Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85933, 2023
Submissão: 30/11/2023 • Aprovação: 21/01/2023 • Publicação: 05/04/2024
2 DIGITALIZAÇÃO DA VIDA: O DATAÍSMO COMO CATÁSTROFE
3 DESLOCAMENTOS DAS CONFIGURAÇÕES SOCIETÁRIAS E DAS TECNOLOGIAS DE PODER E SUBJETIVAÇÃO
4 MESMIDADE E ALTERIDADE: O CAMINHO DO ENTRE E SEUS IMBRICAMENTOS
5 AS COISAS COMO OUTRO: O RESSOAR DA MAGIA E DA PRESENCIALIDADE NA ALTERIDADE DAS COISAS
Dossiê
Inflexões da ética da alteridade em Byung-Chul Han: modos de enfrentamento à catástrofe do dataísmo
Inflexions on the ethics of alterity in Byung-Chul Han: ways of facing the catastrophe of dataism
IUniversidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
RESUMO
Tendo em vista o excesso de positividade e máximo desempenho presentes na Sociedade do Desempenho, Byung-Chul Han retoma o diálogo sobre a transição das sociedades disciplinares de Foucault e de controle de Deleuze, diagnosticando a condição de violência psicopolítica e o aprisionamento narcísico, em um cenário de catástrofe presente no atual regime de informação que configura o dataísmo como uma das principais ferramentas do sistema neoliberal. Este artigo visa investigar outros modos de existência civilizacional, a partir dos desafios de reincorporação da alteridade, propondo as inflexões que permeiam as visões do autor acerca da ética da alteridade, pautadas na dialogicidade, na experiência da negatividade do outro e nos imbricamentos entre o sujeito e o alter, bem como na alteridade das coisas, como modos de enfrentamento de tal cenário de barbárie, de maneira a reconfigurar as condições de ser e estar no mundo contemporâneo.
Palavras-chave: Ética da Alteridade; Dataísmo como catástrofe; Produção de subjetividade
ABSTRACT
In view of the excess of positivity and maximum performance present in the Performance Society, Byung-Chul Han takes up the dialogue on the transition from Foucault's disciplinary societies and Deleuze's control societies, diagnosing the condition of psychopolitical violence and narcissistic imprisonment, in a scenario of catastrophe present in the current information regime that configures dataism as one of the main tools of the neoliberal system. This article aims to investigate other modes of civilizational existence, based on the challenges of reincorporating alterity, proposing the inflections that permeate the author's views on the ethics of alterity, based on dialogicity, the experience of the negativity of the other and the imbrications between the subject and the alter, as well as the alterity of things, as ways ofconfronting this scenario of barbarism, in order to reconfigure the conditions of being in the contemporary world.
Keywords: Ethics of Alterity; Dataism as catastrophe; Production of subjectivity
Este artigo investiga as configurações do sujeito e a perda do papel da alteridade, bem como seus reflexos nas concepções e práticas de produção de subjetividade, no âmbito da atual Sociedade do Desempenho (Han, 2015; 2023b). Tal configuração societária tem sido colocada à prova civilizatória ao ser confrontada com a exigência de um caminhar em prol do progresso.
Todavia, esta empreitada está para Han “fundada na ideia de catástrofe”, na mesma perspectiva sinalizada pela alegoria do anjo da história de Benjamin (Han, 2023a, p.60), que se vê emparedado frente à tempestade do desenvolvimento humano, arrastando uma “pilha de escombros da história” sem nada poder fazer para aplacar suas consequências apocalípticas. Tendo como base tal narrativa, Han entende que “catastrófica é a continuação sem acontecimento do agora, [...] não é irrupção de um acontecimento inesperado, mas a continuidade do seguir-assim, a repetição contínua do igual” (Han, 2023a, p.61).
Com evidências nítidas da intervenção ininterrupta do agir humano, desenrolam-se cenários como a pandemia, as guerras, a nova era geológica do antropoceno e, também, a consecução adversa do dataísmo[1], algo que está dado no continuum do sistema capitalista neoliberal, configurando-se um novo tipo de niilismo na história da vida humana (Han, 2022c, 2023a; 2023c).
Considerando o diagnóstico de condições apocalípticas oriundas da imprevisibilidade da ação humana, questiona-se criticamente: que outros modos de existência civilizacional seriam possíveis ampliando-se as janelas de experiência filosófica da realidade narcisificada[2], permitindo-se possibilidades de retomada relacionais humanas e não humanas para além do Si mesmo?
Pretende-se trazer contribuições a partir da reflexão sobre a importância de um agir humano mais cuidadoso, reconsiderando as dinâmicas de trato com a alteridade desde as formas relacionais mais dialógicas até aquelas mais abertas, incluindo optar e se deixar afetar pela presencialidade e alteridade das coisas ao nosso redor. Posto isto, seu objetivo, inspirado na visada haniana, é indicar modos de ação e pensamento ético tendo em vista a importância da ética da alteridade como forma de enfrentamento do sujeito às intempéries articuladas ao regime dos dados presente na vida contemporânea, seja do ponto de vista das relações com o outro, com as coisas, e sobretudo, com a diferença e a intensidade que o viver requer.
Assim, a partir da próxima seção, este artigo sequencia os seguintes temas: (a) sinalizar facetas da catástrofe circunscritas aos processos de digitalização da vida, principalmente a partir da crescente hegemonia do dataísmo na atualidade, (b) discutir como Han desenvolve sua investigação a partir dos deslocamentos da Sociedade Disciplinar para Sociedade de Controle e as implicações desta análise com o surgimento da Sociedade do Desempenho e do Cansaço, (c) escrutinar a problemática da alteridade, a partir de inflexões oriundas das obras de Byung-Chul Han sobre como se caracterizam novas tecnologias de poder e subjetivação, sendo que em (c1) apresenta-se a primeira inflexão acerca dos conceitos de mesmidade e alteridade e as possibilidades dialógicas do caminho do entre e seus imbricamentos (Han, 2022a). Sob o vértice de se explorar novos modos de produção de subjetividade, observa-se em (c2) a segunda inflexão que aborda outra forma de relação com a alteridade e como o autor a modula. Sendo assim, nota-se a relação do sujeito com as coisas em um mundo que se descorporifica, desprendendo indivíduos da presencialidade das coisas e os alijando do contrapeso dos corpos para usufruir de vivências rasas a partir dos afetos (Han, 2022b). A importância das coisas como outro abarca a temática denominada neste artigo como alteridade das coisas. Explora-se a ressonância da magia e presencialidade das coisas como forma de constituição de um ecossistema vibrante entre indivíduos e coisas (HAN, 2021b; 2022b).
2 digitalização da vida: o dataísmo como catástrofe
O discurso iluminista, que se encontra no âmago da modernidade, compreendeu sua própria tarefa histórica como o grande desafio de promover a racionalidade e a liberdade humanas: “o conhecimento de seus próprios atos, a autoconsciência e a previsão intelectual, eis o que lhe parecia ser o verdadeiro sentido do pensamento” (Cassirer, 1994, p.21). Ilustrativamente, Han (2020b) destaca como para Voltaire, a estatística, dentre outras ciências experimentais e naturais, revelava outros modelos mais esclarecedores ao conhecimento humano, por força de sua fundamentação numérica tendo como fonte a experiência sensível, capaz de designar valor e sentido à atividade racional.
Pela perspectiva nietzscheana, seria possível afirmar a “constatação da ruptura que a modernidade introduz na história da cultura com (...) a substituição da autoridade de Deus e da Igreja pela autoridade do homem considerado como consciência ou razão” (Machado, 1997, p.48). Neste sentido, a modernidade teria acabado por promover valores humanos, demasiadamente humanos no lugar daqueles que seriam os valores divinos, caracterizando uma forma de continuidade entre duas formas de niilismo: o homem moderno prosseguiria “negando a vida”, do mesmo modo que a metafísica cristã, sendo que, agora, através de valores, tais como “justiça”, “ciência”, “progresso”, “felicidade para todos” (Machado, 1997, p.64).
Para Han (2020b, p.80) o dataísmo, em alguma medida, complexifica este cenário e multiplica seus desafios. Perpetua-se ainda a barbárie descrita por Adorno e Horkheimer em Dialética do Esclarecimento (1985), ainda fomentada pelo domínio da técnica instrumental e pela hegemonia de análises experimentais impulsionadas pelo capitalismo emergente, mas produzindo agora uma nova forma catastrófica de violência psicopolítica[3]. Surge, neste sentido, aquilo que poderia ser considerado como um segundo Iluminismo baseado na transparência do panóptico digital[4], em que tudo deve se tornar dados e informação, configurando um totalitarismo digital.
De acordo com a crítica do autor ao fenômeno da digitalização, o big data[5] se apresenta à primeira vista como condição de nos libertar da intuição, da arbitrariedade e da subjetividade por meio de uma construção do conhecimento movido a dados, deixando para trás qualquer possibilidade meramente ideológica ou culturalmente tendenciosa. Todavia, no fundo, trata-se de uma forma de poder que assume tendências totalitárias no âmbito deste novo iluminismo digital, cega aos acontecimentos improváveis, singulares, capazes de modificar a história e o futuro humano (Han, 2020b). O autor destaca que o regime dos dados, na verdade, gera um tipo de conhecimento rudimentar, na medida em que correlaciona dados, mas revela poucas explicações entre eles, caracterizando uma profunda atrofia narrativa em que “(...) o “por que” é completamente substituído pelo “isto-é-assim” incompreensível” (Han, 2023d, p. 102). O filósofo sinaliza ainda os riscos desse fenômeno e seus impactos para o processo de construção de teorias, que dependem da compreensão de nexos conceituais e do desenvolvimento de narração.
Desse modo, Han (2020b, p.82) nos adverte que o “dataísmo é niilismo[6]. Ele renuncia inteiramente ao sentido. Dados e números são aditivos, não narrativos”. Este cenário pode ser compreendido como uma forma de catástrofe em relação à possibilidade de elaboração de relações e experiências vividas, de construções narrativas e de produção de significações valorativas e existenciais. Tal configuração tem assumido, cada vez mais, grande hegemonia em nossa sociedade contemporânea do desempenho, principalmente na medida em que tende a predominar uma renúncia “(...) às relações, de modo que os dados deveriam preencher o vazio de sentido” (Han, 2021d, p. 77).
Dados crus e números são aditivos e não narrativos, bem como algoritmos não são capazes de um tipo de reflexão anterior ao agir encontrada na inatividade (Han, 2023a) ou no tédio profundo (Han, 2015), que nutrem a possibilidade de articular o pensamento e produzir uma experiência ou conhecimento para além da eficiência, do desempenho e do automatismo.
De alguma forma, render-se ao dataísmo é atestar o curso de um novo tipo catástrofe, talvez uma outra versão de niilismo ainda mais sutil e mais eficiente, fomentando elementos de barbárie à condição da existência humana. Han ressalta ainda que o niilismo que prolifera na contemporaneidade promove uma desfactualização do real: “o novo niilismo é um fenômeno do século XXI. Pertence às negações patológicas da sociedade da informação. Surge ali, onde perdemos a crença na verdade ela mesma” (Han, 2022c, p.81). Em outras palavras, além de fazer com que o mundo se desintegre e passe a consistir em dados forçando o crescimento de iguais, o novo niilismo, próprio à era das fake news, articula uma descrença na facticidade, por meio da proliferação de informações totalmente desacopladas da realidade, em um cenário no qual “a própria diferenciação entre verdade e mentira é que foi anulada” (Han, 2022c, p.84). Perde-se, portanto, cada vez mais, não somente o senso de facticidade, como também a capacidade de se estabelecer “as grandes relações, as mais elevadas” (Han, 2021d, p.77), excluindo a condição de possibilidade para a alteridade, o diferente e o desviante.
3 Deslocamentos das configurações societárias e das tecnologias de poder e subjetivação
A Sociedade do Desempenho e, por consequência do Cansaço[7], denominadas por Byung-Chul Han para caracterizar as formas societárias atuais, articulam fortes mecanismos de subjetivação associados aos estímulos da positividade[8] (Han, 2015). Na contemporaneidade, há um predomínio da dinâmica do desejo e da multiplicidade de demandas estimuladas pela hiperatividade, pela aceleração, pela exposição e circulação de imagens, bem como pela informação em excesso e pelo consumo desmedido. Comparativamente à configuração societária apresentada por Foucault (2010) como disciplinar, que é própria à modernidade, Han observa um deslocamento contemporâneo para o cenário que ele descreve como uma Sociedade do Desempenho (Leistungsgesellschaft) (Han, 2016):
A sociedade disciplinar de Foucault, feita de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas, não é mais a sociedade de hoje. Em seu lugar, há muito tempo, entrou uma outra sociedade, a saber, uma sociedade de academias de fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e laboratórios de genética. A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho (Han, 2015, p.23).
A caracterização da emergência de uma sociedade na qual a performance é um fator determinante na dinâmica das relações de poder e processos de subjetivação – apesar das muitas frases retoricamente enfáticas redigidas pelo autor –, certamente não significa um desaparecimento dos mecanismos disciplinares. Na verdade, o que está sendo sinalizado é uma mudança em curso, e uma tendência de deslocamento para uma outra tecnologia de poder e subjetivação. Do dever disciplinar surge o “poder hábil” (Können) como verbo modal da Sociedade do Desempenho, uma vez que “está cada vez mais se desvinculando da negatividade das proibições e se organizando como sociedade da liberdade” (Han, 2023b, p. 79).
A expulsão do papel do outro (Han, 2022a) vem acontecendo de forma gradativa, na medida em que a imposição à conformidade e à normalidade típica dos processos disciplinares se enfraquece, reduzindo-se a figura da vigilância e fiscalização hierárquica, minimizando-se a força dos aparelhos de poder coercitivos e das penalidades aplicadas aos desvios de conduta do indivíduo (Foucault, 2010).
O sujeito do desempenho atual não se subjuga mais a obediência ao outro. Tal sujeito procura romper com dispositivos compulsórios de disciplina que primavam pelas classificações, a partir do rigor, adestramento, docilização e utilidade dos corpos, orientadas para as qualificações, dentre elas competências e aptidões, precisas e hierarquizadas para a produção em nome de um fazer viver e deixar morrer (Foucault, 1988). Muitos dos elementos fundamentais na análise desenvolvida por Han já se encontravam prefigurados na caracterização da Sociedade de Controle, empreendida por Deleuze (2000). Em seus escritos, o filósofo francês apontava para o surgimento de um sujeito serpente, que tomado pela motivação, tornou-se capaz de adaptação e de infinita modulação de projetos. Neste texto, publicado originalmente em 1990, Deleuze também indicava a tendência de erosão das instituições e mecanismos disciplinares, destacando sua substituição por sistemas de vigilância tecnológica que passam a operar ao ar livre, continuamente, em todos os lugares.
A Sociedade do Desempenho traz como uma de suas características a intensificação de processos narcísicos que encapsulam o indivíduo a si mesmo e o enfardam aos seus próprios projetos e objetivos, tornando-o cada vez menos capaz de uma abertura à alteridade. Seduzido e analgesiado (Han, 2021a) pela cadência da positividade traduzida em estímulos, demandas, likes, prazeres e a realização potencial que é conferida ao ser empreendedor de si mesmo, o sujeito contemporâneo é permissivo e completamente absorvido pela atividade, pela informação e pelo seu sucesso pessoal e profissional. Em tal condição, se submete a ser correlatamente um algoz de si mesmo que se auto castiga ou gratifica a depender da virtuosidade de seu desempenho. Em troca, se glorifica da flexibilidade das estruturas espaço-temporais, da continuidade e simultaneidade de afazeres (sem práticas de encerramento delimitadas) nas diversas dimensões da vida e desfruta de um tempo livre derivado da lógica do trabalho (Han, 2023a) e de uma falsa sensação de liberdades episódicas (Han, 2015; 2023b).
Na verdade, o sujeito do desempenho perde a capacidade de dizer não para o realizar incessante, sendo impelido a produzir permanentemente, culpabilizando-se quando não atinge todos os padrões a que se propõe (Han, 2015). Ao achar que tudo pode, não se percebe em um processo paulatino de esgotamento (Han, 2023b), sujeição e aprisionamento ao suposto livre arbítrio de suas escolhas e produções de subjetividade. Mais ainda, tornam-se difusas e, por vezes, invisibilizadas, as redes de poder (agora, cada vez menos disciplinares) que o cercam e com as quais é convidado a participar. Não se identifica como refém de controles psicopolíticos e dos mecanismos aperspectivísticos[9], comuns ao panoptismo digital, inerentes às redes tecnológicas onipresentes atualmente. Na ausência de um centro de vigília, a observação e o controle têm mecanismos de funcionamento oriundos de todos os lados, por todos, incessantemente. Os espaços para exposição, compartilhamento de ações ou atividades públicas e privadas se misturam sem dar margem para reflexão entre o pensar e o agir e, porventura, optar por resignar-se da vontade do fazer (Han, 2017b; 2023a).
Este processo acomete o sujeito autocentrado, hiperativo e positivamente estimulado a viver uma infinita vontade de tornar-se e de agir, que desagua em um persistir eterno, ao contrário da maestria que poderia residir na escolha do “não fazer” (Han, 2023a, p.33). Na medida em que ele perde o contato com as bordas de mundos diferentes daquele em que está introjetado, se distancia completamente do outro e de tudo aquilo que este poderia lhe oferecer: seu pensamento, suas ideias, seu modo de agir e se comunicar. Aparta-se, portanto, das ligações de negatividade que a alteridade confere: limites, tensionamentos e a diferença que são próprios à luz do outro e de seus imbricamentos que, ao fim e ao termo, serviriam para imunizá-lo[10] de si mesmo (Han, 2015).
Ao esquivar-se do outro, é tomado pelas violências neuronais[11] e pelo surgimento de doenças associadas. Ao se engendrar em torno de uma perspectiva rasa de um mero viver, se entorpece em um universo próprio de objetivos e tarefas que se cumprem e se repetem. Em um primeiro momento, a conquista de habilidades louváveis pela dinâmica econômica e social, tais como o multitasking ou a hiperprodução, apresenta-se para o indivíduo como um círculo virtuoso de autodesenvolvimento. Todavia, não se apercebe de uma realidade que o limita a um decurso vicioso e que o torna parte de uma massa de iguais, cada vez mais sujeito às doenças neuronais contemporâneas, tais como o distúrbio de atenção, a Síndrome de Burnout ou a depressão, dentre outras patologias (Han, 2015; 2022a; 2023b).
Na próxima seção, discute-se sobre a primeira inflexão identificada na ética da alteridade da visada haniana, que traz noções de Mesmidade e Alteridade para explorar as ligações imbricadas contidas na dialogicidade e as potências que podem ocorrer no caminho do entre.
4 Mesmidade e Alteridade: o caminho do Entre e seus Imbricamentos
A falta de relação com o outro provoca um mergulho em si mesmo, gerando um processo de narcisificação. Permitir o encontro e a experiência com o outro, a compreensão da importância do seu lugar e do papel da alteridade são formas de conhecer-se algo novo e diferente do si mesmo. Trata-se da possibilidade de trilhar caminhos transformativos na busca de como compreendemos a nós mesmos em nossa relação com o mundo. Eis a primeira inflexão percebida nos escritos do autor acerca da ética da alteridade, encontrada na sua forma mais dialógica.
Han (2022a) distingue os termos o mesmo [Selbe] ou a mesmidade daquilo que seria o igual [Gleichen] e explica que a formação da mesmidade do sujeito está associada à negatividade[12] proveniente do outro, que lhe dá figura, forma e medida. Dito de outra forma, mesmidade é entendida como aquilo que nos constitui como forma, com uma intimidade e recolhimento que se deve pela diferença relativa ao outro.
Lidar com a negatividade do outro, sua distância e proximidade alternada, pressupõe estar aberto a uma relação e a um tensionamento com a própria mesmidade. Esse desconhecido provoca medo, nos leva a um lugar inóspito, quando queremos ser acolhidos pela cotidianidade familiar e habitual. Revela-se assim por acessar instâncias de intimidade e de produção de subjetividade que denotam vivacidade, uma forma construída à diferença relativa ao outro, ao que Han declara:
A negatividade do outro dá figura e medida ao mesmo. Sem ela, se chega à proliferação do igual. O mesmo [Selbe] não é idêntico ao igual [Gleichen]. O mesmo sempre surge pareado com o outro. Ao igual, em contrapartida, falta a contraparte dialética que o limitaria e lhe daria forma. Assim, ele prolifera em uma massa sem forma. O mesmo tem uma forma, um recolhimento interior, uma intimidade que ele deve à distinção em relação ao outro. O igual é, em contrapartida, sem forma (Han, 2022a, p.9).
É a partir deste imbricamento pareado, sem sobreposições, entre mesmidade e alteridade que, por força de ligação estreita, se gera uma tensão dialética – ainda que se trate aqui de uma dialética sem síntese (Aufhebung). Ao mesmo tempo que limita, tal relação imbricada com o outro também dá forma a interioridade do sujeito. A mesmidade se constitui pela possibilidade de tensão, de partilha do que é experienciado, de transformação dos modos de existência vigentes. Trata-se, portanto, de perceber o sentido de mesmidade não como aquela que procura matizes do “eu” no outro, o que perpetuaria a formação de iguais ou idênticos amorfos superpostos, mas de se permitir suceder-se com a experiência de ligação com o outro. Assim, Han destaca que “a negatividade do outro e da metamorfose [Verwandlung] constitui a experiência em sentido enfático. [...] que ela nos atinge, abate-se sobre nós, nos derruba e nos transforma” (Han, 2022a, p.11).
Tal processo de encontro com o outro provoca dor porque essa experiência nos arrebata, nos modifica e nos transforma. Diferentemente do narcisista, em que “o si se difunde e se torna difuso” (Han, 2022a, p. 41), desenvolver amor próprio pressupõe desenvolver limites e contornos com o outro. “O limiar é a passagem para o desconhecido [...] quem ultrapassa o limiar passa por uma metamorfose. O limiar como lugar da metamorfose dói” (Han, 2022a, p.61). O autor ainda complementa que “quando esta entrega ao diferente e à negatividade dele ocorrem, produz-se novas percepções da realidade, do mundo, e da compreensão daquilo que é” (Han, 2022a, p. 14). Dessa maneira, quando o mesmo é capaz de descapsular-se, a potência da experiência e do acontecimento se revela contida nas relações de distinção e negatividade que emergem pelo caminho do entre trilhado pela mesmidade e a alteridade, sem um domínio de centralidade entre um e outro. Em outras palavras, o papel da alteridade na concepção da mesmidade decorre da circunstância, condição ou característica que se desenvolve por relações de diferença, de contraste. Trata-se da capacidade de deslocarmos o centro de gravidade do ‘eu’ para um outro locus em que há uma “camada de sentido mais profunda e é constituída por meio do entre...” (Han, 2020a, p. 191). Não se trata daquele êxtase em que o sujeito seria absorvido no objeto, mas de um meio-termo que abre um caminho onde nada e ninguém governa e nem mesmo predomina sozinho.
Por outro lado, apontou-se nas seções anteriores para o diagnóstico de que o papel do outro vem se despedaçando. Aquele outro que não me espelha, que chama minha atenção, que é impreciso, que age enigmaticamente, que me angustia, e que, em alguma medida, me amedronta, tende a desaparecer ou ser expulso, sobretudo na ordem do dataísmo que permite contatos em infobolhas de iguais. Isto ocorre não por culpabilização do sujeito, mas por força de processos de subjetivação desencadeados pelas manobras pouco perceptíveis operadas pelas dinâmicas de poder. Portanto, não nos é facultada a lida com o diferente, o estranho e, sobretudo, com a algofobia (Han, 2021a) ou uma angústia da dor, tampouco com a dor benéfica que nos coloca frente à realidade e à corporalidade presente no plano físico.
No entanto, parece ser mais eficaz no caos e na urgência dos tempos atuais consumir digital e ilimitadamente, via clicks e telas de computador, aquilo que nos apraz e que podemos formar um relicário imaginário, um repositório de imagens curtidas como se fossem algo de valor. É por meio do gosto pelo idêntico, da analgesia do que é positivo (Han, 2021a), do que é amorfo, sem aura[13], e pela hipercomunicação digital que o poder se invisibiliza e aturde, destruindo o tu e qualquer noção de proximidade, de vínculo, em que “relações são substituídas por conexões” (Han, 2022a, p.66).
Diferentemente do mesmo, com sua singularidade, o igual não apresenta forma. É amorfo. Os iguais, buscam uma suposta autenticidade[14], mas se postos lado a lado e contrastados, são indiferentes, dispersos, e criam uma massa indistinguível. Han nos aponta que há um limite de multiplicidade com diversidade de opiniões e diferenças comoditificáveis tolerada pelos mecanismos de poder.
A busca por “um si comumente autêntico”[15] faz com que a alteridade se torne algo consumível, uma emolução de singularidade falseada ou em forma de mercadoria. Desse modo, perpetua-se o igual com mais eficiência do que qualquer uniformidade. “A proximidade e a distância se medeiam dialeticamente como o mesmo [das Selbe] e o outro [das Andere]. Desta forma, nem a ausência de distância nem o igual são vivazes” (Han, 2022a, p. 16). Sem a entrega da distinção, sem aura, a essência reunidora da mesmidade desentrelaçada de um alter, não tem lugar (Han, 2022b). O sujeito do desempenho se autoflagela quando nega a condição de ter o papel do outro no processo de gratificação. Sozinho não é capaz de produzir autoestima estável e se sentir significativamente importante. Para tanto, requer ter no olhar do outro a confirmação e o reconhecimento de sua singularidade. Segundo Costa (2021, p. 122) “a autoagressão infligida pelo desaparecimento do outro no universo do idêntico faz feridas na autoestima e gera um cansaço ‘de si mesmo’.”
É a partir destas noções que Han denomina a expressão terror do igual que se espraia pelas esferas da vida, na medida em que acessamos lugares sem vivermos a experiência, nos familiarizamos com coisas e pessoas sem encontros e conhecimentos sobre as mesmas, acumulamos dados sem construir saberes. Sem a negatividade do outro dando forma à mesmidade, sem Eros, prolifera-se o igual, o idêntico amorfo. Cessa-se a dialogicidade, expulsa-se o outro e culmina-se por fortalecer o processo de narcisificação do si e uma concepção egocentrada de mundo. Arma-se uma violência sistêmica do igual imperceptível com a “multiplicidade e escolha que emulam uma alteridade que, na realidade, não existe” (Han, 2022a, p. 51).
O autor destaca ‘o enlace do idêntico com o idêntico[16]’ como um mecanismo obsceno, tal como a hipervisibilidade, a hipercomunicação e o consumo conspícuo. Todavia, é através de conflitos com o alter, que se recupera o “enigma, o estranhamento e o espanto” desestabilizando o igual, surgindo, portanto, “relações e identidades estáveis” (HAN, 2022a, p. 45) não submissas ao conformismo social, que dita o como se desfruta e, portanto, “aliena o ser-aí de seu mais próprio poder-ser” (Han, 2022a, p. 50). Na diferença entre atopia[17] e autenticidade, estão a singularidade e a incomparabilidade garantidas à primeira. Na cultura que equipara, compara e materializa a suposta autenticidade por meio do consumo, fica explícito um querer-ser-diferente e, nessas condições conformes, um “igual se perpetua” (Han, 2022a, p. 38).
Assim, esta seção explorou o problema da alteridade que se configura na Sociedade do Desempenho, a partir da compreensão de que reconhecer o alter passa a ser um mecanismo de lida com a negatividade, com o tempo e a mediação. Tais elementos fogem aos padrões exigidos pelo capitalismo contemporâneo, pelo dataísmo e pela digitalização das esferas da vida que consome de forma avassaladora o mundo no qual estamos inseridos. Fomenta-se a positividade, a formação aplainadora de idênticos amorfos sob os efeitos narcísicos, em face da lógica da sociedade do igual que precisa equalizar tudo ao seu redor para enfatizar o trabalho, acelerar a comunicação e a informação, circular a produção material e imaterial, sendo tudo submetido à máxima visibilidade (Han, 2017a; 2017b; 2018b; 2021a; 2021c).
Como contrapartida a este cenário caótico, de tensões destrutivas, reconhecer a importância da experiência de uma alteridade atópica e dialógica representa muito mais que ser um sujeito compassivo, no nível da individuação, mas a eloquência de revigorar-se para experiências presenciais e corporais, das quais o alter é parte. Trata-se de “conceder ao outro uma prioridade ética, escutar e responder ao outro” (HAN, 2022a, p.121). Pois somente aquele que é capaz de tal ética da escuta, do acolhimento e da atenção pode, de fato, abrir-se à alteridade. “O estar-exposto [Ausgesetzheit] é uma outra máxima da ética do escutar” (Han, 2022a, p.127). Pode-se ainda supor, que em nível macro, o sujeito e alter dialógicos talvez fomentem certa desestabilização no sistema, ao tratar de renovar o olhar sobre o papel enigmático e assimétrico do outro, para singularidades e contrastes que produzem. “O escutar tem uma dimensão política. Ele é uma ação, participação ativa na existência do outro e também no seu sofrimento” (Han, 2022a, p.130). Encontra-se aqui uma pista para a própria condição de possibilidade da democracia contemporânea, pois “não ouvimos mais o outro de maneira atenta. Ouvir atentamente é um ato político, à medida que só com ele as pessoas formam uma comunidade e se tornam capazes de discursar” (Han, 2022c, p.62). Tais imbricamentos no refazimento do si e no estar aberto a experiência do entre, possibilitam o avanço em um reino intermediário, em que se cultiva um locus de meio-termo, abrindo caminho para uma sociedade possivelmente mais acolhedora à diferença e a outras formas de convivência relacional (Han, 2022a).
Na próxima seção do artigo, pretende-se explorar a segunda inflexão da ética da alteridade com a problematização da alteridade abarcada às coisas, que com a digitalização, tende ao desaparecimento para dar acesso ao consumo da informação. No entanto, Han (2022b) também percebe as coisas como outro, como um recurso que distribui os sentimentos, em um movimento relacional de abertura para um deixar-se afetar por um ecossistema vivo e vibrante entre seres e coisas. Configura-se, assim, o acolhimento de uns nos outros. A visão do autor traz a ideia de uma segunda inflexão acerca da ética da alteridade, que denominamos como a alteridade das coisas, por via da retomada de escolhas, de encontros mais intensos delas com os indivíduos, fortalecendo práticas de sentir e se absorver, tornando possível persistir em outros modos de existência.
5 As coisas como outro: o ressoar da magia e da presencialidade na alteridade das coisas
Ao considerar uma segunda inflexão possível acerca da ética da alteridade, cabe destacar que Han trata da importância de se pensar ecossistemas como matérias vibrantes[18], não sujeitas apenas ao propósito humano, já que possuem dignidade e resplendor próprios (Han, 2022b; 2023a). Eles fortalecem a recuperação do contato presencial, a exemplo da experiência que o autor relata acerca do visual, da acústica, da experiência trepidante e tátil com um jukebox (Han, 2022b). Soma-se ainda a negatividade e a imanência das coisas com seus contrapesos, seus organismos vivos e seus modos de perpassamento [Durchdringung] (Han, 2021e).
De acordo com Han, as “coisas no mundo”[19] tinham como tarefa “estabilizar a vida humana” (Han, 2022b, p.11). Dito de outra forma, em outros tempos, as coisas ajudavam os indivíduos a se abrigarem, ofereciam amparo e ancoragem em sua existência, eram apoios que tranquilizavam. O que o autor explica é que há poesia nas coisas e o valor imaterial delas está ancorado na corporalidade física, na sua agência e em seus efeitos no campo de sentidos.
Pode-se dizer que as coisas têm alteridade, ou seja, circunstância, condição ou característica que se desenvolve por relações de diferença, de contraste. Elas assumem o importante lugar de outro em nossas vidas e “sua objetividade reside no fato de que [...] os homens, apesar de sua natureza sempre mutável, podem recuperar sua singularidade [...], relacionando-a com a mesma cadeira e com a mesma mesa” (Han, 2021c, p.6). O pensador resgata o quanto as coisas suscitam aparente estabilidade e ludicidade à vida, na medida em que promovem sua continuidade.
Para ilustrar tal circunstância, Han (2022b, p.37) nos recorda, por exemplo, palavras do ditado que diz: “os livros têm seus destinos[20]”. Em contato com as marcas de seu dono, eles ganham sinais de suas mãos, sua escrita, ou seja, um conjunto de registros que lhes dão um corpo vivo, uma cara, um pertencimento, como se fossem capazes de narrar seus próprios contos, para além do conteúdo que carregam.
O valor imaterial das coisas para um colecionador – o possuidor idealizado de algo – está, contraintuitivamente, baseado nas sensações que o campo físico-sensorial é capaz de ativar, por meio do toque, do cheiro, dos sons e da vista. Ele retira a função de mercadoria que há nas coisas e como um fisionomista daquilo que lhe é tão raro, cria interpretações e imaginários das histórias e memórias envoltas nos objetos. Toma-se pelos atravessamentos entre um manuseio e outro, e pelas capacidades de se deixar ser afetado por eles. Não há, contudo, ao que tudo indica nos apontamentos do autor, nenhum sentido de se estimular uma atividade de consumo acumuladora e desmedida ou aquela que privilegiaria um consumo conspícuo, ou seja, em que o valor está muito mais reservado ao simbolismo do ter para expor, em vez da elaboração de vínculo, ligação e sentimento. Pelo contrário, já que o filósofo percebe o consumo excessivo e o luxo a ele relacionado como faltas de liberdade (Han, 2018a).
Han (2022b) aponta para a busca de um valor singular, possível de ser encontrado em um objeto com o qual se estabeleça contato nos campos sensoriais, uma forma de vislumbrar uma ligação de maior intensidade com o mundo em que vivemos. O autor ainda acrescenta que a coisa tem sua fiabilidade [Verläßlichkeit] (Han, 2021e), ou seja, “[...] consiste no fato de que ela incorpora as pessoas naquelas referências de mundo que dão uma sustentação à vida. A coisa com sua “fiabilidade” é uma coisa do mundo [...]” (Han, 2022b, p. 127).
Cabe observar que, por um lado, o objeto oferece resistência, servindo-se como um obicere[21] que tem peso, textura, calor, e que se contrapõe, como algo que nos confronta, tensiona, desencadeia a condicionalidade da ordem terrena e uma comunicação intensiva entre os corpos. Por outro lado, ao mesmo tempo, pode suscitar poesia e alegria provocando experiências de negatividade, de limites, de tristeza, de sensação de enfardo no encontro com uma materialidade que resiste e subsiste com sua força própria. Mas a relação direta com as coisas vem se resfriando[22] e desaparecendo no cenário caótico contemporâneo que colapsa as relações em troca de conexões:
A ordem digital efetua uma crescente descoporificação do mundo. Hoje, há cada vez menos comunicação de corpos. Ela também desfaz contracorpos ao tomar das coisas seu peso material, sua massa, seu peso próprio, sua vida própria, sem tempo próprio e torná-los disponíveis e a qualquer momento. Os objetos digitais não são mais obicere (Han, 2022b, p.75).
A circunstância de contrariedade se manifesta pela própria resistência do obicere quando se está diante dele, pois trata-se de experimentar a negatividade que é inerente à própria resistência da matéria e é constitutiva da experiência. Em outras palavras, é da natureza de ser do objeto, ter um movimento de objetar, que é originalmente algo que se dirige contra o sujeito, se opondo e resistindo a ele (Han, 2022b). Já aquilo que podemos considerar como a representação dos objetos, ou seja, o que parece ser o objeto, “sobrevém na percepção”, sendo aquilo que “vem ao registro como o que re-coloca e re-presenta o olhar e ouvir humanos como o que chega por meio dele” (Han, 2018b, p.54). É neste sentido que Han afirma que na experiência filosófica grega era claramente possível vivenciar a relação com os objetos como algo que nos confronta, desvelando seu caráter “assombroso e enfeitiçador”, constituindo-se como um “encontro com o inteiramente outro” (Han, 2022a, p. 76).
Em adição, Han (2019b) destaca que o sujeito não é livre perante um objeto que se mostre meramente dependente ou submetido à sua vontade, seus impulsos, suas paixões, seus interesses ou seu propósito. Para se abrir verdadeiramente à experiência com o objeto, não se pode prescindir de deparar-se com sua resistência, seu contracorpo, é necessário um Si que se desarma e se vulnera para que o objeto floresça. Dessa forma, o autor ressalta a importância deste acontecimento como um tipo de rasgo no Eu, pois “a atenção crescente às coisas caminha junto com o autoesquecimento e a perda de si mesmo [...]. A experiência de presença pressupõe uma exposição, uma vulnerabilidade” (Han, 2022b, p.106). Quando o ego enfraquece, torna-se receptivo a essa linguagem silenciosa e velada das coisas. A experiência da presença pressupõe exposição, vulnerabilidade. Sem ferida[23], só ouvimos no final o eco de nós mesmos. A ferida é a abertura, o ouvido para o outro. Hoje, esses momentos epifânicos são muito mais raros em função das fortes tendências narcísicas que se fazem presentes. O que Han procura destacar neste ponto é como entregar-se à capacidade de abertura para o outro, e uma consequente exposição e vulneração contidas na experiência mais profunda que a presencialidade corpórea oferece (Han, 2022b).
Para Han (2022b, p.97) a digitalização e, particularmente, o dataísmo como fenômeno de catástrofe, promove o desaparecimento do outro e, também, “afeta o mundo das coisas”, uma vez que diante de um ego inflado[24] não se é capaz de se deixar afetar pelo outro e pela alteridade das coisas. Peso, vontade e vida dos objetos entram num franco processo de padecimento em que se tornam apenas artefatos disponíveis e consumíveis. Há, portanto, uma falta de troca e reciprocidade entre indivíduo e coisa.
Hoje, percebemos a realidade primeiramente em termos de informação. A camada de informação, que cobre coisas como uma membrana sem lacunas, protege a percepção de intensidades. A informação representa a realidade. Mas sua predominância torna a experiência de presença mais difícil. Nós consumimos permanentemente informações. A informação reduz o contato. A percepção perde profundidade e intensidade, corpo e volume. Ela não se aprofunda na camada de presença da realidade. Ele só toca sua superfície informativa (Han, 2022b, p.103).
A economia da rasa vivência e do compartilhamento de informações daquilo que se acessa e não se possui, está transpondo a economia da coisa. As coisas vão sendo entumecidas pela membrana de informações que as envolve, tendo sua presença e contatos com a materialidade cada vez mais distanciados. Como enfrentamento deste cenário promovido pela digitalização da vida como uma das facetas de catástrofe vivida pela humanidade, o autor propõe retomar a configuração de experiências e relações intensas com o outro e com as coisas. Através da magia contida na alteridade das coisas, que se desvela a partir de um “pensar em um material que é mais imediato, mais fluido, mais incandescente que as palavras” (Han, 2022b, p. 104-105) ou significados. Seria possível sorver-se em uma espécie de arroubo enigmático, de refazimento e lida existencial com mais momentos de pacificação no contato e presencialidade delas em nossas vidas, em que “em tais momentos epifânicos”, o sujeito entra em uma “nova relação repleta de pressentimentos com toda a existência” e começa a “pensar com o coração” (Han, 2022b, p. 105).
Ilustrativamente, Han interpreta uma passagem de O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, a fim de abordar trocas intensas, cativantes e um tanto quanto travessas com a presencialidade dos objetos, retratando o cultivo da atenção que é necessária ser dispensada nesses enlaces. É com base nos dizeres da raposa que o principezinho se torna apto a notar a importância de sua rosa e percebe o tempo dedicado a ela em sua realidade cotidiana. A raposa o faz observar em si mesmo uma “fraqueza metafísica para o outro [que] é constitutiva da ética da escuta como uma ética da responsabilidade” (Han, 2022b, p.133), enfatizando a abertura para um permitir-se cativar pelo pensamento, pelas pessoas e pelas coisas que realmente nos tocam.
O autor chama atenção ao fato de que esse tipo de relação tem se tornado menos relevante na atualidade porque depende de uma experiência da presença e de uma ferida para o outro. Tal circunstância promove um deixar-se afetar pela raridade de uma coisa, pela complexidade de percepções que escapam às prévias atribuições simbólicas ou quaisquer representações.
Interessante entrever que estas coisas do coração são parte de coisas da vida que nos envolvem, não se caracterizando por estímulos novos e, sim, por aquilo que prende nossa atenção, que nos toca, “fala” e nos faz aprender com elas de cor (originalmente, apprendre par coeur[25]).
Para Han, são com estas coisas físicas que se estabelece contato presencialmente, que verdadeiramente se encontra, sossegando a alma e a psique. Com a ausência delas, prefigura-se um estado de falta, de instabilidade, de carência e, em alguma medida, até de dor. Como visto, através de um movimento simbiótico, elas também acabam carregando marcas do sujeito, em face ao convívio perdurado no tempo. Trata-se de valorar as marcas (aqui com sentido de registros ou sinais) que as coisas vão adquirindo que as remetem ao encontro de marcos temporais, espaciais, memoráveis e raros.
As coisas agem muitas vezes de forma insidiosa, imprevisível, arbitrária e frustrante devido ao seu contracorpo, seu peso e sua resistência. Mesmo com esta vida própria, por vezes, velada e ausente, as coisas com as quais criam-se laços profundos são capazes de falar em silêncio, de brilhar na meia-luz de sua ausência, de ressoar uma magia ao nos flechar com sua presencialidade, nos tocar, singularizar, acolher e nos fazer pensar com o coração (Han, 2019b, 2022b).
Partindo do diagnóstico da crescente digitalização da vida e predomínio contemporâneo do dataísmo, o presente artigo procurou explorar as inflexões da ética da alteridade na perspectiva de Byung-Chul Han, como alternativas de enfrentamento ao crescente cenário de catástrofe de violência psicopolítica e de novas possíveis versões de niilismo. Tendo como elementos uma análise acerca dos deslocamentos das configurações societárias desde as disciplinares (Foucault, 2010), passando pelas de controle (Deleuze, 2000), até a configuração da Sociedade do Desempenho (Han, 2015; 2023b), buscou-se trazer à tona considerações sobre os atuais mecanismos de produção de subjetividade e as modificações no papel da alteridade na vida contemporânea.
A partir da observação de inflexões da visada haniana acerca das possibilidades de inserção de uma ética da alteridade, o artigo percorreu as seguintes etapas: primeiro explorou os caminhos imbricados com a alteridade que levam a um caminho do entre, um locus intermediário que proporciona uma experiência de ligação da mesmidade e do outro sem a disputa de um eixo centrador (Han, 2022a). Discutiu-se, assim, a experimentação de relações de diferença, em que a alteridade tem papel importante na formação da mesmidade, que se constitui, em parte, pela diferença do outro, evitando a constituição de idênticos amorfos, ou seja, sujeitos sem forma e sem interioridade.
Segundo, detalhou-se a tendência de transição entre o mundo físico e digital que desprende indivíduos da presencialidade das coisas e os alija do contrapeso dos corpos para usufruir de vivências rasas do pensamento, dos afetos e da ação em formas de conexões e acessos na infosfera (Han, 2022b), características da presente digitalização da vida e do dataísmo. Faz-se mister rediscutir nossas condições no mundo digital, uma vez que cada vez mais aprofunda-se um estado indiferenciado e incondicionado em tal contexto, em que nenhuma coisa é absolutamente diferente da outra. Esta condição empobrece nossas possibilidades de estranhamento, de criar mecanismos de percepção do tempo, diligência e compreensão de nexos conceituais. Faz-se dos processos de leitura e comunicação algo aditivo e cumulativo e, ao mesmo tempo, deformativo, subjugando nossa capacidade de apreciação contemplativa, reflexiva e narrativa.
Como forma de confrontar esta condição, propôs-se alargar, portanto, a visão das relações da alteridade, antes concentrada naquelas dialógicas com um outro humano para, agora, também considerar e reintroduzir aquelas coisas que cercam o campo físico do sujeito (Han, 2021b; 2022b). Destacou-se, assim, a importância das coisas como outro, denominada neste artigo como alteridade das coisas, explorando-se ainda a ressonância da magia e presencialidade da materialidade das coisas que nos enlaçam como forma de elaboração de sentimento e constituição de um ecossistema vibrante entre indivíduos e coisas. Na medida em que as coisas também são fonte de diferença, coloca-se em perspectiva de um lado a ressonância da magia promovida pelas coisas do coração e, de outro, o sentido de ferida para uma abertura entre o si e as coisas nas suas formas mais genuínas garantidas pelo obicere e menos por suas representações socioculturais pré-estabelecidas. Essa análise é enriquecida com a compreensão de que a beleza de um objeto aparece muito mais quando o tempo e o uso o desvanecem do que quando irradia sua materialidade em estado completamente novo. Neste processo de desbotamento da materialidade e de aumento de ligações intensas com o indivíduo, os objetos reificam marcas e marcos das histórias contidas nos encontros singulares com o sujeito.
Em síntese, discutiu-se as inflexões da ética da alteridade de Byung-Chul Han como modos de enfrentamento ao cenário de catástrofe oriundo do dataísmo. Em sua primeira acepção, fomenta a recuperação das relações dialógicas com um outro humano, apresentando-se como uma ética da escuta, da atenção, da abertura e do encontro. Tais proposições, além de articularem implicações políticas, fomentam a capacidade do sujeito de doar-se, de ceder e de responder, em prol da entrega sem disputa de centralidade no encontro com a alteridade. Em sua segunda formulação, indica a abertura para o encontro com a materialidade das coisas, configurando-se como ética de acolhimento da alteridade das coisas, destacando a importância de sua fiabilidade como forma de construção de um outro modo de estar no mundo.
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Contribuição de autoria
1 – Camila Braga Soares Pinto
Doutora em Administração pelo COPPEAD/UFRJ, Mestre em Filosofia pela UFRRJ e Professora de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal Fluminense - UFF.
https://orcid.org/0000-0002-3187-7986 • camilabraga@id.uff.br
Contribuição: Escrita e primeira redação.
2 – Leandro Pinheiro Chevitarese
Doutor em Filosofia pela PUC RJ, Professor do Departamento de Educação e Sociedade e Professor da Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ.
https://orcid.org/0000-0001-9599-7496 • leandrochevitarese@yahoo.com.br
Contribuição: Escrita e primeira redação.
Como citar este artigo
PINTO, C. B. S.; CHEVITARESE, L. P. Inflexões da ética da alteridade em Byung-Chul Han: modos de enfrentamento à catástrofe do dataísmo. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85899, p. 1-27, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378685899. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
[1]Han (2020b, p.79) cita um trecho extraído do New York Times em 4/2/2013, escrito por David Brooks, para explicar a revolução dos dados: “se você me pedisse para descrever a filosofia que está na ordem do dia, eu diria que é o dataísmo. Agora temos a capacidade de reunir enormes quantidades de dados. Essa capacidade parece levar consigo certa suposição cultural de que tudo o que pode ser medido e deve ser; de que os dados são uma lente transparente e confiável que nos permite filtrar o emocional e a ideologia; de que vão nos ajudar a fazer coisas notáveis, como prever o futuro. [...] a revolução dos dados nos oferece um instrumento excepcional para entender o presente e o passado.” Disponível em: www.nytimmes.com/2013/02/05/opinion/brooks-the-philosophy-of-data.html
[2]Na visão do autor, o conceito de narcisismo é aquele “em que se percebe o mundo apenas como sombras de si mesmo” (HAN, 2022a, p.41). Para o filósofo “[...]o narcisismo não é um amor próprio. O sujeito do amor próprio estabelece uma delimitação negativa frente ao outro em benefício de si mesmo. O sujeito narcísico, ao contrário, não consegue estabelecer claramente seus limites. Assim, desaparecem os limites entre ele e o outro [...]” (HAN, 2017a, p. 9-10).
[3]“O psicopoder é mais eficiente do que o biopoder na medida em que vigia, controla e influencia o ser humano não de fora, mas sim a partir de dentro. A psicopolítica se empodera do comportamento social das massas ao acessar a sua lógica inconsciente. A sociedade digital de vigilância, que tem acesso ao inconsciente-coletivo, ao comportamento social futuro das massas, desenvolve traços totalitários. Ela nos entrega à programação e ao controle psicopolíticos. A era da biopolítica está, assim, terminada. Dirigimo-nos, hoje, à era da psicopolítica digital” (HAN, 2018a, p.134).
[4] “A ideia do panóptico vem do filósofo inglês Jeremy Bentham. Ele concebeu no século XVIII uma prisão que torna possível uma vigilância completa dos prisioneiros. As celas são postas em torno de uma torre de observação que dá ao Big Brother uma perspectiva total. Os prisioneiros são isolados uns dos outros por motivos disciplinares e não devem falar uns com os outros. Os habitantes do panóptico digital, por sua vez, se comunicam intensivamente uns com os outros e se expõem voluntariamente. A sociedade do controle digital faz uso intensivo da liberdade. Ela só é possível graças à autoiluminação e à autoexposição voluntárias. [...] No panóptico digital, ao contrário, ninguém se sente realmente controlado ou observado (HAN, 2021d, p. 54-55).
[5]Segundo HAN (2018a, p. 131-132) “a análise do Big Data dá a conhecer modelos de comportamento que também tornam prognósticos possíveis. No lugar de modelos teóricos hipotéticos, entra uma comparação direta de dados. A correlação substitui a causalidade, a questão do por que é assim [Wieso] se torna supérflua em vista do é assim que é [Es-ist-so] [...] A teoria é um constructo, um meio de auxílio, que compensa a falta de dados. Se há dados o suficiente, ela é então, superficial. A possibilidade de decifrar modelos de comportamento a partir do Big Data enuncia o começo da psicopolítica”.
[6]Han (2022c, p.81) afirma que o novo niilismo “não se deve à circunstância de que as crenças religiosas e valores herdados perderam sua validade. Esse niilismo do valor, que Nietzsche expressou com ‘deus está morto’ (...), já está atrás de nós”. O niilismo do século XXI refere-se à descrença em relação à própria verdade e à hegemonia do dataísmo. Para uma leitura mais aprofundada do problema inerente conceito de “niilismo”, tendo em vista suas diversas acepções, ver VOLPI, 1999.
[7]Para Han (2015, p. 70-71) a denominação de Sociedade do Cansaço abarca a ideia de que “a sociedade do desempenho e a sociedade ativa geram um cansaço e esgotamento excessivos. Esses estados psíquicos são característicos de um mundo que se tornou pobre em negatividade e que é dominado por um excesso de positividade. [...] O excesso da elevação do desempenho leva um infarto da alma”.
[8]Os mecanismos de subjetivação da Sociedade do Desempenho são caracterizados pelos estímulos ao desempenho ou “pelo esquema positivo do poder. A positividade do poder é bem mais eficiente que a negatividade do dever” até porque “o poder, porém, não cancela o dever” (Han, 2015, p.25). A positividade é descrita pelo autor como um estímulo à hiperatividade que facilita a maximização da produção.
[9][9] “O panóptico digital do século XXI é aperspectivístico na medida em que não é mais vigiado por um centro, não é mais supervisionado pela onipotência do olhar despótico. A distinção entre centro e periferia, essencial para o panóptico de Bentham, desapareceu totalmente” (Han, 2017b, p. 106). Na verdade, a vigilância e o controle ocorrem de todos os lados, por todos, o tempo todo.
[10] Han (2021d, p. 150) explica a ideia de defesa imunológica da negatividade em entrevista a Ronald Düker e Wolfram Eilenberger: “A negatividade é algo que provoca uma reação de defesa imunológica. O outro é o negativo, então, que se infiltra no próprio, procurando negá-lo e destruí-lo. Eu afirmei que vivemos hoje uma era pós-imunológica. As doenças psíquicas de hoje como a depressão, a TDAH ou o burnout não são infecções causadas por uma negatividade viral ou bacteriana, mas infartos pelos quais é o excesso de positividade que é o responsável. A violência não parte apenas da negatividade, mas também da positividade, não apenas do outro, mas também do igual. A violência da positividade ou do igual é uma violência pós-imunológica. É a obesidade do sistema que adoece. Como se sabe, não há reação imunológica à obesidade”.
[11] Conforme a nota anterior, pode-se observar que a violência sistêmica da positividade é responsável por desencadear violências neuronais, na medida em que acomete o sujeito a uma autoagressão e à “infartos psíquicos”, a partir do imperativo do desempenho em contraste a uma realidade de “não-mais-poder-poder” (Han, 2015, p. 27; 29).
[12] O sentido de “negatividade” na visada haniana se caracteriza, no instante inicial, como algo que provoca limite, tensão, dor, conflito. De outro, atos que envolvem um chamamento ao pensar, refletir antes de agir, de ruminar sobre algo, se demorar sobre o outro, contemplar e embrenhar-se na poética do viver.
[13]Segundo Han (2022a, p. 16-17) “a aura é o fenômeno de uma distância, não importa o quão perto esteja aquilo que ela evoca. Inere à aura a negatividade do outro, do estranho, do enigma. A sociedade da transparência digital desauraliza, desmistifica o mundo”.
[14]“O esforço pela autenticidade de ser igual apenas a si mesmo desencadeia uma comparação [Vergleich] permanente com o outro. A lógica do equi-parar [Ver-Gleichens] faz o ser-outro [Anderssein] se inverter no ser-igual [Gleichsein]. Assim, a autenticidade do ser diferente consolida a conformidade social. Ela permite apenas as diferenças conformes ao sistema; a saber, a diversidade. A diversidade como termo neoliberal é um recurso que se deixa explorar. Assim, ela é oposta à alteridade, que se furta a toda utilização econômica” (HAN, 2022a, p. 38).
[15]“[...] Enquanto objeto de desejo, Sócrates é incomparável e singular. A singularidade é algo completamente diferente da autenticidade. A autenticidade pressupõe a comparabilidade. Quem é autêntico é diferente dos restantes. Mas Sócrates é atopos, incomparável. Não é somente diferente dos restantes, é diferente de tudo o que é diferente para eles. A cultura da comparação identificadora constante não consente negatividade alguma do atopos. Tudo o torna comparável, quer dizer, idêntico. A experiência do outro atópico torna-se assim impossível. A sociedade de consumo aspira eliminar a alteridade atópica em proveito das diferenças consumíveis, heterotópicas. [...] O terror da autenticidade enquanto forma neoliberal de produção e de consumo elimina a alteridade atópica. A negatividade do completamente outro cede perante a negatividade do idêntico, do outro que é idêntico” (Han, 2018b, p. 30-31).
[16] Em Baudrillard (1987 apud Han, 2018b, p. 16) nos jogos de sedução se tem “a capacidade de ‘arrancar ao idêntico o que tem de idêntico’ de fazer com que divirja de si mesmo”.
[17] A definição de alteridade atópica está baseada no conceito de atopos conforme a passagem da nota de rodapé número 11 que explorou a diferença entre autenticidade e singularidade, que nos diz que “amando Sócrates, os seus discípulos chamam-lhe atopos. O outro, que desejo, é não-localizado. Não tolera comparação alguma[...]. Enquanto objeto de desejo, Sócrates é incomparável e singular. A singularidade é algo completamente diferente da autenticidade (Han, 2018b, p. 30).
[18] Han procede a uma leitura de Janet Bennet que considera uma “nova ontologia da matéria que a experimenta como viva” (HAN, 2022b, p. 168).
[19] Han procura explorar o sentido de estabilidade das coisas no mundo, que criam “pólos de descanso”, a partir do pensamento de Hannah Arendt (2022b).
[20] Han refere-se a Walter Benjamin para ilustrar o vínculo que sentimos quando possuímos as coisas (HAN, 2022b, p.36).
[21] Han (2022a, p. 71) ressalta que “o verbo obicere que dá origem à palavra objeto significa se contrapor, se colocar diante, se lançar à frente, acusar.”
[22] Han (2022b, p.95) destaca que “(...) A frieza das máquinas faz com que o calor das coisas desapareça” e cita ainda Walter Benjamin pelo seu registro de resfriamento das coisas, ao mencionar que “o calor desaparece das coisas. Os objetos de uso diário repelem o homem suave, mas persistentemente, de si mesmo (...)”. O autor menciona que a digitalização retira qualquer parte de uma materialidade revoltosa dos objetos, qualquer tipo de espinho, e é por essa razão que eles não nos oferecem nenhum tipo resistência (HAN, 2022b, p. 96).
[23] O sentido de ferida para Han está em diálogo com Lévinas e traduz-se na abertura e perpasses entre o si e as coisas. “As feridas arrancam o eu para fora da tranquilidade caseira, para fora da interioridade autoerótica e da satisfação consigo mesmo, o expõem ao lá fora, ao outro. [...] Essa abertura é a ferida que escancara, que vira como uma porta por meio da qual o outro é recebido ou penetra em minha interioridade. É preciso, então estar saturado de feridas, a fim de ser para o outro” (Han, 2020a, p.397).
[24]O sentido de ego inflado para o autor remete-se à ideia de um ego hiperativo, mergulhado em si mesmo (Han, 2015; 2017a).
[25] A expressão francesa apprendre par coeur significa “adquirir por meio da repetição” (Han, 2022b, p.135), ou o que nos remeteria em português à expressão “aprender de cor”.