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Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 1, e86368, 2023

DOI: 10.5902/2179378686368

ISSN 2179-3786

Submissão: 01/10/2023 Aprovação: 01/02/2024 Publicação: 22/03/2024

1 INTRODUÇÃO.. 2

II 9

III 18

REFERÊNCIAS. 26

 

Artigos

Schopenhauer e a fome

Schopenhauer and the Hunger

Thiago FerreiraIÍcone

Descrição gerada automaticamente

Vilmar DebonaIÍcone

Descrição gerada automaticamente

IUniversidade Federal de Santa Catarina , Florianópolis, SC, Brasil

RESUMO

A partir de algumas considerações de Max Horkheimer sobre o potencial crítico do pessimismo schopenhaueriano, o artigo visa mostrar em que medida o sofrimento específico da fome, em especial quando esta é registrada em contextos de pobreza, miséria e escravidão na obra de Schopenhauer, elucida empiricamente o pessimismo metafísico em forma de pessimismo crítico-social. Para tanto, descrevemos algumas presenças dos termos fome (Hunger) e pobreza (Armut) na obra do pensador da vontade para, em seguida, problematizarmos alguns de seus significados. Apesar de não reconhecer um expediente ativo do Estado ou a necessidade de mudanças sociais estruturais em vista de seu combate, a fome enquanto dor ou sofrimento social de todos os tempos ganha em Schopenhauer um olhar crítico muito específico - em relação a outras críticas filosóficas -, que se soma às variadas condenações sociológicas, econômicas etc., a saber, como uma das expressões mais flagrantes das perversidades e mazelas de um mundo que não poderia ser justificado.

 

Palavras-chave: Schopenhauer; Pessimismo; Fome; Pobreza; Sofrimento

ABSTRACT

Based on Max Horkheimer's considerations regarding the critical potential of Schopenhauerian pessimism, the article aims to demonstrate to what extent the specific suffering of hunger, especially when observed in contexts of poverty, misery, and slavery in Schopenhauer's work, empirically elucidates metaphysical pessimism in the form of critical-social pessimism. To achieve this, we describe some occurrences of the terms hunger (Hunger) and poverty (Armut) in the thinker's work and subsequently problematize some of their meanings. Despite not acknowledging an active role for the State or the need for structural social changes to combat it, hunger, as a timeless social pain or suffering, gains a very specific critical perspective in Schopenhauer - in relation to other philosophical critiques. This perspective adds to various sociological, economic condemnations, etc., presenting itself as one of the most blatant expressions of the perversities and ills of a world that cannot be justified.

 

Keywords: Schopenhauer; Pessimism; Hunger; Poverty; Suffering

1 INTRODUÇÃO

Eu quando estou com fome quero matar o Jânio,

quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino.

 

(Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo, p. 33)[i]

I

Há uma interpretação canônica do pensamento de Schopenhauer segundo a qual o pessimismo seria um quietismo, isto é, sua metafísica da ética argumentaria decididamente pela resignação espontânea diante dos sofrimentos inevitáveis da vida, pela negação do querer e da própria vontade face ao saldo invariavelmente negativo das felicidades sempre passageiras, subtraídas às dores e frustrações contínuas. Tal leitura ressalta, por conseguinte, a falta de sentido de qualquer atuação social e política, relegando à rara e grandiosa autossupressão da vontade, encarnada nas figuras de ascetas e santos, a única esperança de superação de um mundo prenhe de injustiças, carências e misérias. Dentre outros intérpretes, György Lukács (2020), em sua notória crítica a Schopenhauer, encampou esse tipo de leitura em A destruição da razão, ao reconhecer na metafísica imanente da vontade um dos capítulos de uma história política, intelectual e cultural que teria pavimentado os caminhos que levaram à ascensão do nacional-socialismo na Alemanha. Não é difícil compreender, com efeito, as razões pelas quais tantos aspectos da obra de Schopenhauer - tais como o elogio ao quietismo, a reconhecida ausência de uma filosofia política ou social, as desqualificações da vida em sociedade - podem ser facilmente apropriados a tal fim, e puderam, de fato, satisfazer algo das carências ideológicas daquele partido político (Ciracì, 2011).

Contudo, alternativamente, uma interpretação “herética” (Fazio, 2009; Ciracì, Fazio, Kossler, 2009) tem apreendido a obra schopenhaueriana sob outras luzes, cuja lucidez particular divisa um pessimismo que não é necessariamente, quiçá sequer preferencialmente, um quietismo. Ludger Lütkehaus (2006, 2007) defendeu até mesmo uma esquerda schopenhaueriana, correspondente a um pessimismo de esquerda, que, se não nutre esperanças de emancipação geral, ampara e ajuda a fundamentar a crítica ao sofrimento injusto, evitável ou atenuável, mesmo quando apenas parcialmente. Embora tal perspectiva de leitura tenha prosperado nas últimas décadas e venha ganhando contornos e desenvolvimentos cada vez mais instigantes, remonta a Max Horkheimer, para quem o pessimismo de Schopenhauer é capaz de fundamentar uma crítica severa à crueldade, especialmente àquela dos fanatismos nacionalistas cuja idolatria “tem apetite por sacrifícios sangrentos” (Horkheimer, 2018, p. 204). A crítica pessimista às filosofias otimistas e aos projetos políticos alegadamente emancipatórios se opõe à tolerância caiada face aos terríveis padecimentos que trazem em seu bojo, especialmente aqueles pretensamente justificados por supostas bonanças futuras. Ora, tal censura não alcança somente contextos em que a violência, a tortura e a morte grassam sobre um tecido social severamente esgarçado; abarca também a mortificação e os tormentos corporais mitigáveis impostos pela miséria e pela fome e justificados por promessas de prosperidade futura. E essa é a hipótese que buscamos desenvolver no âmbito do que tem sido chamado de pessimismo crítico - esboçado não apenas por Horkheimer e Lütkehaus, mas também por Alfred Schmidt, Rudolf Malter e outros.

Em vista disso, sugerimos considerar o que Horkheimer afirmou em Schopenhauer e a sociedade, numa de suas tantas indicações do potencial crítico do pessimismo metafísico: “não é necessário pensar unicamente nos fanatismos, nas persecuções inacabáveis, nos desterros cruéis e extermínios de grupos inteiros [...], basta recordar a vida social cotidiana nos países em que se conduz com maior êxito a luta contra a pobreza” (Horkheimer, 1966, p. 167, grifo nosso). Aqui, como em geral nas críticas schopenhauerianas aos otimismos filosóficos, o que está em jogo são as tentativas de justificação do sofrimento sentido em prol de um presente supostamente feliz; ou, o que não é tão diferente, os esforços de justificação do sofrimento presente, pari passu à aceitação do status quo, em nome de um futuro pretensamente feliz.

De um lado, um entendimento convencional alça o asceta a humano grandioso que encarna a superação do egoísmo, a negação da vontade e o fim do sofrimento; de outro, reconhecida a raridade desses tipos e a permanência de todas as formas, notadamente as mais cruéis, de sofrimento entre o gênero humano, um entendimento alternativo apura e examina proposições éticas acessíveis às multidões. Do egoísmo fundamental da vontade surge uma “visão cada vez mais límpida que transpassa o principium individuationis [...]", da qual resultam "primeiro a justiça espontânea, em seguida o amor que vai até a supressão completa do egoísmo, por fim a resignação ou negação da vontade” (W I, p. 472)[1]. São extraordinários aqueles que alcançam tal estatura ética; Schopenhauer a reserva a seres excelsos, a alguns ascetas escolhidos pelo destino. Mas o que resta à quase totalidade dos indivíduos ordinários e dotados de variados graus de egoísmo e compaixão, de um caráter que transita entre a justiça espontânea e o amor, por um lado, e o egoísmo apenas parcialmente contido, por outro? Salvo as ações das referidas excepcionalidades, todo o agir humano se dá sob o império das carências e necessidades tirânicas do querer representadas diretamente à consciência de si, como sofrimento vivo e contínuo até futura satisfação e como um mandato ao intelecto a encarregar-lhe pela concepção de meios possíveis de obtê-la. O outro, por sua vez, só irrompe na consciência indiretamente, sob todos os parâmetros do princípio de razão. Por analogia, o intelecto pode concluir que os outros, todos os outros, também padecem de semelhante urgência duradouramente insaciável e de dores ininterruptas senão por breves períodos. Mas somente por uma analogia, ou seja, por um produto do intelecto a serviço de uma vontade incessante que tudo submete à urgência de sua satisfação. Toda a existência do mundo externo só pode ser percebida quando levada pela razão à consciência de si, “de modo que tudo depende sempre da autoconsciência” (E II, p. 122)[2]. Em síntese: entre aqueles que compõem a multidão, somos todos egoístas com graus variados de compaixão e esclarecimento, ou relativa sabedoria de vida.

            Nesse mesmo horizonte interpretativo, dispomos da proposta de uma diferenciação entre grande e pequena ética para ler a teoria schopenhaueriana da ação. Entre "santos puros" e "mundanos mesquinhos", haveria espaço para uma pequena ética (Debona, 2013, 2015, 2020, 2022), nos seguintes moldes: entre os extremos daquele que vê limpidamente através do Véu de Maya e daquele que é por ele inteiramente iludido, haveria uma longa e indeterminada gradação ética possível. Mesmo aqueles cujo caráter empírico é constituído por um egoísmo particularmente veemente poderiam desenvolver, ao longo do tempo e intermediados pelo intelecto, pela experiência em geral e pela sabedoria de vida, um caráter adquirido suficientemente sólido e capaz de escoltar parcialmente tal egoísmo, mesmo que profundamente ensimesmado, até suas finalidades autocentradas e sem acarretar (tanto) sofrimento a terceiros. À diferença de uma grande ética desinteressada e basicamente misteriosa, embora servo da vontade, o intelecto reteria mais agência. Caberia a este, senão determinar, ao menos sugestionar tal vontade, oferecendo-lhe contra-motivos capazes de desviar o curso de ação egoísta, contornar situações dramáticas e evitar, tanto quanto possível, impingir sofrimento a outrem. Desse modo, se o caráter empírico dos indivíduos é imutável e representa um limite inviolável aos esforços educativos do intelecto, também é verdade que a “promessa do mendigo satisfeito, tão frequente em toda a parte, de que a esmola será restituída, mil vezes multiplicada naquele mundo, pode levar muito sovina a dar esmolas generosas” (E II, p. 128). E, então, não poderíamos ignorar as amplas capacidades do intelecto, apto até mesmo a guiar um querer especialmente avarento a agir como se imbuído de intenções virtuosas. Schopenhauer é enfático em sua metafísica da ética: quaisquer intenções egoístas, mesmo ocultas ou até mesmo desconhecidas, conspurcam a moralidade da ação, a despeito do bem- ou mal-estar causado a si mesmo ou a qualquer semelhante. Sem embargo, a pureza de motivos é própria à grande ética e à santidade daqueles cujo egoísmo foi suprimido; resta-nos, felizmente, uma ética impura, mundana, apropriada aos indivíduos triviais, em cujo caráter egoísta a compaixão assoma em frequência, grau e formas diversas. Se ao egoísta não lhe ocorre a redenção, a negação da vontade e o fim do sofrimento, restaria a ele uma ética do aprimoramento ou da melhoria (do intelecto), qual seja, uma cujas operações específicas são levadas a cabo pelo intelecto em nome de um egoísmo esclarecido, por assim dizer, possível, já que o egoísmo não se confunde com a maldade. O egoísta é indiferente ao sofrimento alheio; já ao maldoso, o padecimento alheio é o que interessa, o que lhe satisfaz. Os sofrimentos que o coração egoísta espalha são subprodutos de um curso de ação cuja finalidade é outra, já aqueles atribuídos à maldade são fins em si mesmos. As relações recíprocas entre nossas disposições volitivas empíricas e aquelas que progressivamente adquirimos pela experiência e sabedoria de vida fundamentam os poderes efetivos, embora limitados, do intelecto sobre o querer.

Assim, é no âmbito de uma espécie de “pequena ética da fome” que visamos discutir em que termos seria possível abordar a miséria e a subnutrição tanto como chaga e flagelo social quanto como questão empírico-metafísica a partir da teoria schopenhaueriana da ação. Concisamente, essa é a pergunta para a qual buscamos oferecer alguns argumentos: de uma perspectiva pessimista, seria a fome uma injustiça que exige proteção do Estado nos moldes concebidos por Schopenhauer? Ou, de outra maneira: do ponto de vista do Estado schopenhaueriano, seria a fome suplício semelhante à violência, ao homicídio, ao genocídio e à escravidão?[3] Trata-se, sem dúvida, de uma hipótese espinhosa, já que são bem conhecidos os melindres de Schopenhauer face às ebulições sociais de seu tempo e sua insistência em uma concepção minimalista de Estado. Contudo, amparados por uma leitura herética de seus textos, compartilhamos a dúvida de Horkheimer (1966, p. 162), para quem era difícil compreender “por qué el interés de un filósofo independiente por el mantenimiento del estado de cosas ha de tener más peso filosófico que el interés de los trabajadores auxiliares por su modificación”. Se, em circunstâncias específicas, a miséria e a fome são instrumentos ansiados pelo asceta em busca da mortificação da vontade e do consequente fim do sofrimento, em outras surgem como crueldade imposta a tantos e tantos seres cujo sofrimento indizível apela à compaixão e, conforme nossa argumentação, contradiz os encargos de proteção contra a injustiça do Estado. Tal é a possibilidade entrevista por Horkheimer em A atualidade de Schopenhauer, para quem o filósofo do sofrimento

retirou a solidariedade em relação ao sofrimento e à comunidade dos humanos desamparados no universo do domínio da teologia, da metafísica, bem como de todo tipo de filosofia positiva da história e da sanção filosófica, sem, por isso, de forma alguma defender a crueldade. Enquanto na Terra houver fome e miséria, aquele que é capaz de ver não encontrará sossego (Horkheimer, 2018, p. 200, grifo nosso).

Essa elaboração potente reconhece não apenas as posições de Schopenhauer contra a intolerância e o dogmatismo racionalista, mas também sua insistência em negar equivalência entre uma existência terrível decorrente de uma história sanguinolenta e aquilo que deve ser. Em outros termos, Horkheimer tem em mente a maior das revoluções conceituais de Schopenhauer: ser e bem jamais deveriam ser termos correlatos. Tal é o sentido de suas recorrentes reflexões a respeito da tese schopenhaueriana segundo a qual nem mesmo uma suposta humanidade futura finalmente livre de suas tendências ao extermínio recíproco e, assim sendo, orgulhosa como materialização do bem, poderia proporcionar alguma compensação ou justificação para seus suplícios passados. A despeito de tais limitações, uma “pequena ética da fome” captaria a esperança revelada pelas forças subversivas de uma juventude inquieta face às contradições do tempo de Horkheimer, a saber, entre as capacidades produtivas e políticas então à disposição da humanidade e sua situação geral, já que “perseguição e fome dominam completamente a sociedade ainda hoje” (Horkheimer, 2018, p. 206, grifo nosso).

II

Em vista de um desenvolvimento hermenêutico, inspirados em Horkheimer, de uma acepção crítico-social possível do pessimismo metafísico schopenhaueriano, convém examinarmos os contextos e sentidos específicos nos quais a fome (Hunger) e a pobreza (Armut) aparecem nos textos pertinentes de Schopenhauer[4].

Comecemos pelas ocorrências encontradas no contexto do desenvolvimento das teses sobre negação da vontade, no Livro IV de O Mundo. Com presença circunspecta, a fome surge em meio às passagens mais profundamente quietistas de toda a obra. Em graus extremos de abnegação, o asceta sucumbe à inanição, como nos exemplos citados de monges e penitentes. O santo intenta não mais alimentar a vontade, não mais saciar quaisquer urgências que impõe à consciência, uma vez que busca sua mortificação integral. Pratica “completa resignação, voluntária e absoluta pobreza” (W I, p. 490). Os graus mais extremos de ascetismo e negação da vontade colocam ao asceta uma dúvida fundamental: entre “esta morte voluntária resultante do extremo da ascese e aquela comum resultante do desespero, deve haver muitos graus intermédios e combinações que são certamente difíceis de explicar" (W I, p. 466). A fome questiona a conduta mesma daqueles raros indivíduos descritos por Schopenhauer em sua grande ética quietista: o "grande homem" abnegado, diante de seus últimos passos em seu processo de supressão da vontade, claudica.

Estamos tratando, assim, de uma carência primária do corpo, aquela que ameaça sua própria subsistência, pois a subnutrição ameaça radicalmente a vontade de vida na medida em que permite à morte assombrar “seu primeiro e mais universal fundamento": o corpo vivo, materialização da vontade, "com o seu mandamento férreo de alimentação” (W I, p. 402). A fome impõe ao corpo e à vontade não só dor, profundo mal-estar físico, debilidade muscular, tontura, confusão e outros sofrimentos de natureza semelhante; forçosamente, a fome também expõe o corpo e a vontade à perspectiva de sua finitude iminente. Nenhuma meditação acerca da finitude do corpo pode ignorar a angústia existencial insinuada à vontade pela morte. A unidade entre corpo e vontade é tal que, “em vez de afirmação da vontade, podemos também dizer afirmação do corpo” (W I, p. 379). A miséria tortura os corpos dos seres comuns, sussurra-lhes ideias mórbidas, apavora-os. A fome fundamenta e acompanha a primeira manifestação da vontade, cuja relativa saciedade permite apenas uma igualmente relativa possibilidade de tédio, “seu extremo oposto” (W I, p. 363), ou de quaisquer outras cadeias infindáveis de novos desejos e insatisfações possíveis.

Mas o que nos interessa ainda mais são as ocorrências dos termos fome e miséria em contextos que podemos considerar próprios à pequena ética, naqueles em que o mal empírico ou temporal está em questão, notadamente em suas feições sociais, e sem alternativas extraordinárias de resignação individual possível. Contextos em que, ao contrário do cenário ascético, a pobreza e a fome não são buscadas, mas impostas pelas mais diversas circunstâncias. Assim, no capítulo V do Tomo II de Parerga e Paralipomena, dedicado a considerações críticas sobre o panteísmo, o filósofo questiona e ironiza a existência de Deus e sua identificação com o mundo por meio de considerações a respeito de dois males aparentados, o suplício dos escravizados e a fome de trabalhadores fabris.

A ninguém ocorrerá de modo imediato e imparcial tomar este mundo como um deus. Pois deveria se tratar de um Deus muito mal esclarecido, que não soube encontrar melhor divertimento que se transformar num mundo como este, tão faminto, e para aqui suportar, na figura de inumeráveis milhões de seres vivos, porém aterrorizados e maltratados, que em sua totalidade conseguem existir momentaneamente apenas se devorando uns aos outros, a lástima, a necessidade e a morte, sem medida e sem finalidade, na figura, por exemplo, de seis milhões de escravos negros que recebem diariamente em média sessenta milhões de chicotadas sobre o corpo nu, e na figura de três milhões de tecelões europeus que vegetam debilmente com fome e desgosto, em catres mofados ou salões de fábrica desolados etc. Que passatempo para um deus! Como tal, deveria estar habituado a coisas bem diferentes (P II, § 69, p. 146-147, grifos nossos).

 

Já em Sobre a doutrina do direito e a política, capítulo IX do mesmo livro, não lemos a ocorrência do termo “fome”, mas notamo-la implicitamente em expressões como “miséria”, “escravidão”, “manutenção física da existência” e outras.

Pobreza e escravidão são, portanto, apenas duas formas, pode-se mesmo dizer dois nomes, da mesma coisa cuja essência consiste em que as forças de um homem são empregadas em grande parte não para ele mesmo, mas para outros; do que resulta para ele em parte sobrecarga de trabalho, em parte escassa satisfação de suas necessidades. Pois a natureza deu ao homem apenas a força necessária para adquirir seu sustento da terra através de um uso moderado dela, não a deu em grande excesso. Se uma porção considerável do gênero humano é desincumbida do fardo comum da manutenção física da existência, então a parte restante será excessivamente sobrecarregada e estará na miséria. Daí surge primeiramente aquele mal que, ora com o nome de escravidão, ora de proletariado, afligiu a maior parte do gênero humano. Porém, a causa mais remota deste mal é o luxo. Para que uma minoria possa ter o dispensável, supérfluo e coisas refinadas, e mesmo satisfazer necessidades artificiais, uma grande parte das forças humanas existentes deve ser empregada na produção dessas coisas e alijada da produção do que é necessário e indispensável. Ao invés de construir cabanas para si próprios, milhares constroem mansões para poucos; ao invés de tecer malhas grosseiras para si próprios e para os seus, eles tecem malhas finas ou de seda, ou mesmo rendas para os ricos e confeccionam milhares de objetos de luxo para entretê-los […]. Ademais, muitos são retirados da agricultura para servir à construção de barcos e à navegação para a importação de açúcar, café, chá etc. A produção dessas coisas supérfluas se torna então a causa da miséria de milhões de escravos negros que são violentamente arrancados de sua terra natal para produzir com seu suor e seu martírio aqueles objetos de prazer (P II, § 125, p. 90-91, grifos nossos).

Caso lidas isoladamente, essas elaborações e denúncias de ordem sociológica podem sugerir ao leitor perspectivas políticas e filosóficas ausentes em Schopenhauer, mas são uma boa amostra dos entretons sutis e críticos presentes nos elementos empíricos e sociais da metafísica da vontade. Está claro que não bastam para sustentar uma coerência sistemática de posições, já que a mesma obra oferece, entre outros exemplos, a defesa de uma monarquia ampla e tripartida, justificada pela suposta necessidade de conduzir a grande massa da humanidade, ou a recusa reiterada de reconhecer algum estatuto ao ser social que não seja apenas um tipo de nominalismo como abstração da concretude individual. Com efeito, essas críticas e denúncias sociais não transformam seu autor em filósofo das causas ou da estrutura da sociedade que favorece a escravidão, a miséria e a exploração do trabalho - por mais que sustente ser o luxo causa remota da miséria. Sobretudo, não tornam Schopenhauer um filósofo político ou social (Debona, 2021, p. 837-838). Foi nesse sentido que, em seu importante ensaio Schopenhauer: metaphysischer Pessimismus und “soziale Frage”, Lütkehaus discorreu sobre o desequilíbrio entre a preocupação com os sofrimentos que podem ser evitados na esfera eudemonológica, dos Aforismos para a sabedoria de vida, e a falta dessa mesma preocupação em relação aos sofrimentos evitáveis nas esferas social e política: “A relativização do sofrimento social encontra seu limite diante dos graus extremos de pobreza; e nenhuma ‘sabedoria de vida’ pode suspender a luta contra males evitáveis e desigualmente distribuídos” (Lütkehaus, 1980, p. 42, grifos nossos).

Aqui, antes de problematizarmos aspectos do sofrimento de dimensões sociais em Schopenhauer, é importante termos presente os dois principais tipos de sofrimentos que o filósofo mais deixa claro ao longo de sua obra, o sofrimento conhecido e o sofrimento sentido, mesmo que não nos interessem o contexto e a finalidade da negação da vontade em vista dos quais são diferenciados. O sofrimento conhecido denota o modo pelo qual percebemos a dinâmica insaciável de desejos e quereres, como sinônimos de carência e insatisfação, pelas premissas de que “quem deseja, sofre” e “quem vive, deseja”, por onde chegamos a uma das conclusões mais conhecidas do chamado pessimismo metafísico do filósofo, a saber, que, então, “toda vida é sofrimento”. Trata-se, também, da via pela qual, a partir daquele conhecimento do todo da vida explanado no Livro IV de O mundo, alguns raros indivíduos chegam à negação da vontade. Nessa dimensão, os sofrimentos são primeiramente conhecidos no mundo, portanto como sofrimentos dos outros; e, para o asceta que atinge a negação da vontade, somente em seguida, após advir a viragem espontânea da vontade por um quietivo que substitui os motivos da ação, passa-se a experimentar os mais variados sofrimentos, buscados intencionalmente, como a pobreza voluntária, as renúncias e as privações de todo tipo. Já o sofrimento sentido, assumido em termos de deuteros plous (no sentido da “segunda navegação” platônica), no § 68 de Tomo I e no Cap. 48 do Tomo II de O mundo, refere-se à vivência direta e involuntária do sofrimento, sem que este tenha sido buscado, mas que é “trazido pelo destino” (W I, p. 497). Trata-se igualmente de um caminho que pode levar à negação da vontade, pelo qual, aliás, a maioria dos negadores da vontade atinge tal fim, mas, nesse caso, diretamente “através do sofrimento pessoal duramente sentido, logo, não simplesmente pela apropriação do sofrimento alheio e pelo reconhecimento que daí resultou da vaidade e do caráter sombrio da nossa existência” (W II, p. 750).

Essa distinção nos interessa em particular devido a um posicionamento pessoal de Schopenhauer, expresso em conversa com seu testamentário Julius Frauenstädt (e registrado por este), que podemos assumir como anteparo para evitar conclusões apressadas em relação à referida “segunda navegação schopenhaueriana”. Referimo-nos a tipos de objeções logicamente possíveis e coerentes, mas sem respaldo semântico, como a que elaborou o próprio Frauenstädt ao mestre: num passeio com Schopenhauer pelas ruas de Frankfurt, o discípulo apresentou a questão segundo a qual, a partir da referida teoria do deuteros plous, poderíamos assumir que a dor e o sofrimento são salutares e bem-vindos por levarem potencialmente à resignação, e que, assim, seria razoável não mitigarmos a dor alheia para, dessa forma, não impedirmos a resignação. Schopenhauer teria rebatido imediatamente: “Oh, não obstante todas as atenuações e os aplacamentos de sofrimentos, sempre haverá miséria suficiente no mundo que leve à resignação” (Gespr, p. 114, grifo nosso). Não seria desarrazoado afirmar que, com assertivas dessa conotação, o próprio filósofo, ao contrário do recolhimento sugerido em outras ocasiões, teria instigado o engajamento nas mais variadas formas de combate a sofrimentos e misérias.

Mas, em termos sociais e políticos, como os papéis do Estado para combate a flagelos sociais, o que teríamos de expediente schopenhaueriano, ainda que hereticamente, ao modo das leituras de Horkheimer? Quais espaços de ação seriam schopenhauerianamente reconhecidos ante o escárnio evitável da fome ou da miséria material?

Em sentido estrito, Schopenhauer apenas poderia ser assumido como um filósofo que permitiria sintonias com teorias (contemporâneas) do assim chamado sofrimento social, e em especial para debater mazelas tão cruéis como a fome e a miséria material, se tivesse reconhecido minimamente algo na direção do que precisou um dos mais importantes teóricos do sofrimento social do séc. XX, Emmanuel Renault, isto é, que, em suma, importa pautar “a transformação das condições sociais que produzem o sofrimento” (Renault, 2004, p. 344). Aliás, antes de Renault, Barrington Moore (1972) havia proposto uma diferenciação entre sofrimento individual e sofrimento social por meio da tese de que existem sofrimentos cujas causas não são naturais, como o são doenças e catástrofes naturais, ou que não são fruto de relações interpessoais mais circunscritas e próximas, como o são a violência física ou a traição no amor, mas que resultam do agir humano deliberado em sociedade, e que respeitam às relações sociais mais amplas e gerais, produzidas por meio de uma guerra, de explorações diversas e da produção deliberada da pobreza. Ao lado da distinção crucial de Moore, Renault insistirá na tese de que há uma série de sofrimentos de tipo social vividos como se fossem de tipo individual, como aqueles advindos de formas variadas de injustiças que têm causas sociais. A vivência subjetiva e íntima de um transtorno psíquico, de uma depressão ou de algo semelhante, faz com que, facilmente, o indivíduo não vislumbre o caráter social do seu sofrimento e atribua a si mesmo a responsabilidade por ele; faz com que se viva algo, como a vivência da fome, como se fosse algo tolerável ou justificável, sendo que, inclusive para Renault, o que é intolerável pode ser vivido, mas jamais medido quantitativamente (idem, p. 77). Nesse sentido, poderíamos considerar sem grandes esforços, como exemplo, que é o tipo de situação constatada com estupefação por Pinzani e Rego (2013) ao saírem a campo, especialmente no Nordeste brasileiro, para pesquisar e ouvir as beneficiárias de um dos maiores Programas governamentais contemporâneos de combate à fome (e de transferência de renda), o Bolsa Família. Com efeito, não seria difícil nem temerário afirmar que o mal recidivo schopenhaueriano da luta por matéria e conservação, estampado em variados graus e intensidades, reincide também nas muitas formas de desigualdade social - como a brasileira combatida pelo Bolsa Família -, produzidas especialmente por acúmulos e monopólios de capital e produção; como, aliás, o próprio Schopenhauer, sem ter lido Marx e Engels, cravou sobre a pobreza do proletariado de sua época, assim como sobre a riqueza e o luxo.

Em sentido lato, no entanto - e sob a referida perspectiva não quietista de um pessimismo metafísico de base -, ainda valeria considerar que o próprio Schopenhauer denunciou haver algo de diabólico na aparente indiferença opulenta face à indigência alheia, uma vez que a virtude da caridade compartilha o mesmo fundamento da justiça, ou seja, a identificação compassiva com todo ser que padece. Seria possível, então, problematizar os limites da atuação do Estado entre política conservadora e elementos de uma “ética impura” calcada fundamentalmente na virtude da caridade. Valorizaríamos, para tanto, alguns elementos da definição e delimitação da concepção de Estado, com sua respectiva noção de injustiça, em cujo horizonte pode se inserir uma discussão sobre direitos humanos fundamentais, nos moldes propostos recentemente por Felipe Durante (2017, 2021) e no horizonte de uma mesma (em relação a Horkheimer) interpretação herética do pensador da vontade. Essa linha hermenêutica acompanha e pode ser abrigada no expediente da referida pequena ética schopenhaueriana (Debona, 2013, 2015, 2020, 2022), dado que esta permitiria considerar a ação entre moralidade, legalidade e sociabilidade, sem a pretensão de extirpar todo egoísmo e esperar por ações puramente compassivas. Veríamos como, mediante essas dimensões, o sofrimento social da fome ou da pobreza, por um lado, cabe no rol da concepção conservadora de Estado e, por outro, ajuda a mostrar a face menos ou nada titânica de uma ação que se, por um lado, se alicerça no mistério da compaixão, por outro não prescinde de elementos impuros de interesse próprio.

III

O Estado pode ser considerado uma instituição afim à pequena ética na medida em que suas operações de dissuasão recorrem ao intelecto daqueles capazes de praticar injustiças, oferecendo-lhes razões para abandonar seus planos. A rigor, como sabemos, tal Estado “não é uma instituição moral, ele se funda na violência” (Horkheimer, 2018, p. 192): é um produto do intelecto a propor, sempre a serviço da vontade, razões para melhor satisfazê-la, e é compreendido pelos reles indivíduos “sob a correta pressuposição de que a pura moralidade, isto é, a conduta justa a partir de fundamentos morais, não é uma coisa que se deva esperar” (W I, p. 400-401). Mesmo ao intelecto mais egoísta lhe ocorre a suspeição segundo a qual poderíamos todos sofrer menos se cada um de nós se abstivesse de praticar injustiças uns aos outros. Mas o intelecto não basta, pois a ação é determinada sobretudo pelo querer misterioso que habita cada um de nós. Seria preciso, assim, impor a ameaça de agonias ainda maiores caso ouse a vontade cogitar empregar o sofrimento de corpos alheios como meio de lograr regozijo e satisfação próprios. Nesse horizonte, a função do Estado seria a de prevenir a injustiça, dado que é contra ações injustas que ele “ergue o baluarte da lei como direito positivo” (E II, p. 149).

Assumida uma noção positiva de injustiça, uma conduta justa equivaleria a uma conduta livre de injustiças. O ato injusto se equipara, assim, a uma invasão aos limites da afirmação do corpo e da vontade de outrem e é reconhecido “pelo nome INJUSTIÇA, devido ao fato de as duas partes reconhecerem instantaneamente o ocorrido, embora não como aqui, em distinta abstração, mas como sentimento” (W I, p. 388). Assim, não seria outro o propósito do Estado senão o de sugerir ao mais implacável egoísmo razões cuja adequada ponderação deve persuadir a vontade individual a escolher caminhos alternativos na busca por sua satisfação: “o ESTADO”, asseverou Schopenhauer, “não passa de uma INSTITUIÇÃO DE PROTEÇÃO, tornada necessária devido aos diversos ataques a que o ser humano está exposto e dos quais ele não pode defender-se isoladamente, mas apenas em união com outros” (W II, p. 709-710, grifos nossos). Proteção de uns contra outros, de nós contra povos estrangeiros, de cada um contra o próprio protetor: tais são as demandas de proteção contra a injustiça aptas a seduzir o intelecto egoísta que, elevando-se de sua unilateralidade e considerando o todo, “reconhece, a partir daí, que tanto para reduzir o sofrimento espalhado em toda parte quanto para reparti-lo da maneira mais equânime possível, o melhor e o único meio é poupar a todos a dor relacionada ao sofrimento da injustiça” (W I, p. 398).

Ora, não seria a fome um ataque a que todos estamos expostos e contra o qual não podemos nos defender isoladamente? Poderia ela, então, ser considerada um fenômeno social injusto, um sofrimento que reclama devida proteção ao Estado? À primeira vista, pode parecer que a concepção de injustiça de Schopenhauer não alcança fenômenos que, embora intensamente penosos, não são o resultado direto de uma ação injusta cuja prevenção é, como vimos, o objetivo do Estado. A penúria à qual estão submetidos tantos seres humanos é, vista desse ângulo, um infortúnio e não uma injustiça[5], isto é, um fenômeno incontornável e independente da dinâmica regular da sociedade. Contudo, assim compreendido o fenômeno, não é possível evitar a questão: e se a fome não for um fenômeno inevitável, mas for, com efeito, subproduto de operações econômicas deliberadas de uma sociedade?

Diferenciamos claramente dois aspectos. O primeiro leva a interrogar-se até que ponto a insegurança alimentar de tantos é resultado das operações econômicas normais da sociedade e, portanto, demanda-lhe reparação pela injustiça. Já a respeito do segundo, trata-se da avaliação das capacidades efetivas, não só as econômicas, mas particularmente as políticas, que tal coletividade responsabilizada dispõe[6]. A questão da fome envolve e pressupõe tanto a virtude da justiça quanto a da caridade, por meio das quais, recordemo-nos, a compaixão “é acionada quando sou chamado a fazer um grande ou pequeno sacrifício à necessidade de outrem” (E II, p. 160). Se há injustiça por omissão, a compaixão não pode deixar de envolver a caridade ao interrogar-se o que é factível realizar a respeito da subalimentação e a inanição no interior de um sistema econômico, político e social vigente, a fim de amenizar ou superar tais misérias.

Schopenhauer também reconhece um conjunto de ações cuja simples omissão constitui injustiça e sofrimento a ela associado: tais são os deveres. Nesse horizonte, sabemos que, em alternativa a Kant, o autor formula uma noção de dever muito mais modesta. Um dever seria uma dívida assumida com aqueles para os quais sua omissão constitui tormento e injustiça. A promessa seria o fenômeno ético em que a ideia de dever surge mais nítida: “Ora, se o outro quebra o contrato, me enganou e, pela manipulação de motivos aparentes em meu conhecimento, dirige o meu querer segundo suas intenções, estendendo o domínio da sua vontade sobre outro indivíduo, logo, pratica uma injustiça perfeita” (W I, p. 392). Mais uma vez, uma leitura açodada pode sugerir que, muito embora caracterizados pela omissão, a força ética do dever volta a encontrar uma ação e um agente, tal como o entendimento da promessa como um dever assumido, cuja omissão descreve uma injustiça por omissão. Também é injusta toda conduta que, em concorrência com muitas outras, leve sofrimentos a terceiros, mesmo que indiretamente e sem tal finalidade: é injusto todo sofrimento que “sobrevenha instantaneamente ou um pouco mais tarde, direta ou indiretamente, mediado por um termo médio” (E II, p. 143)[7].

Ademais, Schopenhauer não se furta a reconhecer deveres tácitos, isto é, ações cuja simples omissão constituiria injustiça, entre o Estado e aqueles a quem subordina: tais são, “via de regra, um contrato expresso bilateral, como, por exemplo, entre o príncipe e o povo, o governo e os funcionários (...)” (E II, p. 152)[8]. O filósofo vai além: “No Estado, portanto, reconhecemos o meio pelo qual o egoísmo, servindo-se da faculdade de razão, procura evitar as suas próprias consequências funestas que se voltam contra si, e, assim, cada um promove o bem-estar geral, porque dessa forma assegura o bem-estar particular” (W I, p. 406). Em escritos tardios, o autor retoma o argumento: “Justice in itself is powerless; by nature force rules. Now to attract force over to justice, so that justice rules by means of force, - this is the problem of statesmanship” (P, § 127). Ao Estado, assim, caberia não somente a ameaça factível de seu código penal, mas também o combate a injustiças, já que, como afirma no mesmo parágrafo, “through progress in the intelligence of the masses, and then it leads to revolution” (ibidem).

Ora, teríamos dessa forma um encaminhamento da nossa questão, referente ao problema da miséria humana, do sofrimento concretizado num corpo faminto e a ele imposto por alguma razão: a “instituição de proteção” estatal teria de proteger também os injustiçados por exploração social ou sistema econômico. Gostaríamos de acompanhar, para melhor fundamentar essa hipótese, a interpretação proposta por Felipe Durante (2022) no âmbito de sua problematização dos direitos humanos a partir de Schopenhauer, especialmente quanto aos chamados direitos humanos de segunda geração, também conhecidos como direitos sociais e culturais (de saúde, trabalho, habitação etc.). O nó da questão, muito bem captado por Durante, refere-se à necessidade de o Estado desempenhar um papel ativo, de intervenção na ordem social, para as garantias desses e de muitos outros direitos. E disso, já sabemos, Schopenhauer não disporia - ou disporia apenas se lido hereticamente -, devido justamente à sua concepção e defesa de um Estado cujas atribuições seriam meramente negativas, ou seja, apenas proibitivas de qualquer prática de injustiça, além de confundir e reduzir o possível e necessário papel ativo com obras de benevolência e atividades assistenciais em geral:

[...] em conformidade com sua tendência dirigida ao bem-estar de todos, o Estado, de bom grado, até cuidaria para que cada um EXPERIMENTASSE benevolência e obras de caridade de todo gênero se estas não tiverem um correlato inevitável na REALIZAÇÃO de benevolência e de obras de caridade. Só que, assim, cada cidadão irá querer assumir o papel passivo, nenhum o ativo, não havendo motivo algum para atribuir o segundo papel a um em vez de a outro cidadão (W I, p. 409).

Frente a essa concepção do filósofo, Durante se pergunta de forma pertinente se, em caso de pretendermos problematizar a teoria schopenhaueriana da ação em relação a elementos da atualidade, ainda seria possível dissociar proteção física de proteção econômica e de bem-estar em geral. Dado o inegável aumento da relevância e importância do fator econômico como central para a garantia da dignidade e subsistência humana, que sem acesso a recursos financeiros básicos não pode ser garantida, por que haveria dúvidas sobre a necessidade de um outro tipo de proteção estatal em vista de proteger cidadãos de vulnerabilidade e de garantir-lhes o mínimo, por exemplo, por meio de políticas públicas (que não se confundem com obras de caridade)?

Poder-se-ia argumentar [...] que não se tratam de benfeitorias e obras de caridade, mas que o agir do Estado em casos que envolvam questões que podem sanar situações de vulnerabilidade, tais como acesso à saúde, à instrução, moradia e direito ao trabalho, isto é, acesso às condições mínimas de uma existência digna – essas condições mínimas de existência são apontadas pelos direitos humanos – são desejáveis e poderiam ser classificados como um tipo especial de proteção: a proteção social (Durante, 2022, p. 214, grifos nossos).

Se toda injustiça fundamenta um dever de reparação, uma sociedade não poderia preterir o sofrimento de seus famintos quando satisfeitas as condições que tornam a fome uma injustiça contra a qual há demanda legítima por proteção do Estado. A responsabilidade por efeitos indiretos, para os quais não se pôde prescindir da concorrência do querer que habita um número indefinido de outros sujeitos, se diferencia daquela devida diretamente por ações manifestamente danosas por meio da diluição da responsabilidade pelo número de seus participantes ativos, mesmo que bem-intencionados. À medida que a fome ocorra em uma sociedade cuja organização econômica é, com efeito, capaz de superá-la, uma vez que haja perspectiva factível de reorganização social a fim de atenuá-la tanto quanto possível ou, preferencialmente, erradicá-la; enquanto houver fundamentos, condições e circunstâncias políticas favoráveis à decisão de tributar os que comem, e, em especial, os que esbanjam, na medida de sua capacidade, em benefício daqueles que não se alimentam adequadamente, então a questão deveria forçosamente emergir: “Talvez se pudesse fazer valer como uma obrigação que surge imediatamente de uma ação o ressarcimento de um dano causado a alguém”, reconheceu o autor (E II, p. 153)[9]. Afinal, a fome é comparável à escravidão, injustiça por excelência cuja supressão também envolve a compaixão em suas duas formas de manifestação: “a generosa nação inglesa”, observou Schopenhauer, "despende vinte milhões de libras esterlinas para comprar a liberdade dos escravos negros de suas colônias” (E II, p. 163).

Àqueles amedrontados pela sombra do Leviatã, cuja idolatria também é uma perversão, como já notou Horkheimer lendo Schopenhauer, é apropriado insistir que à miséria é reservado um papel especial, embora pouco discutido, na metafísica da ética do pensador da vontade e do irracional. É verdade que, mesmo erradicada a fome, não se debela o sofrimento. Uma vez saciados desejos corporais mais elementares, logo a vontade apresenta novas ânsias que invariavelmente levam ao sofrimento em maior ou menor grau. Contudo, as razões que respaldam os esforços para extinguir a fome, notadamente em sociedades afluentes, não se aplicam automaticamente a quaisquer outras insatisfações supervenientes. O combate à fome não pode prescindir de uma avaliação geral a respeito de mecanismos sociais e econômicos mais amplos que a explicam, além dos arranjos políticos necessários; a injustiça razoavelmente articulada mobiliza esforços conjuntos de corações compassivos e de intelectos egoístas não imediatamente disponíveis a quaisquer outras demandas. Não se trata aqui, como temeu Schopenhauer, de adotar discretamente um otimismo pernicioso, arauto de um suposto direito universal à felicidade que, uma vez insatisfeito, leva “a pessoa a acreditar que sofreu uma injustiça” e a acreditar que a “meta da sua existência se perde” (W II, p. 697). A erradicação da fome, em especial se assumida como política pública levada adiante pelo Estado, não se confunde com objetivos mais amplos de emancipação geral, nem se presta a justificar quaisquer sofrimentos alheios.

Mesmo aceita a hipótese segundo a qual a fome é uma injustiça coletiva cuja omissão viola dever de reparação, resta inegável o caráter indeterminado de tal dever. Trata-se de uma injustiça cuja possibilidade de reparo depende das circunstâncias históricas particulares de cada sociedade. Mas pode depender também, e antes, da caridade ou da gestão do egoísmo, isto é, da disposição volitiva, que pode ser motivada ou sugerida sob os pressupostos da pequena ética, em sacrificar algo do próprio bem-estar em benefício do bem-estar alheio. A despeito da clara distinção conceitual, as virtudes da justiça e da caridade também podem ser compreendidas conjuntamente. A fome exige caridade ou, como elaboram alguns comentadores de Schopenhauer, solidariedade (cf., p. ex., Regehly, 2017). Horkheimer (2018, p. 205) havia chegado a conclusão semelhante a respeito do potencial crítico do pessimismo de Schopenhauer: ao “expressar e ao manter no pensamento aquilo que é negativo, [...] é exposto pela primeira vez o motivo para a solidariedade entre os homens e os seres em geral: o desamparo”.

Ora, o escárnio renovado da fome enquanto problema sócio-político, em que está implícito o problema ético, traduziria um dos motivos da lucidez daquele pessimismo schopenhaueriano notado pelo pensador da Teoria Crítica: as novas (ou renovadas) cargas de sofrimento não obstante alguns progressos sociais. Enxergar essa chaga recidiva no interior de um sistema econômico ou de sociedades específicas sempre poderá ser uma tarefa - de um pessimismo nada quietista - para não justificar os males em nome de algum futuro supostamente feliz. Não obstante, uma vez nítida a diferença entre a situação das forças humanas e os sofrimentos por elas evitáveis, afirma Horkheimer (2018, p. 206) a respeito da juventude: “que nem nacionalismos fanatizantes nem teorias de uma justiça transcendente lhe turvem o olhar, pode-se esperar que identificação e solidariedade se tornem decisivas em suas vidas".

Fenômeno polissêmico entre a metafísica imanente da vontade, os elementos empíricos que compõem a concepção de Estado, as variações da injustiça próprias de cada época, o escárnio recidivo da fome, sempre injustificado em caso de haver formas de acabar com ela, não ensejaria apenas a denúncia e a indignação do “pior dos mundos possíveis”, mas também a ação solidária somada à “proteção social” por parte do Estado. Esse é o horizonte - de um pessimismo crítico-social - que possibilita notar em que medida Schopenhauer, ainda que indiretamente e mesmo não sendo um filósofo político ou social, não ignorou a pobreza como uma questão incontornável para a filosofia.

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Contribuição de autoria

1 – Thiago Fedrreira

Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina

https://orcid.org/0000-0002-2365-1653 • thgofer@gmail.com

Contribuição: Escrita, e primeira redação.

2 – Vilmar Debona

Professor do Departamento do Programa de pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

https://orcid.org/0000-0002-0411-3358debonavilmar@gmail.com

Contribuição: Escrita e primeira redação.

 

Como citar este artigo

FERREIRA, T.; DEBONA, V. Schopenhauer e a fome. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 14, n. 1, e86368, p. 1-24, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378686368. Acesso em: dia mês abreviado. ano.



[1] As referências à obra O mundo como vontade e representação, Tomos I e II, seguirão as abreviaturas convencionais da Schopenhauer-Gesellschaft, a saber, W I e W II, entre parêntesis no lugar do sobrenome do autor. A paginação indicada se referirá à tradução de Jair Barboza (São Paulo: Unesp, 2005 [W I] e 2015 [W II]). Eventualmente, a obra é referida apenas como O mundo.

[2] A versão em língua inglesa expressa mais ricamente o ponto em questão: “everything is invariably expressed in terms of self-consciousness” (SCHOPENHAUER, 1915, p. 152).

[3] Para uma (dentre tantas possíveis) contextualização brasileira da questão, poderíamos considerar aqui uma assertiva de Carolina Maria de Jesus, a quem não se pode deixar de reconhecer conhecimento e experiência inigualáveis sobre o tema. A escritora registrou em seu diário, havia então exatos setenta anos da Abolição da Escravatura: “e assim, no dia 13 de maio de 1958, eu lutava contra a escravatura atual, a fome!” (MARIA DE JESUS, 2014, p. 32). A circunstância dramática da escritora sugere uma concepção de liberdade que não se reduz àquela segundo a qual seria supostamente livre todo aquele que não está sujeito ao mando violento de outrem; antes, estabelece uma relação direta entre liberdade e alimento, entre escravidão e penúria.

[4] Uma busca pelo termo “fome” nas obras completas de Schopenhauer indica as seguintes ocorrências em diferentes contextos e semânticas. Em O mundo, Tomo I, encontram-se no § 66, p. 440; no § 68, p. 459; e no § 69, p. 474. Já no Tomo II, podemos encontrá-lo no cap. 42, p. 589 e no cap. 46, p. 657. Em Parerga e paralipomena, Tomo II, a fome aparece no cap. V, p. 107; no cap. VIII, p. 233; no cap. XI, p. 310; e no cap. XXI, p. 524 (abreviaturas e paginações do original em alemão). Já os termos “pobreza” e “pobre” aparecem quinze vezes no Tomo I e dezenove vezes no Tomo II de O mundo, além das ocorrências nos Parerga, em especial nos contextos de nossas referências à miséria e à escravidão, e em outras obras.

[5] Nesse horizonte, seria possível um diálogo de pressupostos schopenhauerianos com Judith Shklar, que em seu Faces of Injustice (1980) propõe importantes problemáticas de debate mediante diferenciações entre injustiça e infortúnio.

[6] O primeiro aspecto é o principal tema de DEBONA, 2021.

[7] Aqui, novamente, a versão em língua inglesa para ilustrar com mais clareza o argumento proposto: “whether this pain be immediate, or an after-consequence, whether it be effected directly, or indirectly, through intermediate links” (SCHOPENHAUER, 1915, p. 178).

[8] Mais uma vez, a versão em língua inglesa favorece mais o argumento: “if sometimes tacit”, escreve o autor, há deveres resultantes de “agreement between two parties: as for instance, between prince and people, government and its servant” (SCHOPENHAUER, 1915, p. 189).

[9] Mais uma vez, a tradução em língua inglesa parece reforçar o argumento proposto: “reparation made for harm done may also be regarded as a duty arising directly through an action” (SCHOPENHAUER, 1915, p. 190).