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Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 1, e85899, 2023

DOI: 10.5902/2179378685899

ISSN 2179-3786

Submissão: 02/10/2023 Aprovação: 01/02/2024 Publicação: 22/03/2023

1 RESENHA DE: 1

 

Resenhas

Resenha de Schopenhauer, Freud e a Religião, de Guilherme Marconi Germer. Alegoria ou ilusão?

Review of Schopenhauer, Freud e a Religião, by Guilherme Marconi Germer. Allegory or illusion?

José Fernandes WeberIÍcone

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Camila Gomes WeberI IÍcone

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IUniversidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil

1 Resenha de:

Resenha de: GERMER, Guilherme Marconi. Schopenhauer, Freud e a Religião. Curitiba: Editora Appris, 2023.

Os egípcios dizem que os deuses têm nariz chato e são negros, os trácios, que eles têm olhos verdes e cabelos ruivos (Xénofanes, Apud Clemente de Alexandria, Tapeçarias VII, 22)

 

Mas se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões e pudessem com as mãos desenhar e criar obras como os homens, os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos bois, desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles próprios têm (Xénofanes, Apud Clemente de Alexandria, Tapeçarias V, 110)

Schopenhauer, Freud e a Religião, de Guilherme Marconi Germer, publicado pela Editora Appris em 2023, que conta com um primoroso prefácio do prof. Oswaldo Giacóia Júnior, é uma obra de largo alcance que explora as intersecções entre a filosofia de Arthur Schopenhauer e a psicanálise de Sigmund Freud. O autor, que é especialista em filosofia da psicanálise e da religião, estética e ética, examina de forma perspicaz e rigorosa as ideias de Schopenhauer e de Freud, proporcionando uma visão abrangente dos pensamentos de ambos os autores, com uma atenção especial concedida à temática da religião, oferecendo uma ampla e aprofundada visão, tanto sobre a singularidade das compreensões de Schopenhauer e Freud a respeito da religião, mas também, sobre as intersecções entre estas compreensões, destacando seus pontos de convergência, mas também seus pontos de tensão e suas divergências.

A importância da obra para quem deseja compreender as relações entre a filosofia schopenhaueriana e a psicanálise freudiana com o foco de atenção nas discussões sobre a natureza e a essência da religião é perceptível já na introdução. O ponto de partida para adentrar ao tema é a crítica de Nietzsche “à erudição que não problematiza a religião” (Germer, 2023, p. 22) e a referência à herança freudiana da tradição do ateísmo alemão, tradição que, como destacado pelo autor, de acordo com Nietzsche, teve início em Schopenhauer. Este enquadramento acrescenta uma dimensão significativa ao debate na medida em que, a partir dele (Cf. Germer, 2023, pp. 26-27), é mostrado que o ponto de partida das concepções de Schopenhauer e de Freud sobre a religião são semelhantes em múltiplos aspectos, dentre os quais destacamos: ambos eram ateus e acreditavam que a interpretação literal dos dogmas religiosos levava à ilusões, pois a religião, não tendo uma base realista, converte-se em uma sofisticada forma de autoengano que responde à necessidades humanas fundamentais, como o medo da morte e o desejo de sentido. No último capítulo, este enquadramento será retomado nas elucidativas considerações sobre a “eutanásia da religião”.

Se, num primeiro plano, a obra se organiza em torno da apresentação e da elucidação da compreensão da religião por parte de Freud e Schopenhauer, há, porém, um segundo plano, que também desempenha uma função significativa para sua estruturação, e que diz respeito ao problema da proximidade ou do distanciamento de Freud frente à tradição do pensamento filosófico schopenhaueriano, denominado na historiografia recente como “escola de Schopenhauer”. A função orientadora deste segundo plano pode ser sintetizada nas seguintes perguntas: Freud era um “discípulo” de Schopenhauer ou um crítico? Também ele pertenceria à “escola de Schopenhauer”?

No primeiro capítulo, intitulado A ‘escola de Schopenhauer’ e o ‘caso Freud’, o autor alude que, para compreender a posição de Freud no âmbito daquilo que se convencionou chamar “escola de Schopenhauer”, faz-se necessário “uma investigação bastante ampla e pormenorizada” (Germer, 2023, p. 48) do contexto histórico e filosófico de ambos os autores.

A filosofia de Schopenhauer teve um impacto significativo no pensamento posterior, influenciando uma ampla gama de pensadores e intelectuais. No entanto, como Germer (2023, p. 33) destaca, segundo D. Fázio, M. Kossler e L. Lutkehaus, o termo “escola de Schopenhauer”, embora já existente na historiografia alemã do início do século XX, foi cunhado de um modo mais enfático a partir do simpósio Schopenhauer und die Schopenhauer-Schule, realizado na Università del Salento, Itália, em 2005, para se referir a esse grupo de indivíduos, que inclui não apenas os alunos diretos do filósofo, mas também aqueles que se inspiraram em seu trabalho por diversas razões. Entre os pensadores mais reconhecidos da escola de Schopenhauer, destacam-se Friedrich Nietzsche e Eduard von Hartmann, enquanto Sigmund Freud, embora reconhecida sua proximidade com a dita escola, aparece referido em menor intensidade nos estudos que, até a década de 1930, buscavam apontar, não apenas a influência genérica de Schopenhauer no pensamento europeu, mas a existência de algo como uma “escola de Schopenhauer” (Germer, 2023, pp. 42-44), embora sua relação com Schopenhauer seja complexa e ambivalente. Germer destaca que Freud reconheceu algumas concordâncias entre seu pensamento e a filosofia de Schopenhauer, mas ele também recusou a influência direta do filósofo sobre a constituição das ideias-chave da psicanálise. Essa ambivalência, segundo Germer (2023, p. 48), fica evidente quando Freud reconhece Schopenhauer como um precursor de alguns conceitos importantes da psicanálise, mas se distancia da doutrina schopenhaueriana sob a alegação de proteger a originalidade e autonomia da psicanálise, isso tendo em vista que Freud tinha receio de que a psicanálise fosse considerada apenas uma cópia da filosofia de Schopenhauer no campo da psicologia, o que levou inclusive alguns autores a enfatizarem as distâncias entre Freud e Schopenhauer, adotando uma postura cautelosa, mas também radical, como foi o caso, por exemplo, de Jacques Lacan. (Cf. Germer, 2023, p. 90). Por todo o exposto, Germer menciona que não se pode afirmar que Freud foi considerado um seguidor de Schopenhauer pela tradição, já que, para comentadores com um teor mais ousado, a resposta é afirmativa; já os mais cautelosos, negam ou propõem um meio termo. Isso leva o autor (2023, pp. 96-97) a analisar mais a fundo o pensamento schopenhaueriano e freudiano nos capítulos seguintes, tendo em vista que a posição do filósofo e do psicanalista em relação à religião é pouco confrontada pelos comentadores, mas na sua concepção, apresenta potencial para novas interpretações, podendo respaldar a hipótese da proximidade de Freud à “escola de Schopenhauer”.

Para tanto, nos capítulos segundo e terceiro, respectivamente intitulados O pensamento de Schopenhauer sobre a religião e O pensamento de Freud sobre a religião, Germer apresentará as principais posições dos autores sobre o problema da religião, a partir dos quais elaborará os elementos para elucidar a singularidade do pertencimento de Freud à “escola de Schopenhauer” no quarto capítulo.

No primeiro item do segundo capítulo, o autor elucida o modo como Schopenhauer concebe a necessidade metafísica dos seres dotados de capacidade reflexiva e esclarece a implicação e a importância da religião nesse processo de clareamento de consciência, principalmente em face da morte e do sofrimento injustificado. (Cf. Germer, 2023, pp. 101-113). O autor também discorrerá, no segundo e terceiro itens, sobre a forma como as religiões otimistas e pessimistas são abordadas por Schopenhauer, levando em consideração toda a complexidade que cada uma possui e em que medida elas são úteis para o apaziguamento do tormento que emerge do âmago atormentado do ser humano. Entre as religiões otimistas, destacam-se o Politeísmo, o Judaísmo e o Islamismo (Cf. Germer, 2023, pp. 114-126), criticadas a partir da pressuposição de que a felicidade terrena é ilusória e sua satisfação, apenas a libertação de um desejo ou carência. Assim sendo, apenas a dor e o sofrimento são positivos, sendo o otimismo uma ingenuidade e uma falta de visão intelectual rigorosa sobre o genuíno sentido do mundo e da existência (Cf. Germer, 2023, pp. 120-121). Na sequência, Germer expõe as religiões pessimistas, das quais destacam-se o Cristianismo, o Bramanismo e o Budismo. (Cf. Germer, 2023, pp. 127-148). Assim, se de um lado Schopenhauer argumenta ser possível pensar na essência das religiões otimistas que consolam a morte com a ideia de imortalidade, do outro, o filósofo acentua a visão pessimista de tais religiões, se aproximando do seu próprio pensamento em relação ao mundo, já que elas entendem que tudo é resultado da nossa culpa e, portanto, de que não deveríamos existir. No final do capítulo, Germer (Cf. 2023, pp. 148-163) comenta que Schopenhauer fez duras críticas às religiões, mas reconheceu que elas têm valor prático e consolador, independentemente de seu nível intelectual. Segundo Schopenhauer, a filosofia não pode satisfazer as necessidades metafísicas da maioria das pessoas, de modo que a ideia de uma eutanásia religiosa completa se torna utópica, mas apesar da importância da prática religiosa, ela deve ser criticada e vista como uma literatura alegórica com um valor estético. Germer (2023, p. 155) argumenta que tais contribuições schopenhauerianas ao pensamento contemporâneo sobre a religião situam-se na valorização de sua importância prática e metafísica, juntamente com a necessidade de crítica filosófica e científica.

No terceiro capítulo, o pensamento de Freud sobre a religião passa a ser explorado. Segundo Germer, após perceber o interesse despertado pela psicanálise entre os intelectuais franceses, Freud resumiu suas aplicações na estética, na literatura e deu importância às descobertas relacionadas à religião. (Cf. Germer, 2023, p. 165), o que levou o psicanalista a explorar a relação entre a psiquê humana e as práticas religiosas e a criticar os dogmas religiosos. Desse modo, Germer (Cf. 2023, p. 169) destaca que Freud radicaliza a ideia de “eutanásia da religião” proposta por Schopenhauer, substituindo-a pelo autocontrole racional dos instintos. No primeiro item, Germer apresenta a perspectiva freudiana da religião como ilusão (Cf. Germer, 2023, pp. 169-177), iniciando com a discussão de Freud sobre a religião no contexto da civilização e da cultura, bem como a definição de Freud em relação as representações religiosas como dogmas que comunicam algo que não pode ser descoberto por si só e exigem fé. Em suma, Germer destaca que, para Freud, as doutrinas religiosas podem ser consideradas ilusões, pois satisfazem os desejos mais profundos da humanidade, mas sua objetividade é improvável.

Na sequência, é enfatizada a relevância de compreender a explicação filogenética de Freud acerca da gênese da religião, que se fundamenta na neurose traumática no desenvolvimento do judaísmo decorrente do assassinato de Moisés, pois, em suma, esse evento traumático é considerado por Freud como o trauma primitivo e desencadeia sentimento de culpa, bem como manifestações obsessivas e compulsivas em relação a Moisés e sua religião (Cf. Germer, 2023, pp. 184-204). No entendimento de Germer (2023, p. 184), é crucial apreender essa perspectiva antes de abordar a controvérsia freudiana sobre a necessidade prática da religião. Após as explicações supracitadas, o autor explora a interpretação freudiana da religião como uma “neurose obsessiva infantil da humanidade” (Cf. Germer, 2023, pp. 204-225), destacando que, para Freud, a religião é percebida como uma forma de neurose obsessiva coletiva que traz consigo ilusões, compulsões e repressões para a sociedade, sendo dispensável e um obstáculo para a felicidade e moralidade do indivíduo. Além disso, Freud entende que a religião impõe um único caminho como forma de alcançar a felicidade, diminui o valor da vida, distorce a percepção das pessoas em relação à realidade para, no final, não cumprir com suas promessas e levar a uma submissão irrestrita. Para finalizar, Germer (2023, pp. 224-225) alude que, tanto Freud quanto Schopenhauer defendem a autonegação da religião, mas Freud acreditava que esse processo ocorreria de dentro para fora, enquanto Schopenhauer fica com a visão mais pessimista sobre a capacidade das pessoas em trocar a religião por outros meios. No entanto, apesar das diferenças, ambos concordam que a ciência e a filosofia têm limitações em lidar com o incognoscível.

            No quarto e último capítulo Germer (Cf. 2023, p. 227) apresenta suas Reflexões conclusivas sobre a compreensão da religião em Schopenhauer e Freud, aludindo às semelhanças e diferenças entre os autores: enquanto o pensamento schopenhaueriano sustenta uma interpretação da religião com bases filosóficas e metafísicas, a explicação freudiana é feita a partir de um contexto histórico, psicológico e científico. O autor sustenta que, de um ponto de vista historiográfico, Freud esteve próximo do pensamento de Schopenhauer, mas não o suficiente para ser um integrante da “escola de Schopenhauer” no sentido forte do termo, sendo que, portanto, “a qualificação de Freud como um autor pertencente à cercania do schopenhauerianismo parece ser a mais exata” (Germer, 2023, p. 228). Dividindo o capítulo entre “A eutanásia da religião pela filosofia ou pela ciência?” (Cf. Germer, 2023, pp. 228-257) e “Freud na proximidade da “escola de Schopenhauer”” (Cf. Germer, 2023, pp. 257-282), Germer passa a explorar com maestria as conexões e divergências entre Freud e Schopenhauer, já discutidas nos capítulos anteriores, esclarecendo de forma convincente como as teses de Schopenhauer anteciparam elementos fundamentais da teoria psicanalítica freudiana, de forma a deixar o leitor com poucas ou nenhuma dúvida sobre a influência entrelaçada entre os dois pensadores. Enquanto o pensamento schopenhaueriano é visto como o catalisador do ateísmo alemão, influenciando sobretudo a psicanálise freudiana, Germer destaca a notável originalidade de Freud em relação a Schopenhauer a respeito da religião, tendo em vista que o psicanalista definiu detalhadamente a religião como uma neurose obsessiva universal. Essa interpretação, segundo Germer (Cf. 2023, p. 250), é considerada uma das principais contribuições para a ciência religiosa.

Por fim, o embate entre a “escola schopenhaueriana” e o freudismo, como apontado por Germer (Cf. 2023, p. 278), vai além de uma mera disputa teórica e revela a necessidade de preservar a essência de ambas as tradições filosóficas, evitando que sejam reduzidas a posições dogmáticas fechadas. Além disso, o autor defende a orientação interpretativa segundo a qual tanto a filosofia quanto a psicanálise podem ser enriquecidas ao se aproximarem das ciências e se aproveitarem de sua precisão elucidativa. A partir de todo o exposto, a proposta de Germer (Cf. 2023, p. 281) é, portanto, incluir cientistas e artistas na “escola de Schopenhauer em sentido lato”, ampliando ainda mais o horizonte dessa tradição filosófica, sendo possível reconhecer que a busca pelo conhecimento não se restringe apenas aos limites da racionalidade, mas também abarca a dimensão artística e inventiva da vivência humana. Para tanto, Germer cita Zint, que afirma que “nenhum outro filósofo exerceu, em igual medida e em termos de amplitude da vida cultural, a mesma influência engendrada por Schopenhauer sobre a literatura e a arte” (Zint, 1938, p. 94 apud Germer, 2023, p. 281). Dentre as figuras que compõem a cercania da escola de Schopenhauer, destaca-se Freud, criador da psicanálise, que teve Schopenhauer às costas de sua descoberta da teoria do inconsciente. Isto leva o autor afirmar que, “se Freud é o pai da psicanálise, Schopenhauer é o seu avô filosófico mais direto” (Germer, 2023, p. 282).

Portanto, Schopenhauer, Freud e a Religião não apenas apresenta um estudo rigoroso sobre as intersecções entre a filosofia de Arthur Schopenhauer e a psicanálise de Sigmund Freud, sobre os seus pontos de convergência, mas também, destaca os pontos de tensão e divergência. Também, não apenas oferece um capítulo muito bem realizado sobre o atualíssimo tópico dos estudos schopenhauerianos a respeito da “escola de Schopenhauer”, identificando a proximidade do pai da psicanálise com esta escola, mas não o suficiente para concebê-lo como um dos seus integrantes. Num sentido mais abrangente, o vigor da obra resulta de um bem-sucedido trabalho de seleção e hierarquização de problemas filosóficos, historiográficos e metodológicos. Foi preciso ao autor saber dosá-los adequadamente para não se perder em divagações genéricas que, na melhor das hipóteses, teriam um interesse informativo, mas que nada acrescentariam de significativo à intelecção do problema. Ao final, fica-nos um exemplo vigoroso sobre como pesquisar filosofia sem sacrificar aquilo que é propriamente filosófico ao historiográfico e ao metodológico. Tudo isso parece-nos mais do que suficiente para recomendar fortemente a leitura desta obra que se soma à vigorosa tradição de estudos altamente qualificados sobre a filosofia de Schopenhauer no Brasil.

Contribuição de autoria

1 – José Fernandes Weber

Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual de Londrina (UEL)

https://orcid.org/0000-0001-8402-7224jweber@uel.br

Contribuição:Escrita, e primeira redação.

2 – Camila Gomes Weber

Graduanda em filosofia pela Universidade Estadual de Londrina

https://orcid.org/0000-0002-1130-8794camilagweber@gmail.com

Contribuição:Escrita, e primeira redação.

Como citar este artigo

WEBER, J. F.; WEBER, C.G. Resenha de Schopenhauer, Freud e a Religião, de Guilherme Marconi Germer. Alegoria ou ilusão? Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 14, n. 1, e85899, 2023. DOI 10.5902/2179378685899. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378685899. Acesso em: dia mês abreviado. ano.