítulo “Pensamentos acerca do intelecto em geral”, dos Parerga: “Pode-se quase arriscar a hipótese fisiológica de que o pensamento consciente se passa na superfície do cérebro, enquanto o inconsciente no interior da sua substância medular.” (P II, p. 64 da edição alemã de Paul Deussen; trad. br. Flamarion Ramos, Sobre a filosofia e seu método, p. 94) Um trabalho exemplar e muito elucidativo a esse respeito foi realizado por Jürgen Brunner (2007, 2015). Dada a delimitação do escopo deste artigo, uma análise mais detida do registro fisiológico de tematização da consciência precisará aguardar outra ocasião. Mas farei, eventualmente, alguns apontamentos gerais sobre esse tópico.

[30] Cf. por exemplo: W II, § 7, p. 99; § 18, p. 232; § 20, p. 297; E I, p. 23, p. 41 e passim.

[31] Cf. W I, § 18, p. 159: “Conheço minha vontade não no todo, como unidade, não perfeitamente conforme sua essência, mas só em seus atos isolados, portanto no tempo, que é a forma do fenômeno de meu corpo e de qualquer objeto”; cf. ainda W II, § 18, p. 238: “Em consequência da forma do tempo que ainda adere a ela [a coisa em si tal como é dada no conhecimento interno, W.M.], cada um conhece a própria vontade apenas nos seus atos isolados, não no todo em e para si”.

[32] Cf. E I, p. 29: “as resoluções ou os decididos atos de nossa vontade, embora tenham origem nas profundezas escuras de nosso ser interior, sempre transitarão imediatamente para o mundo intuitivo, pois a este pertence nosso corpo, como tudo o mais”; W I, § 18, p. 157: “todo ato verdadeiro de sua vontade é simultânea e inevitavelmente também um movimento de seu corpo. Ele não pode realmente querer o ato sem ao mesmo tempo perceber que este aparece como movimento corporal.” Dos movimentos do meu corpo tenho, portanto, um duplo conhecimento: um externo (da perspectiva de terceira pessoa) e um interno (da perspectiva de primeira pessoa). Uma questão importante aqui é se isso permite considerar as ações humanas como eventos substantivamente distintos do restante dos eventos do mundo orgânico, ou mesmo da natureza em geral, num sentido ontologicamente relevante. No debate atual, é comum que se lance mão da ideia de “agência” ou “agência genuína” (genuine agency) para qualificar a diferença específica, em sentido ético-moral, das ações humanas intencionais, em oposição a outros eventos do mundo orgânico e natural em geral, na medida em que as primeiras se referem a um agente dotado da capacidade de escolha e deliberação racional (cf. sobre isso Schlosser, 2019). Se olharmos para as ações humanas da perspectiva do modelo schopenhaueriano de consciência discutido aqui, estaremos em condições de distingui-las adequadamente de outros eventos do mundo natural? (Agradeço a Matthias Koßler por ter levantado essa questão). Creio que, para Schopenhauer, não há uma diferença substantiva relevante entre ações humanas, expressas em movimentos corporais, e outros eventos naturais, seja no mundo orgânico ou no inorgânico. Em ambos os casos, estamos diante de acontecimentos e processos que fenomenalizam, no mundo material, sob condições determinadas, os caracteres inteligíveis correspondentes, que são as objetivações imediatas da vontade nos seus vários graus (das forças naturais primordiais aos caracteres humanos) (cf. E II, § 10, p. 110). Ademais, todos esses eventos (humanos, orgânicos e inorgânicos) estão submetidos à mesma rede de determinação causal, que se ramifica segundo as figuras do princípio de razão suficiente e segundo a tríade da causalidade: Ursache, Reiz, Motiv. Nisso, acompanho a leitura de Janaway (1999, p. 143-44 e p. 148). A única exceção aqui seria, certamente, o ato de livre negação da vontade, que demanda um salto para além da physis, uma ruptura com a ordem natural, e corresponde a uma supressão do caráter.

[33] Sirvo-me aqui, ocasionalmente, da alternativa de tradução oferecida por Lucas Lazarini Valente e Eli Vagner Rodrigues que, em sua tradução do escrito premiado Sobre a liberdade da vontade (Editora Unesp, 2021), vertem o alemão Willensakt por volição. Farei uso dessa alternativa, em particular, na contraposição formulada mais à frente entre volição como ato, por um lado, e emoção como movimento da vontade, por outro. Isso significa que, apesar de valer-me do insight dos tradutores, não concordo inteiramente com a justificativa apresentada para sua opção de tradução (Valente e Rodrigues, 2021, p. 14-15), que se sustenta na hipótese de que haveria uma distinção conceitual entre “ato” e “volição”. Não entrarei, porém, no mérito dessa justificativa, e usarei “volição” como sinônimo de “ato de vontade” ou “ato volitivo”.

[34] Cf. E I, p. 17: “a autoconsciência seria o que nos resta depois de subtrair essa maior parte de toda nossa consciência [a parte pertencente à consciência de outras coisas, W.M]. Disso já vemos que sua riqueza não pode ser grande”.

[35] Cf. também W II, § 20, p. 317.

[36] Se quisermos avançar um pouco mais na distinção entre essas duas modalidades de autoconsciência do ponto de vista fisiológico-anatômico, podemos seguir o argumento de Schopenhauer segundo o qual a volição, na medida em que delimita o campo das ações voluntárias, intencionais ou arbitrárias (orientadas por motivos), corresponde à vontade “ali onde ela é iluminada pela cognição […]: quer dizer, expresso de modo objetivo, onde a ação externa que causa o ato é mediada por um cérebro.” (N, p. 68; cf. também W II, § 20, p. 301-3) A autoconsciência volitiva teria sua origem, portanto, no “grande cérebro” (W II, § 20, p. 301), onde a volição surge como resposta à recepção dos estímulos que chegam dos nervos do sistema nervoso central responsáveis pela captação sensorial dos dados do mundo exterior, sendo ali convertidos em representações que atuam como motivos. A partir do cérebro, a volição se irradia, por intermédio do cerebelo e da medula espinhal, para os nervos motores que agem sobre os músculos, exteriorizando-se então como movimento. A autoconsciência afetiva, por sua vez, na medida em que representa o lado mental de alterações somáticas que ocorrem nos órgãos e funções ligados à vida vegetativa do organismo, teria suas raízes no sistema nervoso simpático (sympatyhicus maximus), originando-se a partir de influxos internos da vida orgânica que convergem no complexo de gânglios nervosos ao qual Schopenhauer se refere, com frequência, pelo termo (corrente na época) cerebrum abdominale (W II, § 20, p. 309). Apoiando-se fortemente em Bichat, ele afirma que “os afetos e as paixões têm a sua sede na vida orgânica” (W II, § 20, p. 317), não na vida animal (isto é, nas funções sensíveis); e, citando o fisiólogo francês, inclui em seu argumento as seguintes considerações: “É sem dúvida impressionante que as paixões jamais tenham o seu fim nem a sua origem nos diversos órgãos da vida animal; que, ao contrário, as partes servindo às funções internas sejam constantemente afetadas pelas paixões, que até mesmo as determinam segundo o estado em que elas se encontram. […] Eu digo que o efeito de toda espécie de paixão, sempre estranha à vida animal, é fazer nascer uma mudança, uma alteração qualquer na vida orgânica.” (W II, § 20, p. 317) Ademais, Schopenhauer se aventura em hipóteses acerca da correlação necessária entre nossa constituição visceral específica (textura, grandeza e outras propriedades físicas de órgãos como o coração, o fígado e os pulmões) e a constituição de nosso caráter, que compreende, além do temperamento, nossos impulsos, desejos, inclinações, paixões e afetos mais íntimos (cf. por exemplo P II, p. 99 e p. 192 da edição alemã de Paul Deussen; trad. br. Flamarion Ramos, Sobre a filosofia e seu método, p. 137 e p. 233). Para uma discussão elucidativa acerca desse ponto, cf. Gurisatti, 2002, p. 97, p. 175s. e passim; cf. também Debona, 2020, p. 100s.; e Lins, 2018. Para uma análise do sentimento da compaixão como manifestação do fenômeno da simpatia, ao lado do amor sexual e da magia – fenômenos que se enraízam na unidade da força vital operante na vida orgânica inconsciente –, cf. Silva, 2017a.

[37] A frase de abertura da obra capital: “O mundo é minha representação”, já indica o sentido de autoconsciência a que me refiro neste ponto. Ela é expressão da “consciência refletida e abstrata” (W I, § 1, p. 43) correspondente ao conhecimento autorreflexivo de que eu sou o sujeito do conhecimento ao qual o mundo aparece de uma determinada maneira. A sequência do texto deixa isso claro ao enfatizar que o homem, ao alcançar a referida “clarividência filosófica”, percebe que “não conhece sol algum e terra alguma, mas sempre apenas um olho que vê um sol, uma mão que toca uma terra.” (W I, § 1, p. 43) Ou seja, nesta perspectiva, o filósofo remete sistematicamente todos os conteúdos objetivos do campo da experiência ao próprio sujeito que percebe esses conteúdos e os estrutura segundo suas próprias faculdades cognitivas. É este mesmo movimento argumentativo que fornece o fio condutor de todo o primeiro capítulo dos Suplementos. Para mais passagens sugestivas desse sentido reflexivo de autoconsciência, cf. W I, p. 610; W II, § 1, p. 17; § 4, p. 39; § 20, p. 297 e p. 316; § 22, p. 335-36; § 24, p. 377-78; N, p. 121-22. Para uma discussão elucidativa deste tópico, cf. Sousa, 2017.

[38] Cf. W II, § 30, p. 419: “Observo aqui que o pensamento abstrato e a leitura, que são conectados a palavras, de fato pertencem no sentido amplo do termo à consciência de outras coisas.”

[39] Cf. nota 37 acima. Como argumenta Sousa (2017, p. 151), ainda que Schopenhauer sustente enfaticamente que o sujeito cognitivo nunca é capaz de conhecer a si mesmo diretamente, isso não significa que nós não possamos adquirir uma consciência reflexiva de nossa própria dimensão cognitiva. Se esse fosse o caso, o sujeito jamais seria capaz de pensar a si mesmo como sustentáculo do mundo como representação, e todo empreendimento filosófico estaria de antemão fadado ao fracasso.

[40] Para uma análise detalhada das críticas de Schopenhauer ao conceito de kantiano de “apercepção transcendental”, cf. Welsen, 1995.

[41] Cf. em especial o parágrafo 18 do primeiro tomo do Mundo e o capítulo correspondente dos Suplementos (cap. 18). Quanto a isso, Giacoia comenta: “Para Schopenhauer, a consciência de Si-Próprio é essencialmente distinta da autopercepção da consciência como faculdade de representação, ela é, antes, o saber íntimo de nossas volições, cuja raiz é o corpo, que é, pois, o umbigo do universo, o ponto de contacto mais próximo e imediato com a essência metafísica do mundo” (Giacoia Junior, 2023, p. 51).

[42] Cf. também W II, § 2, p. 26-7; § 22, p. 333; N, p. 137.

[43] Sobre a dimensão da experiência contemplativa enfatizada nesta noção de “consciência estética”, cf. Barboza, 2001; Vandenabeele, 2014 e 2016; Kossler, 2016.

[44] É possível que a menção a um lado ou componente “subjetivo” da consciência estética soe estranha, tendo em vista a insistência com a qual Schopenhauer sublinha o caráter puramente objetivo da apreensão da ideia, como um estado no qual o sujeito se perde tão completamente na contemplação, a ponto de tornar-se um “espelho do objeto […] como se apenas o objeto ali existisse, sem alguém que o percebesse”, e toda a consciência “é integralmente preenchida e assaltada por uma única imagem intuitiva” (W I, § 34, p. 246) (agradeço a Selma Bassoli por ter levantado esse ponto). Tal descrição da experiência estética, contudo, não impede Schopenhauer de assumir que a satisfação advinda dessa experiência pode estar modulada por uma orientação mais “objetiva” (isto é, direcionada ao conhecimento da ideia enquanto tal), ou mais “subjetiva” (isto é, direcionada à bem-aventurança que absorve o contemplador na medida em que ele se reconhece e toma consciência de si como puro sujeito do conhecimento destituído de vontade) (cf. W I, § 38, p. 265ss.). É essa consciência de si que aparece na descrição do sublime como lugar de reconhecimento, por parte do sujeito, de que todo o mundo, por mais aterrorizante que seja sua grandeza imensurável, reside “apenas em nossa representação, cujo sustentáculo somos nós como sujeito que conhece”; trata-se da “consciência de nós mesmos como puro sujeito do conhecer.” (W I, § 39, p. 279) Sobre isso, cf. ainda Janaway, 2022, p. 212. Agradeço também a Eduardo Brandão, Guilherme Marconi Germer e Luan Corrêa da Silva pelas discussões acerca desse tópico.

[45] Cf. W I, § 55, p. 373: “No homem, por conseguinte, a vontade pode alcançar a plena autoconsciência [Selbstbewusstseyn], o conhecimento distinto e integral da própria essência tal qual esta se espelha em todo o mundo.” Cf. ainda W I, § 56, p. 397.

[46] Parte essencial do sentido recoberto pelo que denomino aqui de “consciência mística” aparece na pena de Schopenhauer com a expressão “consciência panteísta” – um hapax legomenon com o qual ele descreve o fenômeno do misticismo como a “consciência da identidade do seu próprio ser com todas as coisas, ou com o núcleo do mundo” (W II, § 48, p. 730). Agradeço a Sandra Shapshey pela oportunidade de ouvi-la sobre a noção de “consciência panteísta” na mesma sessão do X Colóquio Internacional Schopenhauer em que uma primeira versão deste texto foi apresentada. Agradeço também aos interlocutores que apontaram as semelhanças entre a noção de “consciência mística” mobilizada no meu argumento e a abordagem sugerida por Shapshey do conceito de “consciência panteísta”. Para formulações análogas do sentido de consciência mística, cf. por exemplo W I, § 34, p. 249; § 39, p. 278-79; § 54, p. 365 (esta última é uma passagem bastante peculiar, em que Schopenhauer parece sugerir que também os animais, em algum nível, não apenas são capazes da experiência que caracteriza a consciência mística, como vivem imersos nessa forma de consciência, fundidos à unidade eterna da vida da espécie; sobre isso, cf. também W II, § 41, pp. 555, 573 e 578); ainda sobre a consciência mística em geral: W I, § 63, p. 451; § 64, p. 458; W II, § 25, p. 391-92 (trata-se, neste último trecho, de uma importante reflexão sobre a relação entre o estado cognitivo da clareza de consciência, circunscrito pela metáfora da luminosidade ao âmbito das representações intuitivas e de seus derivados conceituais, e a obscuridade e indistinção do horizonte de vivência de nossa interioridade mais profunda, que se torna cada vez mais obscura e inconsciente quanto mais adentramos em direção ao centro da esfera da vida – metáfora empregada por Schopenhauer para representar tanto a relação entre, por um lado, a consciência distinta dos objetos individuados no espaço (localizados na superfície da esfera) e, por outro, a escuridão inconsciente do núcleo mais íntimo de nosso próprio ser (representado pelo centro da esfera), quanto a relação entre a superfície das aparências e a unidade essencial e metafísica do cosmos (para uma discussão aprofundada deste tópico, cf. Silva, 2020; a passagem referida aqui é discutida por Silva entre as páginas 244-46)). A sequência da passagem anterior apresenta outra metáfora muito ilustrativa: a imagem do pólipo, cuja cabeça se encontra isolada na parte de cima, separada das cabeças dos outros indivíduos, mas cuja parte inferior, responsável pela unidade do processo vital sustentado pelo sistema ganglionar, é partilhada por todos e os vincula numa vida comum (W II, § 25, p. 392-93; sobre isso, cf. novamente Silva, 2017a, p. 142); cf. ainda W II, § 47, p. 718; § 48, p. 730. Sobre a experiência correspondente ao conhecimento intuitivo da identidade metafísica de todos os seres, cf. também Decock, 2017, que discute essa modalidade de conhecimento à luz da fórmula sânscrita tat twam asi, mobilizada com frequência por Schopenhauer, sobretudo no contexto de suas reflexões sobre a compaixão. Sobre os estados de consciência no sonho e nos fenômenos magnéticos, cf. por exemplo P I, p. 258-59 (edição alemã de Paul Deussen; trad. br. de Márcio Suzuki, Para uma metafísica do sonho, p. 71-2), p. 266-68 e passim. Para uma discussão mais detida desses fenômenos, cf. Atzert, 2012; Brunner, 2007; Silva, 2017b; Suzuki, 2023 e 2024.

[47] Cf. W I, § 71; W II, § 41, p. 607; § 48, p. 725-26, p. 728. Sobre a negação da vontade, cf. Bassoli, 2015.

[48] Agradeço a Eli Vagner Rodrigues por ter enfatizado esse problema à luz da psicologia moral de Schopenhauer, que admite que muitas vezes agimos sem termos plena consciência (ou consciência alguma) dos motivos (ou seja, das representações) que guiam e determinam nossas ações, operando por trás do que chamei aqui de “autoconsciência volitiva agencial”. Espero ser capaz de lidar devidamente com esse problema a partir da hipótese que desenvolverei no artigo em questão.