Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85592, 2023
Submissão: 02/10/2023 • Aprovação: 01/02/2024 • Publicação: 17/04/2024
2 CATÁSTROFES NATURAIS, CRISES POLÍTICO-GOVERNAMENTAIS
3 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS CONCEITOS DE CATÁSTROFE E DE CRISE
4 SOBRE A ESPACIALIDADE DA CATÁSTROFE
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: QUANDO O TEMPO E ESPAÇO CONFLUEM NA CATÁSTROFE
6 ADENDO: MODOS DE SUBJETIVAÇÃO DESDE A ESPACIALIDADE DA CATÁSTROFE
Dossiê
Tempos de Crise e Locais de Catástrofe
Times of Crisis and Places of Catastrophe
IUniversidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil
RESUMO
O presente artigo tem por finalidade ensaiar uma reflexão sobre a aporia imposta pela catástrofe. Para isso, inicialmente, apresenta-se alguns dados de catástrofes a serem tomadas como exemplares: a cheia no Vale do Taquari (RS) e a seca nos rios da bacia amazônica (AM). A seguir, busca-se pensar a questão da catástrofe desde seu índice temporal, e para isso, se recorrerá a duas propostas: de Jean-Pierre Dupuy e de Alain Brossat. Intentou-se outra alternativa, ainda que não exclusiva: a de enfatizar a espacialidade da catástrofe, sem necessariamente perder de vista sua temporalidade, mas de algum modo subordinando-a àquela do espaço, do local da catástrofe, evidenciando como a catástrofe pode ser tomada como questão biopolítica. Por fim, apoiando-se nessa correlação espaço-temporal da catástrofe, e tomando por apoio o terremoto no Haiti em 2010, ensaia-se algum pensamento que busca realocar a relação entre local e global/universal e, assim, subvertendo a lógica biopolítica de sua governamentalidade.
Palavras-chave: Local de catástrofe; Tempo de crise; Gestão biopolítica da crise; Haiti
ABSTRACT
The purpose of this article is to rehearse a reflection on the aporia imposed by the catastrophe. To do this, initially, we present some data from catastrophes to be taken as examples: the flood in the Taquari Valley (RS) and the drought in the rivers of the Amazon basin (AM). Next, we seek to think about the issue of catastrophe from its temporal index, and to do so, we will resort to two proposals: from Jean-Pierre Dupuy and Alain Brossat. Another alternative, although not exclusive, was attempted: to emphasize the spatiality of the catastrophe, without necessarily losing sight of its temporality, but somehow subordinating it to that of space, the place of the catastrophe, highlighting how the catastrophe can be taken as a biopolitical issue. Finally, relying on this spatio-temporal correlation of the catastrophe, and taking the earthquake in Haiti in 2010 as a basis, some thought is rehearsed that seeks to relocate the relationship between local and global/universal and, thus, subverting the biopolitical logic of its governmentality.
Keywords: Place of catastrophe; Crisis time; Biopolitical management of the crisis; Haiti
Escrevo para tentar saber
Yanick Lahens
O presente texto é um misto de artigo com ensaio e inquietação. O artigo e o ensaio, como é bem sabido, são formas muito usuais da prática acadêmica, do meio intelectual e, particularmente do ofício filosófico, além da prática docente. O ensaio não é exatamente um tratado de certezas, mas um tatear, um aproximar-se, um movimento de tentativas que, sob os auspícios do pensamento, é um esforço de pensar sobre, ou ainda, um pensar de, sem deixar de ter algo de provisório, inacabado, sempre passível de alguma reformulação ou reconsideração. Em suma, o ensaio, como texto e articulação de palavras, ideias e conceitos, é uma tentativa de pensamento, diante do impensado, como bem coloca Heidegger, “o impensado reivindica que se lhe pense” (Heidegger, 2000, p. 1, 1992, p. 5). Ou ainda, como observa Olgária Matos, na introdução que escreveu à tradução brasileira do primeiro volume da Teoria Crítica de Max Horkheimer, o ensaio,
[...] esta delicada ‘arte do equívoco’ utiliza palavras ao revés, de maneira a criar a dúvida sobre o que se quer dizer [...] O ensaio como método tem uma dupla utilidade: permite um ingresso original nos textos teóricos [...] e uma nova maneira de se situar no mundo presente” (Matos, 1990, p. XIV).
O presente texto, pequeno, é sem grandes pretensões teóricas, a não ser a de ser movido pela própria ignorância diante do mundo e de seu tempo. Movido apenas pelos tropeços, pelos equívocos de tentar saber; ou de tentar entender, pura e simplesmente.
A inquietação diante do impensado que se exige pensar, contudo, pode assumir muitas formas e acepções; mas com certeza não é um estilo ou um meio do exercício da filosofia, ainda que, quase que sob certo romantismo idílico, principalmente durante nossas práticas docentes e acadêmicas, alude-se a algo próximo, a saber, o espanto, a ignorância, a sede por conhecer, por saber, que forja não apenas uma cultura e uma episteme; forja também sujeitos diante do que(m) inquieta e diante da própria experiência da inquietação. Algo como a curiosidade de que nos fala Foucault: “não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas a que permite se desprender de si mesmo” (Foucault, 1984, p. 15, 1988, p.13).
E se começo o texto assim é para iniciá-lo a partir de uma situação recentemente inquietante. Aliás, uma dupla situação, que de algum modo se interligam: de um lado, no Sul do País, na região de Taquari, no Rio Grande do Sul, uma enchente devastadora; do outro lado quase no extremo oposto, no Norte do Brasil, no Amazonas, na região próxima de Manaus, uma seca tão atroz e devastadora. Duas situações catastróficas aparentemente em total distinção, mas muito provavelmente interligadas, como podem atestar ou não, ambientalistas, meteorologistas e muitos outros especialistas. Nada posso ajuizar com precisão científica, calculada, padronizada, sobre os recentes acontecimentos e catástrofes ambientais e, portanto, naturais. Naturais... será?
Portanto, o que tentarei ensaiar aqui é um pensamento sobre a catástrofe, evento surpreendente e inesperado por excelência, mesmo quando anunciado; e por isso, também irracional por excelência. Quase que um impensável. Para enfrentar o aparente paradoxo, tomarei dois exemplos bastantes recentes e bem localizados quase nos extremos latitudinais do Brasil, a saber as enchentes no Vale do Rio Taquari (RS) e a seca no Amazonas. Em seguida, tomarei por referência dois pensadores que colocam pontos interessantes para pensar a questão da catástrofe desde sua temporalidade – Jean-Pierre Dupuy e Alain Brossat. Uma vez feitas as devidas apresentações buscarei apresentar a questão da catástrofe desde sua espacialidade, buscando pensar como se articula com a questão da temporalidade e o que ela pode apresentar de singular ao pensamento, principalmente à medida que a catástrofe passa a ganhar contornos biopolíticos de gestão governamental das populações.
2 CATÁSTROFES NATURAIS, CRISES POLÍTICO-GOVERNAMENTAIS
Vale do Rio Taquari, RS, setembro de 2023. De qualquer modo, sem dúvida duas catástrofes. A da enchente na região de Taquari, na região central do estado do Rio Grande do Sul, foi a maior nos últimos 64 anos, sendo que o rio Taquari chegou à marca precisa de 29,39 metros acima em Cruzeiro do Sul. No entanto, sequer foram poucas as cheias daquele rio. Segundo dados da Rádio Independente de Lajeado, e reportado no site do município de Cruzeiro do Sul, há registros de cheias naquele rio pelo menos desde 1873 com impressionantes marcas acima dos 26 metros, sendo como segue:
Tabela 1 - enchentes no Rio Taquari, RS
1873 – 28,97m |
1912 – 27,87m |
1928 – 27,45m |
1941 – 29,92m |
1946 – 27,4m |
1954 – 27,4m |
1956 – 28,86m |
2001 – 26,95m |
2011 – 26,85m |
2020 – 27,39m |
Fonte: o autor.
Em outros locais, como no município de Estrela, que é utilizado como ponto de referência histórica para cotas de cheias, registrou-se que o nível do rio Taquari subiu a impressionantes 29,62 metros, algo que só havia acontecido uma vez desde que se começou a fazer medições do nível daquele rio, em fins do século XIX.
Oficialmente, o Estado do Rio Grande do Sul noticiou que desde 04 de setembro desse ano vem ensejando esforços para mitigar os danos provocados no que chamou de a “maior catástrofe natural dos últimos 40 anos” (Rio Grande do Sul, 2023), resultando em 51 mortos, e que atingiu cerca de 107 municípios, sendo os mais afetados os de Muçum e de Roca Sales. Ressalte-se que, ainda segundo o Governo gaúcho, “o Estado montou um gabinete de crise e uma força-tarefa” com o intuito de “atender prontamente as localidades afetadas, com foco na assistência emergencial e na garantia do atendimento das necessidades mais urgentes” (Rio Grande do Sul, 2023).
Manaus, AM, outubro de 2023. A região Norte, principalmente entre os estados do Amazonas, Acre e Rondônia vive uma de suas piores estiagens com cenas impressionantes e até então impensáveis, como por exemplo o desencontro entre os rios Negro e Solimões, ou mesmo o nível do primeiro, que banha a cidade de Manaus, está com apenas 15 metros, sendo que em alguns trechos está com pouco mais de um metro do leito. A seca, também chamada de crise hídrica, já é a pior dos últimos 43 anos na região, afetando cerca de 59 dos 62 municípios do estado e impactando direta e indiretamente a vida de 633 mil pessoas, com dificuldade de acesso a itens básicos como alimentos e água potável. Apenas no município de Manaus, o ano letivo foi prematuramente encerrado nas comunidades ribeirinhas do Rio Negro. A capital amazonense já vive a pior seca em 121 anos de medição do Rio Negro, atingindo a marca de 13,29 de seu nível (isto é, sua vazante) no dia 19 de outubro de 2023; e que continua a baixar a uma média de 13 centímetros diariamente. E a previsão é que a situação só comece a mudar a partir de novembro, segundo estimativa do Serviço Geológico do Brasil (SGB). Ainda segundo o SGB, em nota divulgada em 19 de outubro desse ano, por causa do “El Niño”, que provoca alterações nos padrões de chuva na região, a recuperação hídrica será lenta: O Rio Solimões deve começar a subir por causa das chuvas no Peru, mas o Rio Negro ainda deve enfrentar vazantes nas próximas duas semanas e seu mínimo de normalidade em algumas regiões só está previsto para 2024; o Rio Madeira só deve começar a voltar à normalidade em fins de novembro, que atingiu em 08 de outubro a vazante de 1,10 metros em Porto Velho, e o Rio Amazonas atingiu a impressionante vazante de 90 centímetros em Itacoatiara (Serviço Geológico do Brasil, 2023).
Só para ficar um pouco nesses exemplos “caseiros” ao Brasil, dentre tantos outros, nacionais ou internacionais, todos ainda em curso no ano de 2023: as fortes chuvas que abalaram Santa Catarina no começo de outubro; o terremoto em Marrocos, em meados de setembro, com quase 3 mil mortos; os terremotos no Afeganistão, sendo três em apenas 10 dias, desde 07 de outubro, cujas estimativas são de mais de 2 mil mortos e perto de 10 mil feridos; a guerra entre Rússia e Ucrânia, que matou ou mutilou milhares de pessoas, sem contar os prejuízos materiais. Ou ainda mais recentemente o conflito entre o Hamas e o Estado de Israel, sendo que em apenas duas semanas (escrevo em pleno calor daquele conflito, em 22 de outubro de 2023, e bem sabemos que os números sobem rápido) já é o mais sangrento dos conflitos entre o Estado de Israel e o Grupo Hamas, tendo como principal palco a Faixa de Gaza, onde vive, ou mais precisamente, sobrevive o povo palestino nas piores condições de penúria, subjugado pelo governo de Estado daquele país, em e que até agora já passou de 6 mil mortos, sendo que na Faixa de Gaza foram mais de 4 mil e seiscentos mortos e 15 mil feridos (isto sem esquecer, sem dúvida também, das vítimas israelenses dos ataques do Hamas, apesar de ser em menor número). E as cifras não param de mudar diariamente...
Muito provavelmente, todos podem ser classificados como episódios catastróficos em que, mais importante que as estatísticas de vítimas, dentre elas as fatais, é o quanto que elas se articulam muito rapidamente com uma gestão governamental de crise, donde até o fato de se contar ou estimar o número de vítimas já é uma estratégia dessa gestão governamental. É, talvez, o esforço ou o ímpeto de conferir ao evento catastrófico, em certa medida irracional porque inesperada e surpreendente, alguma racionalidade, aquela da crise, pela qual se busca agir, e agir com alguma eficácia.
É necessário, para dar prosseguimento ao ensaio de apresentar minhas inquietações sobre a questão, pensar conceitual e filosoficamente a catástrofe e a crise. Para isso, quero a seguir apresentar algumas linhas de consideração sobre o tema da catástrofe desde uma dupla perspectiva filosófica: aquela de Jean-Pierre Dupuy (2002, 2022) e de Alain Brossat (1996). Insistirei como os dois colocam o tema da catástrofe e, em alguma medida também o da crise, atrelada à questão de sua temporalidade.
3 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS CONCEITOS DE CATÁSTROFE E DE CRISE
Jean-Pierre Dupuy, em Pour un catastrophisme éclairé (2002) [Por um catastrofismo esclarecido], tomando como pano de fundo histórico e, portanto, temporal, o atentado às torres gêmeas em Manhattan, Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, define a catástrofe em função de uma ideia de possível, quer dizer, “a catástrofe, como acontecimento surgindo do nada, apenas se torna possível ‘possibilitando-a’” (Dupuy, 2002, p. 13). O que impõe um dilema duplo, em cruzamento, entre a possibilidade e impossibilidade por um lado, e por outro entre a não ocorrência (Dupuy prefere o termo “produção”) da catástrofe e a inutilidade dos esforços de sua prevenção. Em seus termos mesmos,
[...] se é preciso prevenir a catástrofe, tem-se a necessidade de se crer em sua possibilidade antes que ela não se produza. Se, inversamente, tem-se sucesso em lhe prevenir, sua não-realização a mantém no domínio do impossível, e os esforços de prevenção parecem retrospectivamente inúteis” (Dupuy, 2002, p. 13).
Mais recentemente, Dupuy (2022) escreveu um curto texto para uma coletânea em que se apresenta como proponente de uma terceira via metodológica diante da possibilidade dos acontecimentos catastróficos, alternativa àquelas do determinismo preditivo e do livre-arbítrio prospectivo; qual seja, a via do pela qual se apresenta como o profeta da infelicidade (malheur). Trata-se de agir como se o pior fosse inevitável, mesmo que ele não se realize. O que significa sustentar uma injunção contraditória, ou aparentemente contraditória, entre a racionabilidade (ou razoabilidade) otimista e a racionalidade (ou, de novo, razoabilidade) catastrófica, que é uma diferença de nível pelo qual exige uma forma de prudência, chamada por ele de “catastrofismo esclarecido”: “Ela [isto é, aquela prudência catastrófica] implica em se projetar pelo pensamento após a ocorrência do evento catastrófico e a comtemplar o caminho percorrido desde esse ponto de vista que conjuga a surpresa e a certeza da surpresa” (Dupuy, 2022, p. 30). Isto sempre tendo como guia a possibilidade da destruição, ou tendo por contexto acontecimentos eminentemente humanos como um atentado ou a dissuasão por ameaça mútua nuclear, da autodestruição, de modo que se alcance algo como positivo – a vida – pela negação de sua possibilidade de autodestruição que, embora inelutável, não venha a ter lugar (Dupuy, 2002, p. 215). Ou ainda, tendo ciência de que a catástrofe tanto pode ser natural ou humana, quer dizer, provocada – portanto, moral – de modo que cada vez mais se tornam indiscerníveis e que, pois, está aí “a lição apocalíptica por excelência” (Dupuy, 2022, p. 36).
De qualquer forma, toda a discussão empreendida por Dupuy (2002 e 2022) é sempre em termos de sua temporalidade e num certo sentido linguístico em termos de aspectos modais do tempo. Por outro, há algo nessa concepção do modo e da temporalidade da catástrofe que parece subjugá-la e dominá-la: ao se propor agir sob a égide do apocalipse possível mas que não se deve realizar, o que se faz é agir não segundo seu caráter irruptivo, de sua inserção como impossibilidade num quadro de possibilidade, mas reduzi-la a um possível calculável, quase previsível e, por isso evitável em alguma medida, dentro de cálculos probabilísticos e projetivos de sua ocorrência; isto é, como um risco possível dentro de um quadro calculado de segurança social e subjetivo. Afinal, diante de um futuro catastrófico, há que se reconhecer, primeiro, seu caráter de virtualidade e de possibilidade; se se fala da catástrofe no futuro, é para tomá-la, preventivamente, como uma possibilidade que requer sempre que se tome ações para que a impossibilite. Em poucas palavras, trata-se de reduzir a possibilidade razoável da catástrofe, porque sua previsibilidade é calculável, à lógica inerente de uma gestão de crise; o que é possível à medida que se a tome sob a égide de sua temporalidade, ou modo de ser possível num tempo futuro.
Outra abordagem possível ao tema da catástrofe e de sua relação com a crise pode ser buscada em Alain Brossat, em L’épreuve du désastre (1996) [A experiência do desastre]. Num dos textos que compõem o livro, intitulado “Tempo de crise, tempo de catástrofe”, ele afirma o caráter político-governamental da crise; em verdade, mais governamental do que político da crise. De qualquer forma, tanto a crise quanto a catástrofe são pensadas desde a perspectiva de sua temporalidade. E, portanto, uma temporalidade encarada desde suas implicações político-governamentais; afinal como Brossat atenta para o fato de que a crise é “o código secreto de uma nova arte de governar, de uma nova modalidade do político reduzido às funções da ordem e da regulação” (Brossat, 1996, p. 424).
No sentido de um governo, ou de gestão da crise, com certo acento foucaultiano, Brossat insiste exatamente sobre seus traços caracterizadores; quais sejam: é a gestão que introduz massivamente novas regularidade e novos padrões de eficácia, de reforço massivo de uma gestão de autocontrole aos indivíduos, da maximização ou ao menos do reforço de eficácia dos dispositivos e aparelhos de controle social em escala industrial; é um controle que assume uma dimensão massiva à medida que se impõem aos indivíduos em um contexto social, tendo como sua indissociável face outra a insistência naquele autocontrole dos indivíduos, sem a necessária e direta intercorrência ou intervenção governamental do tipo estatal. Em certa medida, a gestão da crise obedece a aquela fórmula latina cunhada por Foucault, justamente para introduzir o conceito de governamentalidade, que se volta difusamente a todos e a cada um: omnes et singulatim; ou para colocar as coisas um pouco mais concorde aos termos de Foucault,
a racionalidade política se desenvolveu e se impôs no fio da história das sociedades ocidentais. Inicialmente ela se enraizou na ideia do poder pastoral, depois naquela de razão de Estado. A individualização e a totalização são seus efeitos inevitáveis (Foucault, 1998, p. 161).
A consequência importante dessa articulação da crise à sua gestão governamental é que ela impõe uma espécie de relação contrapositiva, quanto à sua temporalidade, entre crise e catástrofe. Se o tempo da crise é o de uma unidade uniforme que, embora divisível em partes, essas partes compõem e se interconectam como operadores processuais da gestão da crise, uma vez que ela, “a crise”, redistribui as coisas e os acontecimentos numa linha de continuidade processual digna de polícia – uma das formas por excelência daquela ratio política que caracteriza o que Foucault chamou de razão de Estado, em que tudo e todos são incluídos para serem governados e tecnicamente geridos de um modo produtivo e eficaz, tão apropriado a era capitalista que ainda é a nossa. Por isso Brossat observa que:
“A crise” persegue seu “trabalho” de inclusão, de totalização e de homogeinização simplificando constantemente as coisas, indiferenciando o social, alijando a política, erodindo o complexo e o múltiplo, reduzindo os programas políticos a slogans, expulsando o diferente e o litígio do campo político (uma “outra política” não saberá ser, horresco referens, senão o sinônimo impensável da inflação e do enfraquecimento da moeda), “pensando” o social segundo dualidades sumárias: desempregados/não-desempregados, excluídos/não-excluídos, etc. (Brossat, 1996, p. 427).
Aí está o ponto de aparente conflito e contraposição entre os tempos da crise e da catástrofe. Esse da crise é tempo de produção, e no estágio atual de realinhamentos neoliberais ao capitalismo e às sociedades, ocidentais ou ocidentalizadas, de hiper-produção, e de hiper-mercantilização, das experiências, das subjetividades, das coisas, dos fluxos, dos sujeitos; vivemos sob a égide do Homo oeconomicus e de que todas as eventualidades são de algum modo, diretas ou indiretamente, atreladas às escolhas dos indivíduos como formas de investimentos econômico-financeiros de si sobre si (Foucault, 2004a, 2009, cf. também Nalli, 2020). O tempo da catástrofe, contrariamente, parece assumir outra feição e natureza. Ele é o tempo da ruptura ou da fratura daquela linha de continuidade. A catástrofe é o evento que irrompe no contínuo da história, rompendo-o e o desordenando, desvelando “a paisagem indecifrável de um presente impraticável” (Brossat, 1996, p. 427) que apenas se realiza no lampejo de sua irrupção instantânea. A catástrofe, ainda que previsível num tempo futuro, é da ordem da surpresa no tempo presente. E, às vezes, da ordem da lamentação quando olhamos para o passado recente que teima em se apresentar. Em certa medida, é por isso que Dupuy observa que, embora se preveja todos os riscos e perigos, sempre há no porvir a chance de algo pior; daí o catastrofismo, ou o que ele chama de fatalismo (Dupuy, 2002, p. 24, 50, 2022, p. 24) que solapa todo esforço racional e calculista da gestão dos perigos em termos de riscos. Por isso a catástrofe é “contraprodutiva” (Dupuy, 2002, p. 25) enquanto a crise é “hiper-produtiva” (Brossat, 1996, p. 427), justamente no sentido de que na sociedade de risco, como já observava Ulrich Beck (2011),
Por meio de definições cambiantes de riscos, podem ser gerados necessidades inteiramente novas – e por decorrência, mercados inteiramente novos. Antes de tudo o mais, a necessidade de evitar o risco [...] replicável ao infinito. [...] Em lugar das necessidades preestabelecidas e manipuláveis como marco referencial para produção de mercadorias, entra em cena o risco autofabricável (Beck, 2011, p. 67-68).
Um elemento que chama a atenção é que, ainda que de alguma maneira paradoxal, as reflexões de Brossat e Dupuy parecem convergir à medida em que pensam a questão da catástrofe desde a questão do tempo. Seja enquanto possibilidade fatal que escapa aos cálculos preditivos (Dupuy), seja como uma interrupção no contínuo temporal da crise (Brossat), ambos consideram a catástrofe desde sua singularização temporal. É como se, ambos, em suas diferenças, fossem herdeiros de uma milenar tradição que remonta desde Agostinho até Heidegger – ainda que não só – em que o tempo é pensado em seu cruzamento com a imortalidade ou eternidade (por exemplo no argumento do tempo e da eternidade no Livro XI das Confissões de Agostinho), ou no seu aparente contraditório, qual seja, a mortalidade (toda a análise heideggeriana do dasein como ser-para-a-morte, entre os parágrafos 46 e 53 de Ser e Tempo). E nessa tradição que tem em Agostinho[1] e Heidegger os termos limítrofes da questão do tempo, se insere a possibilidade de pensar a questão da subjetividade humana naquilo que ela tem de peculiar, seja diante do eterno nominado Deus, seja diante dos demais entes que, embora vivos, não parecem desde os modos de operar próprios à razão filosófica, não tem a morte como experiência de pensamento. Diz exemplarmente Dupuy que:
O tempo que nos resta é um puro desconhecido. [...] Por que o ser humano é frequentemente atormentado pelo problema do tempo se isso nada mais é que ele sabe que sua morte é inevitável? Não é a morte em geral que é sua preocupação primeira, mas sua própria morte, a morte-própria, a morte em primeira pessoa: minha morte! (Dupuy, 2022, p. 27)
4 SOBRE A ESPACIALIDADE DA CATÁSTROFE
Acredito que seja possível considerar a catástrofe desde outra perspectiva: a de sua espacialidade. Perspectiva menor e menos pujante, sem dúvida, que o tempo. Mas que, acredito, pode colocar outros elementos ao pensamento sobre ela, sem precisar necessariamente desconsiderar sua singular temporalidade e, por conseguinte, na sua complexa e intrincada relação com a questão da crise e da gestão biopolítica da crise.
Brossat até chegou perto, por assim dizer, da dimensão espacial da catástrofe quando observa criticamente a dimensão biopolítica implicada no que chama de “humanitarismo estatal” (Brossat, 1996, p. 433, 436), quando observa que ele vai de par com a violência colonialista das “potências democráticas ocidentais” (Brossat, 1966, p. 436) contra ex-colônias distantes dos territórios metropolitanos, numa recodificação moral da política, ou mesmo em operação policial, sempre chegando demasiado tarde em seu “puro ativismo reparador a serviço das urgências do presente de onde a política está esvaziada” (Brossat, 1966, p. 437). Mas nesses casos, a catástrofe está suficientemente longe e não instila maiores preocupações e cuidados, a não ser o da reparação longínqua e os de autodefesa imunitária (Brossat, 2003). A coisa toda se intensifica e embaralha todas as relações de ação humanitária, quando a catástrofe é demasiado próxima (Brossat, 1996, p. 438), quase que no quintal do vizinho, isto é, do país, do território, do estado ou da cidade, ou até do entorno; lembrando a todo instante que a catástrofe já chegou, e que apesar de todas as estratégias de intangibilidade, isto é, de todos os “dispositivos securitários da existência” (Brossat, 2003, p. 13), a fratura do contínuo do tempo presente já está entre nós, que corremos perigo, e somos nós que devemos sobreviver a ela e a toda a sua potência irracional e irascível.
Pensar a catástrofe desde sua espacialidade permite em princípio entender como ela é apreendida, a despeito de sua aparente irracionalidade, num quadro calculado de gestão biopolítica da crise. A racionalidade inerente dessa é a da gestão calculada de estratégias de segurança diante dos perigos que podem ou não intercorrer. É diante de uma ideia de sociedade de riscos que também se coloca, tal como a outra face de Jano, uma sociedade que prima pela segurança e proteção, geralmente de forma rígida (Beck, 2011, p. 48). Segundo Foucault (2004b, 2008) uma sociedade que prima pela segurança, o faz a partir de dispositivos de segurança que, embora se desdobrem multidimensional e obliquamente diante do poder direto da disciplina aos indivíduos mediantes seus corpos e diante do poder soberano que incide sobre a subjetividade jurídica dos indivíduos, constituem-se prioritariamente pela regulação dos espaços encarados como meios (milieux).
Durante a aula de 11 de janeiro de 1978, em Sécurité, territoire, population (2004b, 2008) [Segurança, território, população], Foucault discorre sobre a questão dos dispositivos, ou mecanismos de segurança, em comparação com aqueles próprios ao poder soberano e à disciplina. De fato, ele anuncia a proposta geral daquele curso buscando analisar histórico-genealogicamente os dispositivos de segurança, como que rastreando sua “economia geral de poder” que autoriza a proposição do que se pode chamar, por generalização, de sociedade de segurança. Par tal proposta, Foucault diz que queria considerar analiticamente quatro tipos possíveis – mas não exclusivamente – de dispositivos de segurança, quais sejam: os espaços de segurança, o tratamento do aleatório, as formas específicas de normalização e, por fim, a correlação entre técnica de segurança e a população (Foucault, 2004b, p 13, 2008, p. 15).
Vou me deter aqui sobre a questão do espaço. Afinal o que estou tentando pensar aqui neste ensaio é, neste momento, sobre a relação entre catástrofe e gestão biopolítica da crise desde sua espacialidade. É a catástrofe localizada num primeiro momento que me interessa para pensá-la num enquadramento analítico e estratégico de gestão da crise. Entender como Foucault considera a questão do espaço naquele curso de 1978 é capital, uma vez que se trata de um dos principais momentos de análise foucaultiana à biopolítica – e é dessa consideração de fundo que parto para pensar a espacialidade própria ao desastre.
Foucault trata da questão do espaço mostrando que, em princípio, ela é comum às três tecnologias de poder então consideradas, ainda que tendo suas singularidades. Para apresentá-las, Foucault se ampara na questão das cidades, de sua constituição “artificial”, isto é, de sua construção com base em princípios reguladores gerais à parte da lógica jurídico-política do soberano com o território nacional e da relação disciplinar entre os corpos e sua localização, simultaneamente vazia e fechada. Essas cidades projetadas, ou reconstruídas de acordo com um projeto, visam atender alguns princípios gerais. Em primeiro lugar, trata-se de pensar o espaço urbano em função de suas ruas, que devem ser largas para assegurar quatro funções: a higiênica; a do comércio interno; a de seu extremo mediante estradas com o exterior para facilitar o comércio exterior; e por fim a de organizar a circulação das pessoas transeuntes. Mas tudo isto sempre tendo o já dado, sem pretender a perfeição, e sim a maximização das qualidades e minimização das falhas. Desde a lógica de operação estratégica dos dispositivos de segurança, e tomando a organização do espaço urbano como exemplo, é possível concluir com Foucault que
[...] a segurança vai procurar criar um ambiente em função de acontecimentos ou de séries de acontecimentos ou de elementos possíveis, séries que vai ser preciso regularizar num contexto multivalente e transformável. O espaço próprio da segurança remete portanto a uma série de acontecimentos possíveis, remete ao temporal e ao aleatório, um temporal e um aleatório que vai ser necessário inscrever num espaço dado (Foucault, 2004b, p. 22, 2008, p. 28).
Se os dispositivos de segurança não se voltam a um espaço vazio a ser preenchido mediante projeto prévio de construção e com vistas a um modelo de perfeição, tal como na disciplina, eles o fazem a partir das condições dadas in situ, com todas as suas características aleatórias dadas, porque singularizadoras àquele local e não necessariamente comum a todos os locais possíveis e imagináveis. Sua ação não é sobre o todo, mas sobre as partes, ainda que, posteriormente possa se atingir a totalidade dos locais como o seu conjunto obtido por agregação. Ao agirem desse modo, também se devotam à maximização dos elementos positivos e da minimização dos negativos, facilitando a circulação daqueles em detrimentos desses. Outro dado importante no planejamento “securitário” do espaço está centrado no tratamento probabilístico de suas polifuncionalidades, inclusive no que tange ao seu futuro, “não exatamente controlado nem controlável, não exatamente medido nem mensurável” ainda que provável. Isto é, o bom planejamento é o que leva “em conta o que pode se passar” (Foucault, 2004b, p. 21, 2008, p. 26); portanto o seu devido planejamento com vistas às suas ocorrências futuras, prováveis e possíveis.
É tendo esse argumento de fundo que Foucault introduz o tema do meio (milieu). Noção já empregada na física e na mecânica newtoniana, e que só aparece na biologia a partir dos trabalhos de Lamarck. Ainda que Foucault se resguarda em observar que ele não pôde confirmar a utilização do termo pelos arquitetos e urbanistas do século XVIII, seu esquema técnico já se fazia presente à medida que tais urbanistas buscavam pensar e modificar o espaço urbano:
Os dispositivos de segurança trabalham, criam, organizam, planejam um meio antes mesmo da noção ter sido formada e isolada. O meio vai ser então aquilo em que se faz a circulação. O meio é um conjunto de dados naturais, rios, pântanos, morros, é um conjunto de dados artificiais, aglomeração de indivíduos, aglomeração de casas, etc. O meio é certo número de efeitos, que são efeitos de massa que agem sobre todos os que aí residem. É um elemento dentro do qual se faz um encadeamento circular dos efeitos e das causas, já que o que é efeito, de um lado, vai se tornar causa do outro. [...] Portanto, é esse fenômeno de circulação das causas e dos efeitos que é visado através do meio. E, enfim, o meio aparece como um campo de intervenção em que [...] vai se procurar atingir, precisamente, uma população. [...] O que vais se procurar atingir por esse meio é precisamente o ponto em que uma série de acontecimentos, que esses indivíduos, populações e grupos produzem, interfere com acontecimentos de tipo quase natural que se produzem ao redor deles (Foucault, 2004b, p. 22-23, 2008, p. 28).
Assim, mais importante do que considerar os indivíduos em face de sua subjetividade jurídico-política, ou do indivíduo enquanto corpo disciplinável, a gestão biopolítica do espaço se dá mediante o “entendimento” da relação da população com seu meio, buscando atingir de certo modo indiretamente a população mediante a intervenção articulada e calculada sobre o meio em que se situa e vive aquela população: a população vítima das cheias dos rios no Vale do Taquari, ou vítima da seca nos rios amazonenses, ou ainda as vítimas dos terremotos marroquinos ou afegãos, ou ainda as vítimas dos conflitos armados, na Ucrânia ou na Faixa de Gaza. Ainda que tais eventos não percam seu caráter catastrófico, são pensados desde a urdidura da lógica de gestão da crise, em que se calculam e projetam todos os passos para se maximizar os efeitos pretendidos: salvar o maior número de vítimas dos desastres das cheias ou das várzeas, ou ainda dos sismos; eliminar de modo contundente os inimigos difusos num povo ameaçado ou oprimido por décadas como o povo palestino diante de um Estado que, sob a prerrogativa continuamente lembrada de que seu povo foi perseguido e quase extinto, se permite fazer tudo sem necessidade de qualquer justificativa ou anuência.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: QUANDO O TEMPO E ESPAÇO CONFLUEM NA CATÁSTROFE
Gostaria agora de tecer outro gênero de reflexão. Ainda assim dentro daquele enquadramento já alinhavado desde o começo, que é o de tratar de minhas inquietações sobre o tema da catástrofe desde uma perspectiva do ensaio; ou seja, de tentar tatear alguma resposta, que não é resolutiva; quando muito um esforço titubeante de buscar entender o que se passa, no fulgor disruptivo das catástrofes que assisto, perturbado, pelos noticiários cotidianos.
Se a catástrofe, quando encarada desde sua espacialidade, parece ser aquele fenômeno entre o natural e o artificial, ou segundo a fórmula foucaultiana da “naturalidade da espécie humana no interior de um meio artificial” (Foucault, 2004b, p. 23, 2008, p. 29), o é justamente pelo modo que se pode entender a própria relação entre a população – identificada nessa fórmula à espécie humana – e seu meio, ou o que ainda dá no mesmo, da interação do indivíduo[2] com seu meio. É, aliás, dessa relação entre natureza e artificialidade, aplicada para pensar o meio, que Foucault define a noção de população, isto é, “uma multiplicidade de indivíduos que são e que apenas existem profundamente, essencialmente, biologicamente ligados à materialidade no interior da qual existem” (Foucault, 2004b, p. 23, 2008, p. 29). Ou seja, de um modo mais simples, é desde a relação do indivíduo, ou da população, com o seu meio, que a catástrofe se coloca como o anúncio perturbador da morte e da aniquilação, tal como os cavaleiros do apocalipse.
Mas a perturbação da catástrofe não acontece realmente em função de alguma temporalidade, ainda que seja graças a ela que o problema da finitude (em primeira pessoa, aquela que também se chama de “própria”) se coloca; e nesse ponto tomo minhas distâncias em relação aos pensamentos de Dupuy ou Brossat. O desconforto, o incômodo, a inquietude, se colocam quando sua temporalidade conflui com a sua espacialidade que pode ser modulada para os indivíduos – oscilando entre a catástrofe como experiência ou como drama assistido – em termos de proximidade e distância: quão mais perto, maior a inquietude existencial experimentada; quanto mais longe, maior o padecimento moralizado, humanizado, ou paradoxalmente também como o outro efeito possível pelo distanciamento diante de seu caráter de espetáculo, sua indiferença e até desprezo. De qualquer modo, parece que o mais impactante é aquela catástrofe que se dá pelas vizinhanças. Ou ainda mais radical e visceralmente, aquela na qual se está totalmente afetado, experimentando o páthos da catástrofe, em toda a sua atualidade disruptiva no tempo e na história, e in loco. Se a temporalidade implicada na catástrofe toca de modo visceral nas inquietudes próprias à morte de alguém e, principalmente, em primeira pessoa (a minha morte), isso só ocorre a partir desse avizinhamento ou localização interna ao meio. Um desses grandes exemplos pode ser buscado nos relatos feitos por Yanick Lahens, uma das mais importantes escritoras haitianas da atualidade, em Failles (2012) [Falhas]. Diz ela:
No dia 12 de janeiro de 2010, às 16 horas e 53 minutos, em um crepúsculo que já procurava seus matizes finais e iniciais, Port-au-Prince foi cavalgada durante menos de quarenta segundos por um desses deuses de quem se diz alimentarem-se de carne e de sangue. Foi selvagemente cavalgada antes de desabar com os cabelos hirsutos, os olhos revirados, pernas deslocadas, sexo exposto, exibindo suas entranhas de ferragens e poeira, suas vísceras e seu sangue. Entregue, despida, nua. Mesmo assim, Port-au-Prince não era de forma alguma obscena. O que era obsceno, e ainda permanece, é o escândalo de sua pobreza (Lahens, 2012, p. 16).
Há muitos elementos contidos em seu relato do terremoto que literalmente arrasou a capital haitiana, não pela primeira vez, já que se sabe de pelo menos outras duas vezes no século XVIII. Mas é interessante como nesse trecho há dois cruzamentos importantes, um deles entre o tempo e o espaço; o outro entre o sismo e a escandalosa obscenidade da pobreza que reina em boa parte da “Pérola das Antilhas” como carinhosamente Haiti é chamado por seus habitantes, e principalmente em Port-au-Prince, sua capital que abriga parte considerável de sua população. O ponto curioso desse duplo cruzamento é que Lahens insiste no caráter e posição dúbia que o Haiti ocupa diante do mundo: local e global ao mesmo tempo; “glocal” como apelam alguns escritores e analistas de perspectiva decolonial (Mignolo, 2003; Livholts, 2023; Guilherme, Souza, 2019), no intuito de, diante de uma imagem homogênea e lisa do global, geral à luz paradigmática de certa expressão hegemônica dos países ocidentais desenvolvidos, geralmente localizados no hemisfério Norte, forçar a uma reconsideração de que, “aqui e alhures”, há uma diversidade de se posicionar no mundo desde uma posição local. Mas que não é a afirmação hegemônica do local diante do global, e sim de que o singular se universaliza, e o universo inteiro se realiza num ponto localizado, quase numa dialética mediadora. Como diz Milton Santos (2006, p. 231), “Cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma razão global e de uma razão local, convivendo dialeticamente. ” Ou dito ainda de outro modo, mais concorde às nossas inquietações, no caso da catástrofe, a tragédia não está, de fato isolada, apesar de todos os discursos e investidas midiáticas de neutralização. Ali estão todas as dores do mundo. Lahens relembra o amargo preço que o Haiti experimentou e ainda experimenta para se tornar a primeira república negra e por conquistar a liberdade como povo negro, nas Américas e diante de todo o mundo – daí a obscenidade das falhas sociais que a abalam com a mesma intensidade de um terremoto; mas ela também lembra como de uma experiência-matriz impõe-se ao mundo, isto é, a todos e a cada um, o devir-haitiano:
A experiência haitiana é uma matriz. Ela prefigura desde o início do século dezenove a natureza e a fisionomia do que mais tarde se chamaria relações Norte-Sul. [...] Mas a experiência haitiana anuncia também em parte a dos países do Sul entre si. O 12 de janeiro obrigou o mundo, pelo espaço de um parêntesis, ainda que breve, a sair da amnésia, ser haitiano (Lahens, 2012, p. 31).
Por um lado, como observa Susan Buck-Morss (2005) em seu clássico ensaio sobre Hegel e o Haiti, a Revolução haitiana, pautada sobre a lógica da liberdade tal como universalizada a todos os franceses e como estes percebiam a si mesmo, foi a prova de fogo por excelência dos ideais iluministas; e que em certa medida afetavam as relações internacionais em solo europeu, principalmente entre França, Inglaterra e Alemanha, como se pode atestar pelas censuras francesas às notícias sobre o Haiti, contra a ampla divulgação dos recentes acontecimentos revolucionários na Ilha de Santo Domingo entre 1803 e 1805 (Buck-Morss, 2005, p. 44), impensáveis, mesmo no exato instante de sua ocorrência, a intrusão extremamente atual do impensado dentro do tempo e da história (Trouillot, 2016, p. 118-174). É refletindo sobre o impensado revolucionário haitiano que parece ter motivado a Hegel estruturar seu argumento sobre a dialética do Senhor e do Escravo na Fenomenologia do Espírito sem recorrer à tese corrente do reconhecimento mútuo ainda que necessariamente absoluto (Buck-Morss, 2005, p. 63) de modo que a única forma possível ao escravo de materializar a sua subjetividade é pela mediação do trabalho, índice de sua modernidade impensada como realizável, mesmo quando aconteceu historicamente: “os escravos (outra vez coletivizando sua figura) alcançam a autoconsciência ao demonstrar que não são coisas, não são objetos, senão sujeitos que transformam a natureza material” (Buck-Morss, 2005, p. 66). E, ao realizarem-na, a fazem mediante sua emancipação e libertação, mesmo que arriscando a própria vida. De minha parte, faria apenas um ajuste a esta citação de Buck-Morss: não se trata de demonstrar que não são coisas, e sim de que não são mais. Com a emancipação, esses indivíduos deixam de ser coisas e propriedades para se tornarem não simplesmente livres como os brancos europeus, seus senhores, que os escravizavam, mas livres de outra maneira. Sua origem e seu destino são totalmente diferentes. Com sua emancipação os até então escravos não se igualam ou equiparam aos seus senhores; sua liberdade e subjetividade é-lhes um poderoso diferencial diante dos senhores escravagistas e das metrópoles colonizadores da Europa. Eis o impensado da Revolução haitiana: “A meta desta libertação, sem escravidão, não pode ser a seu turno a submissão do senhor, o qual seria uma mera repetição do ‘impasse existencial’ do senhor, senão a completa eliminação da escravidão” (Buck-Morss, 2005, p. 69). Eis o caráter matricial do Haiti para todo o mundo, do mais improvável local – da colônia e das plantações para todo o mundo, inclusive a metrópole.
Por um ato de analogia, Lahens vê na catástrofe sísmica a repetição do destino matricial do Haiti para o mundo e toda a humanidade. A catástrofe do terremoto em Port-au-Prince em 12 de janeiro de 2010 subverte a lógica biopolítica da gestão da crise, de sua singularização esquemática forçada a um conjunto procedural de combate aos perigos, de resgate das vidas, do enterro de seus mortos, da reconstrução dos edifícios e das vias, do restabelecimento da ordem e da paz preconizadas como idealmente desejáveis, diante das possibilidades de intercorrências do meio. Mas as falhas – geológica e social – do Haiti impedem, ou ao menos dificultam o estabelecimento da ordem previamente estabelecida. O caráter matricial do terremoto no Haiti está em persistentemente lembrar que o mundo inteiro rebuliça ali, localmente.
É lamentável que, corriqueiramente, nós nos esforçamos por negar e esquecer, seja para continuar a viver com o mínimo de sensatez ou por puro cinismo, relegando apenas às pessoas, à população alocada em cada região, o sofrimento de todas as mazelas do mundo.
Com efeito, não prestamos atenção a esses fenômenos de superfície assim como tampouco nos preocupamos com os que ocorrem nas profundezas. Fingimos ignorá-los, embora constituam falhas mortíferas e sejam linhas estruturais tão assassinas quanto os sismos. No entanto, esses acontecimentos de superfície que tecem a trama política, econômica e social se desenrolam debaixo de nossas vistas, ao contrário dos fenômenos subterrâneos. Êxodo rural acelerado, pauperização, degradação da produção agrícola e do meio ambiente, desemprego endêmico. Sem falar das más notícias vindas de outros lugares, que a televisão e o rádio nos despejam todos os dias (Lahens, 2012, p. 30).
Não é preciso muito esforço para inventariar tantos exemplos que confirmam a atualidade dessa sentença, bem como sua universalidade, mesmo que enunciando uma catástrofe local. A singularidade matricial, exemplar, do terremoto no Haiti, é que ele nos faz lembrar que o impensado da catástrofe é universalizável. A despeito de todos os esforços, uma vez ocorrida, não importa se a catástrofe é natural ou provocada, se buscar resolvê-la a partir da lógica biopolítica de gestão da crise, a catástrofe é sempre perturbadora: ela corta o contínuo temporal lembrando-nos de nossa mortalidade; ela nos apavora realmente quando nos é tão próxima; ela nos faz questionar quem ou o que somos.
6 ADENDO: MODOS DE SUBJETIVAÇÃO DESDE A ESPACIALIDADE DA CATÁSTROFE
Antes de fechar este ensaio, há um último ponto sobre o qual gostaria ainda de perseguir e me deter, e que pode ser expresso sob a forma de uma pergunta: quem eu sou desde a espacialidade da catástrofe? A pergunta de algum modo se justifica se lembrarmos a observação feita acima sobre a questão da temporalidade da catástrofe e de seus laços com a questão da (minha) mortalidade; o que permite pensar certa ideia de subjetividade. Mas a partir do instante que se busca demarcar a catástrofe por sua espacialidade, o que esse deslocamento pode permitir pensar sobre a subjetividade? Quem eu sou no local mesmo da catástrofe experimentada? Mais uma vez, podemos buscar algum apoio no texto de Lahens: “No dia 12 de janeiro o tempo parou, cada segundo ficou pesado. Não tínhamos passado nem futuro. Estávamos na aniquilação única do instante. Chumbados em um presente estreito e negro” (Lahens, 2012, p. 112).
Tal como o escravo hegeliano precisa se subjetivar em seu trabalho, a despeito de toda usurpação e indiferença de seu senhor, há que se perguntar também como podemos nos subjetivar diante da catástrofe. Se “a esperança não é a única resposta” (Lahens, 2012, p. 39), o que a catástrofe, desde sua espacialidade, diz de nós para nós mesmos, tendo experimentado desde dentro do evento impensado, ou apenas assistindo atonitamente? Não há resposta pronta a esta questão. Há apenas a necessidade de se retornar à vida, em sua banalidade cotidiana, e pouco a pouco restabelecer a normalidade. Mas a normalidade de outrora se perdeu: nas falhas, nos tiros e bombardeios, nas secas, nas cheias. É preciso construir uma nova normalidade, se reinventar como indivíduo e como população. Urge se inventar e reinventar como sujeito. É sempre preciso mudar as coisas. Não precisamos realmente de uma catástrofe para isso. Sua ocorrência e nossa experiência em sofrê-la deve, de algum modo sempre nos lembrar da urgência de mudar as coisas. E para mudá-las, temos também que nos assumir como mutantes.
Há mutantes em todas as camadas e categorias sociais (os camponeses, os jovens, o setor econômico, o setor político, as mulheres, as organizações locais, os funcionários) que simplesmente não aceitam inscrever-se nas regras do jogo tradicional. Que se engajam cotidianamente “de coração fervente” e sabem dar à moderação “seu justo lugar”. Toda a questão é saber como reunir esses mutantes em uma associação. Que estrutura poderá deflagrar uma dinâmica capaz de juntá-los? Uma dinâmica capaz de sustentar um projeto no qual o desejável e o possível se encontrem em algum lugar (Lahens, 2012, p. 121).
Entre o desejável e o possível, a catástrofe como perturbação espaço-temporal, força-nos a repensar a nós mesmos e a perguntarmo-nos a nós mesmos, a todo tempo, para além da mera sobrevivência, como viver. E isto passa necessariamente por buscar como habitar o mundo em comunidade cujo mútuo reconhecimento depende inexoravelmente – mas não me atrevo dizer exclusivamente – desse enclave indissociável de realização do local e do universal, enquanto uma comunidade de recíprocas alteridades irredutíveis.
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Contribuição de autoria
1 – Marcos Alexandre Gomes Nalli
Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas UNICAMP
https://orcid.org/0000-0001-6476-1472 • marcosnalli@yahoo.com
Contribuição: Escrita e Primeira Redação
Como citar este artigo
NALLI, M Tempos de Crise e Locais de Catástrofe. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85592, p. 1-25, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378685592. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
[1] Não é à toa e sem qualquer importância que Foucault identificou no pensamento de Agostinho a emergência do que chamou de “sujeito de desejo” (FOUCAULT, 2018, p. 357-360) e que lhe permitiu pensar sua emergência a partir de uma reconsideração sobre o estatuto da vontade na determinação do sujeito. Infelizmente Foucault não viveu para, talvez, poder pensar a relação dessa triangulação entre sujeito, vontade e desejo, articulada à problemática da temporalidade e da eternidade nos termos preconizados por Agostinho.
[2] O grande idealizador da psicologia comportamental, Skinner (2000), em uma de suas definições de comportamento dizia organismo, numa forte e clara acepção biológica, talvez sem a devida clareza de que era uma construção “demasiado lamarckista”, que atingia tanto aos indivíduos quanto à população.