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Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 15, esp. 1, e88215, 2024
Submissão: 11/07/2024 • Aprovação: 07/11/2024 • Publicação: 01/12/2024
1 A METAFÍSICA DOS COSTUMES E O EMBATE COM A ÉTICA DE KANT
Schopenhauer: Sociedade e Cultura
O fato da consciência moral na preleção sobre Metafísica dos Costumes de 1820 de Arthur Schopenhauer
The fact of moral consciousness in Arthur Schopenhauer’s 1820 lecture on the Metaphysics of Morals
Eli Vagner Franscisco RodriguesI
IUniversidade Estadual Paulista (Unesp), São Paulo, SP, Brasil
RESUMO
Palavras-chave: Metafísica dos costumes; Moral; Ética; Consciência moral
ABSTRACT
on the text of the translation of the lecture on the metaphysics of customs released in June 2024 by the publisher of Unesp, I present an examination of the concepts of “Gewissensangst” and “Reue” as counterpoints to the concept of moral law. It is intended to demonstrate that Schopenhauer, when affirming the existence of a moral meaning for human actions, indicates the feeling of remorse as the basis for such meaning and legitimacy of morality, vehemently denying the possibility of a doctrine of duty based on the idea of a moral law, thus opposing Kantian ethics. This opposition permeates the entire text of the metaphysics of morals, appearing as a topic in the 1820 lecture.
Keywords: Metaphysics of costums; Morals; Ethics; Moral conscience
1 A Metafísica dos costumes e o embate com a ética de Kant
As considerações que apresento neste texto se originaram no trabalho de tradução da preleção sobre a Metafísica dos Costumes de Arthur Schopenhauer (Vorlesung über Die gesamte Philosophie oder die Lehre vom Wesen der Welt und dem menschlichen Geiste. 4 Teil Metaphysik der Sitten) que efetuei nos anos de 2022 e 2023 através de um projeto Fapesp (Auxílio regular à pesquisa). A tradução foi baseada na nova edição alemã das Preleções de Berlim de 1820 publicada pela Editora Felix Meiner, que contou com trabalho de edição do professor Daniel Schubbe[1] A tradução para o português foi lançada em junho de 2024 pela editora da Unesp.[2]
Schopenhauer recebeu sua Venia Legendi[3] no ano de 1820 e lecionou na Universidade de Berlim no mesmo ano. Embora tenha continuado a anunciar suas aulas até o semestre de verão de 1822 e depois novamente no semestre de inverno de 1826 e 1827, até o semestre de inverno de 1831/1832, sua única atuação como professor universitário foi no verão de 1820. Para esse curso, Schopenhauer elaborou um plano de aulas que corresponde, em sua estrutura e conteúdo, à sua obra capital “O mundo como vontade e representação” lançado em 1818/19. As preleções[4] apresentadas por Schopenhauer na Universidade de Berlim versam, portanto, sobre a Teoria de toda a Representação, Pensamento e Conhecimento; Metafísica da Natureza; Metafísica do Belo e Metafísica dos Costumes. São quatro textos longos nos quais o filósofo apresenta uma síntese de seu pensamento.
O que desperta um legítimo interesse pelos textos das preleções é o fato de que em algumas passagens do texto adaptado para a sala de aula o filósofo elabora suplementos e explicações adicionais para suas teses e hipóteses. Schopenhauer preparou o conteúdo das preleções de maneira a apresentar sua filosofia de forma mais acessível do que na obra principal.
Um elemento de contexto histórico e biográfico não pode ser deixado de lado na apreciação e recepção dos textos das preleções. É notório que Schopenhauer tenha escolhido o mesmo dia e horário das aulas proferidas por Hegel na Universidade de Berlim no ano de 1820 e este fato aponta para uma tentativa de contraposição ao hegelianismo vigente na época. Contraposição que Schopenhauer deixa bastante clara em diversas passagens de sua obra e que no texto da metafísica dos costumes aparece em alguns momentos sobretudo na comparação entre a abordagem da filosofia e de seu ensino, opondo história da filosofia ao que ele denomina como filosofia autêntica. Vale notar que no mesmo ano Hegel lecionava as suas preleções sobre a história da filosofia.[5]
Esta contraposição é apenas indicada em duas passagens e não é amplamente desenvolvida, mas aparece, a meu ver, como um dos elementos de polêmica que o filósofo pretendeu imprimir às suas aulas em Berlim. O que nos leva diretamente para o tema específico deste texto, a saber a polêmica com Kant.
A abertura do texto da metafísica dos costumes constitui-se como uma direta oposição à filosofia prática kantiana. Essa oposição, diferentemente das insinuações que tinham o hegelianismo como alvo, aparece, no caso da ética de Kant, de maneira direta, sistemática e fundamentada por uma hipótese que aponta para o que denominamos aqui como o “fato da consciência moral” em oposição às ideias de lei moral e de dever incondicionado. O projeto do texto da preleção sobre a metafísica dos costumes, de maneira geral, o objetivo de sua aula, seria, como verificamos no capítulo intitulado
“O propósito de minha ética”. “Para explicar este fato: Meu tema é elevar o que é meramente sentido ao conhecimento claro. Nenhuma doutrina do dever. Nenhum princípio moral geral (universal). Nenhum dever incondicionado.” (Schopenhauer, 2024, pág. 21).
A hipótese de Schopenhauer, seu propósito e intenção (Absicht) é demonstrar que é possível apresentar um substituto para o conceito de lei moral. Esse substituto é um sentimento (Gefühl) e não uma ideia. Para Schopenhauer a filosofia não ir além de uma interpretação do sentimento que se apresenta na consciência. A ética, por sua vez, deve explicar o significado do sentimento que surge na consciência dos indivíduos indicando um sentido moral para o mundo, mas não uma doutrina do dever.
Antes de tudo é preciso partir de uma afirmação da possibilidade da significação ética e esta partida, esse ponto de saída determina um dos aspectos que podem, a princípio, confundir um leitor iniciante. Sobretudo aquele leitor que alguma vez já ouviu o termo niilista atribuído à Schopenhauer. É preciso, de antemão, esclarecer que se, de fato, a filosofia de Schopenhauer pode ser caracterizada como uma filosofia niilista, não se pode fundamentar tal atribuição à negação de um sentido moral para o mundo. A acusação geralmente se dá pelas consequências de sua doutrina da negação da vontade, que implicariam em uma desvalorização da vida e em um recuo diante de uma posição afirmativa do devir, traço explorado pela crítica de Nietzsche, e não pela negação do sentido moral.
Exatamente porque Schopenhauer defende uma significação ética do agir humano e afirma veementemente que nós possuímos uma consciência moral (moralisches Bewustseÿn), uma consciência moral em sentido estrito (Gewissen)[6].
“Nós possuímos uma consciência moral (moralisches Bewustseÿn), uma consciência moral em sentido estrito (Gewissen). Mas, essa consciência moral não ostenta de modo algum a forma de um imperativo, de uma lei moral relativa a “o que alguém deve fazer e o que alguém deve deixar de fazer”; tal foi o parecer de Kant, em que pese que ele não o provou, e desde Kant todos o repetem, por ser cômodo, mesmo que se expressem de maneira diferente (lei moral). Mas, ninguém encontrará semelhante preceito, mandado ou dever no seio de nossa consciência.” (Schopenhauer, 2024, pag. 20).
Se a filosofia não pode ir além do que é dado, do que está disponível, acessível (Vorhandne) é preciso encontrar o fato da consciência moral. Esta questão, alíás, será o núcleo da pergunta elaborada pela Sociedade Real Dinamarquesa de Ciências de Copenhague em 1840. A questão finaliza da seguinte forma: “A fonte e o fundamento da filosofia da moral devem ser buscados numa ideia de moralidade contida na consciência imediata e em outras noções fundamentais que dela derivam ou em outro princípio”.
Esse ponto é exatamente o ponto a partir do qual Schopenhauer inicia a preleção sobre a metafísica dos costumes. Para o filósofo, a filosofia não pode fazer mais do que interpretar o que é dado e assim, pela interpretação, trazer a essência o mundo, que está expressa in concreto na consciência como um sentimento. A fundamentação da moral terá como objeto a ação do homem e não uma ideia de lei moral. Nesse sentido, Schopenhauer afirma que a metafísica dos costumes será uma reflexão baseada no agir humano.
A significação ética do agir humano é um fato (Thatsache) inegável. Os seres humanos possuem uma consciência moral, mas ela não ostenta, afirma, de modo algum a forma de um imperativo ou de uma lei moral. Portanto, não existe, segundo Schopenhauer uma ideia de dever dentro da consciência, o que alguém deve fazer ou o que não deve fazer. Ninguém encontrará semelhante preceito, mandato ou dever no seio da consciência.
A esta altura nos perguntamos, o que seria então que determinaria a significação ética uma vez que não temos na consciência um mandamento? Nesse ponto Schopenhauer apresenta sua hipótese de fundamento da moral:
“A única coisa que cabe sustentar como fato da consciência moral é o seguinte: mesmo sendo verdade que somos egoístas por natureza, e sob essa luz, isto é, a consciência da mera razão, quer dizer, que só buscamos nosso próprio gozo e benefício, não resulta menos certo o fato, tão estranho como irrefutável, de que, quando obtemos nosso gozo ou proveito à custa de outro, se estremeça muito claramente com ele certo pesar, cuja causa não conseguimos explicar de imediato e que vem amargar esse regozijo, sendo assim que esse mal-estar persiste inclusive depois de ter esgotado o gozo e o benefício; e pelo contrário, quando os outros cometem uma arbitrariedade à custa de nosso gozo ou proveito, se soma com toda clareza a nossa pena um intenso júbilo e contentamento interior, que não sabemos explicar e que, porém, persiste ainda depois que nossa desgraça seja ressarcida de fato. Por outro lado, quando vemos que um homem propicia gozo e proveito a outro, tendo-os como algo tão sagrado e inviolável como os seus próprios, experimentamos em relação a ele, de forma extremamente involuntária, um sentimento de apreço; e vice-versa, quando vemos que alguém persegue cegamente seu gozo e seu benefício, sem considerar em nada a existência e os direitos dos demais, experimentamos um enfurecido menosprezo por ele, por mais que nosso interesse se submeta a ele. Estes são os únicos fatos relativos à significação ética do agir ou da consciência moral; não existe, no entanto, dever, preceito, imperativo categórico nem lei moral alguma. (Schopenhauer, 2024, págs, 20 e 21).
O fundamento a partir do qual se pode afirmar que existe um sentido moral para o agir humano é um sentimento de pesar (sehr bittrer Schmerz) que permanece mesmo depois do gozo e do benefício que a ação pode ter trazido ao agente. Este sentimento receberá várias designações no texto da metafísica dos costumes dependendo do contexto em que ocorre (Gewisensangst, Gewissenspein, Gewissenquaal, Gewissensskrupel, Gewissensbiss). O aprofundamento desse tema, aliás, constitui, a meu ver, um traço significativo do texto da preleção em relação ao texto do Mundo como vontade e representação, pois na obra capital não encontramos a tematização do peso de consciência com tanto detalhamento.
No capítulo 8 “Do significado ético da ação, ou: da natureza da virtude e do vício”, Schopenhauer abre um subcapítulo para tratar dos tormentos da consciência (Gewissensquaal).
“Explicarei a vocês, in abstracto, o significado desse peso de consciência e o dividirei em suas partes constituintes; em outras palavras, direi claramente o que no próprio peso de consciência se anuncia como um mero sentimento.” (Schopenhauer 2024, pág. 195).
Segundo a hipótese de Schopenhauer o verdadeiro significado ético da ação torna-se aparente quando explicamos o que aparece na consciência do indivíduo e o que aparece é esse sentimento de peso na consciência.
A propósito da expressão peso de consciência, Schopenhauer desenvolve em todo o texto da metafísica dos costumes variações da expressão de modo a tentar adequar a cada momento, contexto explicativo e duração do sentimento, utilizando as expressões acima citadas: Gewisensangst, Gewissenspein, Gewissenquaal e Gewissensbiss. Na tradução do texto[7] verti as expressões, respectivamente por: peso de consciência, dor de consciência, tormento de consciência e mordida da consciência.
Uma vez que o sentimento de peso na consciência em suas variações vai figurar como um conceito decisivo para a fundamentação do fato da consciência moral, o conceito de remorso (Die Reue) figura, também, como um conceito importante nesse contexto e será mobilizado, da mesma forma, como um sentimento a tomar o lugar do conceito de lei moral da filosofia moral kantiana, uma vez que essa polêmica se mostrou uma tônica do texto da metafísica dos costumes desde o seu início. Nesse sentido, Schopenhauer abre um subcapítulo ao capítulo 3 “Da liberdade da Vontade” para tratar especificamente do remorso. “O peso na consciência pelo que foi feito não é nada menos que remorso; dor pelo conhecimento de si próprio, como em si, ou seja, como vontade.” (Schopenhauer, 2024, pág. 60)
No subcapítulo sobre a crueldade o filósofo amplia a explicação sobre o uso dos termos relativos à dor de consciência. Nesse trecho ele aplica à variação da expressão a perspectiva da duração no tempo. Na explicação sobre o caráter maligno ele escreve:
“Eu disse que o caráter maligno é acompanhado de duas aflições. A saber, além do sofrimento descrito, que brota de uma raiz com a maldade, isto é, da própria vontade violenta, e portanto procede diretamente dela e dela é totalmente inseparável – além desse sofrimento imediato, a maldade é acompanhada por outra dor bem diferente, que é de um tipo especial e diferente dela: torna-se perceptível a cada ato mau, seja este mera injustiça por egoísmo ou pura crueldade, é chamada de dor de consciência e, dependendo de sua duração, mais curta ou mais longa, mordidas de consciência ou peso de consciência (ou dor na consciência).” (Schopenhauer 2012, pág. 194).
O remorso figura como um sentimento que assume o caráter de fundamento. Ele não pode ser comparado ao arrependimento pois no arrependimento não se tem o conhecimento do que se é por natureza, apenas aflora um mal-estar pelo que fizemos e não nos trouxe um resultado esperado. Arrependimento é uma palavra que pode ser usada em casos nos quais não se envolve um ato de injustiça em relação à outra vontade, à outro ser humano ou a outro ser vivo, isto é, o arrependimento tem uma conotação para-si e não necessariamente para o outro. Já o remorso surge da contemplação de nossa própria natureza. O remorso está ligado ao remordimento da consciência moral de cada um: aquele incômodo que às vezes nos assalta quando reconhecemos quem de fato somos.
Se podemos, como sugere a afirmação do capítulo 1 da metafísica dos costumes, denominar o sentimento que aflora na consciência “quando obtemos nosso gozo ou proveito à custa de outro” como remorso. Se é legítimo de acordo com o que Schopenhauer vem argumentando até aqui, na metafísica dos costumes, denominar como remorso aquele sentimento que surge na consciência como um amargo pesar (sher bittrer Schmerz), e que permanece no tempo modulando a dor/angústia da consciência (Gewissensangst) para um tormento da consciência (Gewissensquaal), se pudermos denominar esse sentimento como remorso, teremos, inevitavelmente que concluir que Schopenhauer sugere que no lugar de uma ideia de lei moral o fato da consciência moral, isto é, aquela ocorrência que se dá na consciência e que legitima a afirmação segundo a qual existe como afirmar um sentido moral para as ações humanas, é o sentimento de remorso.
Se retomarmos a afirmação de abertura da metafísica dos costumes, portanto, segundo a qual se deve explicar o sentido do que é dado na consciência, do que está disponível (Vorhandne) na consciência, chegamos à conclusão de que um dos objetivos de Schopenhauer é propor que no lugar de considerarmos a existência de uma lei moral como dado da consciência devemos interpretar o remorso e determinarmos, a partir desse sentimento, um sentido ético para as ações humanas.
A hipótese, portanto, que aventamos aqui, a partir das passagens citadas da Metafísica dos costumes é a de que no texto das preleções Schopenhauer acentua sua crítica à filosofia prática kantiana uma vez que no texto do Mundo como vontade e representação o filósofo apenas aponta o problema de uma fundamentação da moral a partir de uma ideia de dever.
No texto do quarto livro do Mundo, esse embate fica muito limitado a algumas afirmações como:
“...neste livro de ética não se devem esperar prescrições nem doutrinas do dever, muito menos o estabelecimento de um princípio moral absoluto parecido a uma receita universal para a produção de todas as virtudes. Também não falaremos de "DEVER INCONDICIONADO", porque este, como exposto no apêndice, contém uma contradição, nem tampouco falaremos de uma "lei para a liberdade" (que se encontra no mesmo caso). Não discursaremos sobre o "dever", pois, assim o fazendo, falamos a crianças e povos em sua infância, e não àqueles que assimilaram em si mesmos toda a cultura de uma época madura” (Schopenhauer, MVR livro 4 parágrafo).
Ali, no Mundo, além de não citar nominalmente Kant, ele não desenvolve a polêmica como o faz na Metafisica dos costumes, posicionando-se criticamente em direta oposição à Kant e apontando qual seria o “fato da consciência moral”, isto é, aquilo que aparece na consciência individual e que pode nos levar, legitimamente, a afirmar que as ações humanas possuem um sentido moral. A posição de Schopenhauer, portanto, é interpretativa de um sentimento que ocorre a todo ser humano que comete uma injustiça, que, da forma como o próprio Schopenhauer define a injustiça:
“Mas como a vontade representa essa auto-afirmação do próprio corpo em inúmeros indivíduos lado a lado, aos quais o egoísmo é peculiar, a vontade em cada um deles vai muito facilmente além dessa afirmação para a negação da mesma vontade que aparece no outro indivíduo. Então a vontade do primeiro indivíduo rompe o limite da afirmação da vontade da outra pessoa, na medida em que esse indivíduo destrói ou fere o corpo da outra pessoa, ou então usando os poderes do corpo dessa outra pessoa o obriga a servir a sua vontade em vez da vontade própria do outro, na medida em que ele mesmo aparece naquele corpo estranho: Em tal caso, portanto, um indivíduo retira os poderes deste outro corpo e vontade que aparece como um corpo estranho e assim aumenta o poder servindo sua vontade além do poder de seu próprio corpo: consequentemente, ele afirma sua própria vontade além de seu próprio corpo por meio da negação da vontade que aparece em um corpo estranho. - Esta intrusão na fronteira da afirmação da vontade alheia sempre foi claramente reconhecida, e o conceito da mesma foi designado pela palavra injustiça. Pois ambas as partes envolvidas nele reconhecem o assunto de uma só vez; embora não, como fazemos aqui, em clara abstração; mas como um sentimento.” (Schopenhauer, 2024, pag. 129, 130).
A injustiça faz nascer na consciência do indivíduo o sentimento de remorso e esse sentimento figura como um fato que indica, segundo Schopenhauer, o caminho de afirmação de uma significação moral das ações humanas.
“O fenômeno diário da compaixão, quer dizer, a participação totalmente imediata, independente de qualquer outra consideração, no sofrimento do de um outro e, portanto, no impedimento ou supressão deste sofrimento, como sendo aquilo em que consiste todo contentamento e todo bem-estar e felicidade. Esta compaixão sozinha é a base efetiva de toda a justiça livre e de toda a caridade genuína. Somente enquanto uma ação dela surgiu é que tem valor moral, e toda ação que se produz por quaisquer outros motivos não têm nenhum. Assim que esta compaixão se faça sentir, o bem e o mal do outro me atingem diretamente do mesmo modo, embora nem sempre no mesmo grau que os meus.” (Schopenhauer, 1995, pag. 129, 130).
As duas perspectivas são estritamente complementares. Na metafísica dos costumes Schopenhauer aponta o remorso (Die Reue), o mal-estar, o sentimento amargo (Gewissensangst, Gewissesnbiss...) que surge na consciência do indivíduo que, através de sua ação pratica uma injustiça, isto é, fere e nega, através da afirmação de sua vontade um outro corpo que é uma outra afirmação da vontade. Efetiva assim, portanto, uma “intrusão na fronteira da afirmação da vontade alheia” caracterizada como uma injustiça.
A compaixão, por sua vez, é o próprio reconhecimento do sofrimento que ocorre no outro, um sentimento que provoca uma ação, se assim o faz, contrário à injustiça. A compaixão evita o remorso que advém da ação injusta. Nesse sentido, o fato da consciência moral indicado e explicado na metafísica dos costumes está em direta conexão ética com o a compaixão, indicada como fundamento da moral no ensaio de 1840.
SCHOPENHAUER, A. Arthur Schopenhauers handschriftlicher Nachlaß. Philosophische Vorlesungen -Metaphysik der Sitten. Munique: R. Piper, 1911-1942. p. 367-584.
SCHOPENHAUER, A.O mundo como vontade e como representação. Tomo I. Tradução, apresentação, notas e índices de Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
SCHOPENAHUER, A. Sobre o fundamento da Moral. Tradução: Maria Lucia Cacciola. Editora Martins Fontes, 1995.
SCHOPENHAUER, A. Metafísica dos Costumes, Tradução: Eli Vagner Francisco Rodrigues. São Paulo: Editora da Unesp, 2024.
Contribuição de autoria
1 – Eli Vagner Francisco Rodrigues
Pós- Doutorado em Filosofia pela Universidade Johannes Gutenberg de Mainz
https://orcid.org/ 0000-0002-6668-1369 • elivagner2012@gmail.com
Contribuição: Escrita – Primeira Redação
Como citar este artigo
RODRIGUES, E. V. F. O fato da consciência moral na preleção sobre Metafísica dos Costumes de 1820 de Arthur Schopenhauer. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria - Florianópolis, v. 15, esp. 1, e88215, p. 01-12, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378688215. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
[1] Schopenhauer, Arthur. Vorlesung über Die gesamte Philosophie oder die Lehre vom Wesen der Welt und dem menschlichen Geiste. 4 Teil Metaphysik der Sitten. (Philosophische Bibliothek). Felix Meiner Verlag, 2017.
[2] SCHOPENHAUER, A. Metafísica dos Costumes, Tradução: Eli Vagner Francisco Rodrigues, Editora da Unesp, São Paulo, 2024.
[3] Autorização para lecionar na universidade.
[4] Vorlesung über Die gesamte Philosophie oder die Lehre vom Wesen der Welt und dem menschlichen Geiste.
[5] Walter Jaeschke (editor das obras completas de Hegel) informa que sobre nenhum outro assunto Hegel deu tantos cursos do que sobre a história da filosofia: em Jena em 1805/06, em Heidelberg, 1816/17 e em 1817/18. Em Berlim foram inicialmente dois: 1819 e 1820/21, portanto no mesmo semestre em que Schopenhauer lecionou.
[6] Gewissen designa a instância psíquica da consciência ético-religiosa, o fulcro da moralidade humana. Como explica Oswaldo Giacoia Junior em Ressentimento e Vontade. Para uma Fisio-Psicologia do Ressentimento em Nietzsche. Rio de Janeiro: Via Verita, 2021. Segundo Giacoia, Stricto sensu, o termo denota o fenômeno da auto-censura, o constrangedor sofrimento moral, brotado em seguida à prática de uma ação contrária ao dever — e manifesta-se no célebre morsus conscientiae, a mordida da consciência (remorso) ou má consciência (schlechtes Gewissen), que em português tem o sentido de consciência pesada, peso de consciência. Na Europa, esse conceito de consciência moral foi primeiramente desenvolvido entre os gregos, como mencionado anteriormente, com apoio na representação, segundo a qual para todo e qualquer mau comportamento, em relação aos deuses ou aos homens, há sempre uma testemunha, uma dimensão interna de saber e certeza acerca do censurável e do louvável, do certo e do errado, do bem e do mal. O conceito de consciência moral adquiriu, daí em diante, uma profundidade e significação muito mais ampla e aprofundada na ética cristã, mormente no seio da filosofia medieval, em que se consolida o matiz de sentido que aproxima estreitamente consciência moral, pela via do remorsus e arrependimento, à consciência do pecado, à aflitiva convicção de ter transgredido um mandamento.
[7] SCHOPENHAUER, A. Metafísica dos Costumes, Tradução: Eli Vagner Francisco Rodrigues, Editora da Unesp, São Paulo, 2024.