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Descrição gerada automaticamente

Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 15, esp. 1, e88496, 2024

DOI: 10.5902/2179378688496

ISSN 2179-3786

Submissão: 06/08/2024 Aprovação: 24/10/2024 Publicação: 20/11/2024

 

REFERÊNCIAS. 15

 

Schopenhauer: Sociedade e Cultura

Abelhas ou Porcos-Espinhos? Hegel e Schopenhauer sobre Direito e Estado[1]

Bees or Porcupines? Hegel and Schopenhauer on Law and State

Matthias KosslerIÍcone

Descrição gerada automaticamente

I Johannes-Gutenberg Universität Mainz , Mainz, Renânia-Palatinado, Alemanha

Tradução de Oswaldo Giacoia Junior. Abelhas ou Porcos-Espinhos? Hegel e Schopenhauer sobre Direito e Estado. Unicamp/PUCPR

 

À primeira vista, a filosofia do direito e do Estado de Hegel e Schopenhauer apresentam-se como totalmente opostas: em contraposição ao conceito de estado mínimo em Schopenhauer, coloca-se o papel do Estado em Hegel como “universo ético” como tão diametralmente oposto quanto sua concepção preventiva do direito penal à concepção hegeliana da pena como reintegração na sociedade. Em Hegel, o conceito do direito como existência (Dasein) do espírito é o fundamento; em Schopenhauer, ele é um conceito negativo, derivado do conceito mais originário de originário de injustiça (Unrecht). Explicada como tomada de posse em Hegel, a propriedade, em Schopenhauer só pode ser justificada pelo trabalho nela empregado. Acrescente-se a isso as infames polêmicas e insultos de Schopenhauer contra Hegel em geral, mas também no contexto de sua filosofia do Estado, na qual ele atribui sub-repticiamente (unterstellt) a Hegel que “a determinação do homem no Estado seria absorvida (aufgehe) mais ou menos como as abelhas na colmeia” (P I, Sobre a Filosofia Universiária, p. 164). Esta consideração provém da obra tardia Parerga und Paralipomena, de um tempo em que Hegel já estava morto há 20 anos, e no qual, em conexão com o fim do idealismo alemão, fez-se ouvir a crítica a Hegel por Rudolf Hayms (1857) [2]. Não temos de dar a esta polêmica historicamente determinada nenhum peso exagerado. Por outro lado, não deveríamos deixar de lado também a explícita e apaixonada oposição de Schopenhauer contra a concepção hegeliana de Estado, para a qual, no entanto, não há nenhuma resposta de Hegel. Seus fundamentos, porém, não se encontram tão em aberto, como aparece inicialmente.

Entretanto, numa consideração mais precisa, há algumas concordâncias de princípio, sobre o pano de fundo das quais somente uma diferenciação pode ser empreendida. Há que se nomear aí primeiramente a circunstância de que ambos são defensores do Estado moderno, na medida em que o vêm fundamentado na razão. No entanto, esta comunidade (Gemeinsamkeit) é relativizada por um conceito de razão totalmente diferente. Em Hegel, a razão é “a certeza de ser toda a realidade (Realität)” (PdG, Kap. V , p. 181), na medida em que ela, como razão teórica, compreende o fundamento inteligível da efetivadade (Wirklichkeit), e, como razão prática, realiza suas ideias. “Reconhecer a razão como a rosa na cruz do presente” – escreve Hegel numa célebre passagem da introdução à Filosofia do Direito – é a “reconciliação com a efetividade”. A estranha e dura realidade torna-se racionalidade confiável (vertraut). Que dessa maneira o espírito está em si mesmo em tudo aquilo com que se defronta, nisso consiste também a reconciliação na eticidade (Sittlichkeit) da vontade individual com a vontade geral: “... assim é a liberdade subjetiva, como vontade geral (allgemeine) em si e para si, que na consciência da subjetividade singular tem seu saber de si, e tem a disposição de ânimo (Gesinnung) como sua atividade, e sua imediata efetividade geral ao mesmo tempo como costume (Sitte) – a liberdade consciente de si tornada natureza” (Enz.III, § 513, p. 318). Esta reconciliação se encontra no Estado, que, por causa disso, é o “racional (das Vernünftige) em si e para si” (RP, § 258, p. 399).

Em oposição a isso, em Schopenhauer a razão é um instrumento do egoísmo, surgido na natureza na luta pela sobrevivência, para poder realizar melhor os interesses particulares. O Estado é, então, o resultado de um “egoísmo procedendo metodicamente” (W I, §62, p. 405), uma vez que os sujeitos singulares, na ponderação das vantagens da vida em comum juridicamente organizada (proteção contra os animais, segurança contra sofrer injustiças, fortalecimento da prosperidade) contra as vantagens da limitação dos interesses particulares, almejam uma condição (Zustand) que promete a maior satisfação possível. Ilustra esta concepção de Estado a célebre alegoria dos porcos-espinhos, que se aproximam uns dos outros para se aquecer, mas que recuam assustados por causa dos espinhos, e finalmente alcançam uma distância que consiste no maior aquecimento possível com o mínimo de incômodo (Belästigung).

Num dia de inverno, uma sociedade de porcos-espinhos se precipita para juntar-se bem estreitamente, para se proteger do resfriamento pelo recíproco calor. No entanto, eles logo sentem as espinhadelas recíprocas, que então novamente os distancia uns dos outros. Quando, então, a necessidade de aquecimento nos trouxe de volta para mais perto, repetiu-se aquele segundo mal; de modo que eles foram lançados de lá prá cá entre esses dois sofrimentos, até que tivessem encontrado uma distância comedida entre uns e outros, na qual podiam se manter da melhor forma possível. – Assim a carência (Bedürnisse) da sociedade, brotada do vazio e monotonia dos próprios interiores, impulsiona os homens uns para os outros, mas suas muitas propriedades repulsivas e erros intoleráveis os afastam de novo uns dos outros. A distância média que finalmente encontram, e na qual pode consistir um Estar-Junto (Beisammenseyn), é a cortesia e o costume refinado (P II, § 396, p. 690 e seguintes).

Schopenhauer fala aqui da sociedade e do costume, não do Estado. No entanto, a alegoria foi trazida à colação também para ilustrar sua concepção de Estado; pois tanto o costume quanto o contrato de Estado (Staatsvertrag) surgem do mesmo mecanismo de maximização da satisfação egoísta. No entanto, há que se manter firme, na comparação com Hegel, que Schopenhauer em larga medida exclui (ausklammert) a diferença entre, por um lado, a regulação estatal do equilíbrio entre a vantagem própria e a evitação do sofrimento, e, por outro lado, a regulação pelo costume, internalizada pela educação e pelo hábito, que é independente da regulação pelo Estado e pelo direito positivo. Unicamente em conexão com a discussão do casamento civil, ele fala de um sancionamento da relação, que não se baseia em leis estatais, mas na “opinião dos outros”, e portanto corresponde ao costume, e, como um “sub-rogado de sua moralidade” [3] (A, Kap. IV, p. 375) , regula o trato em sociedade. Retornarei a este ponto mais tarde.

Para Hegel a razão se põe como o solo do espiritual (des Geistigen), sobre o qual se desenvolvem o Estado e o direito. O “espírito” é a esfera na qual, pela atividade do entendimento, o homem configura (gestaltet) o mundo externo, de tal modo que este, em face daquele, perdeu completamente a independência que tinha na esfera da natureza. Nesta supressão da independência da natureza, tanto da externa quanto da interna, reside a liberdade que é realizada no Estado, no espírito tornado objetivo. Em relação à eticidade isto é a liberdade da coação externa, portanto, das inclinações dos outros; ou da coação interna, das próprias inclinações, apenas de natureza pulsional. No resultado, o Estado como equilíbrio dos interesses particulares parece, então, chegar muito próximo do Estado schopenhaueriano. Porém, não são esses interesses egoístas que formam em Hegel o ponto de partida, mas o conceito do direito, que se realiza no equilíbrio racional dos interesses particulares, que nele já se encontra disposto. As vontades particulares não são o elemento primeiro, e têm então que, enquanto tais, concordar em vista do Estado (zum Staat einigen). Elas são como que os meios pelos quais o direito universal se concretiza e efetiva, o “Direito em si” (RP, § 82, p. 172 e seguintes). O momento de sua discordância baseia em que o direito tem de se realizar a partir de seu conceito, e só ode fazê-lo nos sujeitos singulares. Contrariamente a isso, a independentização da vontade singular é a injustiça.

Portanto, não é que em Hegel o indivíduo singular seja absorvido no Estado, como “as abelhas na colmeia”. Pelo contrário, Estado é a “liberdade concreta”, que consiste em que “nem o interesse, o saber e o querer geral valha e seja realizado sem o particular, nem que os indivíduos queiram viver meramente para o interesse particular como pessoas privadas, e não ao mesmo tempo no e para o geral, e não tenham uma atuação efetiva (Wirksamkeit) consciente desta meta” (RP, § 260, p.  406). Para Hegel, a “unidade da generalidade e da particularidade” é aquilo em vista do que “tudo” importa no Estado (RP, § 261 , p. 410). Também para Schopenhauer existe esta unidade no Estado, como no meio “pelo qual o egoísmo municiado com a razão procura desviar suas próprias consequências ruins, voltadas contra ele mesmo; e então cada um fomenta o bem de todos, porque nele vê compreendido seu próprio bem” (W I, §62, p. 413). Em sua preleção, ele acrescenta ainda que, com essa unidade, também crescem a dominação da natureza e a prosperidade, de modo que “se o Estado alcançasse plenamente sua finalidade, todos os males seriam paulatinamente eliminados, e assim a pouco e pouco seria alcançada uma prosperidade geral”, que se aproximaria da Terra da Prosperidade Perpétua (Schalaraffenlande)” (V IV, Kap. 6, p. 143). Entretanto, a formulação indica que ele considera um Estado de tal modo realizado uma utopia, que no mais tardar seria destruído com a montante do tédio ou com as ameaças do exterior.

Entretanto, a finalidade e a visão (Ansicht) de Estado em Hegel e Schopenhauer são plenamente comparáveis. A diferença não reside em sua determinação, mas no modo de sua realização. De acordo com o ponto de partida (Ansatz) empírico de Schopenhauer, o equilíbrio entre interesse geral e individual tem de ser conquistado, e sempre permanece submetido à contingência, enquanto que para Hegel o desenvolvimento da unidade de ambos, sobre o solo do direito no Estado é necessário: no processo histórico o direito positivo se aproxima necessariamente da realização de seu conceito, depois que o Estado puramente circunscreve as determinações da liberdade. Em razão disso, há em Hegel o progresso histórico na consciência da liberdade, enquanto que em Schopenhauer para cada histórico ponto do tempo a perfeição do Estado depende das casuais condições dos caracteres individuais e das capacitações intelectuais. Esta contingência exclui um curso necessário do desenvolvimento, de modo que a todo tempo há que se lutar pela liberdade, sob condições sociais que, no fundo, permanecem sempre as mesmas, e das quais “nem constituições e legislações nem máquinas a vapor e telégrafos podem fazer algo essencialmente melhor” (W II, p. 507).

Para Hegel, portanto, a unidade entre generalidade e particularidade é imanente ao conceito do direito e sua efetiva realização no Estado. E com isso também a moralidade, como a figura (Gestalt) do direito na “subjetividade da vontade” (Enz.III, § 503, p. 313), está incluída neste conceito. O Estado, como a “efetividade da ideia ética” (RP, § 257, p. 398), é também a realização (Realisierung) da moralidade. Na disposição de ânimo moral (moralische Gesinnung) a vontade subjetiva em sua individualidade deve concordar com a vontade geral; isso significa fazer voluntariamente o que é bom (Gutes). Mas o que é o bom permanece abstrato no nível da subjetividade, que caracteriza a moralidade aos olhos de Hegel: a consciência moral individual deve corresponder à vontade geral, mas essa harmonia entre o que deve ser e o que de fato é o bom, é apenas contingente. Só primeiramente na prática social, no costume, está a reconciliação entre a vontade individual e a vontade geral; é alcançada a unidade do que deve ser e do que é. O bom abstrato torna-se, em virtude disso, um bom concreto e vivente, “que tem na consciência de si seu saber e querer, e por meio de cujo agir tem sua efetividade, tal como este agir tem no ser ético (an dem sittlichen Sein) seu fundamento em si e para si e sua finalidade mobilizadora...” (RP, § 142, p. 292).

Em oposição a isso, para Schopenhauer a moralidade é, precisamente como o contrário do direito, o lugar onde há que ser encontrada a autêntica unidade da generalidade e da particularidade. A saber, unicamente na compaixão conhecemos de novo nosso ser próprio, a vontade, no outro, mas não a modo de uma identidade desprovida de diferença, senão que “permanece claro e presente para nós precisamente a todo instante que é Ele o padecente, não nós” (E II, §16, p.  211). Portanto, Schopenhauer diferencia inequivocamente o político, o jurídico, que se baseia na ponderação racional de interesses gerais e particulares, e o moral, que se mostra num tornar-se consciente (Gewahrwerden) da unidade, que racionalmente não é compreensível de modo adequado, dos interesses próprios com os interesses do respectivamente outro, ou ainda de todos os seres viventes. Nisto a moralidade é tão diferente da normalidade da sociedade fundada no egoísmo, que Schopenhauer fala do “mistério da ética” (E II, § 16, p. 209). Com isso é claro também que o conceito de moralidade de Schopenhauer é outro que o conceito ético-deverista (sollensethisch) de Kant e Hegel.

Encontra-se nisso uma determinação mais precisa do relacionamento entre direito e moral em sua derivação do conceito do direito. A saber, para Schopenhauer – de modo totalmente diferente de Hegel – o direito é secundário, um conceito derivado da injustiça. Dá-se a injustiça quando, na persecução do interesse próprio, a vontade dos outros é lesada ou destruída. Ela não se faz notar como atentado contra um direito geral, mas como sentimento moral, tanto do lado daquele que sofre a injustiça quanto também como consciência moral daquele que comete a injustiça. Como negação da injustiça, resulta daí, então, primeiramente um conceito igualmente moral do direito[4]. De um lado, direito é o que eu posso querer e fazer, sem lesar outrem; por outro lado, é o direito de se defender da lesão por outrem com os meios correspondentes. Para o direito positivo, o direito moral tem apenas o significado de indicar a fronteira entre o injusto e o justo. O Estado assume, então, essa fronteira sob seu ponto de vista racional: minimizar o sofrer-injustiça de seus cidadãos com vistas ao seu bem-estar (Wohlergehen). A “doutrina do Estado, a doutrina da legislação, diz respeito total e unicamente ao sofrer-injustiça, e jamais cuidaria do fazer-injustiça, se não fosse em virtude de seu correlato todas as vezes presente do sofrer injustiça...” (W I, §62, p. 406). Por isso, a tarefa do Estado consiste principalmente em firmar sanções no direito positivo, que contrapõem fortes contra-motivos aos motivos que levam a praticar injustiça. Desse modo se esclarece a concepção preventiva da pena em Schopenhauer, que só é direito em vista da evitação da futura injustiça.

Como já se tornou claro, o direito é, para Hegel, o conceito originário e a injustiça o derivado. A injustiça surge quando é perturbada a unidade a ser feita pelo direito entre generalidade e particularidade. Isso acontece quando a vontade particular se contrapõe conscientemente ao direito geral, e aqui há que se observar que ela atenta não apenas contra o direito positivo, mas contra a ideia do direito. A pena tem a função de re-inserir o indivíduo singular na unidade racional da vontade geral e da vontade particular. Com isso, a pena reconduz (überleitet) do abstrato direito positivo para a moralidade e eticidade, pois que a vontade particular é reconhecida em sua significação para a realização efetiva do direito. Esta significação, entretanto, ela só a tem ao compreender-se como “a existência (Dasein) da vontade racional” (Enz.III, § 502, p. 311). Seria um mal-entendido se quiséssemos inferir daí que a pena conduziria à melhoria moral – como Schopenhauer assim o vê em Hegel. A transição do direito para a moralidade, por meio da pena, não é uma transição fáctica, mas consiste no desenvolvimento lógico da ideia, que continua a conduzir ao Estado como sua realização efetiva. Mas com isso é claro também que a ideia do direito ainda não está efetivamente realizada nas leis formais, objetivas, nas constituições e instituições de um Estado. A unidade da vontade geral e particular no Estado é sustentada pelo costume (Sitte), no qual a generalidade é entranhada (eingebildet) na vontade subjetiva “como sua habitualidade, modo de pensar e sentir (Sinnensart) e caráter” (Enz.III, § 485, p. 304).

É só por que a vontade geral é integrada na vontade singular como obrigação ética que o direito, que de outro modo se contraporia ao sujeito singular como o elemento geral, pode fazer justiça à sua ideia. Aqui Schopenhauer pode, uma vez mais, ser trazido à comparação. Ele diferencia entre a “justiça coercitiva”, que no Estado só é realizada por meio da ameaça de punição, e a “justiça voluntária”, que se baseia no reconhecimento intuitivo no outro. Aqui também Schopenhauer separa claramente direito e moral. Esta separação não admite nenhuma teoria do Estado que ultrapasse o Estado coercitivo e o Estado de Bem-Estar – ou, como Hegel formula: “Estado de necessidade constringente (Notstaat) e Estado do Entendimento (Verstandesstaat)” (RP, § 183, p. 340).

O “Estado de Necessidade Constringente e Estado do Entendimento”, que em princípio corresponde à concepção de Estado de Schopenhauer, é correlacionado por Hegel à sociedade civil baseada no “sistema das necessidades” (Enz.III, § 524, p. 321). Esta é suprimida (aufgehoben) no Estado como no “universo ético”. Há que se considerar aqui a tríplice significação da palavra alemã “aufheben”, a que Hegel recorre para esclarecimento dos desenvolvimentos dialéticos, a saber: ‘suprimir’ (vernichten), ‘conservar’ (bewahren) e ‘elevar a um patamar superior’. Na filosofia do direito de Hegel, a sociedade civil não é superada no Estado, mas ela permanece também um momento essencial do mesmo. Também quando, com a eticidade, o papel que desempenham a família, as corporações e a administração previdenciária é inscrito no Estado de Hegel, nisso não está implicada nenhuma recaída em relações feudais pré-revolucionárias. A constituição do Estado inclui os pilares fundamentais da sociedade civil, liberdade e igualdade, aos quais ele proporciona, pelas formalidades e leis, “cogência externa” e “garantia geral” (Enz.III, § 530, p.  326). Contudo, quanto ao conteúdo, a constituição não é nenhum acordo dos indivíduos num contrato de Estado (Staatsvertrag), mas, como expressão do “espírito da totalidade do povo”, resultado de um longo processo. A constituição não é “nenhum algo meramente feito (bloss Gemachtes)”, mas o “trabalho de séculos, a ideia e a consciência do racional, na medida em que está desenvolvida num povo” (RP, § 274, p. 440).

A teoria do Estado de Schopenhauer é inadequada em vista da significação da família, das corporações, do costume e do hábito – em resumo, da eticidade -, para a constituição e funcionamento do Estado. Ele evitou o conceito de “eticidade”, justo porque este desempenhou um destacado papel nos por ele odiados pensadores do idealismo alemão, em particular em Fichte e Hegel, e que, em conexão com a “lei moral” de Kant, estava ligado com a moralidade. Schopenhauer queria saber tanto o Estado quanto também a eticidade claramente separados da moral, e por isso prefere as expressões ‘honra’, ‘cortesia’ ou ‘costume refinado’[5]. No entanto, permanece, ligada a tais expressões a importante função de uma disposição de ânimo ética (sittliche Gesinnung), pelo qual a vida em comum na sociedade é possível não apenas sob a permanente coerção externa, mas é regrada por uma convicção subjetiva adquirida pela educação e pelo costume. Só esporadicamente e de maneira indireta Schopenhauer admite esta função também em vista do Estado, quando ele caracteriza mais de perto o “egoísmo procedendo metodicamente”, ao qual o Estado regressa. Pois o procedimento metódico consiste em que o egoísmo transita “do ponto de vista unilateral ao geral”, e torna-se “pela somatória, o egoísmo comum de todos”. (W I, §62, I 408). O que vale para todo e qualquer contrato, a saber, que “lealdade e honestidade são o laço que, do exterior, reúne de novo numa unidade a vontade fragmentada na multiplicidade dos indivíduos”, isto vale tanto mais para o contrato de Estado. Esta honestidade, o senso para o comunitário e o geral, não podem ser explicados a partir do egoísmo procedendo metodicamente, porque são pressupostos para ele. Eles exibem uma espécie de uma disposição de ânimo ética (sittliche Gesinnung), que Schopenhauer nesse contexto não nomeia como tal. Mas a honra civil, que se estende “sobre todos os estamentos, sem diferença” (A, Kap. IV, p. 387), e que consiste em que “nós respeitamos os direitos de todos e cada um incondicionalmente” (ibid., p. 386) – não coagidos pela lei, mas unicamente por temor da vergonha – corresponde a um entendimento mais amplo de eticidade. Como “sub-rogado da moralidade”, ele eleva a honra acima de todas as outras formas da reputação pública, e a torna não apenas um valor “elevado”, mas um “valor supremo” (HN III, p. 472), ou um bem de “valor quase absoluto” (ibid., p. 476).

Apesar do insight na inadequação de uma concepção de Estado, que fundamenta a vida social em comum na coerção pela ameaça de punição e na promessa de prosperidade; e apesar de que ele considera “a derivação da validade ética dos contratos” como uma tarefa principal da filosofia do direito (V IV. 4, Kap. 6, p. 135), Schopenhauer não tematizou os elementos éticos. A redução do Estado a uma instituição de coerção e bem-estar é também insuficiente a partir de ponderações pragmáticas, pois a autoridade estatal não penetra em todos os domínios da vida cotidiana. E quanto mais ela tenta fazê-lo, tanto mais aumentarão, por um lado, a resistência contra ele, de todo modo latente, e por outro lado, o ponto de vista de acordo com o qual o egoísmo é justificado em todos os assuntos não controlados pelo Estado. Por fim, um fortalecimento do controle estatal contradiz a parábola dos porcos espinhos, que tem em vista o equilíbrio entre os interesses dos indivíduos singulares e da comunidade, e não a supremacia desta última. O alargamento do âmbito de competência (Zuständigkeit) do Estado, que é fundado unicamente no sistema das necessidades, conduz ao totalitarismo. Em razão disso, Schopenhauer limita o poder do Estado à proteção contra a injustiça, e reconhece também o direito à resistência contra governos injustos. Em oposição a Hegel, que reúne o legislativo e o executivo no governo monárquico, Schopenhauer enfatiza uma estrita divisão de poderes. Ele defende uma concepção de estado-mínimo, que se limita ao necessaríssimo, e nesse sentido a expressão de Hegel “Estado da necessidade constringente” (“Notstaat”) é inteiramente pertinente para Schopenhauer.

Hegel vê nisso o problema da sociedade civil: que as medidas do Estado para o asseguramento da satisfação das necessidades podem ser “tanto apropriadas quanto não apropriadas” para o indivíduo singular (Enz.III, § 533, p. 329). Por isso, sobre o Estado do entendimento (Verstandesstaat) (e com isso também sobre a teoria do Estado de Schopenhauer), ele julga que “representar a instituição do Estado como uma mera constituição do entendimento, isto é, como o mecanismo de um equilíbrio de poderes, que, em sua interioridade, são exteriores uns aos outros, vai contra a ideia daquilo que é um Estado” (Enz.III, § 544 , p.  345). Na teoria do Estado que é própria a Hegel a “exterioridade’ das vontades individuais é dissolvida na constituição, que não é algo como o “contrato de Estado ou a Lei” (W I, § 62, p. 405) de Schopenhauer, não explicitados de mais de perto; mas é tanto o documento quanto também a configuração (Gestaltung) do “espírito do povo” (Enz.III, § 552 , p. 353). O espírito do povo expressa-se na eticidade de uma nação, que não consiste nem no cumprimento de deveres morais, nem na forçada obediência às leis, mas na prática cotidiana dos usos e costumes. Nessa práxis, os cidadãos encontram, por um lado, as regras da vida em comum, e, por outro lado, as produzem ou modificam continuamente por seu agir e seu comportar-se, de modo que no costume o “dever é tanto quanto ser” (Enz.III, § 514, p. 318). Dessa maneira, segundo Hegel, a constituição de um Estado é fundamentada numa mediação já disponível (bereits vorhandene Vermittlung) entre a vontade individual e a vontade geral. Com isso, suas leis apresentam não apenas uma limitação, mas também uma satisfação da vontade individual.

O problema da concepção hegeliana do Estado consiste em que a eticidade de uma nação é de novo religiosamente fundada. “De acordo com esse relacionamento, o Estado se baseia na disposição de ânimo ética (sittliche Gesinnung) e esta no (elemento, OGJ.) religioso” (Enz.III, § 552, p. 355). E a “verdadeira eticidade”, que desenvolve o Estado em suas formas históricas para a suprema perfeição da ideia do direito, se funda na religião verdadeira (wahrhaft) – na cristã -. Isso não significa, como Schopenhauer supõe que Hegel “teria professado, sob a denominação e a firma da filosofia, em traje estranho, os dogmas fundamentais da religião do país” (P I, Über die Universitäts-Philosophie, p. 204). Mas a necessidade de uma disposição de ânimo ética (sittliche Gesinnung) religiosamente fundada em geral traz à luz o problema de uma atualização da filosofia do Estado e do direito hegeliana. Face à perda de significação da religião em geral, e ao confrontar-se de diferentes tradições culturais e religiosas num mundo globalizado, não se pode mais contar com uma unitária disposição de ânimo ética (sittliche Gesinnung). Esta problemática se mostra na inaplicabilidade (Unbrauchbarkeit) e até mesmo no caráter suspeito (Anrüchigkeit) do conceito hegeliano de “espírito do povo”. Sem um tal fundamento ético, porém, recai o discurso sobre valores, solidariedade e análogos no patamar da moralidade subjetiva no sentido de Hegel, de “boa disposição de ânimo (Gesinnung) do espírito abstrato”, que ele, em sua ponta mais elevada, designa de “suprema vaidade” (Enz.III, § 512, p. 317). O Estado impõe, então, sob o nome vazio do Bem-Estar-Geral as convicções subjetivas dos governantes contra a vontade de seus cidadãos; e uma vez que precisamente esta vaidade é o que Hegel denomina o Mal, o Estado é, então, não apenas totalitário, mas também terrorista. A longo prazo, formam-se as sociedades paralelas, que manifestam as divisões da sociedade.

As teorias do Estado de Schopenhauer e Hegel são apropriadas para explicitar um problema muito atual da política. Ambas abrigam em si o perigo de conduzir a um Estado totalitário: em Hegel, quando a base ética comum se dissolve; em Schopenhauer, quando a doma do egoísmo por si mesmo parece exigir uma intervenção sempre mais forte do Estado. Este duplo perigo, que caracteriza a situação política presente, na qual crescem tendências autoritárias e morais, torna-se mais compreensível pela contraposição entre as duas teorias e princípios. As teorias de Schopenhauer e Hegel não oferecem nenhuma solução para o problema, mas tornam claro o que são os fundamentos do mesmo, e o que seria necessário para sua solução. Considerado do ponto de vista de Hegel, trata-se disso: que as sociedades se desenvolvam para a “eticidade substancial, com a qual é idêntica a liberdade da auto-consciência sendo para si” (Enz.III, § 552, p. 364). Mas, como sublinha Hegel, isto é um longo processo histórico que só se deixa desenvolver pela práxis comunitária, e não se deixa acelerar por medidas de dirigismo. Enquanto isso não tiver acontecido, o Estado pode funcionar apenas como “Estado da necessidade constringente e do entendimento”, e enquanto isso, penso eu, a orientação de Schopenhauer pelos porcos-espinhos é preferível à colmeia impingida.

REFERÊNCIAS

SCHOPENHAUER, Arthur. Sämtliche Werke. Organizado por Arthur Hübscher. 2. ed. Wiesbaden: F. A. Brockhaus, 1946-1949. 7 v.

SCHOPENHAUER, Arthur. Der Handschriftliche Nachlaß. Organizado por Arthur Hübscher. München: dtv, 1985. 5 v.

SCHOPENHAUER, Arthur. Vorlesung über die gesamte Philosophie oder die Lehre vom Wesen der Welt und dem menschlichen Geiste. Organizado por Daniel Schubbe. Hamburg: Meiner, 2017–2022.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Werke in 20 Bänden. Frankfurt: Suhrkamp, 1970.

FREVERT, Ute. Ehrenmänner. Das Duell in der bürgerlichen Gesellschaft. München: (s.n.), 1991.

HAYM, Rudolf. Preußen und die Rechtsphilosophie. In: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Hegel und seine Zeit. Berlin: (s.n.), 1857. p. 357-391.

KOßLER, Matthias. Schopenhauer über die Ehre. In: Zeitschrift für Didaktik der Philosophie und Ethik, n. 3, 2021.

LÜTKEHAUS, Ludger. „Ehrensachen meiden“ – Schopenhauers Auseinandersetzung mit dem „Princip der Ehre“. In: Schopenhauer-Jahrbuch, v. 87, p. 91-100, 2006.

Contribuição de autoria

1 – Matthias Kossler

Professor do Departamento de Filosofia da Johannes-Gutenberg Universität Mainz

https://orcid.org/0009-0008-0298-1873 • kossler@uni-mainz.de

Contribuição: Escrita – Primeira Redação

Como citar este artigo

KOSSLER, M. Abelhas ou Porcos-Espinhos? Hegel e Schopenhauer sobre Direito e Estado. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria - Florianópolis, v. 15, esp. 1, e88496, p. 01-14, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378688496. Acesso em: dia mês abreviado. ano.



[1] Sobre este tema já escrevi um ensaio intitulado: Hegel and Schopenhauer on Law and the State, em chinês, no Chinese Journal of German Philosophy, vol. 44 (2023), 238-249.

Utilizei as referências de Schopenhauer de acordo com o método de citação do Schopenhauer-Jahrbuch, ou seja, de acordo com a edição de Hübscher, e as referências de Hegel de acordo com o Theorie-Werkausgabe: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Werke in 20 Bänden. Frankfurt: Suhrkamp, 1970, com as seguintes abreviações: RP = Grundlinien der Philosophie des Rechts (= vol. 7) [Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito]; Enz.III = Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften vol. III (= vol. 10) [Enciclopédia das ciências filosóficas]; PdG = Phänomenologie des Geistes (= vol. 3) [Fenomenologia do espírito].

[2] Rudolf Haym: Preußen und die Rechtsphilosophie. In: Hegel und seine Zeit. Berlin 1857, 357-391. (N.A.).

[3] Cf. Matthias Koßler: Schopenhauer sobre a honra. Em: Zeitschrift für Didaktik der Philosophie und Ethik 3/2021 (no prelo), 72-81 (N.A. traduzido pelo editor).

[4] N. T. É preciso ter em mente que o termo direito, em alemão: das Recht, comporta também a acepção de Justo, Justiça. É sobre esta ressonância que assenta a oposição feita pelo autor no presente parágrafo entre Unrecht (injustiça, injusto) e Recht, daí a designação do conceito de direito como um conceito moral, derivado do sentimento de injustiça

[5] Schopenhauer pode ter usado as expressões de sua própria tradução do Oráculo manual y arte den prudencia, de Baltasar Gracián, em que a cortesia e o “costume refinado” (HN IV,2, p. 248) são reunidos. É difícil determinar as influências da literatura mais antiga no tratamento da honra por Schopenhauer. Certamente Gracián deve ser mencionado, no qual a recomendação “evite assuntos de honra” (ibid., p. 153) também pode ser encontrada. A biblioteca particular de Schopenhauer continha Über den Umgang mit Menschen, de Knigge, e Julie, ou la nouvelle Héloise, de Rousseau (ibid., V, p. 140, p. 422), dos quais ele poderia ter se inspirado, mas os volumes foram perdidos. Cf. Frevert 1991, p. 36-44. De qualquer forma, não é verdade que, como ele escreve no prefácio de “Skitze” (ibid., III, p. 496), ele tivesse apenas um livro improdutivo sobre o assunto à sua disposição. Cf. Lütkehaus 2006, p. 95. (N.A. traduzido pelo editor).