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Descrição gerada automaticamente

Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85625, 2023

DOI: 10.5902/2179378685625

ISSN 2179-3786

Submissão: 05/11/2023 Aprovação: 31/01/2024 Publicação: 05/04/2024

1 INTRODUÇÃO.. 3

2 FILOSOFIA, TÉCNICA E OS INDÍCIOS DO NOVUM... 5

3 O “TOLHIMENTO BURGUÊS” DA TÉCNICA.. 8

4 COPRODUTIVIDADE COM A NATUREZA: TÉCNICA DA ALIANÇA.. 13

5 DESAFIOS E POSSIBILIDADES. 19

REFERÊNCIAS. 24

 

Dossiê

Técnica da Aliança: elementos para uma relação não violenta com a natureza, segundo Ernst Bloch

Alliance Technique: Elements for a non-violent relationship with nature, according to Ernst Bloch

Rosalvo Schutz IÍcone

Descrição gerada automaticamente

I Universidade Estadual do Oeste do Paraná , Toledo, PR, Brasil

RESUMO

Segundo Ernst Bloch, o fato de grande parte das técnicas atualmente disponíveis tratarem a natureza apenas como objeto de dominação seria a consequência de uma relação instrumental e alienada da nossa sociedade com a natureza, resultando em uma tecnologia da violação, da destruição e da repressão. Daí a importância de se entender essa alienação fundamental, que estaria na base das catastróficas tendências ambientais da atualidade, a fim de se conceber, filosoficamente, uma técnica sem violação, também denominada de Técnica da Aliança (Allianztechnik). Trata-se de uma concepção de técnica que pressupõe uma natureza e uma sociedade em horizontes abertos, integrados e vivos, para além do tolhimento burguês dela. Bloch concebe a Técnica da Aliança a partir da unidade originária, viva e coprodutiva entre natureza e sociedade. A superação da hodierna relação entre seres humanos e natureza requer, por isso, uma reconceitualização filosófica da própria natureza e de nossa relação com ela. Uma práxis social adequada poderia, inclusive, desbloquear conteúdos utópicos objetivamente já latentes na técnica atual, além de viabilizar novas possibilidades.

Palavras-chave: Alienação; Coprodutividade; Conteúdo utópico; Práxis

ABSTRACT

According to Ernst Bloch, the fact that most of the techniques currently available treat nature only as an object of domination would be the consequence of an instrumental and alienated relationship between our society and nature, resulting in a technology of violation, destruction, and repression. Hence the importance of understanding this fundamental alienation, which would be at the basis of today's catastrophic environmental trends, in order to conceive, philosophically, a technique without violation, also called Alliance Technique (Allianztechnik). It is a conception of technique that presupposes a nature and a society in open, integrated and living horizons, beyond the bourgeois prohibition of it. Bloch designs the Alliance Technique from the original, living and co-productive unity between nature and society. Overcoming today's relationship between human beings and nature therefore requires a philosophical reconceptualization of nature itself and our relationship with it. An adequate social praxis could even unlock utopian content objectively already latent in the current technique, in addition to making new possibilities possible.

Keywords: Interdiction; Alienation; Coproductivity; Utopian content; Praxis

1 INTRODUÇÃO

Em diversas obras de Ernst Bloch, pode ser percebida certa afinidade eletiva no que diz respeito ao tratamento filosófico dado à religião e à técnica. No caso da religião, o autor compreende-a como portadora de uma utopia concreta que, embora ainda oculta, já estaria latente e em processo de revelação na história. Nela estariam emergindo conteúdos humanos autênticos e inéditos. Esse posicionamento teórico possibilitou a Bloch um acesso totalmente diferenciado à religião, para além do ateísmo ingênuo ou burguês (cf. Schütz, 2020 e 2021). Essa mesma postura parece orientar o autor na sua análise crítico/utópica da técnica: a visualização de potenciais humanos inéditos possíveis de serem herdados numa perspectiva emancipatória, mesmo que, na maioria das vezes, assim como na religião, ainda estejam mistificados e externalizados/estranhados. Como se fossem entidades não humanas.

Ao contrário da religião, no entanto, cujos potenciais utópico-subversivos parecem estar circunscritos aos horizontes intra-humanos, no caso da técnica, esses conteúdos se manifestam também de forma objetiva nas atividades e produtos da técnica. Bloch parece estar convencido da afirmação de Marx segundo a qual “[...] a história da indústria é o livro aberto das faculdades humanas [e de que ela] mostra-nos, sob a forma de objetos sensíveis, alienados, úteis, sob a forma de alienação, as faculdades essenciais do homem transformadas em objetos” (1964, p. 200-201). Mas, tal como na religião, ainda é necessário desvendar sua função utópico-subversiva, para que o caráter propriamente humano aí oculto possa ser libertado e herdado. O fato de, por exemplo, a técnica, na sociedade atual, ser majoritariamente tomada como sinônimo de dominação sobre a natureza – estando, inclusive, na base de muitas catástrofes ambientais – não deveria nos levar a crer que esta seja sua única possibilidade de aplicação. Pelo contrário, indicaria apenas que também ela estaria à espera por libertação (cf. Bicca, 2013) em uma possível sociedade de colaboração e aliança coprodutiva.

A afirmação – de Marx – de que a ciência e a técnica fortaleceram a indústria de tal modo que ela “transformou e preparou a emancipação da humanidade, muito embora o seu efeito imediato tenha consistido em acentuar a desumanização do homem” (Marx, 1964, p. 201) deveria, portanto, nos desafiar a buscar entender quais são os conteúdos utópicos ainda bloqueados na técnica. Ou, ao menos, deveria nos levar a perguntar se existem e quais são os germes de novas relações, capazes de subsidiar e viabilizar a efetivação de formas mais elevadas de sociedade, partindo dos meios materiais já produzidos e presentes na técnica; ou seja, sem retornar a um momento histórico de menor desenvolvimento técnico, convertê-la em suporte e impulso de uma sociedade qualitativamente diferente.

Se, por um lado, soluções técnico-científicas podem minimizar ou dar conta de problemas ambientais e sociais pontuais decorrentes da nossa relação danificada com a natureza; por outro, o modelo técnico-científico vigente parece acirrar e acelerar cada vez mais certas tendências catastróficas. Ao que tudo indica, nos faltam os pressupostos filosóficos fundamentais para um necessário redirecionamento da nossa relação destrutiva com a natureza, cuja face mais visível se evidencia no nosso poder tecnológico capaz de viabilizar intervenções cada vez mais profundas e refinadas na dinâmica da natureza.

Segundo tematização de Schmied-Kowarzik, nos faltam “os pressupostos filosóficos que nos permitam descortinar teoricamente e superar praticamente essa alienação” e, por isso, também ainda temos dificuldade para “visualizar um movimento revolucionário capaz de opor-se praticamente a esta tendência” (2019, p. 21). Ainda segundo o mesmo autor, a relação entre seres humanos e natureza foi tematizada filosoficamente por F. Schelling (1775-1854), recebendo pouca atenção até ser reconsiderada, em torno de 100 anos depois, em alguns aspectos, por Marx, para, por fim, ser novamente retomada com vigor justamente por Ernst Bloch.

Assim como Schelling, Bloch busca esboçar uma filosofia da natureza desde sua “própria produtividade, de tal modo que a práxis humana, ela mesma, possa ser concebida como produtividade natural” (Schmied-Kowarzik, 2019, p. 101). Como, no entanto, a autonomia da práxis humana enquanto história pode levar a um conflito com a natureza (cf. Schütz, 2009), trata-se de reconciliar a práxis humana com a natureza para além da técnica da violação, questão que exige o engajamento consciente e solidário numa práxis social que revolucione essa relação, na perspectiva esperançosa de uma possível pacificação entre natureza e história humana (cf. Schmied-Kowarzik, 2021). São esses elementos peculiares da filosofia de Ernst Bloch que pretendemos compreender e explicitar neste texto.

2 FILOSOFIA, TÉCNICA E OS INDÍCIOS DO NOVUM

“Ficará evidenciado [...] que o mundo já há muito possui o sonho de uma coisa de que ele apenas precisa ter a consciência para possuí-la de fato” (Marx, apud Bloch, 2006a, p. 449).

Em sua obra Princípio esperança, Ernst Bloch (2005/2006) se contrapõe decididamente a uma tradição filosófica na qual, segundo sua convicção, haveria muito pouco espaço para o futuro, para o novum. Tradição essa que se estenderia de Tales de Mileto a Hegel. Como ele mesmo afirma: “Em último caso, foi sempre a tampa da anamnesis platônica sobre o eros dialeticamente aberto que manteve a filosofia precedente afastada da seriedade do front e do novum, cerrada no modo contemplativo e antiquado, inclusive a filosofia de Hegel” (Bloch, 2005, p. 28). Seu objetivo, portanto, é defender uma compreensão de filosofia “que não se resigna a contemplar e explicar” (Bloch, 2005, p. 19).

Para tanto, algumas exigências e condições teriam de ser preenchidas. E um dos principais pressupostos a serem superados para possibilitar o engajamento consciente no vir-a-ser do mundo, assim como na própria sociedade, seria a superação da concepção estática e fechada de realidade: “Somente ao se abandonar o conceito fechado e imóvel do ser surge a real dimensão da esperança” (Bloch, 2005, p. 28), pois, enquanto isso não acontecer na filosofia, a tematização das possibilidades latentes e imanentes do vir-a-ser ficaria prejudicada, uma vez que, sem isso, o mundo – já desde sempre – é aceito como sendo um sistema acabado e fechado.

Todo o Princípio esperança é, em certo sentido, uma tentativa enciclopédica de comprovação de que o mundo – e com isso também a história humana – é um sistema aberto. Como comenta, acertadamente, Schmied-Kowarzik:

Nossa vida não é um estado, mas um interminável progredir e modificar-se, e ela mesma está inserida em um processo social de devir, o qual nós chamamos de sociedade; esta, por sua vez, também está inclusa no processo relacional ainda mais amplo do devir cósmico (2019, p. 02).

Bloch intenciona, mediante sua filosofia, contribuir para instigar os seres humanos a visualizarem a possibilidade de se engajarem ativamente no mundo e, assim, fortalecerem a capacidade de resistência e contraposição à resignação e à indiferença em relação a situações de injustiças e opressões. Simultaneamente, no entanto, também objetiva chamar a atenção para a existência de oportunidades históricas, naturais, materiais e técnicas nunca antes possíveis. Na teoria de Bloch, não se trata de pura descrição (a coruja de Minerva), pois compreende a sua própria obra como sendo uma contribuição ativa ao processo.

Nesse sentido, toda a sua obra é perpassada por uma intencionalidade: subsidiar e possibilitar a práxis emancipatória na sociedade instituída a partir das utopias concretas (aquilo que ainda não é, mas que pode ser) tanto na esfera social/histórica quanto na esfera material/natural. É nesse horizonte intencional ampliado, indicativo para uma possível unidade entre história e natureza, que Bloch desenvolve sua própria filosofia.

No mundo muita coisa ainda está inconclusa. Todavia, nada circularia interiormente se o exterior fosse totalmente estanque. Do lado de fora, porém, a vida é tão inconclusa como no eu que opera neste lado de fora. [...] O real é o processo e o processo é a mediação vastamente ramificada entre o presente, o passado pendente e, sobretudo, o futuro possível (2005, p. 194).

O ser humano, portanto, não está apenas inserido passivamente nesse processo, mas está ativamente na sua linha de frente:

O homem e seu trabalho tornam-se, desse modo, elementos decisivos no processo histórico do mundo; [...] [ele está] na linha de frente do processo do mundo, onde são tomadas as decisões, onde se descortinam novos horizontes. E o processo em direção a este futuro é unicamente o da matéria, que se condensa e atinge sua finalização no homem como sua flor mais vistosa (Bloch, 2005, p. 244).

Assim, poderíamos afirmar que é o ser humano, na medida em que pode ser considerado um produto da própria produtividade da natureza, que, simultaneamente, revela e pode fazer emergir as potencialidades mais inusitadas da própria realidade, do próprio mundo. A tecnologia, como produto da interação humana com a natureza não humana, seria um dos locais privilegiados de manifestação do inédito, o front onde na prática se descortina o novum por excelência. Os potenciais humanos e naturais que emergem nesse horizonte são, para Bloch, carregados de conteúdos utópicos e anunciam latências muitas vezes ainda não conscientes, mas, mesmo assim, reais e com capacidade de subsidiar utopias concretas, uma vez que, objetivamente, possíveis. Mas por que, então, na maior parte das vezes, a técnica, na atualidade, se apresenta como um instrumento de dominação e até mesmo de destruição tanto da própria natureza quanto do ser humano?

3 O “TOLHIMENTO BURGUÊS” DA TÉCNICA

“A propriedade privada não apenas aliena

 a individualidade do ser humano,

mas também a das coisas”

(Marx apud Bloch, 2006, p. 245).

Como muito bem diagnosticou Lorenzoni (2016) em seu texto sobre as utopias técnicas em Ernst Bloch: “Atualmente, encontramo-nos em meio a um desenvolvimento tecnológico tal, que o chamado ‘trabalho-constrangimento’ poderia ser abolido; a fome no mundo poderia ser eliminada com todos os avanços realizados na produção de alimentos; e ninguém mais morreria por conta de doenças cujas curas e vacinas já foram descobertas” (2016, p. 23). A pergunta que fica é ‘por que isso não acontece?’. E mais: por que continuamos destruindo a natureza, de forma progressiva, apesar de os efeitos negativos dessa dinâmica sobre a vida humana e os outros organismos vivos estarem cada vez mais evidentes?

Ou, na formulação de Dietschy, por que continuam crescendo as tendências de “desumanização da natureza e de desnaturalização dos seres humanos” (2021, p. 77)[1], aumentando cada vez mais o fosso entre ambos? Para Bloch, de modo geral, isso acontece porque “a técnica existente até hoje se posiciona na natureza como um exército de ocupação em território inimigo” (Bloch, 2006, p. 250)[2]. Ou seja: a natureza é tomada como inimiga a ser dominada, resultando, como afirma acertadamente Acosta, em um modelo de “sociedade predatória, baseada na luta dos seres humanos contra a natureza” (2016, p. 127). Aspecto este que, embora tenha origem históricas profundas em nossa cultura ocidental greco-cristã, segundo Bloch, encontra sua expressão prática mais desenvolvida na sociedade moderno-burguesa:

O pensamento burguês como um todo se afastou das substâncias de que trata. Tem por base uma economia que não se interessa, como diz Brecht, em momento algum, pelo arroz, mas somente pelo preço dele. É antiga a transição do uso para a troca, mas somente com o capitalismo aconteceu a transformação de todos os bens de troca em mercadorias abstratas e da mercadoria em capital. A isso corresponde um cálculo não apenas alienado dos seres humanos, mas também das coisas, indiferente em relação ao seu conteúdo (Bloch, 2006, p. 220).

Bloch parece ter sempre em vista que a mesma lógica que condiciona as relações sociais na sociedade burguesa também se faz presente na relação que os seres humanos estabelecem com a natureza:

E o relacionamento técnico com a natureza repete, de outro modo, o relacionamento social burguês, com as tendências e conteúdos incompreendidos em seu próprio funcionamento: em ambos os casos, a atividade nunca ultrapassa a mera exploração de chances. [...] Por isso, a violação e a falta de mediação continuam tecnologicamente aparentadas na sociedade burguesa (Bloch, 2006, p. 250).

Uma relação marcada pela instrumentalização e exploração, em que tanto os outros seres humanos quanto a natureza como um todo são tomados como sendo um simples material à disposição da valorização do valor próprio da sociedade burguesa, de modo que, “nunca  e  em  lugar  algum,  a  lógica  do  valor  do  capital  está interessada  nas  condições  de  vida  dos  seres  humanos  trabalhadores  ou  nos  circuitos ecológicos  vitalmente  necessários,  mas  única  e  exclusivamente  na  produção  de  mais-valia, na valorização do valor e na acumulação do valor” (Schmied-Kowarzik, 2021, p. 398).

A lógica da acumulação infinita do capital se sobrepõe à dinâmica finita da natureza. Para tanto, dentre outras pressupostos, a natureza precisa ser reduzida a um substrato material manipulável para poder ser ‘útil’ no processo de valorização do valor. Por mais que se consiga reduzir, pontualmente, alguns riscos e problemas ambientais, segundo Bloch, o “[...] risco reduzido não retira da abstração o relacionamento técnico-burguês com a natureza” (2006, p. 247). Ou seja, a natureza é considerada uma simples matéria-prima à disposição da dinâmica produtiva capitalista e suas necessidades sociais e ambientais não importam, delas se abstrai. Como afirma Bloch, em uma de suas últimas obras, Experimentum Mundi: “A esta relação abstrata com as forças da natureza corresponde a relação igualmente abstrata dos seres humanos com os seres humanos, adequada ao tornar-se mercadoria de todas os seres humanos e coisas” (Bloch, 1977, v. 15, p. 251)[3]. Além disso, vivemos situações paradoxais nas quais “[...] é possível que aos progressos no ‘domínio sobre a natureza’ correspondam retrocessos muito grandes na sociedade” (Bloch, 2006, p. 250), uma vez que o uso tecnológico está restrito à sua aplicabilidade como instrumento de exploração e dominação e não do bem viver.

Bloch também vê nessa relação alienada da técnica com a natureza uma das causas de acidentes técnicos. Segundo ele, os acidentes técnicos que acontecem entre seres humanos e na relação com a natureza, geralmente, partilham um fator digno de ser sublinhado: “[...] o acidente técnico não é totalmente desvinculado da crise econômica, a crise econômica não é totalmente desvinculada do acidente técnico” (Bloch, 2006, p. 247– grifo do autor). Ou seja, apesar das diferenças entre as duas, segundo Bloch, elas compartilham de uma espécie de base de alienação comum, “porque, em última análise, ambas procedem de um relacionamento precariamente mediado, abstrato, dos humanos com o substrato material do seu agir” (Bloch, 2006, p. 248 – grifo do autor). Assim, por exemplo:

A ‘Revolução Industrial’ não está corretamente relacionada nem ao material humano nem ao da natureza. Faz parte dela a miséria que trouxe às pessoas, bem no começo e sempre. [...] Decorre disso, da pulsão abstrata pelo lucro, o afeamento que a máquina e o trabalho nela acarretaram para o mundo. [...] O mundo burguês das máquinas se encontra entre o que foi perdido e o que ainda não foi conquistado (Bloch, 2006, p. 246).

Esse diagnóstico, portanto, não impossibilita Bloch de buscar, de forma análoga ao caso da religião, os conteúdos utópicos emancipatórios contidos na técnica; ou seja, aquilo “que ainda não foi conquistado”, mas que, de certa forma, já está latente como possibilidade no desenvolvimento da técnica moderna.

Nesse sentido, no item intitulado “Atualidade e futuro não euclidianos, o problema da conexão técnica”, do segundo volume do Princípio esperança (2006, p. 213), o autor aborda e problematiza – explícita e indicativamente – os potenciais utópicos contidos na técnica, embora ainda bloqueados na sociedade atual. Tendo por princípio que toda “ferramenta pressupõe carências exatas e tem a finalidade precisa de satisfazê-las”, conclui que – sob o domínio da sociedade capitalista – houve um “tolhimento burguês” (Bloch, 2006, p. 212) da técnica, uma vez que esta passou a determinar as finalidades de técnica e, por isso, a determinar quais ‘carências’ deveriam ser satisfeitas e quais não. Sua especificidade característica seria exemplarmente verificável na técnica que serve à guerra, ou seja, onde “interessam tão-somente novos meios para matar” (2006, p. 213).

Simultaneamente, toda tecnologia representante de mais “meios de vida do que de morte, já é, cum grano salis, socialista” e, portanto, não se deveria afirmar que toda técnica produzida, ainda que seu desenvolvimento inicial fosse impulsionado para fins de dominação, estaria condenada a permanecer submetida à lógica da rentabilidade privada. Pelo contrário, a técnica, por mais alienada e instrumental que fosse, já indicaria concretamente para a superação de modos de vida voltados apenas para a dominação e a opressão. Seria preciso desvendar seus conteúdos emancipatórios ocultos e desbloqueá-los com uma práxis social adequada, a fim de libertá-los das amarras impostas pelo “tolhimento burguês” da técnica.

Bloch afirma, por isso, que “[...] a invenção voltará a ter verdadeira utopia nas entranhas quando se praticar a economia para cobrir necessidades, e não para gerar lucros” (2006, p. 215). Uma reviravolta que, portanto, não poderá ocorrer “no chão da relação burguesa com os seres humanos e com a natureza”, (2006, p. 218) uma vez que pressupõe uma relação não instrumental de “modo que o sujeito seja mediado com o objeto natural, o objeto natural com o sujeito – e que entre si os dois não mais se comportem como estranhos” (2006, p. 219).

Bloch, portanto, busca chamar a atenção para a importância dessa reviravolta, pois sem ela a natureza enquanto natura naturans, no modo como fora tematizada pela esquerda aristotélica até Espinosa[4], chegando mesmo a ser concebida como sendo um sujeito mediado pela, na e com a vontade humana, simplesmente não pôde mais ser considerada. Nesse horizonte teórico e prático reduzido, “a tecnologia burguesa se encontra em um relacionamento puramente mercantil, alienado desde o início, com as forças da natureza com que opera a partir de fora” (2016, p. 221), de modo que “extrai benefícios da natureza somente sob a condição de dominação, como de uma colônia domada e vigiada” (2006, p. 224). Assim, de modo geral, nos limites da concepção burguesa de técnica, ela se mantém restrita a “quantificações de uma natura naturata mantida isolada, não penetrações no elemento produtor de uma natura naturans” (Bloch, 2006, p. 242 – grifo do autor). Seria preciso, portanto, recuperar essa dimensão vital da natureza e da nossa inserção e relação coprodutiva com ela.

4 COPRODUTIVIDADE COM A NATUREZA: TÉCNICA DA ALIANÇA

“[...] é certo que a casa humana não apenas está situada na história e sobre o chão da atividade humana, com também se encontra sobretudo sobre o chão de um sujeito mediado da natureza e sobre o canteiro de obras da natureza” (Bloch, 2006, p. 244-245).

Para avançar na tarefa de reestabelecer elementos teóricos e práticos que nos permitam visualizar e encaminhar esse reencontro com a natureza, Bloch sugere a recuperação do “velho conceito natura naturans [natureza geradora de natureza], o primeiríssimo a significar um sujeito da natureza”, de modo a relacionar, desde o início, a ideia de uma natureza criadora em contraposição ao conceito de “natura naturata [...] natureza gerada” (2006, p. 228). Só assim, segundo Bloch, seria possível “no lugar do técnico como mero enganador ardiloso ou como espoliador, encontrar-se concretamente o sujeito mediado socialmente consigo próprio e que, de forma crescente, se medeia com o problema do sujeito da natureza” (2006, p. 228 – grifo do autor). A cooperação e a coprodutividade daí resultantes, com a produtividade humana passando a ser compreendida como sendo uma produtividade específica da própria natureza, poderiam impedir que se “prolongue a reificação burguesa” da técnica e, então, superado esse bloqueio, tornar possível que da “matéria humana” emerja “a potência dormente que não tem noção de suas próprias forças” (Bloch, 2006, p. 239).

Ao contrário da técnica da dominação, predominante até aqui, a Técnica da Aliança libertaria dimensões e potências já latentes, tanto na sociedade quanto na natureza, pois, para o autor, o ser humano “se engendra e se dinamiza utopicamente não apenas de modo subjetivo, mas também objetivo” (Bloch, 2006, p. 239-240). Claro que, para tanto, o ser humano precisaria se conceber como parte constituinte do próprio processo de devir da natureza, de modo a tomar “[...] o conceito de uma matéria em ebulição e – antes de tudo – processual, que compreende estar se organizando fisicamente em direção à luz e organicamente em direção à consciência” (Bloch,1963a, p. 203)[5]. Algo que, para Bloch, está presente em uma tradição filosófica que pode servir de apoio para se avançar nessa compreensão, de modo a nos compreendermos enquanto filhos da própria matéria. Essa concepção teria sido desenvolvida, explicitamente, primeiro pela filosofia de Schelling:

O jovem Schelling segue o caminho, infelizmente quase esquecido, deste conceito neoepicuriano, que passa por Paracelso, e que é simultaneamente neoalquímico; com a criança humana enquanto filha da matéria mesma, com a qual a matéria abre um olho para si, se reflete (Bloch,1963a, p. 203)[6].

Ou seja, trata-se de uma ontologia não acabada[7] do “ainda-não-existente, que descobre o futuro até mesmo no passado e na natureza como um todo” (Bloch, 2005, p. 234) de modo que as produtividades humanas e naturais possam ser compreendidas como constitutivas de uma mesma processualidade (cf. Schmied-Kowarzik, 2015, p. 21 ss). Para essa tradição, a própria natureza, à qual pertencemos, “ainda se encontra em processo inconclusivo de suas objetivações [...] horizonte do futuro a ser conquistado” (Bloch, 2005, p. 131). E é essa concepção de natureza dinâmica que possibilita a intervenção intencional no mundo sem que, para tanto, seja necessário declarar a natureza inimiga, de modo que ela possa emergir “de forma não-alienada, como bem mediado” (Bloch, 2006, p. 245).

Vislumbra-se, assim, o telos da intervenção humana na natureza, numa perspectiva coprodutiva: “Transformação e autotransformação das coisas em bens, natura naturans e supernaturans em lugar de natura dominata: é isso, portanto, que significam os rudimentos de um mundo melhor, no que diz respeito à técnica concreta” (Bloch, 2006, p. 253 – grifo do autor).). Ou, como expresso em outra passagem da mesma obra: “Corrente da natureza como amiga, técnica como liberação e mediação das criações adormecidas no seu seio, isso faz parte dos aspectos mais concretos de uma utopia concreta” (2006, p. 250). Nesse sentido, Mascaro acerta ao afirmar que não se trata de melhorar apenas a vida humana, mas a própria natureza:

A responsabilidade blochiana com a natureza é tanto respeitá-la e confirmá-la quanto melhorá-la, potencializá-la. Tal como, com os seres humanos, a responsabilidade é transformá-los. Corrigir e incrementar a natureza; nascerem, viverem e morrerem melhor os seres humanos (2021, p. 22).

No entanto, é claro que não se trata da simples implantação de uma ideal. Para a concepção materialista de Bloch sempre se trata de potencializar o que já está imanente e latente: “Obviamente, não se chegará lá sem uma sociedade que possa suportar essa revolução das forças produtivas e da qual fará parte essa espécie de natureza que fez brotar a velha sociedade do chão da natureza” (Bloch, 2006, p. 217). Do que o filósofo tira a conclusão da necessidade de uma ‘política da natureza’: “A liberdade sociopolítica, que toma nas mãos as causas sociais, prolonga-se, portanto, na política da natureza” (Bloch, 2006, p. 251). Ou seja, a construção da liberdade social, mediante uma práxis adequada, consequentemente implica, também, uma aliança com a natureza e uma técnica adequada, baseada nessa aliança.

As concepções que viabilizam a noção de uma Técnica da Aliança, certamente, ainda nos parecem pouco familiares e pouco habituais, acostumados que estamos em tomar a técnica como sinônimo de dominação da natureza. Justamente nesse aspecto, no entanto, nos parece residir o caráter inovador e uma das possíveis contribuições da filosofia de Bloch para a atualidade, haja vista a necessidade de se buscar outros horizontes de compreensão tanto de natureza quanto da nossa relação com ela. Aliás, para Bloch, parece sempre ter estado claro que “certamente o conceito de natureza expressa em primeira linha a sociedade na qual ele surge” (1977a, p. 291)[8], de modo a haver uma influência recíproca no que diz respeito à compreensão de natureza e de sociedade. A inter-relação entre natureza e sociedade, porém, não é algo que possa ser estabelecido apenas teoricamente; pelo contrário, ela corresponde a uma coprodutividade de fato existente. Bloch busca deixar isso explícito em diversas passagens, como a que segue:

Quanto mais precisamente se tornar viável uma técnica da aliança em lugar da externa, uma mediada com a co-produtividade da natureza, tanto mais seguramente as forças construtivas de uma natureza congelada voltam a ser liberadas. A natureza não é fato passado, mas o canteiro de obras ainda não desocupado, o material de construção ainda não adequadamente existente destinado a edificar a casa humana ainda não adequadamente existente. [...] Por essa razão, é certo que a casa humana não apenas está situada na história e sobre o chão da atividade humana, como também se encontra sobretudo sobre o chão de um sujeito mediado da natureza e sobre o canteiro de obras da natureza (Bloch, 2006, p. 244-245 – grifo do autor).

A coprodutividade, portanto, não é uma utopia abstrata ou pura fantasia. Segundo Bloch, as condições reais para tal já existem, dependendo, entretanto, do nosso engajamento e práxis consciente e adequada para a realização das potências e possibilidades objetivamente já disponíveis. Daí que uma práxis coerente com essa concepção implicar também, simultaneamente, transformação social, pois “[...] o simples começo dessa concretização pressupõe chegar à concretude entre os humanos, isso é, à revolução social. Antes dela sequer haverá escada, muito menos uma porta para a possível aliança com a natureza” (Bloch 2006, p. 250).

Uma outra relação com a natureza não seria possível, portanto, sem outra relação entre os seres humanos – e vice-versa. Não se trata de fantasias abstratas, mas de uma “outra relação – de não exploração com a natureza – já denominada, conforme sua possibilidade objetivo-real, de Técnica da Aliança, concreta e amigável, a qual procura se colocar em sintonia com o hipotético sujeito natureza”[9] (Bloch, 1975, v. 15, p. 251), num dos sentidos mais explícitos indicados pelo autor:

Ora, para a técnica concreta, aquilo que corresponde objetivamente à transformação técnica do mundo precisa estar de tal forma alicerçado sobre uma tendência objetiva de produção do mundo como, mutatis mutandis, para a revolução concreta, estar alicerçado sobre a tendência objetiva da produção da história humana. [...] um cosmo em que o ser humano se abre, assim como o microcosmo do ser humano deixa o mundo chegar a seus sentidos (Bloch, 2006, p. 243). 

Lutas e bandeiras ambientais são compreendidas como aliadas das lutas e bandeiras sociais e vice-versa, pois, para o autor, trata-se de uma reconstrução do mundo em um lugar aprazível para a vida, onde possamos nos sentir em casa:

O acontecimento não está encerrado, pois ele próprio é um constante para diante no mundo que implica sorte passível de mudança. [...] A humanidade socializada, aliada a uma natureza mediada por ela, significa a reconstrução do mundo como pátria ou lar (Heimat) (Bloch, 2005, p. 282).

Por fim, pode-se afirmar que, perante essa postura teórica diante da técnica, Bloch analisa e busca explicitar os excedentes utópicos em diversas áreas técnicas, como é o caso, por exemplo, da arquitetura [“construções que retratam um mundo melhor, utopias arquitetônicas”][10] (2006, p. 353). Segundo Bloch, nela o bem-estar humano depende antes da pacificação e potencialização com a/da natureza do que de sua dominação e instrumentalização, evidenciando que a intervenção humana pode levar ao desbloqueio de forças que a natureza já oferece em vez de destruí-las na medida em que são consumidas. “A arquitetura como um todo é e continua sendo uma tentativa de produção da terra-mãe[11] humana – da finalidade posta de moradia até o surgimento de um mundo mais belo na proporcionalidade e na ornamentação” (Bloch, 2006, p. 297). E isso apesar da interdição da técnica da arquitetura no capitalismo:

Capitalismo mais mercadoria maquinal trouxeram a destruição das antigas cidades, das casas naturalmente belas e sua mobília [...]. Em seu lugar surgiu, em meados do século passado, uma arquitetura do inferno [...]. A técnica carece de conexão [...] com algo da natureza que seja favorável à própria técnica, ao qual o capitalismo abstrato nunca consegue encontrar um possível acesso (Bloch, 2006, p. 246).

E aqui – uma vez mais – Bloch enfatiza que, por mais que alguma técnica tenha sido instrumentalizada e interditada na medida em que foi colocada a serviço, exclusivamente, das ‘necessidades’ do capital, permanece nela um conteúdo utópico que pode ser herdado em uma nova sociedade, numa perspectiva da aliança com a natureza. Segundo Zeilinger (2017, p. 203), para a compreensão da Técnica da Aliança é de suma importância situar todos os aspectos que a constituem na perspectiva de um telos utópico-concreto que aponte para a pacificação entre história e natureza na medida em que o mundo pode, com a participação ativa da humanidade, ser transformado em lar/terra-mãe (Heimat). Ou seja, as noções de Aliança com a Natureza (Naturallianz) e Técnica da Aliança (Allianztechnik) teriam, assim, um parâmetro que possibilitaria o seu monitoramento, garantindo, de certo modo, a afirmação de um novo paradigma na relação entre seres humanos e natureza (cf. Zeillinger, 2017, p. 208). “No geral, porém, a invenção voltará a ter verdadeira utopia nas entranhas quando se praticar a economia para cobrir necessidades, e não para gerar lucros” (Bloch, 2006, p. 215) e, assim, será possível mediar “o que há de melhor em latência na natureza, com o que há de melhor em nós” (Bloch, 2006, p. 810)[12]. Se uma tecnologia contribui ou não para tal, eis aí um indicador de aliança ou não com a natureza.

5 DESAFIOS E POSSIBILIDADES

“[...] justamente aquela liberdade, aquela pátria (Heimat) da identidade em que o ser humano não se comporta em relação ao mundo nem o mundo em relação ao ser humano como estranhos” (Bloch, 2006, p. 207).

Do exposto até aqui fica explícito que Bloch, apesar das críticas à redução da técnica a instrumento de dominação e opressão na sociedade burguesa, não nega a técnica; pelo contrário, percebe nela conteúdos utópicos poderosíssimos, em que se pré-anuncia uma coprodutividade em aliança amistosa. Como formulado, de modo certeiro, por Rodrigues: “Não se trata de voltar ao passado, pré-revolução industrial, mas de postular uma técnica humana, capaz de possibilitar uma subjetividade latente que aspire sempre ao melhor, que queira sempre a expressão de uma alma no mundo, tanto no cotidiano prosaico como no campo da arte” (2021, p. 237).

Em se tratando de uma aliança, ou seja, de coprodutividade, as relações entre humanos e destes com a natureza só podem acontecer de modo integrado e colaborativo, até porque a dominação e a exploração de seres humanos já são uma forma de dominação e exploração da própria natureza, uma vez que os seres humanos são também natureza. Se, de fato, como Bloch parece ter indicado com razão, as mudanças das relações de dominação entre os seres humanos implicam mudanças das relações com a natureza, então estamos diante do desafio de conceber uma práxis adequada para tanto. Ou, como expressa o próprio Bloch: “Na mudança prática certa e verdadeira da relação entre seres humanos e natureza, também acontece uma mudança das relações dos seres humanos entre si; [pois o] materialismo dialético não reconhece uma práxis reduzida a uma matéria puramente social” (1977, p. 252)[13]. Mas isso, certamente, só se torna possível na medida em que nos compreendemos integrados, com nossa produtividade humana/histórica, na própria produtividade viva da natureza. Significa reconhecer a natureza como sendo fundamento da vida e da organicidade, não aceitando sua redução a matéria morta, que pode ser usada e instrumentalizada independentemente da sua dinâmica própria.

Na medida em que percebemos o vínculo estrutural existente entre a dominação e exploração da natureza e a dominação e exploração dos seres humanos, a pertinência da concepção e efetivação de uma Técnica da Aliança, para além de uma técnica da dominação, se evidencia. Por extensão, também se abrem diversas possibilidades novas de análise e de práxis. Vejamos, à guisa de ilustração, algumas possibilidades.

Como Beat Dietschy tem advertido (2022, p. 104), o projeto de dominação e colonização moderna do Ocidente capitalista implica e pressupõe, também, uma espécie de colonização expansiva e universal da natureza. Compreender a natureza desde um ponto de vista decolonial, portanto, é uma tarefa necessária no próprio contexto das lutas de libertação e que pode ser facilitada pela reflexão blochiana. Certamente, conceitos blochianos que, no limite deste texto, não puderam ser abordados, como os de multiverso e não simultaneidade/‘futuro no passado’, nos permitiriam, inclusive, reabilitar, de modo legítimo, formas de compreensão e relação não destrutiva com a natureza e, portanto, capazes de subsidiar uma Técnica da Aliança. Dietschy, apoiado em Alimonda (2011) e subsidiado na noção de Técnica da Aliança, de Bloch, aventa a possibilidade de se pensar uma ecologia política capaz de contribuir para a construção de um ecossocialismo decolonial. Este poderia encontrar, por exemplo, aportes preciosos nas cosmovisões andinas, uma vez que, para estas, inexistiria a compreensão do ser humano enquanto externo à natureza, já que uma tal concepção pode ser identificada como sendo uma expressão da cultura dos colonizadores. Certamente, para tanto, a aproximação da noção andina de “mãe terra” com a blochiana de “terra-mãe/lar” ou “o sujeito da natureza, conforme a tendência desta” (Bloch, 2006, p. 243), poderia alavancar perspectivas interessantes.

Diante dos desafios, nos parece que há pelo menos dois modos pelos quais a Técnica da Aliança pode ser fortalecida. Uma, identificando e potencializando os conteúdos utópicos da técnica já existentes, mas bloqueados, na atualidade, pela sua interdição burguêsa, como Bloch muito bem indicou. Outra forma seria mediante o diálogo intercultural e a adoção de técnicas não destrutivas da natureza, nas quais possam ser encontrados subsídios para uma relação não violenta com a natureza e, portanto, para uma Técnica da Aliança.

Essa possibilidade – muitas vezes – ficou bloqueada pelo mito do progresso, segundo o qual técnicas e modos de relação com a natureza não orientados pela racionalidade burguesa são considerados ultrapassados/atrasados. Mas a própria concepção teórica de Ernst Bloch contribui para o desbloqueio dessa interdição. Em seu livro Herança dessa época, por exemplo, Bloch (1977ª, p. 45 ss.) sugere que o enfrentamento à lógica capitalista pode se dar tanto nos limites das contradições ‘simultâneas/contemporâneas’ (Gleichzeitigkeit), como é o caso das contradições de classe entre burgueses e trabalhadores, quanto nas contradições que podem advir de outros grupos, consideradas ‘não simultâneas’ (Ungleichzeitigkeit), como, por exemplo, as mobilizações oriundas de grupos como os camponeses, a juventude e os pequenos comerciantes. Esses grupos, por poderem apresentar elementos qualitativamente distintos daqueles exigidos pela dinâmica do capital, também poderiam gerar contradições específicas e, portanto, subsidiar e mobilizar a luta por mudanças estruturais. Portanto, segundo Bloch, a incapacidade de dialogar com essas contradições não simultâneas é um obstáculo a ser superado e a sua não tematização equivaleria a abandoná-las ao pensamento reacionário.

Ora, certamente, no caso da técnica, acontece algo muito parecido. Também aqui há, evidentemente, conteúdos utópicos decorrentes das contradições do desenvolvimento tecnológico de ponta (enfrentamento de doenças, fome, problemas ambientais) na esfera da simultaneidade. Mas também está cada vez mais evidente que existem culturas e relações não violentas com a natureza que podem subsidiar de maneira vigorosa uma Técnica da Aliança.

Nesse sentido, há técnicas que, embora possam parecer não produtivas e, portanto, sem valor do ponto de vista da lógica do capital, mas que são extremamente produtivas do ponto de vista do bem viver humano e ambiental. Além das cosmovisões andinas, citadas por Dietschy, noções como o perspectivismo ameríndio e a decorrente noção de multinatureza das cosmovisões amazônicas, tão bem expostas por Viveiros de Castro (1996) ou mesmo pelo próprio Davi Kopenawa (2015), em seu livro A queda do céu, são exemplos.

Da mesma forma, a peculiar compreensão da relação dialógica entre seres humanos e natureza cultivada em povos como os Krenak, como temos podido perceber nas obras lançadas nos últimos anos por Aílton Krenak (2022). Isso tudo sem desmerecer as diversas sabedorias populares e tradicionais de camponeses, ribeirinhos, quilombolas e tantas outras populações tradicionais mundo afora, que têm conseguido conviver por centenas e até milhares de anos em certos ecossistemas sem danificá-los.

Como Toledo (2015) tem demonstrado, quando desenvolvidas em aliança e coprodutividade com a natureza, inclusive, os seres humanos com suas tecnologias podem contribuir para fortalecer a diversidade social e ambiental. Algo que de fato e comprovadamente acontece em muitas regiões/culturas tradicionais mundo afora em diversas culturas não totalmente dominadas pela tradição ocidental. Também está cada vez mais comprovado que, por exemplo, a agroecologia pode ser muito mais produtiva do que certas práticas predatórias do chamado ‘agronegócio’ quando o critério passa a ser o bem viver e não mais e apenas a geração de lucro.

Seja como for, uma mudança na compreensão de natureza, diferenciada daquela produzida pela modernidade ocidental, e levada ao extremo pela racionalidade burguesas/capitalista, é necessária. E o conceito de uma aliança com a natureza e, consequentemente, de uma Técnica da Aliança, orientada pela construção de uma natureza mais humanizada e um ser humano mais naturalizado, de modo que ambos possam desenvolver em si o que têm de melhor, parece ter o potencial de aglutinar e mesmo servir como referência para uma nova perspectiva.

Não se trata, portanto, do desenvolvimento de mais e mais tecnologia. Se trata, antes, de uma mudança qualitativa: gerar uma práxis social e tecnológica que seja capaz de superar a técnica da dominação e fortalecer a Técnica da Aliança, valorizando tanto os conteúdos utópicos das técnicas já existentes no mundo burguês/capitalista quanto os saberes e técnicas daquelas populações que já vivem em aliança com a natureza. Esse parece ser, como Ernst Bloch muito bem indicou, um desafio filosófico urgente e de vital importância.

REFERÊNCIAS

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Contribuição de autoria

1 –Rosalvo Schutz

Professor de filosofia na Universidade Estadual do Oeste do Paraná Campus Toledo

https://orcid.org/0000-0002-4548-6652 • rosalvoschutz@hotmail.com

Contribuição: Escrita e Primeira Redação.

Como citar este artigo

SCHUTZ; R. Técnica da Aliança: elementos para uma relação não violenta com a natureza, segundo Ernst Bloch. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 14, e85625, p. 1-23, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378685625. Acesso em: dia mês abreviado. ano.

 



[1] As citações traduzidas diretamente do original alemão serão transcritas aqui nas notas de rodapé para fins de eventual comparação: “[...] Tendenzen der Entnaturalisierung des Menschen und Enthumanizierung der Natur [...]”.

[2] Aqui, conforme indicado por Dietschy (2022, p. 98), certamente Bloch tem em mente uma expressão de Engels: “E, assim, somos – a cada passo – advertidos de que não podemos dominar a Natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro, como alguém situado fora da Natureza; mas sim que lhe pertencemos, com a nossa carne, o nosso sangue, o nosso cérebro; que estamos no meio dela” (1979, p. 223-224).

[3] “Dem abstrakten Verhältnis zu den Naturkräfte entspricht also das ebenso abstrakte Verhältinis des Menschen zum Menschen, gamäss dem Zur-Ware-Werden aller Menschen und Dinge”.

[4] Conforme tematizado mais explicitamente, por Bloch (1972a), no texto Avicenna und die aristotelische Linke (Avicena e a esquerda aristotélica).

[5] “Damit auch der Begriff eine gärenden, vor allem prozesshaften Materie, die sich physich zum Licht, organisch zum Bewustsein zu organizieren versteht”.

[6] “Der junge Schelling ging den leider bald vergessenen weg dieses neu-epikurischen und, über Paracelsus, zugleich neu-alchymischen Begriffes; mit dem Menschenkind als eigenem Kind de Materie selber, worin sie ein Auge Aufschlägt, sich reflektiert”.

[7] Sobre a “ontologia-do-não-ser como ontologia transgressiva”, confira Rodrigues (2023, p. 82 ss.).

[8] “Sicher zwar drückt auch der Naturbegriff in erster Linie die Gesellschaft aus, worin er erscheint”.

[9] “Ein andres nicht ausbeutendes Verhalten zur Natur wurde schon der objektiv-realen Möglichkeit nach bedeutet als befreudete, konkrete Alliaztechnick, die sich in Einklang versuchen bringt mit dem hypothetischen Natursubjekt”.

[10] A respeito, confira “Zur technischen Utopie” (Zeilinger, 2017). Também a análise de Ubiratane M. Rodrigues sobre a significado do gótico como “árvore da vida”, concebida por Bloch como sendo uma forma de ‘ressureição da vida’ na arquitetura. Em contraposição à frieza da técnica, o gótico estaria relacionado utopicamente à ressurreição e à vida e faz Bloch “perceber no gótico o surgimento de um espaço para a vontade utópica artística transgressora da inércia e da rigidez da pedra” (Rodrigues, 2021, p. 222).

[11] Note-se que aqui (Bloch, 2006) Heimat é traduzido por ‘terra-mãe” enquanto em Bloch (2005) é traduzido por “pátria ou lar”.

[12] Consideramos essa tradução mais adequada que a constante, em Bloch (2006, p. 247), do seguinte trecho: “[...] um sie mit dem latent Besten ind ihr zu unserem Besten zu mermitteln” (Bloch, 1977a, p. 810).

[13] “Denn in richtigen, wahrhaft praktischen Verändern des Verhältnisses von Mensch zur Natur vollzieht sich auch Veränderung der Verhältnisse der Menschen zueinander; dialektischen Materialismus erkennt eine bloss auf die gesellschaftliche Materie berschränkte Práxis nicht an.”