Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85574, 2023
Submissão: 02/10/2023 • Aprovação: 10/01/2024 • Publicação: 12/04/2024
Dossiê Catástrofe
No olho do furacão: Gabriel Marcel e a catástrofe
Título traduzido
Claudinei Aparecido de Freitas da SilvaI
IUniversidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo, PR, Brasil
RESUMO
O que é a catástrofe? O que a leva, a cada reedição, manter a sua essência última? De que forma, de tempos em tempos, ela se reinventa a ponto de impor uma agenda da qual o filósofo não pode deixar de pautar como um ponto interrogativo acerca do seu real sentido e alcance? Essas entre outras questões se colocam na emergência aqui do debate que procuraremos balizar à luz da obra fenomenológico-existencial de Gabriel Marcel. Trata-se de revisitar, a partir, sobretudo, de Les Hommes Contre l’Humaine, um de seus escritos mais marcantes quanto ao tema, a maneira própria como o filósofo faz um balanço da tragédia de nossa época. Se advoga então a tese de que o fenômeno catastrófico se liga essencialmente a uma atitude sintomática de nossa cultura metafísica que tomou asas no Ocidente: o espírito de abstração. Como contraofensiva a essa escalada espiritual, o texto termina por conclamar uma tomada de consciência mais exigente: a reconquista do concreto.
Palavras-chave: Gabriel Marcel; Espírito de abstração; Catástrofe; Guerra; Tomada de consciência
ABSTRACT
Keywords: Gabriel Marcel; Spirit of abstraction; Catastrophe; War; Awareness
“Que ‘as coisas continuam assim’ – eis a catástrofe.!”
(Walter Benjamin, Passagens, p. 515)
Essas entre outras questões se colocam na emergência aqui do debate que procuraremos balizar à luz da obra fenomenológico-existencial de Gabriel Marcel. Trata-se de revisitar, a partir, sobretudo, de Les Hommes Contre l’Humaine (1991/2023) – um de seus escritos mais marcantes e recorrentes quanto ao tema –, a maneira própria como o filósofo faz um balanço sua época selando uma atualidade ímpar como cenário trágico.
Para tanto, parece-nos inicialmente de capital importância revisitar, no seio da tradição helênica, a presença da ideia de catástrofe como categoria capilar, sobretudo, como matéria de discussão na formação do teatro grego. Nessa retrospectiva, vale a pena demarcarmos um de seus primeiros registros na cultura do Ocidente cujo texto capital é, sem dúvida, a Poética de Aristóteles. Em sua raiz grega, o termo catástrofe, em princípio, indica a ideia de um “fim súbito” ou mesmo o sentido de uma “virada”, uma reviravolta de expectativas. Kata- sugere “para baixo”, e strophein, simplesmente, “virar”. Como regra geral, no contexto cênico, o drama é recortado por uma mudança repentina de um acontecimento que acomete a personagem. É essa mudança que Aristóteles define como catástrofe correspondendo, pois, à terceira parte da poesia mítica, logo após a peripécia e o reconhecimento. A catástrofe fulgura o ponto alto da peça que encerra, por assim dizer, as cenas trágicas mais colossais: “a catástrofe é uma ação perniciosa e dolorosa, como são as mortes em cena, as dores veementes, os ferimentos e mais casos semelhantes” (Aristóteles, 1973, XI, 1452 b 9, p. 453). Como uma constante na tragédia, esse momento caracteriza um dos ápices do espetáculo por meio do qual o poeta desperta no público pavor ou forte comoção. Ora, vista como uma virada radical, ora como um acaso infeliz, tal adversidade transparece aos olhos da personagem como o desdobramento de suas próprias ações. Uma vez deflagrada a catástrofe, o poeta dá voz ao coro e às próprias personagens no sentido de que elas lamentem a vontade dos deuses. Com isso, observa Aristóteles, o trágico se orienta por uma finalidade muito clara: a de suscitar, no espírito do espectador, terror e piedade. Esse é, flagrantemente, o apogeu do drama: a reviravolta catastrófica reflete a situação-limite de desespero da personagem que, uma vez consciente do seu erro, age de maneira desastrosa, destemperada, e, nessa medida, trágica, despertando por meio de gestos, palavras ou ações, enorme consternação. Em resumo: a catástrofe mise-en-scène é um produto da ação desmedida da personagem heroica como vemos, p. ex., Medéia ao executar o seu plano filicida ou quando Édipo pratica o parricídio vindo a coabitar com a mãe, não havendo nada mais que possa remediar tal fato ou destino. Cabe ainda considerar que Aristóteles vê, nesse artifício cênico, a possibilidade de o destino ser visto com outros olhos: o da contingência. O que isso efetivamente mostra? Mostra que se, por uma parte, as ações e consequências heroicas são longamente lamentadas, por outra, são justificadas como a vontade dos deuses que a personagem, por devoção, tão somente cumpre.
Ora, Gabriel Marcel é um dos autores contemporâneos que mais se debruçaram sobre o caráter fenomenológico da concepção de catástrofe com e para além da acepção grega acima cortejada. Ademais, ele não apenas é um filósofo stricto sensu, mas um dramaturgo que compusera inúmeras peças que impactaram, tanto quanto Sartre, as artes cênicas da primeira metade do século anterior. Várias das personagens marcelianas são seres trágicas, por excelência, encarnadas em situações-limite de catástrofe. Isso se deve, sobretudo, a uma experiência marcante, crucialmente dramática para alguém como Marcel que viveu os horrores da guerra. A sua vida e obra se situa justo no período entreguerras, sem falar, é claro, da ascensão de regimes totalitários de diferentes matizes.
É sob esse espectro mais amplo que conviria, a partir de agora, uma tese cujo ponto corolário é advogado pelo filósofo acerca do fenômeno catastrófico. Tal fenômeno se liga essencial e, de maneira incontornável, à uma atitude sintomática de nossa cultura metafísica que tomou asas no Ocidente: o espírito de abstração.
2 O ESPIRITO DE ABSTRAÇÃO
Devemos realmente explorar todo o sentido dessa metáfora quando nos reportamos à ideia de que há uma atitude metafísica que toma asas na cultura ocidental. É o que levará, p. ex., Merleau-Ponty a falar de um “pensamento de sobrevoo”: trata-se de uma “espiritualização cartesiana [...] que substitui nossa participação ao mundo por um sobrevoo do mundo” (1964, p. 59). Assim, tomar asas é sobrevoar o mundo ou o real a tal ponto de perder de vista o peso e a gravidade. Ora, esse sobrevoo, aos olhos de Marcel, é uma ilusão:
A ilusão do sobrevoo é a mais funesta para um ser que não sabe sequer caminhar e que, ademais, menospreza a própria caminhada. Com efeito, o mundo nosso está estruturado de tal maneira que se pode acreditar que se voa sem sair de sua poltrona. Há um estado de sonho acordado que, por definição, é incapaz de tomar consciência de si, situando-se ao nível da abstração (Marcel, 1991, p. 165).
Assim, a guerra não surge como um fato isolado decorrente de uma cadeia causal, técnico, militar, política, tão somente, mas, manifestamente, como um fenômeno metafísico, profundamente ontológico que se arma a partir desse artificio, dessa ilusão. Por que? Porque essa se pauta numa pretensão ilícita do pensamento em se erguer, para além do plano da experiência humana, fundada no ideal de subjetividade eterna e desencarnada. É essa a razão, pois, pela qual “o idealismo está condenado, de fato, em se abater, hoje, mesmo se ele obtém dos espíritos uma adesão teórica e inerte” (Marcel, 1998, p. 206-207). Eis porque, sob as ruínas do humanismo, agoniza o homem. Ou melhor: se condena “os homens a uma existência infra animal da qual a nossa geração terá o doloroso privilégio de constatar os preâmbulos apocalípticos” (Marcel, 1998, p. 217). Ao selar “a ruptura da união nupcial entre o homem e a vida” (Marcel, 1998, p. 213), o humanismo no Ocidente e seu típico otimismo ilustrado anuncia certo apocalipse, certa catástrofe, sem precedentes, perdendo, pois, o sentido da “vida hic et nunc” (Silva, 2021a). Como retrata o filósofo:
Eu creio que, sem maiores dificuldades, se tem mostrado que o humanismo otimista do século XVIII ou da metade do século XX tem marcado, por mais paradoxal que isso possa parecer, a primeira etapa dessa trágica desintegração (Marcel, 1998, p. 213).
Não há dúvidas, para Marcel, de que a catástrofe emergente é obra dessa derrocada, dessa escalada sem limites da agenda humanista. Isso porque o humanismo instaura uma forma decadente de vida, de homem e de natureza. Sobrepõe a técnica sob um alcance longitudinal à vida. O otimismo de que a ciência, a técnica, uma vez banhadas em águas metafísicas, é a palavra última sobre a vida, sob todas as suas formas, não passa de sistema um de crenças, uma ideologia, um ato de fé positivista. Foi precisamente isso que representa a herança mais brutal do século XIX. O cientificismo é um subproduto do humanismo. Ele está arraigado numa essência, como a essência da técnica, conforme retrata Heidegger (2007), isto é, como Gestell (Cf. Silva, 2012), armação, ou engrenagem. Para Marcel, todo o armamento bélico provém dessa armação primeira, de fundo metafísico, e que devemos melhor compreendê-la.
Marcel está absolutamente cônscio quanto à dificuldade de situar esse sinistro fenômeno de nossa época. Fenômeno tal que assume múltiplas faces e, talvez, a guerra seja uma de suas expressões mais emblemáticas, além das pandemias, e cataclismas naturais que, diga-se de passagem, não são tão naturais assim. Nesse cenário, a guerra talvez seja o evento mais eloquente, desse que a humanidade existe, uma crônica mesmo recorrente. Assistimos, no último século, duas grandes guerras mundiais, algo até então inédito historicamente. Como diagnostica o filósofo: “a humanidade passa, atualmente, pela crise mais trágica que já atravessou no curso da história tal como a conhecemos” (Marcel, 1958, p. 19). Isso tudo sem falar nas formas mais requintadas e cruéis de totalitarismos, invasões, genocídios. Não há um país que não tenha, em maior ou menor escala, se abatido com a guerra ou fortemente sentido seus efeitos deletérios. Fato é que “cada vez mais, manifestamente, estamos colocados em face de uma opção radical, não para o indivíduo, mas para a humanidade inteira: viver ou morrer” (1958, p. 15). Afinal, “esse mundo envelhecido a caminho da esclerose” (1958, p. 16), perdera a sua infância, ou seja, o seu “espírito de infância” (1958, p. 15). Daí advém um ponto de interrogação remarcável: o que propriamente move a guerra? Qual é, em última análise, a sua essência?
O filósofo parte de um diagnóstico preciso: “existe hoje entre a mentira e a guerra uma conexão indissolúvel [...]. Elas, aliás, estão estreitamente ligadas e, talvez, de direito, inseparáveis uma da outra” (Marcel, 1991, p. 97). Assim,
Aquele que não mente a si mesmo não pode não constatar que a guerra sob as suas formas modernas é um cataclismo que não pode comportar nenhuma contrapartida apreciável [...] ali onde ela é uma pura agressão dirigida contra um adversário desarmado. Nesse caso, porém, a guerra cessa de ser, propriamente dita, a guerra, para degenerar em uma operação de banditismo puro e simples que se tentará, inclusive, camuflar, apresentando-a como uma expedição punitiva. Os inesgotáveis recursos da propaganda serão então empregados precisamente para essa camuflagem. (Marcel, 1991, p. 97).
Já entre adversários armados, hoje sabemos que os conflitos são de tal ordem inimagináveis que as destruições ultrapassam, ao que indica, quaisquer vantagens a serem obtidas. Nesse cenário, os acordos de paz se tornam letra morta, uma vez que se mente, se camufla, enfim, se maquia uma realidade que está longe, bem longe de ser verossímil. A mentira então se organiza, midiaticamente se aparelha. Como narrativa, se cria um pretexto para qualquer ação sem pudor, sem o menor constrangimento. Se é assim, porém, o que precisamente radica a mentira? Em troca do que se mente para justificar a guerra?
Ora, Marcel quer justo pensar a exata relação entre a mentira e a abstração. Não se trata pura e simplesmente de uma relação conceitual, mas, sim, de se “situar na existência histórica” (1991, p. 98). Sem essa imersão mais concreta, mal se compreenderá tal vínculo que, de tempos em tempos, se opera entre a mentira e a estratégia bélica. É nesse instante que Marcel introduz uma distinção capital de base: a diferenciação entre “abstração” e “espírito de abstração”. Ele reconhece o quanto essa distinção nem sempre é precisa, mas que jamais deve escapar a uma análise mais refinadamente filosófica. Observa ele:
A abstração considerada em si mesma é uma operação mental como procedimento indispensável para se chegar a qualquer fim determinado. A psicologia trouxe perfeitamente à luz a ligação interna entre a abstração e a ação. Abstrair é, em suma, proceder a uma terraplanagem prévia, terraplanagem essa que pode apresentar um caráter propriamente racional. Isso significa dizer que o espírito deve conservar uma consciência precisa e distinta das omissões metódicas necessárias para alcançar o fim visado, distinta das omissões metódicas que são requeridas para que o resultado visado possa ser obtido (Marcel, 1991, p. 98).
Até aqui, Marcel reconhece o valor positivo da abstração como um recurso justificável, um procedimento legítimo, válido do ponto de vista racional. É o método adotado por qualquer forma de saber, de conhecimento científico a fim de se estabelecer princípios lógicos, que melhor orienta uma ação, uma técnica, visando uma finalidade intrínseca. Por esse modus operandi, abstrair é terraplanar, ou seja, o engenheiro, p. ex, opera previamente um estudo do terreno, realiza uma terraplanagem antes que à obra possa ser executada, construída. Ele criteriosamente avalia as condições do terreno, põe na balança os prós e contras, mensura a área, examina cuidadosamente toda a estrutura locada para, então, com maior segurança, dar início propriamente a obra. Trata-se de um trabalho de base, consultado entre as partes, amplamente discutido, avaliado e, portanto, consensualmente deliberado.
Ocorre que a partir do momento em que o espírito humano perde “a consciência dessas condições prévias e comete abuso sobre a natureza do que, em si, é apenas um procedimento” (1991, p. 98) se deixa se sugestionar pelo “espirito de abstração”. Ora, “o espírito de abstração não é separável deste erro [...]; ele é mesmo este erro ” (1991, p. 98). Marcel não hesita em afirmar que o espírito de abstração cede a certo capricho, a uma espécie de sedução, fascinação. Esse aspecto não tão perceptível assim à primeira vista é melhor circunscrito:
Desde o momento em que arbitrariamente acordamos a preeminência de certa categoria isolada de todas as outras, somos vítimas do espírito de abstração. O que importa, contudo, é observar bem que, malgrado as aparências, essa operação não é de ordem essencialmente intelectual (Marcel, 1991, p. 98).
Fica, pois, claro que o espírito de abstração é, em absoluto, passional e não racional. É um espírito de exclusão premeditado, mas que se insufla massivamente. Sob o seu império se desencadeia um processo decadente de consciência, de racionalidade. Ora, pois, isso se torna ainda mais visível no fenômeno da guerra como catástrofe:
[...] desde o instante que se (pode ser o Estado ou um partido, uma facção, uma seita religiosa etc.) pretende obter de mim que eu me engaje em uma ação de guerra contra outros seres; que eu deva, por conseguinte, estar pronto para aniquilar, é absolutamente necessário que eu perca consciência da realidade individual do ser a quem eu sou levado a suprimir. Para transformá-lo em bode expiatório (tête de Turc) é indispensável convertê-lo numa abstração: esse será o comunista, ou o antifascista ou o fascista etc. (Marcel, 1991, p. 99).
O exemplo acima é eloquente por si só. Essa perda da consciência, induzida estatal ou sectariamente, reduz inclusive toda alteridade possível numa abstração. Eis porque, “o critério da abstração não pode ser uma abstração” (2018, p. 25). Assim, “longe de dizer que o sujeito é abstração pura, é preciso compreender que não se pode tratá-lo como abstração, e que ele é, em si mesmo, a fonte viva do concreto” (2018, p. 41). Assim, partindo da mesma passagem acima, Marcel se reporta, sobretudo, a Nietzsche, e fala, linhas adiante, em ressentimento: “trata-se, parece-me, de uma disposição em que o elemento do ressentimento se encontra ligado a uma tendência em termos de dissociação nocional – disposição essencialmente contrária ao que pode ser, por exemplo, a admiração tomada em sua fonte e em sua ingenuidade” (1991, p. 99). A partir daí a intensificação do espírito de guerra no mundo – espírito esse da mais absoluta abstração – toma curso passionalmente. Os nervos estão à flor da pele; estou com sangue nos olhos: não vejo mais outrem como meu próximo, mas como um inimigo em potencial. Pouco importa se o conheço, se sei de suas razões, de suas agruras: ele é tão somente um número, uma estatística a mais, um corpo estranho, um objeto, a qualquer custo, a ser eliminado. Com um número não se argumenta: se mira milimétrica e indiferentemente; se atinge, se preciso for, como alvo.
Marcel observa que “a extraordinária indigência de arquitetura no mundo contemporâneo está verossimilmente ligada a esse fato geral, qual seja, o de que é um mundo onde as abstrações tomam corpo sem cessar de ser abstrações” (1991, p. 100). É nessa perspectiva que a categoria de massa revela todo o seu caráter escatológico e perplexamente sinistro “entendemos a relação entre massa e abstração numa acepção pragmática, ou seja, à medida que ela se torna força, se torna potência. Tais abstrações estão, de toda sorte, realizadas, pré-ordenadas para a guerra, quer dizer, inteira e simplesmente voltadas à destruição mútua” (1991, p. 100). A grande imprensa, “com todos os efeitos nefastos, está precisamente ligada a esse tipo de abstração” (1991, p. 100). Pior: “essa imprensa está essencialmente orientada contra a reflexão, contra toda reflexão possível, mas também – e inversamente contra toda reflexão digna desse nome” (1991, p. 100). Marcel deixa entrevisto aqui que o processo de massificação de grupos, via os mais sofisticados aparelhos midiáticos, concorre para a mentira como justificação da guerra e de toda sorte de maledicência, de ódio ao outro por ser outro. A mídia contribui, em larga medida, para esse aparelhamento massivo, passional como um claro atentado à razão, à reflexão.
Para tanto, a título ilustrativo, tomemos a guerra Israel-Palestina. Dados do Instituto Gallup, agência norte-americana de pesquisas, apontam que a desconfiança em relação à imprensa aumentou nos Estados Unidos, ou seja, a cobertura da guerra contribuiu para descredibilizar os meios de comunicação. É o que mostra o jornalista José Roberto de Toledo (2023):
39% dos americanos dizem não confiar de jeito nenhum na imprensa; 32% dizem confiar muito ou suficientemente na imprensa; 29% afirmam que não acreditam muito na imprensa. Nunca na história dos Estados Unidos a desconfiança em relação à imprensa foi tão alta. Antes dos 39% divulgados ontem (24) pelo Gallup, o índice mais alto de desconfiança aconteceu em 2016, quando Donald Trump foi eleito presidente. O fenômeno não é recente, é uma tendência que começou a crescer nos anos 2000 e se acentuou na última década. O principal fator para o descrédito é a polarização política que é insistentemente explorada pela direita, mas também pela esquerda em menor grau. Exercendo o papel de desacreditar a imprensa, a direita consegue ter um poder de influência maior e sem concorrência. Essa campanha e tática é usada pela direita em todo o mundo. Redes sociais também exercem influência no descrédito da imprensa.
Com o advento das plataformas digitais, a mentira eletrônica passa a encontrar o terreno necessário para consubstanciar tal estado de coisas. Fato é que a polarização se intensifica junto às redes sociais que estão, a todo momento, gerando novas narrativas e, com isso, espalhando desinformação. É o que, nos últimos anos, se vulgarizou sob o epíteto de fake news. Ao mesmo tempo fica patente que a guerra insufla um cenário um pior para a imprensa. Quer dizer, “o caso específico do conflito no Oriente Médio, o desencontro de informações fez a imprensa perder ainda mais credibilidade” (Toledo, 2023). É o caso específico do ataque ao hospital na Faixa de Gaza em que ocorrera um desastre do ponto de vista da informação: “primeiro os veículos de comunicação davam conta de que o míssil teria sido lançado por Israel, e depois por um grupo aliado ao Hamas” (Toledo, 2023).
Diante de uma imprensa que só abstrai ideologicamente, a ponto de confundir povos inteiros, só resta uma saída: “a tomada de consciência da exigência que é a sua mola mais íntima, deve, ao contrário, se exercer em direção ao concreto ou em favor do concreto” (1991, p. 100). Marcel reivindica aquilo que, desde sempre, se tornara o principal mote de suas reflexões: a tarefa de uma “filosofia concreta” (Marcel, 1999; Silva, 2018). Ele assim se pronuncia:
[...] seríamos tentados a supor que o concreto é o que, inicialmente, está dado; é aquilo desde onde é preciso partir. Ora, nada mais falso que isso e, nesse ponto, Bergson se alinha com Hegel. O concreto é aquilo que está, perpetuamente, por se conquistar. O que é dado de partida é uma espécie de confusão inominável e inominada em que as abstrações não elaboradas formam algo como minúsculos grãos. É para além da abstração cientificamente tratada que se pode apreender e reconquistar o concreto. (1991, p. 100; grifo nosso).
Marcel tem em vista que somente um pensamento concreto, engajado, encarnado é a única via possível capaz de transcender o espírito de abstração. O concreto é a expressão de uma conquista ainda por vir, isto é, de um trabalho pacientemente terraplanado, reflexivamente conjuntural à luz da experiência humana. Estar no concreto implica ter uma visão de conjunto em face dos fatos, isto é, assumir racionalmente a possibilidade real da paz em meio à catástrofe. Por isso, “não há ilusão mais perigosa do que a que consiste em crer que a paz é um estado prévio” (1991, p. 100). Crer nisso é, no limite, tornar-se ingênuo a ponto de não identificar o que, “em estado germinal, contém na guerra; algo que nem mesmo é a guerra” (1991, p. 100). Não há paz, a priori. A questão-chave, nesses termos, é a de que “não posso estar verdadeiramente em paz comigo mesmo se eu não estou em paz com os meus irmãos” (1991, p. 101). A real paz “evocada se situa além das categorias do discurso” (1958, p. 14).
Marcel recompõe, nesse nível, a noção de fraternidade como expressão do reconhecimento de outrem, da intersubjetividade:
Ora, sejamos justos, não há e nem pode haver fraternidade na abstração. Eu penso que nada a este respeito tem sido mais enganoso e mais mentiroso do que as fórmulas das quais se comprazem os homens da Revolução francesa. Eles têm ingenuamente acreditado, por se inspirarem, em suma, numa filosofia absolutamente rudimentar, que a liberdade, a igualdade e a fraternidade podiam situar-se no mesmo plano. Eu, porém, justamente penso que nada é menos exato. Saibamos reconhecer que a igualdade se situa no abstrato; os homens não são iguais, pois não são triângulos nem quadriláteros. O que é igual e deve ser posto como igual não são, sobretudo, os seres, mas os direitos e os deveres que esses seres têm de reconhecer uns aos outros, direitos e deveres sem os quais haveria o caos, quer dizer, a tirania com todas as suas terríveis consequências, o primado do mais vil sobre o mais nobre (1991, p. 101).
Fato é que o igualitarismo é espiritualmente uma abstração: pertence à categoria do abstrato e, por isso mesmo,
[...] não pode transferir-se para o domínio dos seres sem se tornar mentira, e, consequentemente, sem dar lugar às desigualdades que ultrapassam tudo o que temos visto nos regimes não democráticos. Aqui, então, é a guerra que sobrevém, mas sob formas tais que ela mesma não é mais reconhecida, porque ela, de fato, consiste no esmagamento sistemático de milhões de seres reduzidos a uma impotência total (1991, p. 101).
A mentira então volta à cena e com ela o elo indissolvível com o espírito de abstração a que reportávamos de início. A escalada bélica aliada midiaticamente à mentira se torna flagrante, pois,
Para tornar aceitável a guerra ninguém mais ousa atualmente situar-se num plano de utilidade, mas só no da necessidade ou da obrigação pseudorreligiosa. A categoria do pseudorreligioso cobre tanto as guerras raciais como as revolucionárias, as guerras de classe. Seria evidentemente muito fácil mostrar que toda propaganda orientada de tal forma se baseia na mentira (1991, p. 98).
Não há mais dúvida de que o belicismo se conluia com o espírito de abstração. Aliás, ele é o próprio espirito de abstração em marcha. A guerra se retroalimenta a partir dessa base espiritual aparentemente inofensiva, benévola, igualitária, bem-intencionada, pacífica. Eis aqui também a razão pela qual Marcel descreve a catástrofe como um “cataclisma sem nome” (1998, p. 217). Por que? Para melhor compreender, basta lembrar o que o filósofo descreve quando se reporta ao regime do Se (On), isto é, daquilo que figura, em nossa época, sob o plano da mais pura e abstrata impessoalidade, uma espécie de agenciamento indistinto, vago; algo a que não se pode sequer se dirigir ou se reportar uma vez que emerge num nível despersonalizado, universal, fantasmagórico. Trata-se de um nível incapaz de responder por si, de se responsabilizar por nada, por ninguém, por quem quer que seja. É o inominável. Isso explica porque o espírito de abstração, uma vez tomado dessa grotesca investidura “não é um pensamento, mas um simulacro de pensamento” (Marcel, 1991, p. 147) tornando o domínio do Se como apenas mais uma faceta, mesmo que pálida, do espírito de abstração (Cf. Silva, 2016).
Resta-nos, em suma, a seguir, de compreender e melhor nos acercar sobre outro aspecto fulgurante desse evento: o de não fecharmos os olhos para ele.
É preciso, de fato, não fecharmos os olhos, pois, caso contrário, nós é que seremos “engolidos” pela catástrofe e seu pétreo poder medúsico. Aí fatalmente seremos tragados pelo “olho do furacão”.
Não fechar os olhos significa, em primeiro lugar, acreditar que o furacão pode estar a caminho, silenciosamente se formando; que ele nos espreita. Significa crer verdadeiramente que ele é real e não uma mera fantasia retórica. Zygmunt Bauman, aliás, apresenta um acurado exame desse iminente perigo:
Para evitar a catástrofe, primeiro é preciso acreditar na sua possibilidade. É preciso acreditar que o impossível é possível. Que a possibilidade sempre espreita, inquieta, debaixo da carapaça protetora da impossibilidade, esperando o momento de irromper. Nenhum perigo é tão sinistro, nenhuma catástrofe fere tanto quanto as que são vistas como uma probabilidade irrelevante. Considerá-las improváveis ou nem mesmo pensar nelas é a desculpa para não fazer nada contra elas antes que atinjam o ponto em que o improvável vire realidade e subitamente já seja tarde demais para aliviar seu impacto, que dirá então impedir sua chegada. E, no entanto, é exatamente isso que estamos fazendo (ou melhor, não fazendo) – diariamente, sem pensar (Bauman, 2008, p. 24-25).
Bauman então nota, amparando-se em Corine Lepage, que o “obstáculo mais terrível à prevenção de uma catástrofe é sua incredibilidade” (2008, p. 25). Isso porque, em geral, parece haver alguma resistência psicológica, de foro íntimo, por parte do indivíduo em crer no anúncio da catástrofe. O resultado não poderia ser outro, ou seja, nenhuma mudança visível se produz na pessoa: ela raramente modifica a sua forma de conduta ou mesmo a maneira de pensar. Ela, enfim, fica sem ação, permanecendo absolutamente indiferente.
Ora, essa indiferença é um sintoma nada desprezível. Tudo se passa como se a informação de um evento catastrófico, ao invés de despertar maior atenção ou mobilizar forças, provocasse um estado de letargia. O indivíduo insiste em negar: trata tal acontecimento como algo surreal, conspiratório, impossível, improvável. Assim, uma vez sugestionado pelo espírito de abstração, cede a toda sorte de chantagem emocional, passional, em vez de, nem que seja um minuto, ouvir, como se diz, a voz da razão. Em função disso, é preciso efetivamente levar a sério, com a devida atenção, a apatia ou indiferença, como posição passional, por princípio, como um subproduto do espírito de abstração. Tal espírito faz com que se perca completamente o estado de vigília como exigência mínima racional, isto é, como tomada de consciência mais conjuntural, atenta aos acontecimentos. Por mais que o furor catastrófico esteja à vista, se anunciando; por mais, pois, que isso ainda não pareça o bastante para que um mínimo de racionalidade e ação formem a unidade necessária para fazer frente a tal evento, é preciso, no entanto, manter a guarda. A cegueira em meio ao furacão, uma vez produzida por tamanho grau de ingenuidade ou insipiência, não pode mais escapar aos olhos. É necessário um antídoto contra essa diplopia ou astigmatismo metafísico.
É preciso ver que tal estado de coisas projeta, em sentido fenomenológico, o evento da catástrofe como algo incontornável, inquietante. Ora, pois, para não deixar a impressão de que ao falar desse fenômeno não estamos nos reportando a ele de fora, quer dizer, como algo exterior, um mero caso isolado, independente de nós, cabe, todavia, mostrar que a catástrofe não se coloca só de fora para dentro, mas de dentro para fora. Ela assume um caráter humano, anunciando alguma coisa de sinistro, muito sinistro: a catástrofe tem uma dupla face, uma feição ambígua como fenômeno. O que significa que ela nos habita, de fora, mas também de dentro. Por nos habitar ou coabitar, é nosso hóspede. Trata-se aí não de um problema a ser erradicado, pois, caso contrário, nossa relação para com ela seria da mais pura e absoluta exterioridade. Ela se apodera da essência humana de tal modo que assume o que retratamos antes: conforma uma atitude espiritual puramente impassível, apática, de longo alcance: ela emana do espírito de abstração. Disso advém um firme propósito, segundo Marcel:
O meu propósito é mais precisamente o seguinte: qualquer esperança que guardemos e que estejamos tentados de guardar até o fim, o que indiscutivelmente não é menos verdade, o fato é que temos diante de nós a possibilidade de uma catástrofe que corre o risco de desembocar no desaparecimento de tudo o que dá à vida o seu valor e a sua justificação. O fato de que tal possibilidade esteja diante de nós constitui por si mesma apenas um dado que seguramente tem a natureza de suscitar, eu diria mesmo de impor, o mais trágico dos exames de consciência. É esse exame que pretendo realizar (1991, p. 141).
Falar em exame de consciência pressupõe uma atitude reflexiva, uma tomada de consciência sobriamente terraplanada. Não é mais possível manter-se no plano das puras abstrações, a sangue-frio, indiferente ao fatalismo bélico, ao genocídio, à catástrofe. Fato é que a única salvaguarda imaginável contra a barbárie tecnocrática é se colocar não a reboque do acontecimento, mas, sim, rente a ele, ou seja, assumi-lo inteiramente. Para isso, faz-se mister transcender toda presbiopia panorâmica, no sentido de antever a proximidade do perigo. Caso contrário, seremos postos perante uma verdade nua e crua:
A verdade é que quando um pequeno número de fanáticos, desprovidos de todos os escrúpulos, atua sobre uma massa humana amorfa, deprimida pela miséria, carcomida por divisões intestinas etc., tem, no mundo atual, grandes chances, em prol da propaganda e do terror, de exercer o poder magnético do qual discernirmos as consequências terríveis (1991, p. 148).
Desse ponto de vista, um processo de massificação vem à tona: o magnetismo das massas, seu frenesi eletrizante que, no plano ideológico, cria paixões de toda sorte, dando vazão a um culto idolátrico. O caminho aí para uma impostura, uma autocracia ou mesmo uma ditadura se abre inevitavelmente. Devemos aí nos cuidar, “se não quisermos nos tornar cúmplices, não apenas de uma catástrofe, mas do maior crime que a humanidade já cometeu contra si mesma” (1991, p. 149).
Eis que, em tais circunstâncias,
Um fato extremamente geral parece dominar a situação contemporânea. Os homens entraram naquilo que temos chamado de idade escatológica. Eu não quero necessariamente dizer que, em função disso, o que, aliás, equivocadamente chamado pelo termo fim do mundo esteja cronologicamente próximo. Parece-me temerário e até pueril se fixar nesse ponto como uma profecia qualquer. O que importa, contudo, é que o homem como espécie não pode deixar nem de aparecer hoje como dotado do poder, caso ele queira, de pôr fim a sua existência terrestre. Não se trata mais somente de uma possibilidade longínqua e vaga, evocada por algum astrônomo lunático do fundo de seu observatório, mas de uma possibilidade aproximada, imediata e da qual o fundamento está no homem mesmo e não no ponto de uma súbita irrupção de um corpo celeste entrando em alguma colisão cósmica. (1991, p. 55).
Marcel diagnostica ainda algo que a humanidade uma vez mais testemunha: o fenômeno do ecocídio, ou seja, como a guerra e a mudança climática estão frequentemente conectados. Incêndios, inundações, escassez hídrica são apenas alguns dessas consequências catastróficas advindas que afetarão, inclusive, as gerações futuras. Em tal cenário,
Quaisquer que tenham sido as tentativas feitas no passado para justificar a guerra, [...] não podemos deixar de reconhecer que essa guerra se tornou, cada vez mais, um negócio de técnicos. Ela apresenta o duplo caráter de aniquilar populações inteiras sem distinção de idade ou de sexo e de ser sempre mais conduzida por um pequeno número de indivíduos poderosamente equipados que dirigem as operações, desde o início, no fundo de um laboratório. E isso se dá de tal sorte que, por uma conjunção acidental ou não, mas certa, o destino da guerra e o destino da técnica aparecem agora como indissoluvelmente ligados (1991, p. 57).
Marcel acima agencia o mesmo diagnóstico heideggeriano acerca da essência da técnica. Não só Heidegger (2007) pressentira isso, mas, a comunidade científica. Tanto é que, após o primeiro “teste atômico” sobre Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945, Einstein notara que o cientista sofre de que os métodos tecnológicos, que seu trabalho tornou possível, caiam em mãos dos expoentes moralmente cegos do poder político, econômico e militar; que a destruição universal seja inevitável. O físico conclama então uma nova consciência, a “consciência do inominável desastre” (Einstein, 1994, p. 209) diante da “tragicomédia que está sendo encenada no palco internacional perante os olhos e os ouvidos do mundo” (1994, p. 213). Assistimos nações poderosas, alerta ele, que “induzem seu próprio povo em erro, mediante a difusão sistemática de informações falsas” (1994, p. 220). “A educação para a guerra, contudo, é uma ilusão” (1994, p. 163). Ora, “temos que revolucionar nosso pensamento, revolucionar nossas ações [...] os clichês de outrora já não funcionam hoje e, sem dúvida, estarão irremediavelmente ultrapassados amanhã” (1994, p. 164).
Queiramos ou não, a barbárie ronda, espreita inexoravelmente. Walter Benjamin viria pintar o seguinte quadro:
O conceito de progresso deve ser fundamentado na ideia de catástrofe. Que “as coisas continuam assim” – eis a catástrofe. Ela não consiste naquilo que está por acontecer em cada situação, e sim naquilo que é dado em cada situação. Assim Strindberg afirma (em Rumo a Damasco?): o inferno não é aquilo que nos aguarda, e sim esta vida aqui (2009, p. 515).
Para quem sofrera um fatal golpe persecutório em meio à deportação, Benjamin fora alguém que lutou, até onde pôde, com as próprias forças, no intuito de transformar tal estado de coisas. Por isso milita contra a catástrofe, acredita piamente que não há nada mais catastrófico do que permitir, deixar que tudo continue assim, como antes. O inferno não é exatamente o que está por vir, mas o que, no solo da experiência, aqui e agora, se vive, ou padece concretamente.
Enquanto nos apegamos a tantas fórmulas ou protocolos retóricos, talvez, para ficar em paz com a consciência ou mesmo por remorso, inúmeras vidas apagam-se para sempre, num milésimo de segundo. Em meio às metamorfoses da catástrofe – da ágora grega ao teatro trágico que se tornou o mundo –, tudo leva a crer que permanecemos, ainda, vegetando sob a sombra de outro atentado mais sutil, desencadeador de todos os demais: o espírito de abstração. O espírito bélico é um espírito de abstração justamente por conta disso. Trata-se, como vimos, de um espírito que não aterrissa, não desce, não terraplana. É um espírito desencarnado, apático à densidade da experiência, do mundo, das coisas. Ao pairar sobre o real, tal forma espiritual se coloca como uma atitude autossuficiente do ponto de vista transcendental. A tarefa transcendental se esgota aí. Não parece dever nada à experiência, dispersando inteiramente o sentido telúrico, carnal do real (cf. Silva, 2015).
É aí, pois, que reside o ponto nevrálgico da crise que se atravessa. Todo cataclisma, toda guerra, todo regime separatista, toda narrativa maniqueísta têm sua motivação última emanada daquele “espírito”. É a mesma lógica que, engenhosamente, dirige a barbárie atual e contínua, que, como retrata Merleau-Ponty, “se desvia em relação às exigências permanentes dos homens” (1947, p. 166). A catástrofe não toma curso só no arsenal bélico, no capitalismo selvagem ou no comunismo soviético. Ela, vale reiterar, já encontra forte guarida, ampla acolhida, refúgio último em nós mesmos. Estamos, a bem da verdade, não diante de um problema, mas de um enigma da consciência, de uma tomada de consciência cujo vetor é o espírito de abstração. A catástrofe nossa de cada dia nada mais é do que o produto dileto desse voo ou sobrevoo espiritual.
Por fim, Marcel quer interrogar uma “adesão fervente ao humano [...] contra todo universalismo abstrato [...] contra todas as forças de destruição” (1998, p. 214). Só que, para isso, é preciso aterrissar, isto é, restituir o “próprio estofo do qual a nossa humanidade é feita” (1998, p. 210). Esse estofo está ligado umbilicalmente à terra como mãe, à nossa condição de seres encarnados como centro de gravidade. É esse caminho possível, talvez, o único, que passaremos a examinar agora nas considerações finais.
Retomando, à guisa de conclusão, partimos de um crucial diagnóstico. Marcel se mostra sensível a essa escalada que constitui o núcleo duro do totalitarismo contemporâneo em suas múltiplas faces. Ele adverte o leitor acerca da essência da guerra, o que a insufla catastroficamente. As duas grandes guerras falam por si. Os seus efeitos deletérios emanam de certo humanismo que só deitou raízes no Ocidente sob uma forma espiritual sub-reptícia: o espírito de abstração. Ao não realizar a terraplanagem minimamente requerida, adotando o ponto de vista do observador absoluto, esse sobrevoo está em toda parte como uma espécie de força demiúrgica, potente o suficiente, no sentido de ordenar, executar, eliminar vidas à revelia de qualquer espírito dialógico, de qualquer atitude de escuta e, portanto, de toda verdadeira comunhão. Não se ouve as partes; simplesmente se mira, se atira. Basta operar um botão e tudo o resto vai para os ares. Essa forma espiritual, cada vez mais contraproducente, é o signo que marca uma época, a época em que a catástrofe assume feições eunucas, isto é, estéreis, vazias de sentido. O ovo da serpente sempre está chocando, aguardando o momento certo para liberar a casca, tirar a máscara e mostrar a sua fisionomia sombria, sinistra. Como compreender esse agenciamento?
Há catástrofe maior do que impor uma forma de vida escrava, servil, como nesses últimos tempos, teleguiadas cegamente por tal dispositivo, ou seja, pelo espírito de abstração? Tal espírito opera geopoliticamente e, fica claro, que ele não se desencadeia apenas num nível restrito de problema micro entre duas nações ou países. É um espírito que obsessivamente vagueia intercontinentalmente, arrebanha, como numa religião, países inteiros. Vai se formando, por meio desse artifício, uma legião de aliados que passam a professar a mesma fé, a mesma impostura bélica. Em função disso, se institui então uma abstrata cosmovisão de homem e natureza a serviço da mesma lógica disjuntiva, maniqueísta, cuja base espiritual é absolutamente alheia a toda “natureza nascente” (Silva, 2021b).
Ao criar uma formação cultural anfíbia, isto é, rastejante aos seus pés, o espírito que guia a guerra é um espírito das alturas. Do alto, tal espírito observa que quem está abaixo deve a ele inteira submissão, entrega total, obediência cega. É nesse curso que o espírito de abstração parece mesmo não ter limites. Qualquer faixa de terra – como a faixa de Gaza – se torna um nicho considerável, a “menina dos olhos”, a saciar o desejo infinito de consumo, de violação, de expropriação nem que, para isso, seja necessária a violência em suas subcamadas mais teratológicas. Por que nem as crianças são poupadas de tamanha usurpação? Melhor destruir, desde já, eliminando pela raiz, um futuro próximo, um espírito livre[1].
O que não deixa de chamar a atenção é que também pouco importa o que de antissemitismo se praticara outrora, por mais catastrófico que tenha sido. Se, antes, fomos oprimidos; hoje nos tornamos opressores não só como uma forma subliminar de consciência ressentida, mas como afirmação geopolítica. Ora, Bauman fora um dos primeiros que mais diagnosticou esse problema em sua crítica ao sionismo: usar o Holocausto para justificar os próprios crimes, é perder de vista a história e, com ela, o que podemos aprender de lição para o presente.
O ponto nevrálgico de todo esse sintoma, uma vez diagnosticado, é que ao se pretender positivar o espírito de abstração, os artífices da guerra renunciam qualquer terraplanagem e, com isso, renunciam a humanidade. O sobrevoo absoluto, encontra, ao menos aí livre terreno para sua ação. Ele só desce ao terreno após primeiro, suspender-se a este, numa atitude prévia, a priori. Ele abstrai de tal modo o campo de ação que se ergue como uma força superior, sumamente altiva e indeclinável. Afinal, antes ele se coloca como “espírito”, um espírito que guia de cima, que, do alto de seu comando, tudo cerca, controla, impõe. Ele age passionalmente porque necessita de consentimento, justificação, aprovação. Ele requer uma docilidade especial capaz de operar tal comando. É aí que a ideologia desempenha um papel proeminente. Ela é a arte, por excelência, do convencimento. Ao aspirar as massas, o aparelho ideológico espiritualmente inflado detém o monopólio quase sacral de toda devoção, de toda abnegação, de maneira histérica e fulminante. Falar em acordos de paz é flatus vocis nesse contexto: afinal, existe uma indústria, a indústria bélica que precisa se retroalimentar a todo tempo. São trilhões de dólares despojados em armamentos, em treinamentos, em sofisticação tecnológica para bem servir quando a ocasião fizer o ladrão. Tentar mediar conflitos é mediar o inegociável, já que sempre há uma parte maior interessada no conflito. Mediação branda, nessas condições, pouco ou nada resulta porque o conflito se nutre apologeticamente, é preciso cada vez mais que se dê vida à catástrofe. O que será da economia, do poder, dos lucros e dividendos, sem derramamento de sangue? A produção bélica e seus signatários com isso se regozijam! O conflito então se instala irremediavelmente sob o aval cínico de um poder imperialista.
Fica, pois, de pé um problema crucial: o subterfúgio de toda declaração de guerra. Trata-se de justificar a catástrofe a qualquer custo, mesmo de vidas humanas. A vida é preterida à certa ordem estabelecida. Ela está a serviço da ordem. Como na pandemia, a vida é subtraída à economia, à gestão, à ideia abstrata de que o trabalho dignifica. Assim, a catástrofe não mais inquieta. Não mais apavora; pelo contrário, a ela candidamente nos entregamos como o cordeiro à beira do sacrifício. Em nome de certa liberdade – mesmo que ao custo de toda forma de vida –, a catástrofe se impõe como agenda. Como escreve Bataille:
[...] há algo de podre na ideia de liberdade. [...] se a tocha da Liberdade iluminou o mundo, horror demais teve que ser posto sob a luz. E a própria palavra, em sua totalidade, é dominada pelo mal: as palavras ficam pegajosas, têm o cheiro ruim da malandragem! (2023, p. 150).
No fundo, a tal liberdade parece dar livre terreno à catástrofe. A catástrofe então se naturaliza. Não passa mais de um desastre natural; afinal, como proclamara um chefe de Estado durante a pandemia: “um dia vamos todos morrer mesmo ... e daí?”. Em face desse estado de coisas, a última das questões: após tudo isso, há esperança?
Ora, é providencial reconhecer que não há respostas definitivas, soluções imediatas, receitas miraculosas, já que Marcel traz uma instrutiva lição de fundo, em seus escritos: a de que, em rigor, o filósofo não opera com problemas, mas com mistérios (Silva, 2018). O fenômeno da catástrofe não foge à regra, quer dizer, ele não se põe unicamente como um problema de ordem técnica, mas, antes de tudo, como um enigma crucial que nos ronda, nos circunda de maneira intrépida, íntima. De saída, Marcel pondera: “alguém me dirá: não temos tempo, a catástrofe nos ameaça. Concordo que a catástrofe, possivelmente, seja iminente. Apesar disso, um plano geral não poderá conjurá-la. Que ela deva ou não ocorrer, devemos olhar mais longe, para além desse dilúvio possível” (1991, p. 117). Marcel então convoca uma “arca da aliança” em face do dilúvio a que assistimos: uma maior consciência escatológica. Isso pode parecer pouco, mas não é. É a primeira contraofensiva, por assim dizer, capaz de nos colocar numa posição diametralmente oposta ao espírito de abstração. Esse é um passo inicial e essencialmente imprescindível e, portanto, decisivo. A tomada de consciência é a primeira gota de esperança em face ao desespero. Sem isso, nada feito.
Ora, se lembrarmos que Marcel não é um autor que reflete no silêncio de um gabinete de estudos, mas em contato com outros desde a sua juventude, já teremos, sem dúvida, um testemunho irrefutável capaz de inspirar gerações. Como ele próprio voltaria a se manifestar anos mais tarde, em face do terror que nos assombra, “eu me volto ao acontecimento-princípio, um acontecimento fonte, origem de toda uma série de atos impensáveis sem ele” (Marcel, 1958, p. 10). Esse “acontecimento” ao qual se acena é a experiência mesma, concreta, real, carnal pela qual um pensamento fugidio, de sobrevoo, jamais aporta. Eis porque estamos diante de um intelectual cônscio de seu tempo, de um tempo extremamente duro, árduo e que, por isso mesmo, exige maior responsabilidade por parte de quem reflete, medita. Assim, a primeira “arma” do intelectual, o rearmamento mais poderoso de um povo é a reflexão; postura, como vimos, absolutamente descartada pelo espírito de abstração.
Muitos vaticinaram, em relação à catástrofe, de maneira fatalmente pessimista. Há quem a veja, inclusive, em termos darwinistas, isto é, como um processo evolucionário desastroso a que os humanos atingiram ao deixarem de ser primatas. Ora, predizendo assim, perde-se completamente de vista a possibilidade de salvaguardar a humanidade como a única capaz de liberar a saída diante do impasse a que entrou. Somente ela se torna efetivamente capaz de avançar rumo a um sentido que lhe liberte ou lhe emancipe.
Enfim, a vida, mundo afora, não precisava virar uma catástrofe de tantas proporções como último ato de mais uma peça tétrica como a que estamos assistindo justo num momento em que se completa o cinquentenário ano da morte de Marcel. É sob esse registro visionário de sua obra que a torna ainda atual como um signo de nosso tempo
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Contribuição de autoria
1 – Claudinei Aparecido de Freitas da Silva
Professor dos cursos de Graduação e de Pós-Graduação (Stricto Sensu) em Filosofia da UNIOESTE – Campus Toledo
http://orcid.org/0000-0002-9321-5945 • cafsilva@uol.com.br
Contribuição: Escrita e primeira redação.
Como citar este artigo
SILVA, C. A. F. No olho do furacão: Gabriel Marcel e a catástrofe. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85574, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378685574. Acesso em: dia mês abreviado. ano.