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Descrição gerada automaticamente

Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 15, n. 1, e88225, 2024

DOI: 10.5902/2179378688225

ISSN 2179-3786

Submissão: 12/07/2024 Aprovação: 17/10/2024 Publicação: 30/10/2024

1 REFLEXÕES ACERCA DA NATUREZA DO CORPO DO FETO.. 1

2 A SEXTA RUBRICA DA INJUSTIÇA EM SCHOPENHAUER. 1

3 DOS DIFERENTES TIPOS DE ABORTO E GRAVIDEZES. 1

4 FINALIZAÇÃO E BREVES CONSIDERAÇÕES METAFÍSICAS. 1

REFERÊNCIAS. 1

 

Estudos Schopenhauerianos

Na perspectiva de Schopenhauer, pode o aborto ser considerado injusto?

From Schopenhauer's perspective, can abortion be considered unjust?

Antonio Alves Pereira JuniorIÍcone

Descrição gerada automaticamente

IUniversidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil

RESUMO

O papel do corpo na filosofia schopenhaueriana é fundamental para a compreensão da vontade. Para Schopenhauer, o corpo é a vontade tornada visível via objetidade da vontade: isso é tão importante que se trata da verdade filosófica por excelência (κατξοϰἡν), conforme as palavras do próprio filósofo. Sendo assim, a pergunta que se quer responder é a seguinte: como Schopenhauer entenderia o corpo do feto humano em relação ao aborto? Para tal, este artigo pretende expor as diferentes formas de concepção de gravidez na intenção de refletir sobre a violação da vontade alheia à luz da concepção de injustiça de Schopenhauer (§ 62 de O mundo). Também serão feitas outras considerações levando em conta a sexta rubrica de injustiça, exposta exclusivamente nas preleções berlinenses, isto é, aquela que diz respeito à violação das obrigações derivadas das relações sexuais.

Palavras-chave: Aborto; Corpo; Injustiça; Natureza

ABSTRACT

The role of the body in Schopenhauer's philosophy is fundamental for understanding the will. For Schopenhauer, the body is the will made visible through the objectification of the will: this is so important that it constitutes the philosophical truth par excellence (κατ’ ξοχήν), according to the philosopher's own words. Therefore, the question to be answered is the following: how would Schopenhauer understand the body of the human fetus in relation to abortion? To this end, this article intends to present the different forms of conception of pregnancy with the aim of reflecting on the violation of another's will in light of Schopenhauer's conception of injustice (§ 62 of The World); other considerations will also be made taking into account the sixth category of injustice, exclusively exposed in the Berlin lectures, that is, the one concerning the violation of obligations derived from sexual relations.

Keywords: Abortion; Body; Injustice; Nature

1 reflexões acerca da natureza do corpo do feto

O papel do corpo na filosofia de Schopenhauer é fundamental para a compreensão da vontade. A ideia apresentada pelo filósofo é que o corpo é a vontade tornada visível via objetidade da vontade. Trata-se da verdade filosófica por excelência (κατ’ ξοϰν), e dos mais importantes princípios schopenhauerianos para derivação e compreensão da vontade no mundo. Ocorre que, “as partes do corpo têm de corresponder perfeitamente às cobiças principais pelas quais a vontade se manifesta” (HN III, Cap. 5, p. 70), e assim, têm-se alguns curiosos exemplos para alusão da verdade deste princípio: “dentes, esôfago, canal intestinal são a fome objetivada; os genitais são o impulso sexual objetivado” (idem). Essa mesma ideia é ampliada também para os corpos dos animais: a mandíbula dos predadores (tubarões, leões, crocodilos, etc.) já dão testemunho da orientação da objetidade da vontade ali manifestada: trata-se da disposição para lutar e caçar. Por outro lado, animais que são vistosamente mais dóceis em sua composição corporal (coelhos, gazelas, veados, etc.), dispõem de pés velozes, leveza corporal, agilidade e, às vezes, grandes ouvidos, revelando a disposição e orientação da vontade para fugir, correr, saltar, escapar, etc. Seguindo outros exemplos de mesma índole, leia-se que “cada órgão deve ser considerado como a expressão de uma manifestação universal [...] da vontade não do indivíduo, mas da espécie. Cada forma animal é um desejo da vontade para a vida evocado pelas condições dadas” (N, Anatomia Comparada, p. 85-86). Uma prova para conceber a verdade deste referido princípio (vontade = corpo; corpo = vontade), é a reflexão de Schopenhauer a respeito dos animais que possuem chifres: “carneiros, cabras, bezerros já chifram antes que lhes nasçam os chifres, com os quais intentam chifrar”, pois “a expressão do uso dos chifres antecede a existência real [deles]” (HN III, Cap. 5, p. 72-73, grifos meus).

A vontade, em Schopenhauer, que em linhas gerais não é guiada pela cognição, manifesta-se nos corpos não só dos animais, mas também das plantas e de toda a matéria inorgânica. São significativas as seguintes palavras do filósofo: “atribuir uma vontade ao inanimado, ao inorgânico, fui eu o primeiro a dizer. Pois para mim, a vontade não é, como se afirmou até hoje, um acidente da cognição, e, portanto, da vida; mas, ao contrário, a própria vida é aparição da vontade” (N, 2018, p. 139). Em outros termos, toda materialidade do mundo é a vontade tornada visível. A chave para compreensão de tal concepção pode ser resumida assim: toda materialidade pressupõe modificação e não há modificação que ocorra sem movimento, por conseguinte, nenhum movimento existe sem vontade. Mas se deve lembrar também que isso possui um sentido cosmológico, pois se trata de uma “astuta estratégia adotada [por Schopenhauer] para nos convencer de que a chave para a decifração do enigma do macrocosmo encontra-se no microcosmo, isto é, em nós mesmos, no mais profundo interior volitivo de nosso corpo” (Barboza, 2023, nota em: HN III, Cap. 5, p. 65). Assim, todo o mundo da aparência (isto é, o mundo como representação) é também uma manifestação da vontade (metafísica).

A noção de movimento na matéria em Schopenhauer nos fornece elementos para compreendermos a articulação formal da ideia de pensamento único, dado se tratar de uma mesma vontade “que age tanto no fenômeno moral como no fenômeno natural” (Brandão, 2008, p. 211), e também por haver uma ligação indissociável entre a metafísica da natureza e a ética. Basta se atentar ao fato de que Schopenhauer compôs um pequeno capítulo intitulado “Ética”, ao final de Sobre a vontade na natureza e também sobre a conexão mencionada pelo próprio filósofo entre os livros dois e quatro d’O mundo, o que, em certo sentido, autoriza e justifica a tratativa do tema do aborto relacionado à sua doutrina do direito.

Essa ideia de movimento na matéria é muito importante na filosofia de Schopenhauer e nos remete ao que se costuma chamar de “as três formas de causalidade”, as quais serão importantes para a sequência da presente argumentação. Essas três formas são as seguintes: 1) o movimento da matéria inorgânica causado pelas causas em sentido estrito [Ursache], a que Schopenhauer remete à segunda lei de Newton, onde ação e reação possuem uma mesma proporcionalidade (exemplo: rochas rolando montanha abaixo); II) o movimento de crescimento das plantas que ocorre via estímulos [Reiz], derivados da qualidade substancial do solo e adequação à luz solar, etc., o mesmo valendo para os movimentos involuntários dos corpos dos seres vivos em geral, tais como a circulação sanguínea, batimento cardíaco, movimentos peristálticos, etc., que também se movem por estímulos externos; III) por fim, há a forma de causalidade chamada motivo [Motiv], que representa as modificações mediadas pela cognição dos animais superiores e dos seres humanos: somente aqui é que a vontade é guiada pela cognição, que se trata de um “acidente da matéria[1]”, embora não dependa somente dela[2].

A conceituação das três formas de causalidade é importante, pois podemos a partir delas, começar a tratar a respeito dos fetos, especialmente sobre a natureza de seus movimentos e, em decorrência disso, também sobre a possibilidade de pensá-los dentro ou fora da teoria do direito, pois ainda que Schopenhauer não se preocupe de modo algum com direito dos fetos em sua teoria da justiça (W I, § 62), temos de nos lembrar da sua importante doutrina da ciência que se encontra nos Suplementos. Nela se pode ver que, em relação às ciências empíricas (ou a posteriori), a doutrina dos motivos engloba a doutrina do direito[3]. É a partir disso que se pode pensar que se pudermos encontrar motivações (além de estimulações) nos fetos, por conseguinte, poderíamos também atribuir-lhes direitos. A questão a ser respondida, portanto, é a seguinte: em uma reflexão fundamentada na filosofia de Schopenhauer, os fetos agem apenas em conformidade com os estímulos ou também consoante a motivos?

Comecemos então por listar quais são exatamente os movimentos mais conhecidos e visíveis em um feto humano, conforme os maiores avanços da ciência atual: α) chutes, socos e abertura dos dedos das mãos e dos pés, que aumentam na medida em que seus músculos se desenvolvem; β) sucção, pois muitas vezes podem ser vistos sugando o polegar; γ) engolir o líquido amniótico, dado a importância desta ação para o desenvolvimento do sistema digestivo; δ) soluço, que pode ocorrer devido ao aperfeiçoamento do diafragma; ε) rolamento: mudar de posição rolando para um lado ou para o outro no útero; ζ) toques no rosto; η) demonstrar sensibilidade à luz e ao som: pode o feto responder aos sons externos e também a mudança de luz, deixando-o agitado, animado, etc.

Se formos capazes de classificar os movimentos acima listados, isto é, se são respostas a meros estímulos ou se respondem a motivos, então talvez poderemos situar a compreensão de Schopenhauer a respeito do grau de cognoscibilidade ou não de um feto e, por conseguinte, se o filósofo compreenderia se eles possuiriam ou não direitos. A partir do seguinte trecho da Metafísica da natureza, creio que se possa fazer uma derivação sobre a resposta do filósofo para começarmos a responder o nosso problema.

O alimento tem de ser procurado, escolhido desde o momento em que o animal deixa o ovo ou o ventre materno no qual vegetava desprovido de conhecimento. Por conseguinte, o movimento por mero estímulo não é mais suficiente. Para a natureza, nasce, assim, a necessidade de movimento por motivos: para este, no entanto, torna-se por sua vez necessário o conhecimento: portanto, este entra em cena [...] como um instrumento necessário, μηχανή, para conservação do indivíduo e para a propagação da espécie. O conhecimento, assim, aparece representado pelo cérebro [...]. Com esse instrumento, μηχανή, surge de um só golpe o mundo como representação com todas as suas formas essenciais, objeto e sujeito, espaço, tempo, pluralidade e causalidade [...]. A vontade, que até então seguia na sua obscuridade a sua impulsão com extrema certeza e infalibilidade, inflamou neste grau de sua objetivação uma luz para si (HN III, Cap. 12, p. 196-197, grifos de Schopenhauer).

Schopenhauer parece que indiretamente nos esclarece que não crê na existência de motivos durante a vida uterina de um feto. E ele até mesmo parece indicar que basta nascer e sair do útero para que o mundo ganhe uma roupagem totalmente diferente para um mamífero qualquer. É como se fosse algo instantâneo: ao deixar o útero, então “o movimento por mero estímulo não é mais suficiente [die Bewegung auf blosse Reize ist also nicht mehr zureichend]”; além disso, tal objetidade da vontade “surge de um só golpe [steht nun mit einem Schlage[4]]”, como se realmente pudesse nos dar a entender que bastasse nascermos para deixarmos de responder a estímulos e imediatamente começássemos a responder a motivos, pois neste instante o nosso cérebro viabilizaria que nos tornássemos máquinas (μηχανή).

Mas será mesmo que um ser humano recém-nascido, logo em suas primeiras horas de vida, já poderia responder claramente a motivos apenas por abrir seus olhos e enxergar o mundo? Não há nenhuma garantia de que a cognição já esteja completamente presente no bebê, embora os olhos já possam se encontrar abertos e o cérebro, a máquina, o μηχανή, já esteja recebendo o conteúdo externo do mundo, adentrando o intelecto que recém deixou o útero, para se tornar, de fato, parte do planeta Terra. Há como costurar isso por dois caminhos. Pode-se dizer, por um lado, que o feto no útero já respondia a motivos – considere, por exemplo, que talvez o rolamento de um feto (ε) seja uma manifestação de incômodo de posição: ora, o feto quer rolar porque na posição em que se encontra, sente-se incomodado. Talvez haja nisso algo que movimente sua vontade em direção ao prazer e o distancie da dor, por conseguinte, uma centelha de cognição – mas, por outro lado, pode-se supor que a cognição em um bebê humano só virá a se desenvolver algum tempo depois de seu nascimento, quando ele ganhar alguma autonomia. Para aumentar a especulação nesse sentido, pensemos na moleira dos bebês (fontanela anterior e posterior), que quando nascem, encontram-se ainda abertas e em desenvolvimento. Isso talvez possa mostrar que a atividade cerebral ainda não está completa, porque nem sequer o crânio se encontra totalmente bem formado. Vale dizer, porém, que a ciência contemporânea estabelece que os primeiros rudimentos de consciência e cognição aparecem a partir da vigésima segunda semana de gestação[5].

A resposta mais óbvia talvez seja pendermos a crer que os fetos agem exclusivamente por meio de estímulos apenas no período embrionário. O consenso científico atual é que há uma modificação muito marcante após a oitava semana de gestação, pois a futura criança a nascer deixa de ser um embrião e se torna um feto: essa consideração é estritamente morfológica e ela significa que antes da oitava semana não se pode diferenciar um embrião de uma espécie se comparada a um embrião de outra[6]. Sendo assim, talvez possamos extrair da movimentação intrauterina dos fetos alguma resposta a motivos. Reflita, por exemplo, na seguinte questão: por que um feto rolaria, tocaria seu próprio rosto e demonstraria sensibilidade à luz e ao som, não fosse por uma cognição lhe colocando em uma situação de incômodo ou almejando um prazer futuro? Não há como negar que há, especialmente no rolamento (ε), uma condição que agita o temperamento da sua vontade, seja por alegria ou por dor. Embora essas sejam questões que não podemos garantir e nem concluir de modo algum, podemos ter algumas certezas de movimentos fetais concebidos por estímulos: o próprio crescimento do feto só pode acontecer a partir da alimentação materna, que se trata de uma causa totalmente fora e independente de sua vontade individual (advinda exclusivamente do seu corpo); portanto, engolir o líquido amniótico ou o movimento de sucção, igualmente parecem movimentos totalmente inconscientes e por isso, independentes de cognoscibilidade intelectual.

Se tentarmos nos colocar no lugar do feto, sentiremos que não há uma motivação para se mover de um lado para o outro senão por conta de uma busca por prazer ou pela diminuição do incômodo pela posição que se encontra atualmente: esse incômodo tem de ser sentido pelo intelecto – cérebro, μηχανή – ou então, por qual outra coisa poderia ser? Se é sentido pelo intelecto, então temos de admitir que seus movimentos são ao menos parcialmente cognoscentes mesmo que ocorram sem a clareza da razão e do entendimento: ou então, ainda se poderia dizer que nós, atualmente, apenas não possuímos a lembrança e nem a potência de memória para relembrarmos de nossas ações na vida uterina, mas ainda assim temos a plena certeza que ninguém poderia negar que fomos totalmente responsáveis pelos chutes que demos internamente no útero de nossas mães. O ponto é: algo realmente afeta o temperamento do feto para motivá-lo a se mover; também melhor poderá atestar intuitivamente isso quem já teve a oportunidade de brincar com a barriga de uma mulher grávida ou mesmo de estar grávida.

Caso se queira colocar o movimento dos fetos na conta de uma pura e completa inconsciência, se poderá certamente ter respaldo nas seguintes opiniões de Schopenhauer: “a explanação fisiológica das mudanças do corpo pouco compromete a verdade filosófica[7] que a existência inteira do corpo e a série completa de suas mudanças é apenas a objetivação justamente da vontade”, e também que “cada movimento arbitrário é aparência de um ato da vontade” (HN III, Cap. 5, p. 68 e 69).

Logo nos primeiros dias após o nascimento, os bebês já apresentam as mais diversas expressões capazes de mostrar vários de seus sentimentos, a que expressam da maneira mais clara possível sofrimentos de qualquer tipo, dores físicas, mentais e até mesmo o medo e a raiva[8]. Por que, então, dentro do útero, não poderia haver uma vontade motivada em rolar de um lado para o outro, ou entre coçar a testa ou o nariz? Eu gostaria de negar o que é dito por Schopenhauer se ele realmente acreditava que a cognição e a resposta por motivos possui origem e início exclusivamente no nascimento, como uma ocorrência instantânea (vida uterina = responde a estímulos; a partir do momento do nascimento = responde a motivos), pois a verdade dos fatos parece mostrar o contrário: trata-se, como quase tudo na natureza, de uma mudança gradual e que não vale o mesmo para todos os bebês e fetos de diferentes espécies. Estamos claramente diante da ideia de potencialidade, isto é, mesmo que o feto não seja ainda uma pessoa com todos os direitos e características condizentes a uma pessoa, ele possui a potencialidade para se tornar uma: em consequência disso, não existe, no momento do nascimento, como parece apontar Schopenhauer, uma ocorrência de desenvolvimento cognitivo brusca e instantânea.

Pensando exclusivamente na espécie humana, podem alguns fetos, por diversas causas, terem uma entrada em cena da cognoscibilidade mais rápida do que outros, seja essa estabelecida na vida intrauterina ou não. Como não há uma regra que estabelece qual é de fato o nível de cognoscibilidade de cada feto em cada fase da gravidez[9], há a necessidade de cálculos, leis e direitos para estipular a permissibilidade ou não do aborto, que é objeto de investigação de minha terceira seção, à luz da filosofia de Schopenhauer. Por conseguinte, o argumento da potencialidade parece combater ideias capciosas e radicalmente abortistas que tentam argumentar dizendo que o feto é um organismo entre outros organismos dentro do corpo da mulher e por isso poderia ser comparado a bactérias, vírus e fungos. Derivar-se-ia disso, então, o fato de se ter o direito incondicional de abortar em qualquer fase da gestação. Basta se pensar que nenhuma bactéria possui a potencialidade de se tornar um bebê para se ver a absurdidade de tal ideia. É também capcioso o pensamento que intenta mostrar que ninguém se comove pelos milhares de espermatozoides que não são fecundados enquanto muitos têm sentimentos pelo feto em formação[10], dado que para gerar um único feto, outros milhões de espermatozoides foram sufocados, mas essa é uma maneira muito estranha para se atacar o argumento da potencialidade (há outras formas bem mais coerentes de atacá-lo[11], eu o utilizo aqui, não em prol de me colocar totalmente contrário ao aborto, mas sim em contrariedade ao radicalismo que o assumiria – excluso casos de estupro – até mesmo no último mês de gestação, e também para atacar a possível ideia de Schopenhauer a respeito dos fetos começarem responder a motivos instantaneamente após o nascimento: conto com a boa fé do leitor para compreender essas diferenças e tensões antes de julgar-me conservador). Penso que os espermatozoides perdidos no processo da fecundação são meramente parte de um procedimento natural de seleção, tal como tudo na natureza. Por conseguinte, de nada serve aplicar à discussão, moralizações perversas e radicais para se defender argumentos extremos. Por outro lado, argumentos contrários ao aborto e que levam nossa discussão para o nível metafísico, alegando o surgimento de uma alma no momento da fertilização do espermatozoide com o óvulo são igualmente estranhos. Ideias dessa índole de nada ajudam na compreensão evolutiva do ser humano, pois são formadas por pensamentos supersticiosos e inúteis.

Em relação às diversas causas que podem contribuir para que um feto desenvolva cognoscibilidade mais cedo ou mais tarde do que outros, pode-se mencionar a boa qualidade nutritiva da mãe durante o período gestacional, genes saudáveis herdados dos pais, a saúde física e a capacidade de dormir bem da mãe, e, por fim, de modo especial, vale mencionar que o reconhecimento que os fetos têm da música, da voz dos pais ou de outras pessoas em geral, também se trata de um fator que contribui para seu desenvolvimento cognitivo. Há uma imensa bibliografia científica que estuda a relação entre a mãe e o bebê no período da gestação que aponta para isso". Esses estudos buscam estipular diversas informações referentes às funções cognitivas das bases neurais dos fetos. Um deles aponta que “a corrente sanguínea materno-fetal permite que o feto perceba o estado emocional da mãe em termos endócrinos e concomitantemente aos contornos melódicos realizados pela mãe” (Welch, et al, 2018, p. 205); outro faz uma importante colocação para melhor compreensão disso, dizendo que “a voz materna é a única que vai até o bebê por duas vias: a interna (pelos órgãos) e a externa (pelo ar). Nessa perspectiva, a mãe não precisa se preocupar em saber música ou mesmo em cantar afinadamente, pois essa interação é importante para a construção de vínculos” (Chaves e Wolffenbüttel, 2023, p. 3). A própria filosofia de Schopenhauer, com suas reflexões a respeito da música parece fornecer algum respaldo para melhor compreendermos a relação do feto com a musicalidade e com a voz da mãe. Para tal, leia-se o seguinte excerto do livro três d’O mundo (W I, § 62, p. 302):"

A música exprime não esta ou aquela alegria particular e determinada, esta ou aquela aflição, ou dor, ou espanto, ou júbilo, ou regozijo, ou tranquilidade de ânimo, mas eles mesmos, isto é, a Alegria, a Dor, o Espanto, o Júbilo, o Regozijo, a Tranquilidade de Ânimo, em certa medida in abstracto, o essencial deles, sem acessórios, portanto também sem os seus motivos. E, no entanto, a compreendemos perfeitamente nessa quintessência purificada.

          Se aplicarmos tal ideia aos fetos, perceberemos intuitivamente o quanto eles são influenciados pela música, pois além de ouvi-las externamente pelo ar, ainda são influenciados pela audição interna da voz da mãe, que atinge diretamente seu corpo com a métrica exata do atual temperamento da mãe. Talvez isso até mesmo ajude a explicar a afirmação de Schopenhauer sobre as mães serem responsáveis pela formação e força do intelecto humano, enquanto os pais são responsáveis pela índole moral[12].

Em linhas gerais, quis apenas chamar a atenção para o fato de como a vida intrauterina já pode em certa medida ser considerada um período em que um ser humano é afetado por motivos, ainda que esses sejam parcamente acessados apenas por meio dos sentimentos e da música. Mas em se tratando de motivos, é isso mesmo que os diferem das outras duas formas de causalidade (estímulos e causas em sentido estrito), pois os motivos não necessitam de contato físico para afetarem a vontade e o intelecto: “o motivo tem apenas de ser percebido para produzir efeito, enquanto o estímulo precisa sempre do contato[13]” (G, § 20, p. 125, grifos de Schopenhauer). Portanto, ao que parece, temos um bom argumento para podermos considerar que a música e a voz da mãe exercem uma motivação no intelecto em formação de um feto: uma motivação que cresce potencialmente, conforme avança a gestação. Em decorrência disso, pode-se considerar o corpo do feto também como um corpo possível de cognoscibilidade e a filosofia de Schopenhauer é muito clara em mostrar que apenas são afetados por motivos os seres com poder de cognição. Se isso é ou não suficiente para aplicarmos direitos aos fetos é algo aberto a discussões.

 

2 A sexta rubrica da injustiça em Schopenhauer

As reflexões anteriormente expostas puderam esclarecer parcialmente se um feto pode ser considerado um indivíduo que tem direitos próprios e independentes dos direitos da mãe. Se o feto respondesse apenas a estímulos (tal como uma planta ou um embrião), então dificilmente poderíamos lhe dar algum direito próprio, mas esse, como vimos, não é o caso e nem a minha concepção se o assunto for tratado a partir da ótica de Schopenhauer.

Em Schopenhauer, o direito é a justiça justificada por seu motivo. Mas o que isso significa? Que para o filósofo, a justiça é um conceito negativo dado o intento dela só existir por conta de sua natureza combativa às injustiças (essas, por isso mesmo, positivas), “o conceito de injustiça”, diz ele (W I, § 62, p. 393) “é originário e positivo: o oposto a ele, o de justiça, é derivado [do primeiro] e negativo [...]. Noutros termos, jamais se falaria de justiça se não houvesse injustiça[14]”.

Dizer que o direito é a justiça justificada por seu motivo, significa que se tem o direito de negar a injustiça alheia “com a força necessária para a sua supressão”, podendo até mesmo chegar “até a morte do outro indivíduo, cuja ação danosa, enquanto violência exterior impositiva, pode ser impedida sem injustiça alguma com uma reação poderosa que lhe sobrepõe, por conseguinte, com direito” (idem, p. 394). Agir com direito, em outras palavras, quer dizer agir sem injustiça – mesmo que essa ação pressuponha violência –, pois esta violência só existiu para reagir a uma injustiça anteriormente aferida.

Impedir uma injustiça, portanto, não se trata da negação da vontade (injusta) alheia, mas sim de negação da negação: é o ato de coação para fazer com que a vontade do outro não invada a minha vontade, o que pode ser ilustrado com o que chamamos de direito de defesa, auto de defesa, ou em termos juspositivos, legítima defesa. Nos diz Flamarion Caldeira Ramos (2012, p. 175), que “só posso ultrapassar o limite do direito, que é a vontade alheia, para defender o meu direito de coação (Zwangrecht), que consiste em constranger, pela oposição da força, toda vontade que queira negar a minha”; já Raymon Marcin, argumenta que para Schopenhauer, “um direito é simplesmente a reivindicação moral de não cometer um erro contra alguém” (2006, p. 71); e, enfim, Felipe Durante (2022, p. 62) explica com os seguintes dizeres:

É possível afirmar, de forma até intuitiva, que a ação de se defender de uma injustiça – negar a imposição de uma vontade exterior à vontade própria do indivíduo –, ao ser justificada por um motivo, torna-se um direito – que podemos chamar de direito à legítima defesa, ou seja, de direito de autoconservação –, direito que consiste no fato do indivíduo que sofre a injustiça ser legitimado a negar a negação da vontade imposta a ele com a força necessária para suprimi-la. Isto é, ele tem o direito de afirmar a própria vontade sobre a vontade estranha.

No início do § 62 d’O mundo, Schopenhauer estabelece cinco rubricas para expor as principais injustiças em graus de gravidade decrescente. A primeira e mais grave de todas se trata do canibalismo – ou antropofagia15 –, pois esta é a imagem mais clara da natureza cravando os dentes em si mesma em busca de negação e apropriação do corpo alheio. A segunda, diz respeito ao homicídio, a que, segundo Schopenhauer, é seguido instantaneamente pelo remorso – nesse caso, cabe até mesmo a reflexão de se o aborto considerado como homicídio poderia “instantaneamente” levar o médico obstetra que o faz ou a mulher que o escolhe a sentirem remorso, mas evidentemente nossa intuição diz não ser esse o caso. Em terceiro lugar, segue-se a mutilação intencional, lesão ou golpe no corpo alheio; em quarto, a escravidão e em quinto, atacar a propriedade alheia[15].

Interessa-nos, porém, uma sexta rubrica de injustiça, que não aparece n’O mundo, mas sim, exclusivamente nos manuscritos berlinenses, esta diz respeito à violação das obrigações derivadas das relações sexuais.

O trâmite argumentativo para compreender essa sexta rubrica ocorre assim: segundo Schopenhauer, a natureza deu ao homem vantagens em relação às mulheres; são vantagens relativas às capacidades intelectuais, maior força física e também maior grau de beleza. A natureza também dotou o homem para receber maior satisfação sexual – em um sentido pragmático, do imediato e pouco calculado gozo sexual –, deixando para as mulheres as fardas dores do parto, a gravidez e a amamentação. Dessa desvantagem feminina, decorre que se o homem quisesse fazer valer a sua vantagem mesmo após ter concebido um filho com uma determinada mulher, abandonando-a para afirmar a satisfação desmedida do seu impulso sexual com outras, estaria sendo injusto com a afirmação natural da vontade do indivíduo feminino, especificamente com a mãe de seu filho. Trata-se, portanto, de uma injustiça fundamentada nas diferenças e desigualdades naturais dos sexos:

Se o homem não quiser cometer injustiça em sua gratificação sexual, deve prometer à mulher que se dedica à sua gratificação durante o curto período de seu encanto (do 16º ao 30º ou 35º ano, dependendo do clima), nunca deixá-la e compartilhar com ela o cuidado de sua manutenção enquanto ela viver, para que ela não fique desamparada se lhe faltar o encanto para atrair os homens. Além disso, ele deve assumir o cuidado das crianças após o período de amamentação, pois tem a maior força. Toda satisfação sexual sem assumir essa obrigação é errada, ou seja, é a afirmação da própria vontade por meio da negação da vontade do outro que aparece no indivíduo feminino. Dessa obrigação do homem decorre necessariamente a obrigação da mulher de ser fiel a ele, ou seja, de não satisfazer a nenhum outro homem, pois de outra forma os filhos não seriam certamente seus: mas como a mulher tem um instinto sexual como o homem, assim, novamente, da obrigação da mulher de ser fiel a ele decorre também a obrigação do homem de ser fiel a ela[16] (HN III, Relações sexuais, p. 133 e 134).

Para o filósofo, essa ideia nasce do direito natural, embora ela não deva ser levada às últimas consequências, concebendo que a monogamia seja também uma ocorrência natural e primitiva. O que ele diz é que no direito natural há apenas a obrigação do homem de se manter unido com uma mulher enquanto ela ainda for atraente aos seus olhos e em condições de satisfazer seus impulsos sexuais, persistindo, porém, “a obrigação de cuidar da esposa enquanto ela viver e dos filhos até que eles cresçam” (p. 134). No entanto, não cabe deduzir do direito natural nenhuma obrigação por parte do homem em manter uma mulher que não pode mais ter filhos e nem o satisfazer sexualmente. Parece não ocorrer a Schopenhauer que os homens também podem se tornar feios, decadentes e muito pouco atraentes para as mulheres. Nesse sentido, cabe dizer que suas opiniões amplamente misóginas destacadas especialmente em Parerga e paralipomena são realmente lamentáveis e passíveis de total condenação por qualquer pessoa minimante sensata e moralmente sã18. Certamente, aquelas opiniões só são relativamente perdoáveis pelos preconceitos sociais ainda vigentes no século XIX. Com razão, diz Holbach (2010, p. 804), que mesmo “as pessoas mais esclarecidas quase sempre estão, em algum aspecto, presas aos preconceitos universais”. Mas para nos atermos à Metafísica dos costumes, segue Schopenhauer dizendo que a satisfação sexual e a beleza prevalecem por um tempo maior no homem do que na mulher, servindo isso de fundamento para dizer que caso o homem tenha condições financeiras, não cometerá nenhuma injustiça se fazer tornar mãe, outra mulher, mais jovem e mais atraente, desde que tenha condições de sustentar “duas esposas enquanto ambas estiverem vivas e cuidar de todos os filhos” (HN III, Relações sexuais, p. 134, grifo meu).

Talvez, diante dessas reflexões de Schopenhauer estamos validados a pensar que a mulher teria o direito natural de não respeitar a fidelidade e cometer traição sem cair na injustiça da sexta rubrica caso seu parceiro sexual masculino seja infértil, dado que sua única obrigatoriedade é a de ser fiel para não colocar em risco a certeza da paternidade.

Mas o que realmente diz respeito da relação dessa rubrica com o nosso ponto de reflexão sobre o aborto é que talvez resulte em contrariedade das faculdades naturais pelo qual a natureza dotou as mulheres – isto é, a capacidade de engravidar e amamentar –, a concepção de que o aborto voluntário e premeditado seja antinatural, e, por conseguinte, fora da esfera do direito natural. Assim, ao aplicarmos às mulheres a rubrica das obrigações sexuais derivadas das relações sexuais não as limitaríamos apenas ao ato de “ser fiel” ao esposo para garantir a segurança da paternidade, mas também ao compromisso de nunca optar pelo aborto em nenhuma circunstância, dado que essa seria sempre uma escolha injusta e antinatural.

Mas há ainda uma forma de aprofundarmos a discussão se mencionarmos que as rubricas das injustiças expostas por Schopenhauer, muitas vezes podem ser de natureza mista e pertencer a várias [rubricas] ao mesmo tempo” (HN III, Relações sexuais, p. 132, grifo meu). É exatamente esse o caso ao considerarmos o aborto por estupro, conforme faremos na sequência, dado que este talvez seja o único entre todos os tipos de aborto pelo qual Schopenhauer não discordaria.

3 Dos diferentes tipos de aborto e gravidezes

I) Condição de gravidez indesejada adquirida por meio de estupro: abortar, neste caso, pode ser entendido pelos seguintes pontos: i) que o aborto é uma injustiça, pois a ação de abortar está combatendo o feto (por meio do homicídio) e não a ação injusta que o gerou (o abuso sexual e a vontade do abusador). No entanto, esse ponto de vista parece ser mais bem fundamentado quando pensamos que abortar, neste caso, não é uma injustiça porque ii) a condição de gravidez foi adquirida por uma violação que não se limita apenas ao seu ato primordial, isto é, a ação do abuso sexual, mas também em suas consequências, entendendo assim o feto como extensão da vontade do estuprador.

Quer dizer que o feto em desenvolvimento é uma mera consequência da vontade violentadora alheia e, por isso mesmo, o aborto, neste caso, é apenas uma negação da negação, ou, em outras palavras, uma reação de defesa tardia contra o resultado da ação do estuprador. O argumento da potencialidade não poderia justificar a violência sexual anteriormente sofrida porque as ideias que fundamentam o mantimento da gravidez por estupro caminham ao lado de superstições e da religião, e, portanto, inválidas para o campo jurídico e científico. Além disso, ser indiferente ou contrário ao aborto por estupro, significa também assentir à violência sexual.

É claro que se pode ainda reservar alguma contra-argumentação dizendo que o feto não deve ser punido pelo erro da vontade alheia (o estuprador e também seu pai), mas isso de forma alguma pode negar que a própria existência desse feto não represente uma injustiça quanto ao corpo violentado de sua mãe. Além disso, na graduação das seis injustiças de Schopenhauer, a violação ao corpo alheio ocupa a terceira posição e o homicídio ocupa a segunda posição. Assim, poder-se-ia talvez, a partir da ideia de conceder direitos ao feto – mesmo em caso de gravidez por estupro – conceber o aborto como uma injustiça maior do que a da violência do estuprador. Mas essa argumentação não funcionaria para Schopenhauer porque devemos nos lembrar de que se tem o direito de matar para se defender do ataque injusto. Uma situação semelhante ao aborto seria pensarmos no seguinte exemplo: alguém nos joga em uma jaula com um leão faminto, temos, pois – na impossibilidade de responsabilizar aquele que nos jogou na jaula – o direito de atacarmos o leão, dado que ele representa um risco para nossa vida. Do mesmo modo, a gravidez por estupro coloca a mulher em uma prisão da qual ela é inquestionavelmente a vítima. Essa é uma ideia parecida com a utilizada pela filósofa estadunidense Judith Thomson, no supracitado artigo A defense of abortion (1971), tendo em vista o experimento mental do violinista famoso. Thomson pede ao leitor para imaginar que subitamente acorda conectado a um violinista famoso que precisa de seus rins para sobreviver. Essa situação seria análoga ao caso de uma gravidez forçada, porque na verdade conectaram seus rins ao do músico famoso sem o seu consentimento. Thomson argumenta que mesmo que o violinista tenha direito à vida você não é moralmente obrigado a permanecer conectado a ele, pois isso infringe seu direito de controle sobre seu próprio corpo. Assim, na impossibilidade de responsabilizar quem lhe colocou forçadamente em tal situação, você não agiria injustamente caso se desconectasse do violinista, mesmo que isso causasse a morte dele.

Ainda que uma mulher escolha seguir com a gravidez fruto de um estupro e depois ame incondicionalmente seu filho, não podemos deixar de pensar que em uma perspectiva schopenhaueriana, o próprio corpo desse filho é a representação da injustiça objetivada. Em se tratando do aborto por estupro, estamos diante de um direito para conter a terceira rubrica, isto é, a lesão injusta causada no corpo alheio, sendo que, por analogia, poderíamos compreender o feto, fruto do sêmen do estuprador, como uma cicatriz de uma lesão corporal causada por um agressor.

Embora Schopenhauer esteja bem longe de conseguir dar conta da discussão contemporânea a respeito das legislações de diversos países em relação ao limite de meses da gestação que o aborto em caso de estupro possa ocorrer, poderíamos, talvez, alocá-lo nessa discussão voltando ao que eu disse na primeira seção, sobre o rolamento do feto e a agitação musical parecerem ser respostas a motivos (pois esses pressupõem cognição), e dizermos que o aborto por estupro estaria permitido, não por um tempo limite da gravidez, mas antes do momento em que um feto começasse a pular, rolar e chutar, seja em decorrência de um incômodo sentido ou em resposta a uma felicidade auditiva, pois a partir do momento em que o feto começa a manifestar essas ações, não teríamos mais o direito natural de abortá-lo sem cometer injustiça: ele já entende o que é dor e prazer, o que é mexer para um lado e para o outro e – ao menos excluindo linhas de raciocínio metafísico – que nada tem a ver com o destino e com a crueldade do mundo, que fez com que seu pai fosse o próprio estuprador de sua mãe. Em uma linguagem schopenhaueriana, poderíamos dizer que, assim que a capacidade de receber motivos aparece em um intelecto, o feto então deixaria de ser a extensão da vontade do abusador; ainda poderíamos punir o estuprador, mas não mais o resultado de sua ação, isto é, o feto. Do mesmo modo, poder-se-ia dizer que não podemos punir um pai pelas injustiças cometidas pelo filho; punir um inocente no lugar de um culpado; o leão ao invés do homem injusto que nos jogou na jaula; o violinista famoso ao invés daquele que nos conectou a ele, etc. Em todo caso, derivar opiniões de terceiros a respeito de assuntos que eles nada disseram permanecerá sempre um empreendimento difícil e obscuro.

II) Condição de gravidez indesejada adquirida por sexo consensual: quando, por descuidos ou deslizes quanto ao uso de anticoncepcionais uma mulher – ou um casal – engravida, minha reflexão de índole schopenhaueriana parece não mais aceitar, como no primeiro caso (I), o aborto como não sendo uma injustiça. Pode-se argumentar por diferentes meios para tentar justificar o aborto na indesejabilidade da mulher ou mesmo nas faltas de condições estruturais (sociais, financeiras, familiares, etc.[17]) para se criar o filho, mas certamente será impossível justificá-lo com base em um direito natural. Dado que não houve nenhuma afirmação injusta da vontade, então também não pode existir o direito de abortar. Isso não poderia ser válido mesmo se se quisesse recorrer às formas de aborto, dizendo que, a depender da forma como se abortasse, não haveria injustiça.

Para tal, devemos nos ater a como exatamente um feto é abortado. Excluindo os abortos espontâneos, temos os abortos medicamentosos e os diversos métodos de aborto cirúrgico: aspiração por sucção, dilatação do útero seguida de remoção do feto, aborto por histerotomia, etc. Todos eles são formas de indução ou violação direta do corpo do embrião ou do feto, portanto, nenhum desses métodos pode ser considerado justo ou justificado pelo seu motivo, isto é, a relação sexual consensual que levou até a gravidez (neste caso, indesejada). Ocorre, porém, que o referido descuido não pode ser motivo para fundamentar o aborto como negação da negação, pois, obviamente o ato sexual inicial não foi injusto, mas desejado e consentido. Em todo caso, alguém poderia tentar fundamentar o aborto em outros motivos que não a injustiça da vontade violadora, recorrendo ao argumento do valor da vida em Schopenhauer – refiro-me a tese de que a não existência seria preferível a existência[18] –, mas eu responderia a isso dizendo que o feto já existe e vive, tal como nós estamos vivos e existindo. Além disso, se assim procedermos, estaríamos nos distanciando da doutrina do direito do filósofo.

Ainda considerando o sexo consentido que se resultou em gravidez, tendo em vista os casos de homens que abandonam mulheres grávidas, seja por medo, mau-caratismo ou receio da paternidade, temos então de lhes aplicar a sexta rubrica da injustiça, pois esses certamente estariam violando a natureza – supostamente inferior – da sexualidade feminina, ao não se comprometerem com os cuidados da mulher gestante, ainda que não assuma com ela um matrimônio ou qualquer tipo de união afetiva estável.

Schopenhauer não deixou claro e nem se preocupou em como resolver a presente questão, mas é presumível que não tendo o homem firmado nenhum contrato afetivo com a mulher que engravidou por sexo casual, também não comete ele nenhuma violação contra as obrigações derivadas das relações sexuais, desde que ainda mantenha em dia a sua responsabilidade paterna[19]. Por outro lado, se formos nos manter firmes ao que é atribuído na sexta rubrica, então podemos estender a reflexão e conceber que o homem que quer permanecer justo com a paternidade, pode até mesmo agir coercitivamente contra a mulher grávida de seu filho, assim que perceber nela práticas de ações que revelem a intenção de realizar o aborto de seu futuro descendente. Esse direito de coagir está fundamentado na proteção da prole, que é, por assim dizer, seu dever natural. Um argumento certamente absurdo, mas aparentemente possível tendo em vista os dizeres de Schopenhauer.

III) Gravidez desejada e adquirida por sexo consensual: dificilmente uma gravidez desejada irá levar uma mulher a considerar o aborto, no entanto, há casos específicos em que isso pode ocorrer, por exemplo, quando se descobre que o feto possui uma doença comprometedora para sua própria saúde e bem-estar ou quando se trata de uma gravidez de risco para a saúde da mulher. Consideraremos esses dois casos. No primeiro deles, se o feto está com a saúde comprometida (anomalias, problemas cognitivos e congênitos, distúrbios metabólicos, etc.), e isso representa uma condição problemática para a sequência de sua vida uterina bem como para a sua vida pós-uterina, estaria, nesse caso, a mulher que faz o aborto, praticando uma injustiça? Sem relativizarmos, podemos responder simplesmente que sim, trata-se de injustiça, pois o aborto pressupõe violação do corpo alheio e na concepção desse feto não houve nenhuma vontade violadora. Mas, queiramos aqui, tentar uma solução igualmente schopenhaueriana. Ao tratar sobre a razão prática e os estoicos, Schopenhauer escreve o seguinte: “Todas as vezes que alguém perde o controle ou sucumbe aos golpes da infelicidade, ou se entrega à cólera, ou se desencoraja mostra justamente que concebe as coisas de maneira diferente do que esperava” (W I, § 16, p. 104)[20]. Por isso, podemos pensar que uma grávida que tem um feto doente em seu ventre, embora este não lhe represente risco para sua própria saúde, então, ao considerar o aborto, estará precisamente fazendo um cálculo sensato para sua razão e bom mantimento de sua qualidade de vida.

Desconsideremos, nesse cálculo, os mais profundos sentimentos maternos que obviamente a mãe possa sentir por seu filho e por tudo que a condição de gravidez possa proporcionar de alegrias em sua vida (presentes, felicitações de terceiros, pré-natal, maior união do casal, etc.). Ocorre que, ao ter consciência de que seu filho sofre de alguma doença, a grávida é surpreendida e tem de considerar o aborto. Nesse cálculo há um grande sofrimento que, quando levado à escolha do aborto, pode, talvez, ser justificado por esse próprio sofrimento, embora permaneça injustiça por conta da violação do corpo alheio. No caso do homem que concorde com o aborto realizado pela sua esposa, recorre-se ainda a injustiça derivada das obrigações das relações sexuais, dado que a sexta rubrica pressupõe o cuidado irrestrito dos filhos, independentemente de esses serem saudáveis ou não. Ora, basta pensar que Schopenhauer não diz nada a respeito da saúde dos filhos, mas sim apenas que o homem tem a obrigação moral e natural de ampará-los – como já vimos – “até que eles cresçam” (HN III, Relações sexuais, p. 134). Também vale mencionar que cuidar dos filhos não se trata apenas de uma obrigação, mas também é uma questão de honra sexual[21]. A meu ver, a partir da ótica de Schopenhauer, os pais que optam pelo aborto, mesmo no caso de o feto apresentar uma condição de saúde comprovadamente vulnerável, ainda assim cometem uma injustiça, e a única forma de os livrarmos schopenhauerianamente disso seria recorrendo à teoria dos motivos e estímulos, se pudéssemos de fato comprovar que determinado feto a ser abortado possui uma condição de saúde tão degradante que não pode responder a motivos. É o que ocorre nos casos de anencefalia[22], pois evidentemente o intelecto que tem seu núcleo de receptividade dos motivos no cérebro não poderia responder a motivos nos casos de fetos anencefálicos.

Desconsiderados os casos das deficiências mais graves que excluem a capacidade de resposta aos motivos, há de se considerar que o sofrimento de um feto doente, seja ele qual for, certamente não pode ser um fundamento schopenhaueriano para validação do aborto. Mas queiramos pressupor que a própria vida dessa criança, ao nascer, poderá ser muito limitada pela sua própria condição. Ela poderá passar uma vida inteira de dores e com isso levar também sofrimento para seus pais, enquanto que, ao optar pelo aborto, essa mesma família poderia tentar outra gravidez.

Ser surpreendido por algo “diferente do que esperava” (§ 16), tal como diz Schopenhauer – e podemos aplicar isso a um casal que aguarda um filho doente –, coloca-nos normalmente em uma condição de indecisão quanto ao aborto e sofrimento pelo nosso próprio futuro e pelo da criança a ser gerada. Considerando puramente a doutrina do direito de Schopenhauer – e também aceitando a minha ideia de ser possível atribuir direitos parciais ao feto – deve-se notar que ela não diz respeito ao sofrimento, mas sim ao agir (isso porque apenas a ação é considerada exteriorização da vontade e não o sofrimento). Diz o filósofo, que é apenas de maneira indireta que o sofrimento “pode ser considerado pela moral, a saber, tendo em vista provar que aquilo que se faz com o fim de evitar o sofrimento de uma injustiça de modo algum é prática de injustiça” (W I, § 62, p. 397). Isso aplicado em nosso caso, poderia nos levar até a errônea conclusão de que evitar o sofrimento futuro de um feto doente, abortando-o, não seria uma injustiça, mas de novo temos de retornar à ideia de não violação, dado que estamos tratando de gravidez desejada e adquirida por sexo consensual. Não há nenhuma injustiça na existência e na concepção de um feto doente, por mais que sua vida futura venha a ser repleta de dores e de sofrimentos. Fundamentar o aborto na indesejabilidade de um sofrimento futuro maior, não parece, portanto, um bom argumento para que a teoria da justiça schopenhaueriana o aceite.

Consideremos agora os casos em que a gravidez representa um risco para a própria saúde da mulher, embora nenhum risco para o feto, sendo este totalmente saudável. Trata-se de uma situação delicada e de decisão complexa. Em termos schopenhauerianos, talvez pudéssemos dizer que essa mulher se encontre diante de uma decisão não apenas individual, mas uma decisão para toda a espécie, pois, em certo sentido, seguir com a gravidez representaria a continuidade da vida da espécie, mas não seguir – por meio do aborto –, significaria findar a continuidade da espécie em proveito da própria vida. O meio-termo seria arriscar continuar a gravidez de risco e o parto, podendo, é claro, continuarem vivos, tanto a mãe quanto o filho. No entanto, optando essa mulher pelo aborto, comete ela injustiça por pensar em proteger a própria vida ao invés da vida do seu futuro filho?

O motivo que justificaria o seu direito pelo aborto, nesse caso, seria a sua condição de risco, mas essa se trata de uma condição gerada dentro do seu próprio corpo e não de uma violação externa, por uma vontade alheia. Por isso, o aborto seria uma negação da negação à própria condição de risco, possuindo uma dupla forma de compreensão: uma espécie de automutilação contra o feto (se o considerarmos como extensão da vontade do corpo da mulher) ou uma espécie de cura contra uma doença (se o considerarmos como uma parte distinta do corpo da mulher).

A meu ver, não importa como compreendamos, na ótica da teoria do direito schopenhaueriana prevalece ainda a injustiça, pois o feto não pode ser responsabilizado por ser o causador da doença da mulher, ainda que sem ele a mulher possa ter mais chances de ter uma vida saudável. Para que o feto pudesse ser responsabilizado pela doença de sua mãe, sua cognição teria de ser tão altamente desenvolvida a ponto de que ele a pudesse ferir arbitrariamente, mas o efeito que ele causaria em sua mãe, promovendo a ela, fraquezas, doença e mal-estar, representaria para ele muito mais um dano do que um bem dado que ele é totalmente dependente dela não só para nascer, mas também para se desenvolver e sobreviver aos primeiros anos de vida.

Em um caso como esse, seria uma resolução muito mais schopenhaueriana que a mãe doente que carrega em seu ventre um filho saudável negasse a sua própria existência e bem-estar em prol do nascimento de seu filho sem jamais cogitar o aborto e requisitando que o homem, seu parceiro sexual e futuro pai, não cometa a injustiça ensinada pela sexta rubrica e cuide do filho, mesmo que ela venha a morrer no parto ou logo após a ele.

4 Finalização e breves considerações metafísicas

Voltemos à questão inicial do texto: na perspectiva de Schopenhauer, o aborto pode ser considerado injustiça? A resposta, como vimos, é bastante variável e polêmica.

Vimos acima que em um ponto de vista schopenhaueriano, é possível existir uma concordância com o aborto em se tratando da condição de gravidez por estupro ou na gestação de fetos anencefálicos. No primeiro caso poderíamos considerar o feto como uma extensão da vontade violadora do estuprador e, no segundo, como um ser que não responde a motivos: se considerássemos injustiça o aborto de bebês com anencefalia, teríamos também de aplicar às plantas (que segundo Schopenhauer respondem apenas a estímulos) a ideia de violação da vontade alheia: assim, quem comesse uma planta praticaria violência e, por conseguinte, injustiça, o que é absurdo.

Na perspectiva schopenhaueriana, para tratarmos a respeito da gravidez, do feto e da maternidade em geral, também somos convidados a fazermos menções à metafísica. Se na metafísica do amor sexual é ensinado que temos o começo de nossa existência na Terra a partir do momento que os olhares apaixonados de nossos pais se encontram[23], então como isso ficaria nos casos de gravidezes adquiridas por sexo não consensual? Talvez apenas Machado de Assis tenha chegado próximo de responder a essa questão, quando fantasiou a respeito da metafísica do amor sexual de Schopenhauer em sua crônica O autor de si mesmo. Na voz de “Artur”, explicando a vida do menino Abílio – que morreu abatido numa estrebaria a duras bicadas de galinha – diz Machado: “Foi a tua ânsia de vir a este mundo [Abílio], que [ligou os seus pais] sob a forma da paixão e de escolha pessoal. Eles cuidaram fazer o seu negócio e fizeram o teu” (1959, p. 380). Se somos responsáveis pela união de nossos pais, conforme ensina a metafísica do amor de Schopenhauer, então isso deve prevalecer também no caso do estupro, dado que o ser humano fruto de estupro, enquanto ideia platônica (fora do tempo), teve ainda de iludir seu pai a se atrair brutal e violentamente pela sua mãe, para que ele pudesse nascer. Ou poderíamos presumir que, metafisicamente falando, a criança fruto de abuso sexual, enquanto ideia fora do tempo, era essencialmente má, e por ser má, fez com que seus pais a concebessem pelo abuso e pela injustiça paterna ao invés de ter tido a capacidade de os iludirem pelas mil manobras da sedução e do amor, etc., etc.

Embora essa reflexão amplamente abstrata e metafísica possa ser pouco esclarecedora, parece ser exatamente o que se pode concluir de uma discussão schopenhaueriana, dado que o filósofo não diz quase nada sobre abuso sexual ou aborto. Das vezes que ele usa expressamente a palavra aborto, normalmente é para dizer que a vida pode continuar mesmo nas crianças que nasceram sem cérebro ou para mencionar a defesa de Aristóteles, quando este recomenda o aborto em se tratando de progenitores muito velhos que prejudicariam a espécie inteira caso concebessem uma criança, já que ela poderia nascer fraca e doente: isso é mencionado no Apêndice da Metafísica do amor sexual[24], ocasião em que Schopenhauer tentava fornecer uma explicação natural e lógica para a alta ocorrência do fenômeno da pederastia na Grécia Antiga.

Enfim, é justamente pelo fato de Schopenhauer não ter dito quase nada sobre um assunto tão polêmico e atual – até onde minha visão pôde alcançar, nem mesmo em suas cartas nada sobre isso é mencionado –, que os leitores do presente texto poderão, a partir dele, propor outras interpretações, sejam discordando das minhas ou ao menos concordando parcialmente com elas. Em todo caso, parece-me que antes de tudo é sempre preciso tratar da discussão sobre a natureza do corpo do feto, que talvez poderia ser schopenhauerianamente pensado de forma diferente da que propus.

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Contribuição de autoria

1 – Antonio Alves Pereira Junior

Doutorando em Filosofia pela Universidade Estadual de Londrina

https://orcid.org/0000-0001-9284-0864 • antonio.alves.pereira@uel.br

Contribuição: Escrita – Primeira Redação

Como citar este artigo

PEREIRA JUNIOR, A. A. Na perspectiva de Schopenhauer, pode o aborto ser considerado injusto? Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria - Florianópolis, v. 15, n. 1, e88225, p. 01-29, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378688225. Acesso em: dia mês abreviado. ano.



[1] Cf. N, 2018, p. 139.

[2] Sobre as referidas três formas de causalidade, seus detalhes e pormenores, confira: Alves, “A liberdade intelectual em Schopenhauer”, Cap. 2, seção 2.1: Sobre a primazia da vontade pela via das três formas de causalidade, 2023, p. 92-112.

[3] Cf. W II, Cap. 12, p. 154.

[4] Consulta do texto original da Metafísica da natureza (Edição Meiner, 2019, p. 159-160).

[5] Cf. Frias, 2013, p. 39.

[6] Cf. Moore, 2008.

[7] Embora nesse trecho não seja mencionado, está clara a alusão à expressão grega a que ele recorre constantemente, κατ’ ξοϰν, já explicada acima, bem no início.

[8] Cf. Darwin, 2009, p. 132-134.

[9] Estou ciente de que há diversas pesquisas científicas que tentam definir qual a fase de desenvolvimento corporal e cognitivo de um feto consoante o tempo da gestação. Mas o ponto de dificuldade não é estipular métricas universais de desenvolvimento, mas sim saber realmente o grau de evolução individual cognitivo de cada feto particular em cada caso isolado. O problema é tão complexo que, mesmo em países que permitem o aborto, não há uma concordância com a fase limite da gestação em que este pode ocorrer. Além disso, as discussões e legislações sobre esse limite são muito voláteis e normalmente seguem e se moldam segundo a ideologia que esteja com o poder do Estado nas mãos.

[10] Cf. Greer, 1987, p. 183.

[11] O argumento da potencialidade não consegue se defender da ideia de ruindade da morte. Ele representa uma resposta simples na discussão do aborto, estabelecendo que quanto mais suposto tempo de vida alguém tem, também mais potencial de vida e de futuro teria, portanto, sua morte possuiria um valor pior. Isso significa dizer que a morte de um embrião (que compete até a oitava semana de gestação, como eu disse pouco acima) seria pior do que a morte de um feto de seis meses; que a morte de um recém-nascido seria pior do que a morte de uma criança de dez anos. Mas essas são duas afirmações absurdas para nossa intuição. Por outro lado, a ideia de ruindade da morte pode apresentar uma resposta complexa em contraposição ao argumento de potencialidade, apontando que o valor da vida muda em decorrência de vários fatores relacionados aos valores sociais, pessoais e instrumentais que alguém representa, sendo por isso, bem mais complexo que o mero cálculo por idade e pelo suposto maior tempo potencial de futuro a ser vivido. Assim, a morte de um feto de oito meses é pior do que a morte de um ou de vários embriões; a morte de uma criança de dez anos, pior do que a de um recém-nascido; a de um adolescente, pior do que a de uma bebê de um ano, etc. (Cf. Frias, 2013; Frias, 2012).

[12] Cf. W II, Cap. 44. Considere-se, nesse caso, a presente e marcante distinção entre o intelectual e o moral em toda a filosofia de Schopenhauer.

[13] Ver mais a respeito disso em: E I, III, p. 59.

[14] Cardoso (2008) explica tal acepção de justiça entendida como negativa, dizendo que Schopenhauer não pretendia “uma apreciação axiológica negativa da justiça e positiva da injustiça, mas sim a constatação pura e simples de que o direito é apenas a negação do não direito, da injustiça [...] Não se trata, de forma alguma, de uma avaliação valorativa” (p. 119).

15 A palavra “antropofagia” não aparece n’O mundo, mas exclusivamente na Metafísica dos costumes (Cf. HN III, Seis rubricas de injustiça, p. 131). A diferença mais clara entre canibalismo e antropofagia é que o primeiro também pode ser compreendido em espécies não humanas, enquanto a segunda é exclusivamente para pensar o consumo da carne humana pelo próprio ser humano, por vezes considerada sob aspectos ritualísticos, culturais e simbólicos.

[15] Cf. W II, § 62, p. 389.

[16] Confira também os breves comentários sobre a sexta rubrica no artigo “Der Begriff des Unrechts bei Schopenhauer [O conceito de injustiça em Schopenhauer]” (1993, p. 106), escrito pelo jurista alemão V. G. Küpper. Ver também: Durante, 2022, p. 52-53.

18 Diz Cartwright (2005, p. 190): “Schopenhauer é bem conhecido por sua misoginia, vários comentaristas atribuem isso ao seu relacionamento infeliz com sua mãe e por sua incapacidade de estabelecer um relacionamento sexual saudável com uma mulher”.

[17] Eu gostaria de deixar muito claro que tenho ciência que vários dos tópicos tratados no presente artigo podem soar muito estranhos para o contexto contemporâneo da discussão do aborto. Espero realmente que os leitores entendam que tentei tratar o tema a partir da teoria da justiça de Schopenhauer e sem a intenção de que isso soe como definitivo para pensar os problemas de nossos dias. Com a citação a seguir, do livro O que é aborto (1985) escrito por Danda Prado, tenho a intenção de me alinhar a um posicionamento que estou em total acordo. Ela nos diz o seguinte: “As mulheres são ideológica e culturalmente educadas para se casar e ter filhos, como objetivo máximo a ser alcançado. Isso está inscrito sob todas as formas na educação, no lazer e nos meios de comunicação que as rodeiam. As barreiras à contracepção e à proibição do aborto são apenas as formas mais extremas utilizadas no intuito de obrigar as mulheres a terem crianças, e a culpabilizá-las por recusarem esse destino” (p. 82).

[18] Cf. W II, Cap. 46, p. 688.

[19] Da biografia de vida do próprio Schopenhauer, pode-se mencionar o caso que teve com uma trabalhadora doméstica e que resultou no nascimento de uma criança que viveu por poucos dias. Se presumirmos que ele agiu de maneira justa e em conformidade com seus escritos, ele não cometeu nenhuma injustiça, dado que se dispôs a se responsabilizar financeiramente pelos cuidados da criança (Cf. Safranski, 2011, p. 452-453 e também Cartwright, 2010, 343-344).

[20] Confira mais a esse respeito em: Alves, 2024.

[21] Cf. Aforismos para sabedoria de vida, isto é, PP I, 2002, p. 81-83. Embora a discussão sobre esse assunto que compõe os Aforismos seja de uma natureza um pouco diferente porque a argumentação naquela ocasião diz respeito aquilo que se representa para os outros e não sobre direito e justiça, há, certamente, naquilo que Schopenhauer chama de honra sexual algumas semelhanças diretas e claras com a sexta rubrica exposta nas notas de aulas da Metafísica dos costumes.

[22] Má formação ou nenhuma formação cerebral do feto durante a gestação.

[23] Cf. W II, Cap. 44, p. 640. Curiosamente, vale considerar que essa excêntrica ideia de Schopenhauer parece ser capaz de explicar apenas a primeira progenitura de um casal, exceto se pudéssemos aplicar a ela a ideia de que todos os filhos sequentes já teriam o início de sua existência no momento em que o olhar dos pais se encontraram pela primeira vez.

[24] Idem, p. 671.