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Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 15, n. 1, e88213, 2024

DOI: 10.5902/2179378688213

ISSN 2179-3786

Submissão: 11/07/2024 Aprovação: 27/08/2024 Publicação: 18/09/2024

1 INTRODUÇÃO.. 2

2 JUSTIÇA E INJUSTIÇA.. 3

3 O CRIME DE RASKÓLNIKOV. 8

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS. 18

REFERÊNCIAS. 20

 

Estudos Schopenauerianos

O remorso de Raskólnikov em uma perspectiva schopenhaueriana

Raskolnikov’s remorse from schopenhauerian perspective

Ana Paula Manoel FelipeIÍcone

Descrição gerada automaticamente

IUniversidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil

RESUMO

O meu objetivo com o presente texto é relacionar o conceito de justiça apresentado por Schopenhauer no §62 de O mundo como vontade e representação com um dos mais célebres romances da literatura ocidental, Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski. Tentar-se-á explorar em que medida o personagem principal desse romance se aproxima das definições schopenhauerianas de arrependimento e de remorso. Para tanto, pretendo destacar a importante distinção entre esses sentimentos, a injustiça incursa na mentira e a justificação moral do ato de vingança. Com isso, busca-se evidenciar a esperança dilacerada de Raskólnikov de ser o próximo Napoleão, o sentimento cada vez maior de culpa e o reconhecimento de não atender aos critérios de um homem extraordinário. A análise desses sentimentos de cunho moral diz respeito ao estudo da ética, que para Schopenhauer é extremamente relevante por se tratar da investigação das ações dos seres humanos que afetam cada um de nós.

Palavras-chave: Arrependimento; Dostoiévski; Justiça; Remorso; Schopenhauer

ABSTRACT

The aim of this study is to relate the concept of justice presented by Schopenhauer in §62 of The World as Will and Representation with one of the most famous fundamental novels in Western literature, Crime and Punishment by Fyodor Dostoevsky. An attempt will be made to explore to what extent the main character of this novel approaches Schopenhauer's definitions of regret and remorse. To this end, I intend to highlight the important distinction between these feelings, the injustice involved in lying and the moral justification of the act of revenge. With this, we seek to highlight Raskolnikov's torn hope of being the next Napoleon, his increasing feeling of guilt and his recognition of not meeting the criteria of an extraordinary man. The analysis of these moral feelings concerns the study of ethics, which for Schopenhauer is extremely relevant because it concerns the investigation of the actions of human beings that affect each one of us.

Keywords: Dostoiévski; Justice; Regret; Remorse; Schopenhauer

1 INTRODUÇÃO

O tema da justiça na filosofia de Schopenhauer recebe espaço no §62 de O mundo como vontade e representação tomo I. Esse parágrafo está presente no quarto livro de sua obra magna, considerado o livro mais importante contendo as considerações mais sérias, visto que concernem as ações dos seres humanos “objeto que afeta de maneira imediata cada um de nós, e a ninguém pode ser indiferente” (W I, § 53, p. 313). Para tratar sobre justiça, cuidaremos primeiramente do que é injusto. De acordo com Schopenhauer, a injustiça consiste na invasão dos limites da afirmação da vontade ao corpo alheio. Em outros termos, a injustiça ocorre quando a afirmação da vontade de um indivíduo fere a afirmação da vontade de outro indivíduo. O assassinato é um belo exemplo de invasão da esfera de afirmação da vontade de alguém, por isso, a fim de relacionar a filosofia de Schopenhauer com Crime e Castigo de Fiódor Dostoiévski, a distinção de arrependimento e remorso será norteadora para o nosso tema. Assim, analisaremos o comportamento e as falas de seu personagem principal, Raskólnikov, com a intenção de avaliar em que medida a definição de arrependimento ou de remorso representa melhor seu comportamento, guiados pela distinção desses sentimentos morais propostos por Schopenhauer.

2 JUSTIÇA E INJUSTIÇA

O sujeito que sofre uma injustiça sente a invasão na esfera de afirmação do próprio corpo, por outro lado, quem pratica a injustiça sente que invade a afirmação do corpo alheio e esse reconhecimento gera instantaneamente um sentimento que Schopenhauer denomina de remorso, ou melhor dizendo, um sentimento de injustiça cometida. Schopenhauer menciona cinco casos que exemplificam o que ele entende como injustiças passíveis de invasão da esfera de negação alheia. O primeiro exemplo é o canibalismo, é o exemplo mais claro e evidente para a compreensão de injustiça sobre a invasão do corpo alheio, pois nesse caso um indivíduo literalmente se alimenta do corpo de outro ser humano. O segundo exemplo é o homicídio, cuja compreensão é facilmente perceptível, uma vez que para cometer um homicídio é preciso extinguir a vida de alguém, invadindo, assim, sua esfera de afirmação da vontade. O terceiro exemplo assemelha-se muito ao segundo, diferencia-se apenas no grau de violência, refere-se à mutilação intencional do corpo alheio, pois ao lesar o corpo alheio, o sujeito responsável pela ação invade a esfera de afirmação de quem é ferido. O quarto exemplo concerne à escravidão, pois ao submeter o indivíduo à servidão involuntária, sua esfera de afirmação da vontade é reprimida e submetida à vontade de seu senhor. Por fim, o quinto exemplo pertence ao ataque à propriedade alheia, em virtude de a propriedade do sujeito ser considerada fruto do próprio trabalho e seu ataque equiparar-se à privação da afirmação de sua própria vontade.

No que concerne à prática da injustiça em geral, ela ocorre pela violência ou pela astúcia, as quais, em termos morais, são em essência a mesma coisa. Em primeiro lugar, em relação ao homicídio, é moralmente indistinto se me sirvo do punhal ou o veneno; de maneira análoga no caso de cada lesão corporal. Os demais casos de injustiça sempre são redutíveis ao fato de eu, praticando-a, obrigar outro indivíduo a servir, em vez de à sua, à minha vontade, a agir, em vez de em conformidade com a sua, em conformidade com a minha vontade. Se sigo a via da violência, alcanço isso mediante causalidade física; se sigo a vida da astúcia, entretanto, alcanço isso mediante motivação, isto é, por meio da causalidade que passa pelo conhecimento, logo, apresento à vontade de outrem novos aparentes em função dos quais segue minha vontade, embora acredite seguir a sua. Ora, visto que o médium no qual residem os motivos é o conhecimento, se consigo obter sucesso em semelhante tarefa recorrendo à falsificação do conhecimento alheio trata-se da mentira. (W I, §62, p. 391).

Por meio dessa passagem, compreende-se que a injustiça pode ser imposta tanto pela violência física quanto por meio da astúcia. Astúcia refere-se à capacidade de enganar alguém, sem que a pessoa se dê conta disso, a fim de levar algum tipo de vantagem. Portanto, disso se segue que “toda mentira, igual a qualquer ato de violência, é nela mesma injustiça” (W I, §62, p. 391). Todavia, destaca-se um detalhe interessante, o simples não dizer a verdade não se caracteriza como injustiça, isto é, a recusa de uma declaração mediante uma pergunta não é injusta, a injustiça pertence apenas à tentativa de manipular a vontade alheia. Para elucidar esse ponto, Schopenhauer menciona o exemplo de quem se recusa a mostrar o caminho correto para um andarilho perdido. Nesse caso, o sujeito que omite a informação não pratica nenhuma injustiça, por mais necessitado que o andarilho esteja. Destaca-se ainda que a injustiça por violência não é tão ignominiosa para o praticante quanto a injustiça por astúcia, pois a violência evidência a força física, marca traços de instinto animal que se impõe aos humanos, enquanto a astúcia revela uma fraqueza que rebaixa o praticante em termos físicos e morais.

Schopenhauer define o conceito de injustiça como originário e positivo, enquanto, por definição, o conceito de justiça é derivado e negativo. Ele salienta que, nesse caso, devemos nos deter não nas palavras, mas sim nos conceitos, pois jamais se falaria em justiça se não houvesse injustiça. Em outras palavras, o conceito de justiça contém meramente a negação da injustiça, por isso ele é caracterizado como um conceito negativo e o outro como positivo. Portanto, desde que uma ação não penetre a esfera de afirmação alheia da vontade, ela não é injusta. Desse modo, negar auxílio a um necessitado, presenciar a morte de alguém possuindo plenas condições de interferir e impedir o atentado, de acordo com Schopenhauer, são de fato “atitudes cruéis e satânicas” (W I, §62, p. 393), mas de maneira alguma são injustas. Porém, mesmo que a apatia e a insensibilidade diante do sofrimento de alguém não sejam por si mesmas injustas, Schopenhauer sugere que tal insensibilidade sinaliza que esse indivíduo teria o poder de praticar qualquer injustiça a outrem caso seus desejos exijam e nenhuma coerção se apresente em seu caminho.

Todavia, a invasão da esfera de afirmação da vontade alheia é justificada sob a premissa de que se um indivíduo atenta contra a esfera de afirmação da vontade de alguém, esse alguém que sofre a injustiça, possui o direito de se defender invadindo a esfera de afirmação da vontade de quem lhe causou o prejuízo. Esse direito de autodefesa descrito por Schopenhauer se assemelha aos termos do que o código penal brasileiro entende por legítima defesa. Esse conceito de legitimidade de defesa de quem invade a esfera de afirmação alheia consiste em um ato de injustiça que, justificado por seu motivo, converte-se em direito. Sendo assim,

se a vontade de um outro nega a minha vontade, como esta aparece em meu corpo e no uso das forças deste para minha conservação, posso, sem injustiça, exercer coação sobre aquela vontade para que ela desista de sua negação, sem que isso implique a negação da vontade alheia, a qual se mantém em seu limite; ou seja, tenho nesse alcance um direito de coação. (W I, §62, p. 394).

É justamente quando o mencionado direito de coação entra em jogo que o uso da mentira se torna justificado e legítimo para Schopenhauer, pois se admite “um real direito de mentira exatamente na mesma extensão em que tenho direito de coação” (W I, §62, p. 394). Portanto, Schopenhauer menciona o justo exemplo de quem, por mentira, atrai um ladrão que invade sua casa a entrar em um porão, trancafiando-o. Do mesmo modo, quem é sequestrado possui o direito de assassinar seu algoz para livrar-se das amarras de sua escravidão.

Perante o exposto, entende-se que injustiça e justiça são simples determinações morais para Schopenhauer. A moral diz respeito exclusivamente à prática da justiça ou da injustiça, podendo indicar com precisão os limites da conduta. A teoria da legislação e a ciência política, por sua vez, tratam somente do sofrer injustiça e não consideram a prática da injustiça. Com isso, Schopenhauer tem o objetivo de evidenciar que o Estado não se ocupa em modificar as disposições íntimas e morais dos indivíduos, mas sim em punir e garantir que por mais que os cidadãos pensem em cometer crimes nãos os cometam, pois saberão que a punição iminente atravancara os efeitos da prática dos crimes.

Para o Estado, portanto, o ato, a ocorrência, é a única coisa real: a disposição íntima, a intenção, é investigada tão somente na medida em que, a partir dela, conhece-se a significação do ato. Por isso o Estado não proibirá ninguém de portar continuamente pensamentos sobre assassinato e envenenamento, desde que saiba com certeza que o medo do carrasco e da guilhotina a todo momento obstará os efeitos desse querer. (W I, §62, p. 399).

Logo, o objetivo da punição é cumprir a lei como um contrato e o único objetivo da lei é impedir o menosprezo dos direitos alheios. Para tanto, para que os indivíduos sejam defendidos do sofrimento da injustiça, unem-se todos em Estado, “renunciando à prática da injustiça e assumindo o fardo da manutenção dele” (W I, §62, p. 403). O cumprimento da lei e a punição são dirigidos essencialmente ao futuro, não ao passado. Essa distinção é importante porque diz respeito à diferença entre punição e vingança, visto que a punição refere-se ao futuro, enquanto a vingança concerne ao passado. Vale salientar que, para Schopenhauer, a punição justifica-se eticamente, ao passo que a vingança é extremamente condenável, pois não tem outro objetivo senão, “pela visão do sofrimento causado a outrem, a pessoa consolar a si mesma do próprio sofrimento” (W I, §62, p. 403).

Ao encontro do que foi exposto, Schopenhauer realiza uma brilhante distinção no §55 e no §65 de O mundo, entre arrependimento (Reue) e remorso (Gewissensbiß), que é útil ao tema central de nossa exposição. O arrependimento não se origina em uma mudança na vontade, ele provém de uma mudança de conhecimento, isso quer dizer que “nunca posso me arrepender do que quis, mas sim do que fiz” (W I, §55, p. 342). Em outros termos, o arrependimento é o conhecimento corrigido entre o ato e a intenção verdadeira. Logo, entende-se que o arrependimento sempre resulta do conhecimento corrigido, não da mudança verdadeira da vontade, pois isso seria impossível, tendo em vista sua imutabilidade e onipotência. Em contrapartida, o peso de consciência, também conhecido como remorso, em relação aos atos praticados não é arrependimento pelo feito, mas uma imensa dor sobre o conhecimento próprio de si mesmo, que pôde cometer tamanha atrocidade. Portanto, um sentimento de sofrimento perante qualquer má ação[1], “seja esta na forma de injustiça provocada pelo egoísmo ou de pura maldade, e que, de acordo com o tempo de duração do tormento, se chama remorso, ou peso de consciência” W I, §55, p. 423).

3 O CRIME DE RASKÓLNIKOV

Diante da breve exposição feita sobre justiça, injustiça, mentira, vingança, arrependimento e remorso, estamos aptos para analisar o crime cometido por Raskólnikov, personagem principal de um dos mais célebres romances fundamentais da literatura ocidental, Crime e Castigo de Fiódor Dostoiévski. A trama do romance gira em torno de um terrível crime cometido, dois assassinatos. Porém, antes de cometer definitivamente o crime, Raskólnikov meditou sobre sua ação e buscou justificativas que atenuassem sua culpa: “o que você acha, esse crime ínfimo não seria atenuado por milhares de boas ações?” (Dostoiévski, 2019, p. 73), e ao decidir cometer o ato “a razão e a vontade permaneceriam nele, inalienáveis durante todo o tempo da execução do plano, pelo único motivo de que o que ele planejara não era crime” (Dostoiévski, 2019, p. 79).

Após a concretização dos assassinatos, Raskólnikov continua a insistir na ideia de sua inocência perante o ato cometido. Para ele, o erro não diz respeito à individualidade da vítima, mas sim ao assassinato em si. Raskólnikov acredita que sua vítima merecia morrer por ser desprezível e causar prejuízo para as pessoas à sua volta, mas ao cometer o assassinado, por mais que a vítima merecesse aquele fim, ele ultrapassou um limite, admite que “eu não matei uma pessoa, eu matei um princípio!” (Dostoiévski, 2019, p. 281). Não matou uma pessoa porque ele a considerava apenas “um piolho, inútil, nojento, nocivo” (Dostoiévski, 2019, p. 422). No enredo, é mencionado um artigo escrito por Raskólnikov cujo conteúdo teve papel incriminatório na investigação de assassinato. Em seu artigo, Raskólnikov divide os indivíduos entre “ordinários” e “extraordinários”. Os ordinários devem viver na obediência e não têm o direito de infringir a lei, enquanto os extraordinários têm o direito de cometer toda sorte de crimes e infringir a lei de todas as maneiras precisamente porque são extraordinários. Ao que concerne aos seres humanos extraordinários, Raskólnikov afirma que “se um deles, para realizar sua ideia precisar passar por cima ainda que seja de um cadáver, a meu ver ele pode se permitir, no seu íntimo, na sua consciência passar por cima do sangue” (Dostoiévski, 2019, p. 266).

Um pouco mais adiante, no desenrolar da trama, Raskólnikov confessa o crime para Sônia. Enamorada por Raskólnikov, Sônia sugere que o motivo que o fez cometer tamanha atrocidade foi a fome e a necessidade de ajudar sua família, mas ele nega veementemente essa hipótese:

Sabe de uma coisa Sônia? — disse ele com um certo entusiasmo —, sabes o que eu vou te dizer? Se eu tivesse matado apenas porque estava com fome — continuou ele, salientado cada palavra e lançando-lhe um olhar enigmático, mas sincero —, agora eu estaria... feliz! Fica sabendo! (Dostoiévski, 2019, p. 419).

Nesse caso, se Raskólnikov optasse por justificar seu crime com o argumento da fome e da miséria, aparentemente sua culpa seria aliviada aos olhos de quem estivesse disposto a se compadecer de sua dor. Porém, no fundo, em seu interior, Raskólnikov sabe que não é isso e é fiel em defender que não foi a fome que motivou seu crime. Ele admite que não matou para ajudar, não matou para fazer justiça, mas sim por ele mesmo, movido por um sentimento de direito de cometer o crime.

A esse respeito eu não queria enganar nem a mim mesmo! Não foi para ajudar minha mãe que matei — isso é um absurdo! Não matei para obter recursos e poder, para me tornar um benfeitor da humanidade. Absurdo! Eu simplesmente matei; matei para mim, só para mim: agora, quanto a eu vir a ser benfeitor de alguém ou passar a vida inteira como uma aranha, arrastando todos para a rede e sugando a seiva viva de todos, isso, naquele instante, deve ter sido indiferente para mim!...  não era do dinheiro, Sônia que eu precisava quando matei; não era tanto o dinheiro que me fazia falta quanto outra coisa... Agora eu sei tudo isso... Compreende-me: se voltasse a trilhar o mesmo caminho, talvez eu nunca mais repetisse o assassinato. (Dostoiévski, 2019, p. 424-425).

Refém do autoengano, ludibriado por sua própria consciência, Raskólnikov acreditava que, se tivesse outra chance, não cometeria o mesmo erro. No entanto, o contrário seria verdadeiro, se tivesse outra chance de cometer o crime, provavelmente o realizaria de maneira ainda mais refinada, pois não podemos ser diferentes do que somos e nossas ações dizem quem nós somos. Pode-se dizer que, embora sempre sejamos as mesmas pessoas, tendo em vista a imutabilidade do caráter e sua individualidade, nem sempre nos compreendemos, em verdade o ser humano se desconhece. Por meio do caráter adquirido[2], o sujeito tem o poder de adquirir o conhecimento de quem realmente é (pelo menos uma parte do conhecimento, tendo em vista a impossibilidade de um autoconhecimento absoluto). O caráter pode ser adquirido, mas não modificado, pois o homem é refém de seu próprio caráter, preso pelas amarras de sua imutabilidade, condenado a ser o que é até o fim.

Raskólnikov sofreu vítima da tragédia de seu próprio autoconhecimento ao perceber que não era tão admirável quanto imaginara. Isso se evidencia na seguinte passagem: “e se passei tantos dias sofrendo por saber: Napoleão o faria ou não? [o crime] – então eu já percebia claramente que não sou Napoleão...” (Dostoiévski, 2019, p. 424). Napoleão é a figura histórica que serve como orientação para o personagem de Raskólnikov ao longo de toda a história de Crime e Castigo. Roberto Wu em seu artigo “O crime metafísico em Dostoiévski”, evidencia que Raskólnikov é o amalgama do perfil napoleônico com a fragilidade psíquica consequente do sentimento de culpa, “a tensão entre esses dois aspectos psicológicos reflete a instabilidade nos comportamentos de Raskólnikov: ora é tomado pela culpa e por arrependimento, ora justifica seu crime para si mesmo através das mais diversas razões” (Wu, 2010, p. 261). Raskólnikov é evidentemente tomado pelo sentimento de culpa, mas o que ele sente parece ir além do que reconhecemos como arrependimento.

O ponto aqui é que Raskólnikov estava ciente de seu crime, mas, no fundo, não reconhecia seu ato como crime e não parecia verdadeiramente arrependido. Entretanto, o que é o arrependimento? É o pesar ou a lamentação pelo mal cometido, porém, nunca poderá se arrepender do que quis, somente do que fez. No entanto, Raskólnikov não se arrepende do crime: “Minha consciência está tranquila. É claro que foi cometido um crime comum; é claro que foi violada a letra da lei e derramado sangue, mas tome a minha cabeça por letra da lei... e basta!” (Dostoiévski, 2019, p. 555). Schopenhauer esclarece que o sujeito acometido por um arrependimento moral “torna-se, então, ciente de que o que ele praticou não era propriamente conforme à sua vontade: esse conhecimento é o arrependimento” (W II, §47, P. 708). Me parece que em nenhum momento Raskólnikov reconheceu que seu crime não condizia com a sua vontade. Eis que ele mal reconhecia em seus atos um crime propriamente dito, mas também não suportara suas ações e fizera a confissão de sua culpa. Que sentimento o motivou se não o arrependimento? Por mais difícil que seja admitir, Raskólnikov parece tomado por remorso, considerado aqui como um sentimento capaz de ir além de um mero arrependimento, caracterizado por uma imensa dor sobre o conhecimento próprio de si mesmo que antes ele não possuía. O remorso de Raskólnikov não provém da injustiça cometida contra a velha assassinada, ou de sua irmã que chegou por acaso na cena do crime e acabou também sendo morta, mas sim do sofrimento em reconhecer a miséria de seu caráter, a consciência de que não pode ser outra pessoa e principalmente por não suportar manter o segredo de sua culpa.

Raskólnikov sabe que poderia não ter matado, mas o sentimento de reconhecer a si mesmo como um patife, não parece estar atrelado ao assassinato que poderia não ter cometido, mas sim em reconhecer os traços malignos de seu próprio caráter. Raskólnikov sofre porque desejava ser Napoleão, agir como Napoleão, a dor provém de reconhecer que jamais poderia ser como ele. Seu sentimento de frustração está ligado ao que ele desejava em seu íntimo e que sentia não poder modificar. Gary Rosenschield em seu artigo “Crime and Punishment, Napoleon and the Great Man Theory” destaca que Raskólnikov de fato venera Napoleão, não como um homem que derramou o sangue de milhões de vítimas inocentes para promover uma causa humanitária, mas como alguém que se preocupava apenas consigo mesmo e com o poder, alguém que não se importava se estava promovendo ou não o progresso humano. Por isso, o que é grandioso em Napoleão, aos olhos de Raskólnikov, “é que ele não deixava nada entrar em seu caminho e estava disposto a remover qualquer obstáculo em seu caminho sem pensar ou pensando apenas em si mesmo” (Rosenschield, 2020, p. 88). A esperança dilacerada de ser o próximo Napoleão, o sentimento cada vez maior de culpa e o reconhecimento de não atender aos critérios de um homem extraordinário, são os sentimentos que parecem atormentá-lo[3]. Isso se evidencia quando ele sofria ao pensar: “por que não se matara naquele momento? Por que ficou parado acima do rio e preferiu confessar a culpa? Será que existe tamanha força nesse desejo de viver e é tão difícil superá-lo?” (Dostoiévski, 2019, p. 555).

Schopenhauer responderia que sim, sem dúvidas não é fácil superar a vontade de viver. Em suma, Raskólnikov não se matou porque o ponto mais importante para a decisão de optar pelo suicídio consiste na existência de um motivo excepcionalmente forte que possa sobrepor-se à vontade de viver e ao medo da morte. Portanto, para que um indivíduo opte pelo suicídio, não basta apenas possuir um objeto mortífero em mãos ou até mesmo estar à beira de um precipício, antes de mais nada, é necessário um motivo capaz de encorajá-lo a abrir mão de sua existência.

De maneira igualmente equivocada, alguns pensam, ao segurar em suas mãos uma pistola carregada, que poderiam com ela atirar em si mesmos. Para isso, aquele meio mecânico de execução é o de menos; o ponto principal contudo, é um motivo extremamente forte e, daí, raro, que possui uma enorme força, necessária para sobrepor à vontade de viver ou, mais corretamente, ao medo da morte. Apenas depois de algo assim entrar em cena é que aquela pessoa pode atirar em si mesma, e então tem de fazê-lo. A não ser que um contramotivo ainda mais forte, se é que algo assim é possível, impeça o ato. (E I, cap. III, p. 75).

Raskólnikov não tinha um motivo excepcionalmente forte que pudesse sobrepor sua vontade de viver porque, no fundo, não reconhecia o seu crime. O remorso de Raskólnikov parece ter muito mais relação com não suportar o que ele fez e ter a necessidade de confessar a sua culpa, mas em nenhum momento parece atormentado por tirar a vida de alguém. Se sente injustiçado, pois essa culpa sentida por ele confronta sua convicção de não ter cometido crime algum. Eis a natureza do verdadeiro remorso, uma imensa dor que vai além do arrependimento, sobre o conhecimento próprio de si mesmo e uma colossal incompreensão de suas próprias ações. A natureza do arrependimento é o conhecimento corrigido entre o ato e a intenção verdadeira, logo, entende-se que o arrependimento sempre resulta do conhecimento corrigido, não da mudança verdadeira da vontade. Portanto, o sentimento de Raskólnikov não se trata apenas de um mero arrependimento, pois “ele fizera um julgamento severo de si mesmo, e sua consciência obstinada não descobriu nenhuma culpa especialmente terrível no seu passado, a não ser uma simples falha que podia acontecer a qualquer um” (Dostoiévski, 2019, p. 554).

O que nos encaminha a outro dilema: o ser humano é o que ele faz ou o que ele pensa? Para Schopenhauer, o ser humano é o que ele quer e ele, quer de acordo com quem ele é, pois, “o que cada um quer em seu íntimo, isto ele deve SER: e o que cada um É, precisamente isto ele QUER” (W I, §65, p. 426). A moralidade para Schopenhauer é metafísica e fenomênica, a parte metafísica diz respeito ao caráter inteligível e imutável e o ponto fenomênico concerne à moralidade também pensada enquanto ação. Na legalidade, o sujeito é capaz de disfarçar seu caráter, mas de maneira alguma modifica-o. Em outras palavras, em meio a regras sociais, o indivíduo é forçado a suprimir o seu querer a partir do momento em que a afirmação desmedida de sua vontade invade a esfera de afirmação da vontade alheia.

No caso de Raskólnikov, ele jamais poderia querer de modo diferente, não poderia ser outro, mas poderia não ter matado. Ao optar pelo assassinato, ele invade a esfera de afirmação da vontade de suas vítimas, mas seu crime apenas esclarece o que ele quer, ou seja, quem ele é perante a sociedade. Se não tivesse matado, Raskólnikov seria exatamente o mesmo, apenas não seria punido pela injustiça de atacar a afirmação da vontade alheia. Sendo assim, é razoável a posição de Schopenhauer de que o direito penal “deveria basear-se no princípio de que não propriamente a pessoa, mas apenas o ato deveria ser punido, a fim de que não volte a ser praticado” (W II, §47, P. 712). A partir dessa premissa, punir o ser humano por algo que ele quer, ou seja, pelo que ele é, não pode atingir o objetivo de melhoria do caráter dos indivíduos, pois, conforme a perspectiva de Schopenhauer, a virtude não pode ser aprendida e o caráter moral não pode ser melhorado. Ele denuncia que a educação é um benefício e a punição deve ser um mal, o erro do sistema penitenciário consiste em desejar a realização de ambos ao mesmo tempo.

Roberto Wu faz um comentário útil ao nosso ponto ao considerar que Raskólnikov rejeita inicialmente a palavra crime para qualificar os assassinatos que promoveu porque aceitá-la significaria conformar-se com a ordinariedade, portanto “por outro lado ainda mais incisivamente, há uma recusa de qualquer tipo de autojulgamento moral do ponto de vista do pecado” (Wu, 2010, p. 259). Essa recusa de Raskólnikov em considerar seus atos como crime retira o sentido moral de seu remorso? É preciso considerar que o remorso sentido por Raskólnikov não tem relação direta com os assassinatos, mas sim com quem ele era. O que importa não é a individualidade das vítimas que foi suprimida por seu machado, mas sim o fato de não saber lidar com a culpa de suas próprias ações.

Essa culpa provém de não ser como Napoleão, advém do sentimento de não ter sido capaz de nem ao menos ter cometido o crime da maneira correta. Desse modo, “onde se encontra a culpa (Schuld), tem de se encontrar o sentimento de responsabilidade (Verantwortlichkeit)” (E I, cap. 4, p. 149). Conforme Schopenhauer, a responsabilidade da qual Raskólnikov tem consciência alcançaria não apenas o ato, mas também seu caráter e “por este ele se sente responsável” (E I, cap. 4, p. 148). Raskólnikov sente remorso por ser quem ele é e pelo que ele não foi capaz de realizar. O seu crime mal cometido evidenciou quem ele realmente era, produzindo o sentimento de remorso, mas esse sentimento não está atrelado à culpa no sentido moral de tirar a vida de alguém e ser uma pessoa má por isso. O seu remorso fundamenta-se no reconhecimento e na culpa sentida por não ser verdadeiramente extraordinário como Napoleão.

A natureza do remorso do criminoso, que se encaixa perfeitamente no caso de Raskólnikov, é descrita de maneira notável por Adam Smith em sua obra Teoria dos sentimentos morais. De acordo com ele, o criminoso não pode pensar nos sentimentos que a humanidade deve nutrir por ele sem ser acometido por sentimentos de agonia e vergonha. Ele simpatiza com o ódio e horror que os outros homens cultivam por ele, tornando-se, em certa medida, objeto de seu próprio ódio e horror. Diante do horror de Sônia ao confessar seu crime, Raskólnikov professa: “Sônia, eu tenho um coração mau, repara nisso: isso pode explicar muito. Há pessoas que não viriam. Mas eu sou covarde e... Patife!” (Dostoiévski, 2019, p. 420). Os pensamentos assombrosos sobre si mesmo o enchem de terror e perplexidade, por isso:

O que mais teme são os sentimentos que cultivam quanto a ele. Tudo lhe parece hostil, e ficaria feliz em fugir para algum deserto inóspito, onde nunca mais tivesse de mirar o rosto de uma criatura humana, nem ler, no semblante dos homens, a condenação de seus crimes. Mas a solidão é ainda mais terrível que a sociedade. Seus próprios pensamentos só o podem defrontar com o que é negro, infeliz, desgraçado, a melancólica previsão da incompreensível desgraça e ruína. O horror da solidão empurra-o de volta para a sociedade, e retorna à presença dos homens, surpreso por se mostrar diante deles carregado de vergonha e transtornado pelo medo, para suplicar um pouco de proteção à autoridade dos mesmos juízes que, ele sabe, já o condenaram unanimemente. Tal é a natureza do remorso, o mais terrível de todos os sentimentos que podem introduzir-se no peito humano. É composto de vergonha pelo senso de inconveniência da minha conduta passada; da dor, pelos efeitos dessa ação; de piedade pelos que por causa dela sofrem; e de pavor, terror da punição, pela consciência do justo ressentimento de todas as criaturas racionais. (Smith, 2015, p. 105-106).

No caso de Raskólnikov, o único ponto que não condiz com a descrição de remorso descrita por Smith concerne à dor pelos efeitos de sua ação e à piedade pelos que dela sofrem. Ele não sofre pela injustiça cometida contra suas vítimas, também não lamenta sobre a dor que causou nos outros. O remorso de Raskólnikov aparenta possuir um caráter egoísta, afirmo isso porque o seu remorso relaciona-se muito mais com sua decepção consigo mesmo do que com a piedade do sofrimento causado a outrem. Decepção essa, que mostra quem ele realmente é, alguém que comete um crime e, mesmo teoricamente acreditando que no direito de cometê-lo, não aguenta o fardo desse segredo, ou seja, não suporta a consequência moral de sua ação.

Por fim, vale destacar outra distinção importante, em geral, o arrependimento aparece no sujeito que tem seu crime exposto, após ser condenado pelos membros da sociedade. Antes de sua má ação ser descoberta, ela não foi capaz de lhe causar nenhum tipo de tormento, mas imediatamente após a condenação moral, o indivíduo se arrepende profundamente de seus atos. Todavia, no caso do remorso, o sofrimento por sua própria ação não se vincula necessariamente com o ato de ser descoberto. O remorso está vinculado a uma demasiada decepção consigo mesmo, que independe da aprovação moral. Em outras palavras, pode-se dizer que um sujeito munido de um pequenino autoconhecimento (visto que um grande autoconhecimento é raro) pode sentir remorso por uma ação, mesmo que essa ação seja louvada por determinados membros da sociedade. O que lhe causa sofrimento é perceber que ele é o que ele quer, e ele quer de acordo com quem ele é. A angústia consiste em reconhecer que essa condição é imutável, por mais que queira ser diferente, estará sempre preso às amarras de sua individualidade.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consoante o conceito de justiça proposto por Schopenhauer, a vingança de Raskólnikov invade a esfera de afirmação da vontade alheia e não pode ser justificada sob a premissa de direito de coação, pois as suas vítimas não praticaram o canibalismo, não assassinaram ninguém, não mutilaram, não escravizaram e teoricamente não usurparam a propriedade alheia de maneira injusta. Portanto, Raskólnikov foi injusto, e sua vingança não é legítima. Porém, em uma perspectiva schopenhaueriana, ele não deveria ser punido por quem ele é, visto que a alteração de seu caráter não está sob seu domínio, apenas seu ato deveria ser punido, a fim de que não voltasse a ser praticado. Dominado pelo sentimento de remorso, coagido por uma imensa dor sobre o conhecimento próprio de si mesmo que antes ele não possuía, sofre, não pela injustiça cometida por seu crime, mas sim, pelo desgosto em reconhecer a mediocridade de seu caráter imutável.

A consciência de não poder ser outro, a percepção de não se assemelhar a uma grande figura heroica como Napoleão e a dificuldade em manter o segredo de sua culpa, são cruciais para a compreensão de que o remorso de Raskólnikov não provém da injustiça cometida contra as suas vítimas, o seu sofrimento procede exclusivamente do seu reconhecimento da insignificância de si mesmo, de seu próprio caráter. Não se trata de sofrer por aniquilar a vida de alguém, sua frustração origina-se da dor em reconhecer a mediocridade de seus atos, de perceber que seu caráter não possuía nenhum traço de extraordinariedade. Caso Raskólnikov se autoconhecesse em maior medida antes de cometer o ato, saberia que seria incapaz de lidar com as consequências de suas ações. Todavia, conforme Schopenhauer, o homem apenas se conhece à medida que vive no mundo, portanto, antes de obter conhecimento da vida pelo comércio com o mundo, o homem é incapaz de saber quem ele mesmo é. O ser humano conhece a si mesmo enquanto observa a direção das suas próprias forças mentais e físicas agindo no mundo.

Sendo assim, para conhecer-se plenamente, seria preciso ter vivido completamente todas as experiências possíveis. Tendo em vista a transitoriedade da individualidade dos seres humanos no mundo, a morte arrebata o ser humano muito antes dele ter a possibilidade de viver todas as experiências possíveis para acessar o conhecimento mais completo de si mesmo. Por isso, cada um somente é capaz de conhecer-se com base nas experiências em que viveu, enquanto o conhecimento das experiências que ainda não viveu permanece em suspenso. Sendo assim, dificilmente Raskólnikov poderia ter agido de modo diferente, pois antes ele não obtinha o conhecimento necessário sobre si mesmo para agir de outra maneira.

REFERÊNCIAS

DOSTOIÉVSKI, F. Crime e Castigo. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2019.

RÉE, P. A origem dos sentimentos morais. Trad. André Itaparica e Clademir Araldi. São Paulo: Editora Unifesp, 2018.

ROSENSHIELD, G. Crime and Punishment, Napoleon and the Great Man Theory. The Journal of the international Dostoevsky Society. v. 23, p. 78-104, 2020.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. Tomo I. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2015.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. Tomo II. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2015.

SCHOPENHAUER, A. Sobre a liberdade da vontade. Trad. Lucas Lazarini Valente e Eli Vagner Francisco Rodrigues. São Paulo: Unesp, 2021.

SCHOPENHAUER, A. Die Welt als Wille und Vorstellung I. Feldafing: Haffmans Verlag bei Zweitausendeins, 2018.

SCHOPENHAUER, A. Die Welt als Wille und Vorstellung II. Feldafing: Haffmans Verlag bei Zweitausendeins, 2018.

SCHOPENHAUER, A. Die beiden Grundprobleme der Ethik. Feldafing: Haffmans Verlag bei Zweitausendeins, 2018.

SMITH, A. Teoria dos sentimentos morais. Trad. Lya Luft. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2015.

WU, R. O crime metafísico em Dostoiévski. Aletria, v. 20, n. 3, p. 257-266, 2010.

Contribuição de autoria

1 – Ana Paula Manoel Felipe

Mestranda em Filosofia pela Universidade Estadual de Londrina

https://orcid.org/0009-0003-8427-1341 • ana.paula.manoel@uel.br

Contribuição: Escrita – Primeira Redação

Como citar este artigo

FELIPE, A. P. M. O remorso de Raskólnikov em uma perspectiva schopenhaueriana. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria - Florianópolis, v. 15, n. 1, e88213, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378688213. Acesso em: dia mês abreviado. ano.



[1]Em sintonia com Schopenhauer, Adam Smith em sua obra Teoria dos sentimentos morais, define o remorso como “o mais terrível de todos os sentimentos que podem introduzir-se no peito humano” (Smith, 2015, p. 105), composto por vergonha e senso de inconveniência da própria conduta, por uma imensa dor, pela análise dos efeitos prejudiciais de sua própria ação e por piedade, pelos que por causa dela sofrem. O remorso é caracterizado como mais cruel que o arrependimento, porque, diferentemente do caso do arrependimento, não se sofre por um erro, ou por uma ação cometida, mas sim pela dor de reconhecer aquilo que se é e que reconhece ser inalterável.

[2] Schopenhauer menciona a existência de três tipos de caráter: o caráter inteligível, que é considerado um ato extratemporal, indivisível e imutável da vontade. O caráter empírico que se refere à manifestação temporal do caráter inteligível no mundo fenomênico e o caráter adquirido, entendido como o caráter obtido na vida pelo comércio com o mundo. Salienta-se que somente o conhecimento pode ser corrigido. Desse modo, a pessoa pode chegar à compreensão de que estes ou aqueles meios que ela anteriormente empregou não condizem com seu fim, no entanto, por mais que seu conhecimento mude, seu caráter permanece imutável.

[3] Paul Rèe em seu livro A origem dos sentimentos morais define o remorso como a ação de “responsabilizar a si mesmo, o estado em que alguém parece a si mesmo como mau e reprovável, porque praticou uma ação má e reprovável, embora pudesse, como acredita, ter se privado de praticá-la” (Rèe, 2018, p. 154).