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Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 1, e85569, 2023

DOI: 10.5902/2179378685569

ISSN 2179-3786

Submissão: 02/10/2023 Aprovação: 01/02/2024 Publicação: 22/03/2024

1 INTRODUÇÃO.. 2

2 A AMBIGUIDADE “TELEOLÓGICA” ENTRE O FIM NATURAL DO PRAZER E O MORAL DA DOR, EM SCHOPENHAUER   6

3. A CONTRADIÇÃO ENTRE O PRINCÍPIO DO PRAZER E A COMPULSÃO À REPETIÇÃO, EM FREU.. 16

4. O DUALISMO DOS INSTINTOS DE VIDA E MORTE, EM FREUD, E SUA REFERÊNCIA A SCHOPENHAUER   24

5. CONCLUSÕES. 30

REFERÊNCIAS. 36

 

Artigos

Sobre o significado das sensações de prazer e desprazer em Schopenhauer e Freud

On the meaning of sensations of pleasure and displeasure in Schopenhauer and Freud

Guilherme Marconi GermerIÍcone

Descrição gerada automaticamente

IUniversidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil

RESUMO

Propomos comparar as respostas de Schopenhauer e Freud à questão do significado do prazer e desprazer, dadas por eles, respectivamente, em A ordem da salvação (W II) e Além do princípio do prazer. Ambos lhe respondem concordantemente, pois assinalam que a conduta humana ou os processos psíquicos se dilatam entre a busca do prazer e a fuga da dor (em Schopenhauer, a partir da afirmação da Vontade, e em Freud, conforme o princípio de prazer), e a busca da dor e fuga do prazer (em Schopenhauer, no ascetismo ou graças ao “destino”, conduzido pela Vontade inconsciente, e em Freud, a partir da compulsão à repetição). Mesmo que na contradição schopenhaueriana se expresse mais uma polaridade entre o intelecto e a Vontade, e na freudiana, duas tendências subordinadas ao instinto de morte, defenderemos que ambos os autores estão mais afinados nesse tema do que no do dualismo entre Morte e Eros.

Palavras-chave: Ambiguidade; Teleologia; Sofrimento

ABSTRACT

We propose to compare the answers of Schopenhauer and Freud to the question of the meaning of pleasure and displeasure, given by them, respectively, in The Road to Salvation (WII) and Beyond the Pleasure Principle. Both respond in agreement, as they point out that human conduct or psychic processes expand between the search for pleasure and escape from pain (in Schopenhauer, based on the affirmation of the will, and in Freud, according to the pleasure principle), and the search for pain and escape from pleasure (in Schopenhauer, in asceticism or thanks to “fate,” driven by the unconscious will, and in Freud, from the repetition compulsion). Even though in the Schopenhauerian contradiction expresses itself a polarity between the intellect and the will, and in the Freudian one, two tendencies subordinate to the death instinct, we will argue that both authors are more in tune with this theme than with the dualism between Death and Eros.

Keywords: Ambiguity; Teleology; Suffering

1 INTRODUÇÃO

No segundo parágrafo de Além do princípio do prazer[1], Freud explicita a pergunta que pretende responder nesse texto; porém, o faz de um modo indireto e um tanto polêmico, o que fez com que vários comentadores desapercebessem qual é a questão principal em tela. Escreve Freud a esse respeito: “Nos confessaríamos, de bom grado, muito gratos a uma teoria psicológica ou filosófica, que soubesse nos dizer o que significam as sensações de desprazer e prazer, que nos são tão imperativas. Infelizmente, nada de útil aqui nos é oferecido” (Freud, 1967, I, p. 3-4; salvo quando houver outras referências, as traduções aqui serão de nossa autoria). Essa afirmação da inutilidade das filosofias e psicologias anteriores, na abordagem da questão do significado de prazer e desprazer, levou Stephen Atzert a defender que Freud “não é justo com Schopenhauer” (Atzert, 2005, p. 191); afinal, em sua resposta, ele “recontextualiza uma série de referências pré-formuladas por Schopenhauer, e com base em alterações e exemplos apropriados” (Idem). Segundo sua leitura, o pai da psicanálise entra em “contradição” quando inicia o texto com aquela declaração, e o conclui afirmando não poder ignorar ter entrado no “porto da filosofia de Schopenhauer, para quem a morte é ‘o autêntico resultado’ e, portanto, o objetivo da vida, enquanto o instinto sexual é a encarnação da vontade de vida” (Freud, 2010a, p. 220). Marcel Zentner é outro comentador que se opôs à referência de Freud a Schopenhauer nesse texto. Sua “objeção” é a de que Freud parte de uma “interpretação falha do filósofo” (Zentner, Germer, 2018, p. 158), pois sugere que ele antecipou sua teoria dos instintos de vida e morte, muita embora esse dualismo e a dicotomia de Schopenhauer da afirmação e negação da Vontade (ou quaisquer outras dualidades encontráveis nele) “possuem um significado fundamentalmente distinto” (Idem). Além disso, Zentner acredita que Freud não foi “capaz de nos fornecer referências de fontes correspondentes” (Idem, p. 162) para essa indicação, pois, em uma nota de rodapé, citou o texto de Schopenhauer, Especulação transcendente sobre os traços de intencionalidade no destino dos indivíduos, em que “o vínculo com seu dualismo tardio dos instintos permanece (...) obscuro”. Essa segunda crítica foi objetada por Atzert, para quem “Freud não ultrapassou, mas copiou (kopierte) estruturalmente” (Atzert, 2005, p. 191), em APP, o texto de Schopenhauer. Contudo, embora sua argumentação de que “a conexão estrutural de ambos os textos é evidentemente clara” (Idem, p. 185) seja bem convincente, sua expressão de que Freud “copiou (kopierte)” o ensaio de Schopenhauer é bastante ousada. Até mesmo porque Zentner também fundamentou com muitos detalhes as principais dessemelhanças existentes entre o dualismo instintivo de Freud e as dicotomias mais centrais em Schopenhauer. Por outro lado, também tendemos a concordar com Atzert em que Freud não tenha partido de uma “interpretação falha do filósofo” (Zentner, Germer, 2018, p. 158), em APP: contudo, deixaremos para desenvolver essa nossa posição em outro texto. Aqui, propomos  investigar algo que nos parece nuclear nessa discussão, e que não foi objeto de uma análise pormenorizada da parte desses comentadores (e tampouco foi explicitado por Freud)[2]: o fato de que tanto Schopenhauer como Freud responderam de modo significativamente congruente a uma pergunta que esteve no foco de ambos, a saber, a do significado (Bedeutung) das sensações de prazer e desprazer. Mais especificamente, Schopenhauer defendeu que existe uma ambiguidade entre o “verdadeiro fim da vida” (WII, 49, p. 755), a saber, o volitivo, individual e corpóreo, que visa a obtenção do prazer e a fuga da dor, e o “verdadeiro e último bem” (Idem, p. 760), vale dizer, o “demoníaco” ou moral, que busca a dor e a fuga do prazer (como meios de salvação da carência fundamental da afirmação da Vontade). E Freud asseverou que há uma contradição entre as duas tendências mais fundamentais da psique: o princípio do prazer, que nos leva à busca do prazer e fuga da dor, e a compulsão à repetição (de vivências desagradáveis), com base em modelos traumáticos do passado. Ambos os autores chegaram a essas conclusões semelhantes ao se perguntarem qual é o conteúdo das sensações de prazer e desprazer (ou de suas versões mais amplas, a felicidade e o sofrimento): Schopenhauer, no Capítulo 49 – A ordem da salvação, de O Mundo como Vontade e representação – Tomo II[3], e Freud, em APP.Mostramos, no início desse artigo, como Freud formula essa dúvida explicitamente. Que ela também seja central em A ordem da salvação, se infere já do fato de ele apresentar, em suas poucas páginas, aproximadamente quarenta palavras ou expressões “teleológicas”, tais como meta, objetivo, “fim da vida”, etc.[4] (que também abundam no texto freudiano). Com o fim de medir o valor dessa concordância, propomos analisar, em uma primeira seção, a ideia schopenhaueriana de que há uma ambiguidade “teleológica” no cerne da conduta humana. Em uma segunda seção, investigaremos a exposição de Freud de que também existe uma contradição “teleológica” na base dos processos psíquicos. Em uma terceira, sinterizaremos a especulação freudiana desenvolvida após a constatação anterior, que o conduz à defesa de que a vida orgânica é movida por dois instintos fundamentais: os de vida e morte (momento em que aparece sua polêmica referência a Schopenhauer). E por fim, nas conclusões, resumiremos as críticas de Zentner ao acento freudiano de sua proximidade de Schopenhauer com base no dualismo instintivo anterior; e diante disso, questionaremos se a antecipação schopenhaueriana da contradição “teleológica” das tendências fundamentais da psique não seria uma base mais segura a comparações entre ambos os autores a partir de APP, do que a antecipação indicada por Freud (baseada em um suposto dualismo entre Eros e Morte, existente em Schopenhauer).

2 A ambiguidade “teleológica” entre o fim natural do prazer e o moral da dor, em Schopenhauer

 

            Schopenhauer apresenta, em sua obra, tanto uma teoria psicológica das sensações de prazer e desprazer, quanto uma reflexão moral sobre seus significados “teleológicos”[5]. A primeira está condensada no §58 do primeiro tomo de O Mundo... (1818), e repousa na concepção de que o desprazer é positivo, no sentido de original e imediato, e por isso, mais abundante; e o prazer é negativo, isto é, mediato e derivado, já que consiste na negação da dor: logo, ele é mais raro. A proporção quantitativa entre ambos é aproximadamente a seguinte: “Contra cada desejo satisfeito permanecem pelo menos dez que não o são” (W, §38, p. 266). No primeiro caso, tem-se o prazer, e no segundo, uma sensação mínima de dor. Contudo, essa desproporção quantitativa deriva da qualitativa, segundo a qual o prazer é negativo e a dor positiva – como dito – o que é defendido pelo autor com os seguintes termos:

Toda satisfação, ou aquilo que comumente se chama felicidade, é própria e essencialmente falando apenas negativa, jamais positiva. Não se trata de um contentamento que chega a nós originariamente, por si mesmo, mas sempre tem de ser a satisfação de um desejo; pois o desejo, isto é, a carência, é a condição prévia de todo prazer. Com a satisfação, entretanto, finda o desejo, por consequência o prazer. Eis por que a satisfação ou o contentamento nada é senão a liberação de uma dor, de uma necessidade, pois a esta pertence não apenas cada sofrimento real, manifesto, mas também cada desejo, cuja inoportunidade perturba nossa paz, sim, até mesmo o mortífero tédio que torna a nossa existência um fardo (...) Só a carência, isto é, a dor nos é dada imediatamente (W, §58, p. 411).

            Já a questão do significado (“teleológico” ou moral) das sensações de prazer e desprazer, ou como Schopenhauer prefere, da felicidade e sofrimento (que são suas versões mais amplas), é abordada pelo filósofo no Capítulo 49 – A ordem da salvação de O Mundo... – Tomo II. E a sua conclusão é a de que, na vida humana, se apresentam “dois fins fundamentais e diametralmente opostos” (WII, 49, p. 760), um dirigido ao prazer e à felicidade – o qual é o fim natural da vida – e outro à dor e o sofrimento – que é o nosso fim “demoníaco” e moral. O filósofo chega a chamar ambas as tendências de “o verdadeiro fim” ou “bem” (Idem, p. 755, 760) da vida. Logo, se há dois verdadeiros fins ou bens diametralmente opostos na base da conduta humana, essa última só pode ser marcada por uma irônica contradição, inclusive, “teleológica”. Analisemos o percurso trilhado por Schopenhauer até essa conclusão: inicialmente, ele escreve que a noção de que existimos para sermos felizes é inata em nós, “porque coincide com a nossa existência mesma, e todo o nosso ser é justamente a sua paráfrase, sim, o nosso corpo é o seu monograma” (Idem, p. 755). Mas o que é a felicidade? Sua resposta é a de que ela engloba o máximo possível de prazer e o mínimo de dor possíveis; ou mais sucintamente: “A satisfação sucessiva de todo o nosso querer é (...) aquilo que se pensa pelo conceito de felicidade” (Idem). Contudo, essa busca não é apenas inata, mas também é um fim “teleológico” fundamental: perseguimos a felicidade, naturalmente, corporalmente, incessantemente, como um alvo basilar. E mais: a um olhar mais amplo, essa busca não é menos equivocada do que natural: “Há apenas um erro inato, o de que existimos para sermos felizes” (Idem). Mas por que essa busca está errada? O pessimista apresenta uma série de argumentos para fundamentar essa visão: de início, assevera que o mundo está “pleno de contradições” (Idem). Por mais que essa admissão custe ser feita, pois nos agradam muito mais os dogmas otimistas da religião e filosofia, ela é uma sombria verdade. Para evitá-la, culpamos nossa falta de sorte, as atitudes de certas pessoas. Cremos que a grande felicidade só não foi encontrada pela intromissão de pequenos acidentes, que seriam facilmente evitáveis, e sem os quais teríamos obtido o que nos é por direito: a alegria. Contudo, quem examina a vida com honestidade, dificilmente deixará de concluir que “o verdadeiro fim da vida, que consiste em ser feliz, não foi atingido” (Idem) por praticamente ninguém. E tanto é assim, que “quase todas as faces anciãs trazem a expressão daquilo que em inglês se chama disappointment” (decepção, idem, p. 756): todas essas considerações podem ser derivadas da tese anteriormente exposta, da negatividade do prazer e positividade da dor. No presente capítulo, porém, Schopenhauer argumenta de modo mais empírico:

As alegrias e os prazeres, mesmo uma vez conquistados, são em si mesmos enganosos, não dão aquilo que prometeram, não satisfazem o coração, e por fim a sua posse é pelo menos amargada pelos inconvenientes que os acompanham ou deles resultam; enquanto, ao contrário, as dores e os sofrimentos provam-se bastante reais e amiúde excedem todas as expectativas (Idem).

            Outra evidência psicológica da precedência da dor sobre o prazer, na base de nossa constituição psíquica, é a de que não somos conscientes dos “três maiores bens da vida – a saúde, a juventude e a liberdade (...) quando os possuímos, mas somente depois que os perdemos; pois eles também são meras negações” (Idem, p. 575). Ou seja, nenhum ser humano goza, de fato, de saúde, juventude e liberdade. Ele sequer as nota. Porém, tão logo adoeçamos, envelheçamos ou nos aprisionemos, sentimos esses novos estados imediata e intensamente, e por meio deles nos recordamos dos três tesouros perdidos, e os valorizamos. Portanto, é com base na superioridade qualitativa, além de quantitativa, da dor sobre o prazer (ou da tristeza sobre a alegria), que Schopenhauer conclui que o verdadeiro fim da vida não pode ser o de ser feliz (pois isso é um estado negativo); mas sim o de sofrer – afinal, é o sofrimento o que melhor nos liberta do “erro inato” de buscar a felicidade avidamente, acreditando que ela exista em algum lugar, tempo, pessoa, etc. (o que é sempre seguido de frustração). Essa segunda finalidade “teleológica”, que aparece ao intelecto como muito mais substancial, dado que é a única, de fato, sugerida pelo “destino”, é destacada pelo autor com os seguintes termos:

Sem dúvida que tudo na vida está disposto a nos fazer retroceder daquele erro originário, e nos convencer que o fim da nossa existência não é sermos felizes. Sim, para quem a contempla nos detalhes e imparcialmente, a vida expõe-se antes como especialmente destinada a que não sejamos nela felizes, na medida em que a mesma, através de toda a sua índole, porta o caráter de algo que nos estraga o gosto, que nos repugna, algo que temos de desistir como de um erro, para que o nosso coração seja salvo do vício de gozar, sim, de viver, e renuncie ao mundo. Nesse sentido, seria mais correto colocar o fim da vida antes em nossa dor e não no prazer (Idem, p. 756, grifo nosso).

            Portanto, Schopenhauer crê que a conduta humana é selada por uma estranha ambiguidade “teleológica”: nossa natureza corpórea, individual e volitiva nos impele à ilusão da felicidade, enquanto que o exame mais amplo, detalhado e imparcial da vida, empreendido pelo intelecto, revela que o mais correto não é pôr a finalidade no prazer, mas na dor, pois é ela que nos liberta do feitiço de que existe uma felicidade positiva, a ser encontrada, uma vez removidos os pequenos acidentes. O intelecto chega nessa conclusão, portanto, ao se abrir ao sussurro do “destino”, que nos apresenta a dor como muito mais abundante e real do que o prazer, como se realmente quisesse nos ensinar algo. E esse algo é o que o autor chama de “telos” moral da existência: essa última não é uma fonte confiável de proveito, mas um espetáculo de tormento, endereçado a nos libertar do vício do prazer. Portanto: “Quanto mais se sofre, tanto mais se está perto de alcançar o verdadeiro fim da vida, e quanto mais feliz se vive, tanto mais distante fica esse fim” (Idem). Frente a essa ambiguidade “teleológica”, revela-se, com clareza, o que Zentner afirma ser a “polaridade fundamental” (Zentner, Germer, 2018, p. 166) humana, conforme Schopenhauer: o embate entre a Vontade e o intelecto. Essa tensão gera a contradição “teleológica” em tela. Portanto, se Freud é bastante pessimista quando defende que o ser humano busca, instintivamente, a repetição da dor em vista da obtenção de certo “apoderamento (Bemächtigungstrieb)” (FREUD, 1967, II, p. 14) sobre ela, Schopenhauer é ainda mais radical, quando defende que a vivência da dor nos traz uma libertação ou “salvação” (WII, 49, p. 756, 759), contra a própria dor, que é a base de nossa existência. Na maioria das vezes, o intelecto chega a essa conclusão após ouvir atentamente a mensagem do destino, como já dito; porém, cabe anotar que esse destino é apenas um símbolo da Vontade inconsciente, que move o homem e toda a natureza. Portanto, quem superou as ilusões otimistas de que seremos felizes nesse mundo fugaz, contraditório e movido por uma vontade cega e carente, e busca se distanciar dele, encontrará o mundo “em harmonia, senão com os seus desejos, ao menos com a sua intelecção” (WII, 49, p. 756). Novamente, salta aos olhos, aqui, a polaridade entre a Vontade (raiz de nossos desejos), e o intelecto (sede de nossa intelecção); a partir da qual vemos que a primeira sempre nos conduz à frustração (ou ao tédio), e somente o segundo pode nos trazer a “milagrosa serenidade” (Idem, p. 757). Essa calmaria é alcançável apenas na medida em que o intelecto observa a dor trazida pelo destino como uma mensagem “teleológica”, que nos impele a romper com os laços do querer. Enquanto essa visão não se apresenta, seguimos mergulhados em uma vida patética e trágica, que se inicia e termina com lágrimas, e abunda em desilusões e erros. Portanto, o bom auditor da natureza reconhece na vida certo “toque de intencionalidade” (Idem), atribuído ao “destino”, e que os antigos representavam sob a figura do “daimon” (demônio). Essas imagens, contudo, apenas simbolizam a Vontade cega, conflituosa e carente, senhora da natureza, e que ensina ao intelecto que o todo da vida é vão, seus custos (em termos de dor) não cobrem seus frutos (em termos de prazer); em suma, que a não existência é preferível à existência. Portanto, se libertar do vício do gozo e separar-se da vida é o grande objetivo moral da existência: “O sofrimento é de fato o meio de purificação, único através do qual, na maioria dos casos, o ser humano é salvo, isto é, abandona o caminho errado da Vontade de vida” (Idem). Ele não é o único caminho possível para tanto, pois também se pode chegar a esse fim pela vereda do ascetismo. Contudo, como essa segunda via está reservada aos santos e eleitos (que intuem a finalidade moral da existência por uma intelecção genial, e a busca disciplinadamente), à maioria da humanidade, cabe apenas sofrer com a vida, e a partir disso, esperar que o intelecto aponte a uma direção melhor, contrária à Vontade. Na sequência do texto, Schopenhauer destaca o papel que a morte tem nessa segunda condução preferível:

Se o sofrimento, portanto, já tem uma tal força (...) então esta atingirá um maior grau ainda na hora da morte, o mais temido de todos os sofrimentos (...) A morte decerto deve ser considerada como o fim propriamente dito da vida: no momento em que a morte se dá, decide-se tudo o que no curso inteiro da vida fora apenas preparado e introduzido. A morte é o resultado, o résumé da vida, ou a soma final que expressa de uma vez toda a instrução que a vida dera parcial e fragmentariamente, vale dizer, que toda aspiração, cuja aparência é a vida, foi algo vão, fútil, contraditório consigo mesmo, e a ela renunciar consiste numa redenção (Idem, p. 758).

            Vale destacar que é a esse conceito de morte que Freud parece fazer referência em APP: a morte como símbolo da lição dada pelo destino, ou pelo todo da existência, de modo que, nesse sentido, ela também pode ser considerada como um fim da vida (como a própria citação explicita com clareza). Por outro lado, a atribuição de Freud da morte como o fim da vida é um pouco distinta, como em breve investigaremos. Na sequência do capítulo, Schopenhauer prossegue destacando o papel da morte nessa lição do destino, e então, compara a hora em que uma pessoa se aproxima dela ao momento de frutificação de uma planta: assim como o fruto realiza, de um só golpe, centuplicadamente o que a lenta vegetação “realizou gradual e fragmentariamente”, a morte também condensa, em um só ato, a sabedoria que a vida deu muito lentamente, “com seus obstáculos, esperanças malogradas, planos caducados e contínuos sofrimentos” (Idem). Afinal, a morte destrói tudo em um só instante, enquanto que a vida malogra tudo de modo invisível e paulatino. Por isso, a simples visão de um cadáver já provoca respeito; e mais ainda o olhar retrospectivo sobre o “curso completo de vida (...) quando se está morrendo”. Especialmente esse segundo evento exerce um efeito tão grande “sobre toda a vontade que se objetiva na moribunda individualidade que” (Idem), então, finda, que ele é capaz de lhe dar “uma nova direção, que, assim, é o resultado moral e essencial da vida” (Idem, p. 759). Essa nova direção é a mortificação do querer. Não é fácil e entender o porquê de Schopenhauer não escrever o período anterior em forma condicional subjuntiva, mas na forma que em português seria o “presente do indicativo”, como traduzido anteriormente (Der vollbrachte Lebenslauf (...) giebt  (...) eine neue Richtung). Seria como se essa nova direção da vida, a saber, a negação do querer, ocorresse sempre (ao menos em certo grau, caso se possa falar de graus sobre isso) a quem está morrendo? Essa interpretação, porém, colide com o que o autor escreve na sequência: por causa da potência liberadora que se abre a todo homem no momento da morte, a Igreja vê a morte súbita como uma desgraça, e faz orações para afastá-la. E como apenas ao homem há a possibilidade de prever a própria morte, e refletir sobre o todo da vida (sobretudo em sua iminência), apenas ele:

Esvazia de fato o copo da morte, é a humanidade o único degrau no qual a vontade se nega e pode renunciar por completo à vida. À vontade que não se nega, cada nascimento lhe confere um novo e diferente intelecto – até que a vontade reconhece a verdadeira índole da vida e, em consequência disso, não mais a quer (Idem).

            Ou seja, o tema da morte é extremamente complexo em Schopenhauer: por um lado, ela não pode ser completamente identificada à negação do querer, pois como se depreende das palavras anteriores, a experiência da morte pode ou não levar a Vontade no indivíduo à negação. Se ele alcança essa meta, com a negação, o caráter individual (inteligível) é suprimido, e o indivíduo não retorna mais ao ciclo de reencarnações (como reza o mito da palingenesia esposada pelo autor). Se a Vontade não se nega e o caráter permanece, ele retorna após a morte física daquele corpo e, num ciclo seguinte, com um novo intelecto, pode ou não obter a negação. Porém, nessa mesma citação, vislumbramos algo muito curioso: a imagem empregada de que só o homem esvazia o cálice da morte parece indicar que o filósofo não a vê apenas como uma ilusão, ou um meio para um fim apartado dele, que seria a negação da Vontade. Se trata, aqui, da morte como a negação da Vontade, ou ao menos como sua porta de entrada: aquilo que aparece ao asceta sob o conceito de morte ou suicídio ascético, teria como versão equivalente à grande população, essa possibilidade da morte ser a autonegação (e não simplesmente conduzir a ela, como se tratasse de duas coisas distintas)[6]. Buscaremos investigar essa relação tão complexa entre a morte e a negação da Vontade em outro texto, e em diálogo íntimo com Zentner. Na sequência do capítulo, Schopenhauer acrescenta que não apenas a morte, mas também o envelhecimento exerce um importante efeito sobre o fim natural da vontade, capaz de revertê-lo. Afinal, ele o enfraquece, e promove uma lenta e gradual “eutanásia da vontade” (Idem): com o passar dos anos, o vício dos gozos e a capacidade de desfrutá-los diminuem, bem como o impulso sexual e o amor-próprio. Muitas vezes eles são suplantados pelo “conhecimento da vaidade de todos os bens”, o amor aos filhos e jovens, e outras formas de sublimação, que nos libertam da fúria do querer e da individualidade. Nos casos em que isso não acontece, e o idoso se mantém atado à vida, lamentando os gozos perdidos, idolatrando o dinheiro, a fama ou qualquer outra quimera, sua vontade então é “lançada na última fortaleza da qual só a morte ainda poderá expulsá-la. O fim da existência está perdido” (Idem, p. 760). Na conclusão do capítulo, Schopenhauer defende que a viragem da Vontade produzida pelo “sofrimento da vida” é o “caso mais frequente. Pois se trata do caminho dos pecadores, que somos todos nós” (Idem). Contudo, há também “outro caminho, que conduz ao mesmo fim, mediante mero conhecimento e daí apropriação do sofrimento de todo um mundo”: é a “estreita via dos eleitos, dos santos, e que, portanto, há de ser considerada como uma rara exceção. Sem aquele primeiro caminho não haveria, portanto, para a maioria dos humanos esperança alguma de salvação” (Heil, idem). Quanto ao caminho dos santos e ascetas, ele consiste no seguinte: eles “intencionalmente fazem a sua vida a mais pobre, dura e vazia de alegrias quanto possível, porque têm diante dos olhos o seu verdadeiro e último bem” (Idem), o cessamento do querer. Portanto, é inegável que o “verdadeiro fim da vida” (Idem, p. 755), à vontade cega e contraditória que nos preenche, é a busca do prazer e a felicidade. Contudo, a esse fim fundamental, pode ser equiparado outro, que também existe para o intelecto humano, potencializado pelo conhecimento do todo da vida, bem como de sua substância: o de que o “verdadeiro e último bem” (Idem, p. 760) é o sofrimento. Afinal, a dor é o que melhor nos liberta das amarras de uma existência frustrante, que atende apenas a um décimo de nossos desejos. Em vista disso, Schopenhauer conclui que a conduta humana é dilacerada por uma contradição “teleológica”, que nos impele tanto ao prazer (Vontade) quanto à dor (intelecto):

Em realidade, o que dá a nossa vida o seu caráter estranho e ambíguo é que nela se cruzam a todo momento dois fins fundamentais e diametralmente opostos: o fim da vontade individual, direcionado a uma felicidade quimérica, numa existência efêmera, onírica, ilusória, em que em relação ao passado felicidade e infelicidade são indiferentes, e o presente a cada instante torna-se passado; e, por outro lado, o fim do destino, flagrantemente direcionado à destruição de nossa felicidade e assim à mortificação da nossa vontade e supressão da ilusão que nos prendeu às correntes deste mundo (Idem).

            Examinemos, agora, a contradição teleológica que Freud também enxerga na base de nossos processos psíquicos, para depois decidirmos se há ou não uma importante concordância entre esses dois autores sobre esse tema.

3. A contradição entre o princípio do prazer e a compulsão à repetição, em Freud

            No primeiro capítulo de APP, Freud elucida, psicologicamente, as sensações de prazer e desprazer, com base na formulação do princípio de prazer: “Decidimos relacionar prazer e desprazer com a quantidade de excitação – não ligada de nenhuma maneira – existente na vida psíquica, de tal modo que o desprazer corresponde a um aumento, e o prazer, a uma diminuição dessa quantidade” (Freud, 2010a, p. 163). Nos capítulos seguintes, Freud esclarece o que significa para uma excitação estar ou não “ligada”, algo de que trataremos na sequência. Essa questão à parte, é notável a semelhança entre sua explicação psicológica e a de Schopenhauer dessas duas sensações: ambos veem a dor como uma sensação original e positiva, e o prazer, como um derivado seu, negativo, e mais raro[7]. A excitação é sentida imediatamente como desprazer, e quando o aparelho psíquico logra eliminá-la, desfruta, brevemente, do prazer (mas logo cede o lugar a uma nova excitação, sentida novamente como desprazer, etc.). A tendência predominante sobre os processos psíquicos, responsável por essa busca de descarga da excitação, é denominada por Freud de princípio do prazer: “Acreditamos que [ele] é sempre incitado por uma tensão desprazerosa e toma uma direção tal que o seu resultado final coincide com um abaixamento dessa tensão, ou seja, com uma evitação do desprazer ou geração do prazer” (Idem, p. 162). Após a definição desse princípio, Freud se pergunta por que ele fracassa tanto em nossas vidas, e em inúmeras situações não conseguimos evitar a dor e obter o prazer? As três respostas que ele confere a essa pergunta, contudo, não contrariam o predomínio do princípio do prazer sobre os processos anímicos: (1) “Por influência dos instintos de autoconservação do Eu”, o  princípio do prazer “é substituído pelo princípio da realidade, que, sem abandonar a intenção de obter afinal o prazer, exige e consegue o adiamento da satisfação, a renúncia a várias possibilidades desta e a temporária aceitação do desprazer, num longo rodeio para chegar ao prazer” (Idem, p. 165). Além disso, (2) a psique também abriga uma série de conflitos entre grupos instintuais, de modo que o que sentimos muitas vezes como dor, também é prazer para outro grupo de instintos (inconscientes, como no caso das neuroses). Por fim, (3) “a maior parte do desprazer que sentimos é desprazer de percepção, seja percepção da premência de instintos insatisfeitos ou percepção externa, que é penosa em si ou que provoca expectativas desprazerosas” (Idem). No segundo e terceiro capítulos, Freud também reconhece a existência de uma operação psíquica que resulta em dor, mas que não se subordina ao princípio do prazer: a compulsão à repetição. São quatro os fenômenos que o levam a essa constatação: (1) a neurose traumática, (2) os jogos infantis, (3) a neurose de transferência e (4) o “eterno retorno do mesmo” (Idem, p. 182). O que eles têm em comum é o fato de repetirem modelos já experimentados de dor, visando, com base nisso, se protegerem contra a própria dor. Vejamos como Freud chega a essa conclusão: (1) ele inicia sua análise pelas neuroses traumáticas, como as desenvolvidas pelos combatentes de guerra. Essas patologias geralmente surgem após “sérias comoções mecânicas” (Idem, p. 168), com risco de vida, e possuem duas curiosas características: α – são impulsionadas pelo fator surpresa (Schreck), e β – uma ferida ou contusão que ocorre na vítima costuma inibir seu desenvolvimento. Uma terceira característica não menos surpreendente é a de que, no sonho, o doente “retorna à situação do acidente, da qual desperta com renovado terror” (Idem, p. 169). Por que isso acontece, se os sonhos eram vistos até esse momento da obra freudiana, como realizações de desejos? Freud o responderá apenas no terceiro capítulo. Antes disso, ainda se detém no detalhamento dos outros três fenômenos da compulsão à repetição: (2) os jogos infantis também revelam essa tendência; e para exemplificá-lo, ele cita um caso de um garoto de um ano e meio de idade, pacífico, e que gostava de jogar seus brinquedos para longe, dizendo sempre “o-o-o-o” (de “fort”, “foi embora”, em alemão). Muito raramente, ele completava essa brincadeira com o “Da!” (“Está aqui!”), fazendo reaparecer o objeto. Embora apresente algumas possíveis interpretações dessa atitude, Freud também a explicará, de modo mais preciso, em conjunto com os outros três fenômenos, no capítulo seguinte. Passemos, portanto, ao terceiro fenômeno: (3) ante a neurose de transferência, o psicólogo escreve que com a evolução da psicanálise, essa passou a valorizar cada vez mais, na situação terapêutica, o momento em que o paciente repete como vivência atual o reprimido inconsciente, para além da mera recordação. Essa repetição se dá, via de regra, “no âmbito da transferência, isto é, da relação com o médico” (Idem, p. 177); por exemplo, as frustrações edipianas são frequentemente repetidas sobre o terapeuta, de modo que é comum que os neuróticos desenvolvam ciúmes por ele, projetem nele algumas expectativas (como a de ganharem um presente seu, etc.); em suma, eles “sabem criar de novo a impressão de desdém, forçar o médico a dizer-lhes palavras duras”, e frustrar seus sentimentos, como a mãe ou o pai fizeram com eles na infância. Esse momento da análise é inevitável, pois “o doente não pode lembrar-se de tudo o que nele está reprimido, talvez precisamente do essencial” (Idem). Sendo assim, boa parte do material reprimido só pode ser conhecido como uma nova vivência, e sua transferência ao terapeuta ajuda nessa sondagem. A questão que se coloca, porém, ante a “compulsão à repetição” (Idem, p. 178) desses pacientes de suas vivências desagradáveis infantis é a mesma que nos casos anteriores: por que eles buscam a dor? Por que retornam a “experiências do passado que não possibilitam prazer, que também naquele tempo não podem ter sido satisfações” (Idem, p. 179)? (4) Por fim, isso também ocorre no quarto e último fenômeno citado, e que envolve não apenas os neuróticos, mas também as pessoas sãs: o “eterno retorno do mesmo” (Idem, p. 182). Muitas pessoas parecem ser perseguidas por um destino maldito, que a psicanálise acredita ser “preparado por elas mesmas e determinado por influências da primeira infância” (Idem, p. 180). Por exemplo: “Homens para os quais o desfecho de toda amizade é serem traídos pelo amigo (...) amantes cuja relação amorosa (...) percorre sempre as mesmas fases e conduz ao mesmo” (Idem, p. 182) desfecho, etc.. Portanto, nesses quatro casos, cabe questionar por que as pessoas buscam, inconscientemente, a dor, e a fuga do prazer, embora o princípio que rege os processos psíquicos anele o contrário? Diante disso, Freud se vê forçado a “supor que na vida psíquica há realmente uma compulsão à repetição, que sobrepuja o princípio do prazer” (Idem, p. 183); e que parece “mais elementar, mais instintual do que” (Idem, p. 184) ele. A que função corresponde ela e qual a sua relação com o princípio do prazer, é o que ele investigará no quarto capítulo de APP.

Freud inicia essa especulação a partir do fenômeno cuja causa é a mais “externa” entre os anteriores: a neurose de guerra. Para explicá-la, ele mobiliza uma série de argumentos bem complexos: primeiro, apresenta uma rica descrição da gênese e composição do aparelho psíquico, em que se destacam os conceitos de energia móvel e ligada. Grosso modo, na consciência (que a seu ver se localiza no córtex cerebral, para que fique o mais próximo possível do mundo externo, mas ainda assim protegida por uma casca orgânica, que provavelmente surgiu, em nossos antepassados mais simples, do bombardeio sofrido nela dos estímulos externos), não há resistência na passagem da excitação de um elemento a outro: as impressões recebidas pelos sentidos corpóreos sucedem uma à outra sem obstáculos ou “facilitações” (essa última expressão denota os caminhos de energia percorridos com bastante frequência ou intensidade nas camadas mais baixas da psique, e que são por isso preferíveis aos menos trilhados). Na consciência, a energia é “livremente móvel” e “capaz de descarga”. Já nos “sistemas adjacentes internos”, há uma resistência a ser vencida na passagem da excitação de um elemento a outro (entre os neurônios), e quanto mais for superada essa resistência, mais se produzirá nelas o “traço permanente da excitação (a facilitação)” (Idem, p. 188). Com o tempo, podemos imaginar que alguns caminhos de passagem de excitação se tornaram mais “facilitados” do que outros, o que influencia as tendências inconscientes de associação no inconsciente (processo esse produzido sobretudo pelas primeiras vivências infantis). Quando há resistência, lidamos com quantidades de energia parada (ligada, ou tônica); do contrário, se trata de energia livremente móvel (que impera na consciência). Além dessa distinção, Freud também destaca que, se por um lado, há uma importante proteção contra as quantidades de excitação de origem externa, para as internas, ela inexiste: essas últimas, portanto, são mais intensas (o que também se corresponde ao fato de serem mais importantes na orientação da psique sobre o sistema nervoso, e mormente por meio das sensações de prazer e desprazer). Por conseguinte, essas excitações (oriundas dos instintos) são especialmente capazes de produzirem patologias. Por fim, uma última peça trazida por Freud a seu “quebra-cabeça” explicativo (da compulsão à repetição) é a seguinte: o que é a dor física? Ela provém da ruptura da barreira contra os estímulos externos, seguida da inundação de excitação no aparelho psíquico, desde fora. Quando isso ocorre, “de todos os lados é convocada energia de investimento, a fim de criar”, no local da invasão, um contrainvestimento energético: somente isso explica o enfraquecimento dos demais setores do sistema nervoso, no caso de uma lesão física (o que se origina do fato de que toda a energia desses setores se concentra no contrainvestimento contra a energia invasora). Essas premissas são suficientes para Freud propor a seguinte explicação à compulsão à repetição, no caso da neurose de guerra: essa patologia provém de um transbordamento de energia no aparelho psíquico, a partir de um evento externo. Porém, analogamente ao que ocorre no caso da dor física, esse transbordamento requer um contrainvestimento energético para bloquear a energia livremente móvel e invasora na psique; em outras palavras, é preciso “ligar psicologicamente as quantidades de estímulo que irromperam, para conduzi-las à eliminação” (Idem, p. 192). A invasão exige a transformação da energia livremente móvel em parada (ou tônica). Portanto, quanto maior for a energia que o contrainvestimento for capaz de mobilizar, maior será sua capacidade de ligação. Logo, “um sistema altamente investido é capaz de acolher a nova energia que para ele aflui e transformá-la em investimento parado, ou seja, ‘ligá-la’ psiquicamente. Quanto mais alto o investimento parado, tanto maior a sua força ligadora” (Idem, p. 193). Agora se entende, portanto, por que Freud afirmou, no segundo capítulo, que o susto (Schreck) é uma condição necessária ao desenvolvimento da neurose traumática. Afinal, se a psique estivesse preparada para o evento traumático (situação essa caracterizada pela presença da angústia [Angst]), ela teria melhores condições de ligar a energia invasora, quando de seu surgimento. Contudo, como ela estava em uma situação de surpresa (Schreck), esse preparo inexistia, de modo que pôde se desenvolver a neurose traumática. Sendo assim, os sonhos dos neuróticos de guerra têm essa finalidade: criar um alto investimento de energia no interior da psique, inexistente no momento do evento traumático, e que teria sido útil, naquele instante, para bloquear a energia invasora. Ora, um alto investimento energético no aparelho psíquico é sinônimo de que? Desprazer. Logo, o que a psique precisa produzir, para enfrentar uma série de situações traumáticas, é um nível significativo de dor (sofrimento, angústia), que a ajudará a se preparar para o enfrentamento tanto do evento traumático do passado, que ainda reverbera na memória, quanto de símiles seus no presente e futuro[8]. Isso que é realizado, no caso da neurose de guerra, por meio da repetição de pesadelos que devolvem os combatentes à situação original traumática, também é operado nos outros três fenômenos citados nos capítulos 2 e 3, em que, igualmente, são repetidas vivências desagradáveis análogas aos traumas que as desencadearam (com o fim de criar uma energia necessária ao contrainvestimento das inundações de excitação por elas trazidas à psique).

Com base nessa explicação da neurose traumática, portanto, Freud conclui que é possível “vislumbrar uma função do aparelho psíquico, que, sem contrariar o princípio do prazer, é independente dele e parece mais primitiva” (Idem, p. 196). Portanto, a psique não busca apenas o prazer e a felicidade. Isso ela faz apenas quando suas principais fontes de sofrimento, conhecidas durante seu percurso vital, se encontram em silêncio. No caso de elas voltarem a se acender, e passarem a inundar a psique com grandes quantidades de excitação, entra em ação uma operação anterior (ao princípio do prazer), que é a da compulsão à repetição, e que visa repetir as situações mais originais conhecidas de sofrimento (ou transbordamento energético), com o fim de criar uma excitação correspondente no aparelho psíquico, capaz de bloquear essas inundações, tenham elas uma causa externa (como no caso das neuroses de guerra) ou interna (originada nos instintos).

Portanto, assim como para Schopenhauer, também para Freud, a vida humana é dilacerada entre duas tendências fundamentais e opostas: uma que visa o prazer e a fuga da dor (princípio do prazer), e outra que busca a dor e a fuga do prazer (compulsão à repetição). Aqui não se encontra uma clara proximidade entre ambos os autores? Se sim, por que Freud não a reconheceu no final do capítulo 4, mas preferiu sublinhar outras semelhanças, um pouco mais obscuras, no capítulo 6, após a exposição dos instintos de vida e morte? Antes de especular sobre possíveis razões para isso, cabe acompanhar até o fim sua explicação do significado das sensações de prazer e desprazer, e observar se de fato ele se distancia de Schopenhauer a partir daqui, embora o cite somente mais para frente, no texto.

4. O DUALISMO DOS INSTINTOS DE VIDA E MORTE, EM FREUD, E SUA REFERÊNCIA A SCHOPENHAUER

            No quinto capítulo de APP, Freud aproveita a luz obtida sobre a compulsão à repetição para aprofundar sua especulação, agora, sobre a natureza dos instintos. A seu ver, a compulsão à repetição tem um alto grau de caráter instintivo (triebhaft); o que, junto a outros fenômenos, sugere uma natureza conservadora-regressiva dos mesmos: “Nos fenômenos da hereditariedade e nos fatos da embriologia estão as provas mais formidáveis de uma orgânica compulsão a repetir” (Idem, p. 202). Além disso, os retornos surpreendentes, e muitas vezes sacrificantes, de certas espécies de peixes e aves aos “antigos locais de habitação de sua espécie” (Idem), e sobretudo em contextos de reprodução, também exibem essa tendência. Por fim, inclusive o efeito original do humor e da contemplação estética nas crianças têm uma natureza regressiva: “A criança não se cansará de exigir do adulto a repetição de uma brincadeira que este” (Idem, p. 200) lhe fez, ou de ouvir uma bela história que lhe contou, até que o adulto “se recuse a fazê-lo, exausto”. Todas essas pistas são suficientes para Freud avançar a seguinte hipótese: “Um instinto seria um impulso, presente em todo organismo vivo, tendente à restauração de um estado anterior, que esse ser vivo teve de abandonar por influência de perturbadoras forças externas” (Idem, p. 202). Se isso é verdade, então se segue que “o ser vivo elementar não pretenderia mudar desde o seu início” (Idem, p. 204), mas “influências externas, perturbadoras e desviantes” (Idem) o forçaram a isso. A essas concepções, Freud acrescenta uma última, mas não menos decisiva, a saber, a de que morremos por razões internas (isto é, falecemos porque o organismo o deseja, ao menos parcialmente). Essa premissa, seguida de sua conclusão teleológica a partir dela e das anteriores, é apresentada pelo autor com as seguintes palavras:

Se é lícito aceitarmos, como experiência que não tem exceção, que todo ser vivo morre por razões internas, retorna ao estado inorgânico, então só podemos dizer que o objetivo de toda a vida é a morte, retrospectivamente, que o inanimado existia antes que o vivente (Idem).

            Conforme Freud, essa conclusão “diminui consideravelmente a importância teórica dos instintos de autoconservação” (Idem, p. 205). Esses não passariam, portanto, de “instintos parciais, destinados a garantir o curso da morte própria do organismo e manter afastadas as possibilidades de retorno ao inorgânico que não sejam imanentes” (Idem). Porém, e os instintos sexuais, que em toda a sua teoria sempre foram centrais? Não estariam à altura dos instintos de morte, como suas adversárias? Nesse momento, Freud faz uma interrupção, e inicia uma nova linha de raciocínio: “Isso não pode ser assim! Aparecem sob uma nova luz os instintos sexuais, que na teoria das neuroses têm uma posição especial” (Idem, p. 206). O autor, então, passa a ressaltar a importância biológica das células germinativas, que “conservam a estrutura original da substância viva e após um certo tempo se destacam do organismo inteiro, com todas as suas disposições” (Idem). Em condições favoráveis, elas repetem o “jogo a que devem sua gênese” (Idem, p. 207) ad infinitum, dando à vida uma aparente eternidade. Portanto, elas trabalham contra a morte, e conseguem obter “o que deve nos parecer uma imortalidade potencial, embora talvez signifique apenas um alongamento do caminho para a morte (...) Os instintos que tratam dos destinos desses organismos elementares” (Idem) são os sexuais: eles também devem ser regressivos, isto é, “conservadores no mesmo sentido que os outros, ao trazerem de volta estados anteriores da substância viva” (Idem). E como Freud denominou os instintos que conduzem à morte de instintos de morte, os sexuais recebem, por oposição, o nome de instintos de vida. Com base nessa contradição entre dois instintos que apontam a direções contrárias, Freud conclui haver uma contradição teleológica na base de nossos instintos orgânicos:

É como um ritmo hesitante na vida dos organismos; um grupo de instintos precipita-se para a frente, a fim de alcançar a meta final da vida o mais rapidamente possível; atingida uma determinada altura desse caminho, o outro corre para trás, a fim de retomá-lo de certo ponto e assim prolongar a jornada (Idem, p. 208).

            No sexto capítulo, Freud testa esse novo dualismo à luz da biologia e filosofia. E a seu ver, ambas as disciplinas não refutam sua teoria, e algumas hipóteses suas, inclusive, a endossam: o pesquisador Woodruff, por exemplo, verificou que uma paramécia (que é um ser vivo bem simples, que se reproduz por cissiparidade) pode manter sua vivacidade sem nenhuma perda energética até a 3029ª geração (a partir disso, ele interrompeu os experimentos), caso toda nova geração seja posta em “líquido nutriente fresco” (Idem, p. 218) e consiga “copular” (o que, em seu caso, não ocorre por reprodução sexual, mas por uma ação que se assemelha mais a um breve contato com outro ser semelhante). Esse resultado reforça a hipótese de que, em condições favoráveis, os instintos de vida possam alcançar a imortalidade, equiparando-se, portanto, aos instintos de morte. Por outro lado, Maupas e Calkins provaram que esse mesmo ser vivo envelhece e morre caso seja exposto aos “produtos do metabolismo que lançam no líquido ao seu redor” (Idem): o que já reforça a tese da morte natural (premissa essa fundamental em sua hipótese dos instintos de morte, como vimos). Por fim, E. Hering expôs uma teoria segundo a qual:

Na substância viva operam initerruptamente dois tipos de processos, em direções opostas – uns construtivos, anabólicos, os outros destrutivos, catabólicos. Podemos ousar reconhecer, nessas duas direções dos processos vitais, a atividade de nossos dois movimentos instintuais, dos instintos de vida e dos instintos de morte? E há outra coisa que não podemos ignorar: que inadvertidamente adentramos o porto da filosofia de Schopenhauer, para quem a morte é ‘o autêntico resultado’ e, portanto, o objetivo da vida, enquanto o instinto sexual é a encarnação da vontade de vida (Idem, p. 220).

            Curiosamente, a referência a Hering é bem menos polêmica do que a de Schopenhauer. Contudo, Freud a apresenta em forma interrogativa, enquanto que a referência ao metafísico é feita assertivamente. Em outro texto, defenderemos que não está equivocado – como defende Zentner – rastrear em Schopenhauer uma dicotomia entre Morte e Eros. Porém, embora ela possa existir, essa comparação trazida por Freud ante o filósofo da Vontade é bem mais incerta do que a que salta à vista no final do quarto capítulo, com a contradição teleológica que apontamos. Argumentemos em favor disso nas conclusões. Antes disso, cabe ainda completar a análise da resposta freudiana ao problema do significado das sensações de prazer e desprazer, para nos certificarmos de que sua linha de raciocínio, a partir daqui, se torna cada vez mais própria (ao menos em comparação a Schopenhauer): no resto do capítulo, Freud procura reformular algumas das noções mais importantes de sua metapsicologia à luz desse novo dualismo dos instintos. E no final, reflete sobre a natureza regressiva dos instintos de vida. Nesse momento, Freud lamenta que a ciência esclareça tão pouco de sua gênese; e insiste que eles devem ser muito originais e arcaicos, pois, do contrário, como se opõem aos soberanos instintos de morte, teriam sido evitados, e jamais mantidos e aperfeiçoados, como ocorreu. Por fim, Freud recorre à filosofia de Platão para obter alguma luz sobre Eros: a partir da voz de Aristófanes, em Banquete, o grego ensaia a ideia de que, originalmente, não havia apenas o sexo feminino e o masculino, mas também um terceiro, o “homem-fêmea”, que englobava ambos e era mais poderoso. Após um castigo recebido de Zeus, esse ser andrógeno foi partido ao meio, e então surgiram os dois gêneros humanos, e também o anseio de se reunificarem: desde então, essas duas metades “se enlaçavam com as mãos, abraçavam-se, desejando fundir-se” (Idem, p. 231). Na sequência, Freud tenta traduzir esse mito para uma linguagem metapsicológica, e afirma que, provavelmente, a substância viva original, em certo momento da história, se desmembrou em “pequenas partículas que desde então buscam reunir-se” (Idem, p. 232); o que só pode ser feito por meio dos instintos sexuais. Nessa busca, essas partículas vivas foram obrigadas a se proteger dos avassaladores estímulos externos, e por isso criaram uma camada cortical protetora, sede da consciência. Por fim, alcançaram a multicelularidade, e então, transferiram às células germinais uma alta concentração de seu instinto, junto à possibilidade de se eternizarem, com o incessante recomeço da jornada rumo à morte (em um novo indivíduo). “Acho que neste ponto devemos parar” – ironiza o cientista-filósofo-poeta, acrescentando não saber até que ponto crê em sua própria especulação.

            No último capítulo, Freud distingue entre tendência, empenho e função psíquica, da seguinte maneira: o princípio do prazer é uma tendência, a serviço de uma função, que é a de “tornar o aparelho psíquico isento de excitação, ou conservar o montante de excitação dele constante ou o menor possível” (Idem, p. 236). Nesse momento, ele admite não conseguir se decidir entre essas duas formulações (a primeira ele denomina por princípio de nirvana, e a segunda, por princípio de constância ). Em ambos os casos, essa função participa do “universal empenho de todos os viventes: retornar à quietude do mundo inorgânico” (Idem, p. 237). Portanto, todo impulso instintual traz uma carga de energia livremente móvel ao aparelho psíquico, que é sentida como desprazer: antes de mais nada, essa carga deve ser ligada (de modo semelhante a como a psique deve apresentar um contra-investimento ante toda energia invasora, no caso da dor física ou traumatismo externo). Portanto, a ligação é uma função mais primitiva, “preparatória, que deve dispor a excitação para a sua definitiva eliminação no prazer da descarga” (Idem). E a compulsão à repetição, uma tendência anterior ao princípio do prazer, que contribui a essa ligação. A compulsão à repetição compõe a essência dos processos psíquicos primários, que “produzem sensações bem mais intensas” (Idem). E o princípio de prazer consiste em uma espécie de transição entre o processo primário e o secundário (no qual já predomina o princípio de realidade). “O princípio do prazer parece mesmo estar a serviço dos instintos de morte” (Idem, p. 238) – conclui Freud – já que, como dito, visa liberar a psique de qualquer excitação, ou torná-la a menor possível em seu interior. Como essa tendência predomina por toda a vida, se conclui que “os instintos de morte parecem realizar seu trabalho discretamente” (Idem), rumo a uma morte por causas naturais. A eles se contrapõem os instintos de vida, que perturbam “a paz, trazendo tensões cuja eliminação é sentida como prazer”. É breve a consideração paralela apresentada pelo autor, nessa conclusão, de que também há na psique uma “peculiar tensão que pode ela mesma ser prazerosa”: eis um ponto de partida para novas pesquisas – acrescenta, sem dar mais detalhes sobre isso. Ao fim e ao cabo, a resposta freudiana à questão do “significado das sensações de prazer e desprazer” (Idem, p. 162) é a de que, por trás das duas tendências opostas da psique, constatadas empiricamente – uma que visa o prazer e outra a dor – vislumbramos o que, dez anos mais tarde, ele chamará de o “combate de gigantes” (Freud, 2010b, p. 91) entre os instintos de vida e morte, da qual todo o universo orgânico é fruto, e pela qual nossa conduta é dividida, teleologicamente.

5. Conclusões

            Com base no material investigado, constatamos que há tanto semelhanças quanto diferenças entre Schopenhauer e Freud, no que concerne ao tema do significado das sensações de prazer e desprazer, assim como em outros adjacentes. Enfatizamos, aqui, o que poderíamos chamar de “semelhança teleológica” (em sentido estendido, pois nenhum dos dois autores emprega o termo “teleologia” nesses textos, embora abusem dos vocábulos “fim” e “objetivo” da vida), que se depreende da comparação entre A ordem da salvação e APP: ambos os autores defendem que a conduta humana ou os processos psíquicos são dilacerados entre dois fins contrários, um que visa o prazer e a fuga da dor, e outro que persegue a dor e a fuga do prazer. Cremos que, aqui, está uma base mais segura para se documentar a imagem trazida por Freud de que ele entra no porto da filosofia de Schopenhauer, em APP. E a partir disso, poder-se discutir temas como antecipação, influência direta ou indireta, herança, continuidade de pensamento, etc.. No entanto, também há diferenças entre suas respostas, e sobretudo, no que diz respeito à segunda tendência (a que visa a dor). Para Schopenhauer, o “verdadeiro e último bem” (WII, 49, p. 760), que é o sofrimento, existe apenas para o intelecto, o que descarta, por exemplo, os demais animais dessa experiência. Em face das dores, carências e frustrações acumuladas ao longo de vida, excepcionalmente o ser humano é capaz de olhá-las do ponto de vista do todo, e graças a seu poder mental, e inteligir que a vida é um negócio cujos frutos não cobrem os gastos, de modo que o não ser é preferível ao ser. Essa visão pode impelir o homem, inclusive, a buscar o sofrimento, conscientemente, por meio de práticas ascéticas, ou inconscientemente, pelo caminho do “destino”, que ocorre quando a Vontade “demoníaca” nos leva à dor, como se quisesse nos dar uma mensagem, cujo conteúdo é quietista: o não ser é preferível ao ser, e é melhor negarmos o querer. Assim como em Freud, portanto, também em Schopenhauer há a ideia de que a dor nos traz um certo domínio sobre a própria dor. Porém, Schopenhauer é mais radical do que Freud, e trata esse domínio como uma salvação, e não apenas como uma preparação primária da psique a operações mais avançadas (de confronto da própria dor). Além disso, Schopenhauer também acentua, nesse processo, mais a participação do intelecto, e talvez por isso, o denomine como o objetivo moral da existência. Em Freud, a compulsão à repetição, que também nos impele ao sofrimento, não é uma tendência moral, mas algo mais primitivo, muito embora também seja um processo psíquico. Por fim, Freud também enfatiza o caráter conservador-regressivo desse movimento, o que não é feito por Schopenhauer. De modo que não é de todo impensável, para Freud, supormos ocorrências análogas à compulsão à repetição em outros animais (até mesmo porque o próprio Freud citou as migrações de peixes e aves como representantes da natureza regressiva dos instintos). Quanto à ideia de que a compulsão à repetição trabalha em favor do instinto de morte, bem como as outras duas tendências psíquicas que a sucedem (os princípios de prazer e realidade): ela também marca um distanciamento ante Schopenhauer, que merece uma breve análise.

Zentner expôs de modo bem detalhado que existem três grandes diferenças entre o dualismo instintivo freudiano e a dicotomia que mais chama a atenção em Schopenhauer, vale dizer, a da afirmação e negação da Vontade. A seu ver, há três diferenças principais entre ambas as concepções: (1) quantitativa, (2) qualitativa e (3) moral-eudemonológica. A quantitativa é a seguinte: Freud defendeu, ao longo de toda a sua obra, um dualismo dos instintos. Já em Schopenhauer, há um monismo da Vontade, ou, o que dá no mesmo, um “monismo do instinto de vida” (Zentner, Germer, 2018, p. 166)[9]. A “polaridade fundamental” (Idem) em seu pensamento ocorre entre o intelecto e a Vontade, como buscamos destacar nesse artigo. Contudo, essa polaridade está longe de ser um dualismo, pois ela é completamente desigual: a Vontade comanda e o intelecto obedece. Apenas em raras circunstâncias, ocorrem certos desequilíbrios, o que pode chegar à sua raríssima inversão, na negação da Vontade. (2) A diferença qualitativa, por sua vez, é a de que, para Freud, o instinto de morte é um instinto natural, orgânico, biológico, que “age na vida”, isto é, no único mundo existente, que conhecemos e no qual vivemos (o “fenomênico”, na linguagem schopenhaueriana). Para Schopenhauer, a negação da Vontade já não é “um instinto (Trieb), mas uma inibição do instinto (Triebhemmung), ou uma renúncia do instinto (Triebeverzichst)” (Idem). Ele não é algo condicionado organicamente, mas algo que só se manifesta raramente, devendo “se avizinhar desde fora” (Idem), como se fosse um “efeito da graça”. Esse “fora”, por fim, é apenas em relação ao mundo da afirmação da Vontade (o fenomênico); ele nos aparece, portanto, como mera negatividade (captada graças a uma “visão trans-racional” do intelecto), e oriunda do outro lado do mundo: o numênico[10]. Finalmente, (3) há uma grande diferença moral-eudemonológica entre ambos os pensadores, pois embora eles compartilhem da “consideração pessimista de uma destrutividade constitucional humana”, causadora de um sério sofrimento, ambos situam as fontes dessa dor e sua possível cura em instâncias contrárias: para Freud, os instintos de morte, que tendem à autodissolução (Selbstauflösung) do indivíduo, e que podem ser alienados, se tornando destruição ou agressão do outro, são o fundamento da penúria e mal no mundo. Enquanto que os instintos eróticos, que querem conservar e agregar, são os criadores da civilização, que é o principal escudo humano contra a morte e seus derivados (não à toa, Freud conclui O mal-estar na civilização defendendo que “a questão decisiva para a espécie humana é saber se” [Freud, 2010b, p. 121] poderemos nos proteger de nossa própria destruição, graças ao trabalho do Eros civilizatório). Já em Schopenhauer, “a Vontade de viver é, em si mesma, destrutiva. Os fenômenos de agressão, crueldade, egoísmo e injustiça podem ser deduzidos imediatamente” (Zentner, Germer, 2018, p. 168) dela; enquanto que a negação da Vontade é a via da salvação (Erlösung, Heil, Rettung).

            Portanto, Zentner tem razão quando objeta o “tópos [lugar-comum] da afirmação e negação da Vontade de vida de Schopenhauer como uma antecipação do dualismo dos instintos de vida e de morte de Freud” (Idem, p. 166). Para ele, essa concordância “inexiste factualmente” (Idem). Em outro texto buscaremos medir se Freud parte necessariamente de uma “interpretação falha” (Idem, p. 158) de Schopenhauer, em APP, como defende Zentner. Como Freud não equiparou, explicitamente, seu dualismo instintivo à afirmação e negação da Vontade de Schopenhauer, talvez sua leitura do último não seja compulsoriamente incorreta. Além disso, pode-se rastrear uma interessante dicotomia entre Morte e Eros, não radicalmente distante do dualismo freudiano – como bem mostrou Atzert[11]. Contudo, as críticas de Zentner são muito orientadoras, na medida em que nos ajudam a moderar as expectativas de que haja uma grande filiação entre ambos os pensadores, em APP, com base no dualismo de Eros e Morte. Ao nosso ver, sua proximidade é bem mais evidente no tema da “ambiguidade teleológica” da conduta humana e tendências fundamentais psíquicas – muito embora não tenha sido assinalada pelos autores aqui consultados. Portanto, se Zentner e Atzert têm bons argumentos para se oporem ao modo como Freud se refere a Schopenhauer em APP, gostaríamos de complementar esse estranhamento sublinhando uma terceira crítica que pode ser feita a Freud, nessa referência: em face da grande semelhança que salta aos olhos no final do capítulo 4, e que envolve a “contradição teleológica” humana examinada por ambos os autores, na base da conduta humana e processos psíquicos; e levando em consideração as dificuldades apontadas por Zentner para que o dualismo instintivo tardio freudiano e possíveis visões binárias em Schopenhauer sejam aproximados; não faria mais sentido que Freud tivesse reconhecido sua proximidade ante Schopenhauer no final do quarto capítulo, e no tema aqui indicado, já que, nele, essa proximidade parece se apresentar mais claramente? Caso essa objeção possa ser aceita, caberia perguntar por que isso não ocorreu. E a resposta a isso pode partir da seguinte observação de Zentner: Freud é um estrategista de citações. Ele em geral não está disposto a reconhecer a antecipação de ideias fundamentais suas da parte de filósofos, seja porque quer salvaguardar sua originalidade, seja porque pretende proteger a cientificidade de sua doutrina. O critério por ele adotado em suas referências à filosofia costuma ser a do “elemento chocante” (Idem, p. 173) de sua teoria: quando se tratam de ideias polêmicas ou “escandalosas”, como por exemplo as de que a finalidade da vida são os alvos de Eros e Morte, ele busca se aliar a importantes autoridades filosóficas, para enfrentar melhor a opinião pública. Embora a concepção de que a psique tenha uma “contradição teleológica” fundamental, e também se dirija à dor não menos do que ao prazer, possua algo de ominoso, sem dúvida, o elemento mais chocante de APP é o de buscamos, sobretudo, em nossa vida, a morte (ou a eternidade, por meio de Eros). Portanto, como Freud não é muito neutro em se tratando de citações, mas um hábil estrategista, lhe pareceu mais adequado pagar tributo a Schopenhauer na exposição da segunda concepção do que na da primeira. Contudo, cremos que teria sido mais fácil e talvez honesto fazê-lo na primeira situação, pois ela confere uma base de aproximação entre esse autor e Schopenhauer mais segura (de modo a proteger sua referência ao último de ataques polêmicos, como os de Zentner).

REFERÊNCIAS

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Contribuição de autoria

1 – Guilherme Marconi Germer

Professor Colaborador na Universidade Estadual de Maringá (UEM). Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

https://orcid.org/0000-0003-3173-6750  • guilhermeguita@gmail.com

Contribuição:Escrita e primeira redação

Como citar este artigo

GERMER, G. M. Sobre o significado das sensações de prazer e desprazer em Schopenhauer e Freud.. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 14, n. 1, e85569, 2023. DOI 10.5902/2179378685569. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378685569. Acesso em: dia mês abreviado. ano.



[1] Doravante abreviado por APP.

[2] Na realidade, embora haja uma ampla literatura que aborda a relação entre Schopenhauer e Freud, a partir da referência desse àquele em APP; entre os textos consultados, nenhum parece fazer menção ao que aqui buscaremos analisar.

[3] Doravante abreviado por O Mundo...

[4] A expressão “(verdadeiro) fim da vida” aparece quinze vezes; salvação e redenção, sete; lição ou instrução da vida, três; e os demais termos teleológicos empregados são: “índole”, “resultado moral e essencial”, “caráter”, “sentido mais profundo”, “meta”, “tendência”, “bem” da vida; assim como expressões como a vida ou mundo “existem para”, “se destinam a”, etc..

[5] Utilizamos, aqui, a palavra “teleológico” entre aspas, no caso de Schopenhauer, porque, a rigor, esse autor não emprega esse termo quando aborda a “conduta humana”, em sua metafísica dos costumes (na qual nos limitaremos nesse artigo). Em sua metafísica da natureza, o filósofo tematiza a possibilidade de se pensar em uma teleologia da natureza, sobre o pano de fundo de uma Vontade cega e sem fim; por exemplo, ao se considerar os instintos dos animais: o instinto “é como se fosse um agir conforme um conceito de fim, no entanto completamente destituído dele” (W, §28, p. 227). Por outro lado, como Schopenhauer emprega a palavra “fim” aproximadamente quinze vezes no Capítulo 49 de O mundo... – Tomo  II, e como essa palavra deriva de “telos”, do grego (e como a teoria da ação que o filósofo desenvolve em sua metafísica dos costumes aprofunda a sua visão de mundo como manifestação de uma Vontade cósmica e una, o que possivelmente fundamenta certa teleologia), propomos chamar essa reflexão sobre os fins fundamentais do comportamento humano, desenvolvida no Capítulo 49, de “teleológica” (em sentido derivado, portanto, como as aspas procuram indicar). Para uma visão mais pormenorizada sobre a teleologia da Vontade em Schopenhauer, cf. MATTIOLI, 2018. SILVA, 2019.

[6] Mais especificamente, embora Schopenhauer tenha escrito, no atual capítulo, que "a morte decerto deve ser considerada como o fim propriamente dito da vida” (Idem, p. 758), e ilustrado essa concepção com a metáfora anterior de que “ só o humano esvazia de fato o copo da morte, é a humanidade o único degrau no qual a vontade se nega” (Idem), Zentner propôs uma distinção, aqui, entre “meios” e “fim”, de modo a restringir a morte aos primeiros, e o segundo à negação da Vontade. Desde sua visão: (1) “Schopenhauer apresentou uma plenitude de indicações sobre o fim da vida. Sendo assim, é falso superestimar a importância da sentença citada na filosofia schopenhaueriana” (Zentner se refere, na realidade, a outra locução muito aparentada à do atual capítulo; a saber, quando Schopenhauer alude, em Especulação Transcendente Sobre os tons de Intencionalidade no Destino dos Indivíduos, à “morte, esse resultado próprio, e nesse sentido, fim da vida” [Schopenhauer, 2008, p. 46]). E: (2) apenas “a negação da Vontade é o ‘verdadeiro fim da vida’ (wahre Zweck des Lebens, WII, 731), ao passo que os demais fins citados são meros “meios para o fim propriamente dito da vida” (Zentner, Germer, 2018, p. 164). Na “plenitude” dos fins indicados, mas que, a rigor, são apenas meios, Zentner incluiu o sofrimento, a necessidade, a auto-renegação, o conhecimento e a morte. No que concerne, especificamente à última, a principal documentação apresentada por Zentner à sua defesa é forte, embora nunca tenha sido publicada por Schopenhauer: “A morte, na medida em que é um sofrimento, é um impulso à redenção, mas não a própria redenção” (HNI, p. 163). Após expor os argumentos de Zentner, William Mattioli lhe dá razão: “Pode-se dizer que a morte é antes um meio do que um fim propriamente dito; ou, em outros termos, um fim submetido hierarquicamente a um fim superior devido ao seu potencial catalisador como quietivo da vontade, permitindo ao indivíduo alcançar aquilo que no budismo se chama nirvana (extinção)” (Mattioli, 2020, p. 369). Nesse posicionamento, ele se opôs nominalmente aos nossos textos, já que já havíamos nos contraposto a Zentner em outro artigo: “Germer critica a leitura de Zentner segundo a qual a morte não seria o fim último, mas um meio para esse fim: a negação da vontade (Germer, A concepção de morte em Schopenhauer, 82s.). Discordo dessa crítica” (Idem, p. 365). Cremos que discordâncias são bem-vindas, com o fim de aprofundar o debate; e não consideramos um equívoco optar pela distinção entre meios e fim, restringindo a morte aos primeiros e limitando o segundo à negação da Vontade, com base, sobretudo, no escrito não publicado de Schopenhauer. Contudo, gostaríamos de apresentar aqui uma breve defesa de nossa posição: talvez haja boas razões para Schopenhauer nunca ter feito essa distinção em sua obra publicada, e ter escrito textualmente que a morte é o fim da vida nas três locuções com as quais iniciamos essa nota de rodapé: nos parece que não todos, mas um ou alguns dos sentidos sob os quais a morte aparece aos seus olhos se identifica com o conceito de negação da Vontade, de modo que a separação entre “meio” e “fim” seria uma complicação desnecessária. Essa identificação surge em vários momentos de sua obra. Além das já citadas, em O Mundo..., ele vincula a negação da Vontade à mortificação do querer com as seguintes palavras: “Aqui talvez tenhamos pela primeira vez expresso abstratamente (...) a essência íntima da santidade, da auto-abnegação, da mortificação da vontade própria, da ascese como negação da Vontade de vida” (W, §68, p. 486, grifo nosso). Ao detalhar o que é a ascese, Schopenhauer volta a identificá-la a um processo de mortificação: “A ascese também se mostra na pobreza voluntária e intencional, nascida (...) como um fim em si mesma, devendo então servir como mortificação contínua da Vontade” (W, §68, p. 483, 484). Se apenas o processo ascético fosse chamado de morte, talvez fizesse sentido chamá-lo de “meio”, a um “fim” que lhe é externo ou distinto. Porém, não é o caso, pois o “ponto de chegada”, a negação da Vontade, também foi chamado por Schopenhauer de morte: “Se, ao fim, advém a morte, que extingue este fenômeno da Vontade, cuja essência aqui há muito expirou pela livre negação de si mesma, exceto no fraco resto que aparece na vitalidade do corpo - então essa morte é muito bem-vinda e alegremente recebida como a redenção esperada. Com ela não finda, diferente dos outros casos, apenas o fenômeno; mas a essência mesma que aqui ainda tinha tão-só uma existência débil em e através do fenômeno é suprimida. O último e delgado laço é rompido. Para quem assim finda, findou o mundo ao mesmo tempo” (W, §68, p. 485). No capítulo seguinte, ao abordar o tema do suicídio, Schopenhauer reconfigura essa distinção entre a morte do fenômeno e a da “essência mesma”, nos moldes daquele conceito: há o suicídio comum e o “ascético”, que difere dele radicalmente. O segundo seria o grau último ao qual o asceta chega em seu processo de mortificação: “A completa negação da Vontade pode atingir um grau em que falta até mesmo a vontade necessária para a conservação da vida vegetativa do corpo por ingestão de alimento. Muito longe de resultar da Vontade de vida, tal tipo de suicídio provém simplesmente de o asceta, já por inteiro resignado, cessar de viver, simplesmente porque cessou por inteiro de querer” (W, §69, p. 507).  Assim, o “suicídio ascético” consiste na “morte resultante do mais elevado grau de ascese, livremente escolhida por inanição” (Idem): ele é “totalmente diferente do suicídio comum” (Idem, p. 506), que brota da veemente e contraditória afirmação da Vontade. Em O Mundo..., Schopenhauer praticamente só reconhece a negação da Vontade alcançada por meio do ascetismo. Porém, no capítulo que aqui analisamos, surge uma outra possibilidade: à “maioria dos humanos” (WII, 49, p. 760), se abre ainda a via da negação pelo sofrimento e envelhecimento trazidos pelo destino, o que o autor denomina, não à toa, de “eutanásia da Vontade” (WII, 49, p. 759); e a descreve, novamente, como um processo de mortificação. Entretanto, ainda há uma terceira via para a negação: por meio da “lei-de-tudo-ou-nada (Alles-oder-Nichts-Gesetz)” (Zentner, Germer, 2020, p. 165) – expressão essa aparentemente criada por Zentner – a hora da morte abre a todos um caminho de negação da Vontade; o que se estende ao pior dos egoístas (caminho que pode ou não ser tomado): “Se (...) a avidez sobrevive à capacidade de gozar (...) então a vontade é sublimada na avareza ou na ambição, sendo lançada na última fortaleza da qual só a morte ainda poderá expulsá-la. O fim da existência está perdido” (WII, 49, p.  759, 760). Nos três casos citados, portanto (ascetismo, sofrimento trazido pelo destino e “lei-de-tudo-ou-nada”), a morte se confunde significativamente com a negação; e, mais ainda no terceiro caso, fica claro que ela não tem apenas um papel ético-pedagógico, mas pode agir sobre aquela pessoa que não “aprendeu nada” do verdadeiro fim da vida. Afinal, se trata de algo textual: o avarento perdeu o fim da existência, foi ambicioso até o fim da vida, se fechou em sua fortaleza egóica, mas em um só instante, a morte o liberta, a partir de uma intelecção pontual e profunda: “Só a morte ainda poderá expulsá-la” (de sua fortaleza individualista); de modo que a igreja entoa orações para que ninguém tenha uma morte súbita, que anule essa possibilidade. Preferimos, portanto, defender que a morte é um tema complexo em Schopenhauer, e inclui diversos significados. Em alguns casos, sim, ela é um meio a um fim que lhe é externo (quando aparece como componente fundamental do sofrimento trazido pelo destino, por exemplo). Em outros, porém, ela se confunde tanto com o fim moral da existência, que nos parece muito obscuro separá-la do último, como um meio que conduz a ele, mas não é propriamente ele. Essa leitura parece se sintonizar com o modo como Maria L. Cacciola se refere à morte, em seu consagrado A morte, musa da filosofia: Se a morte é o fim da vida individual, o querer-viver cósmico só pode afirmar-se, e sua negação completa no campo ético, a morte simbólica do todo, só se dá como exceção” (CACCIOLA, 2007, p. 104). O que ela chama de morte simbólica do todo não se distingue da negação da vontade, como uma estrada, por exemplo, se distingue de uma cidade, podendo ser claramente chamada de “meio” para esse “fim” (a cidade). Quando “meio” e “fim” se confundem tanto assim, então, essa distinção é obscura, e por economia de linguagem, é preferível escrever do modo como Schopenhauer o faz: "A morte decerto deve ser considerada como o fim propriamente dito da vida” (WII, 49, p. 758).

[7] A negatividade e raridade do prazer e felicidade também foram anotadas por Freud em O mal-estar na civilização (1930), com os seguintes termos: “O programa do princípio do prazer (...) está em desacordo com o mundo inteiro (...) É absolutamente inexequível (...) Aquilo a que chamamos ‘felicidade’, no sentido mais estrito, vem da satisfação repentina de necessidades altamente represadas, e por sua natureza é possível apenas como fenômeno episódico” (FREUD, 2010b, p. 30). Para mais informações sobre como essa concepção se desenvolve na obra freudiana desde seu inédito Projeto para uma psicologia científica (1895), cf. MONZANI, 2005.

[8] Esse é um dos melhores momentos para se entender a ousada afirmação de Freud de que “os processos psíquicos inconscientes são ‘atemporais’ em si” (Idem, p. 190): ora, a compulsão à repetição é, em grande medida, uma tentativa de resolução de um evento passado, presente e futuro ao mesmo tempo – como se inexistisse uma diferença significativa entre eles. É verdade que ela se refere a uma situação traumática do passado; porém, não se pode negar que essa operação também visa proteger a psique contra seu retorno no presente e futuro. Sendo assim, a compulsão à repetição não diferencia o passado, o presente e o futuro com clareza, o que reforça a tese freudiana de que essas noções existem somente a partir da consciência, e não no inconsciente.

[9] Para uma genial relativização dessa distinção, Cf. Fonseca, 2020.

[10] Para um brilhante aprofundamento dessa distinção qualitativa entre o sentido biológico e naturalista do dualismo instintivo tardio de Freud, e o significado ético-metafísico das principais dicotomias ou contradições rastreáveis em Schopenhauer, cf. Mattioli, 2020. Embora a comparação empreendida por nós neste texto perca um pouco de força diante dessa diferença (pois Freud expõe uma “contradição teleológica” puramente instintiva, e Schopenhauer, ética e metafísica, na medida em que tem por pano de fundo uma oposição não entre instintos, mas entre o instinto e a supressão dele) cremos que ela não se anula completamente. Afinal, ainda assim pode ser constatada uma "ambiguidade teleológica” análoga, nesses dois pensadores, que dilacera a conduta humana ou os processos psíquicos entre dois propósitos contrários; e não é a intenção desse artigo provar que Schopenhauer e Freud defendem algo absolutamente idêntico. Cabe mencionar ainda uma outra limitação de nossa comparação, e que se vincula intimamente com a anterior: cremos que tanto Schopenhauer quanto Freud procuram responder a uma questão semelhante nos dois textos analisados, a saber, a do significado (Bedeutung) das sensações de prazer e desprazer (ou dos estados de felicidade e sofrimento). A rigor, porém, a resposta que Schopenhauer dá à questão do significado (Bedeutung) da conduta humana é um pouco maior do que a aqui analisada, e envolve, sobretudo, seu esclarecimento dos conceitos de “bom” e “mal”, como também de negação da Vontade: “Tomo de novo em mãos o fio condutor da nossa interpretação do significado (Bedeutung) ético da conduta, para, assim, mostrar como, da mesma fonte de onde brota toda bondade (...) também nasce aquilo que denomina negação da Vontade” (W, §68, p. 480). Para um conhecimento mais completo de sua resposta a essa pergunta, portanto, cf. W, §65-68, p. 458-503. A “ambiguidade teleológica” exposta no Capítulo 49, porém, e aqui esmiuçada, é uma peça fundamental dessa interpretação mais ampla, pois a transição do predomínio do fim natural sobre o moral à relação inversa é uma condição sine qua non tanto à prática da bondade quanto à negação da Vontade. Por outro lado, embora Freud tenha explicitado, no início de APP, que o foco de seu ensaio seria o significado (Bedeutung) das sensações de prazer e desprazer em APP (“Admitiríamos com prazer a nossa gratidão a uma teoria (...) que soubesse nos dizer quais são os significados [die Bedeutungen] das sensações de prazer e desprazer” (FREUD, 2020, p. 61), que haja grandes limitações a qualquer tentativa de ler seu trabalho como se possuísse um caráter ético-metafísico (o que pretendemos não ter realizado aqui) também pode ser sugerido pelo fato de que, no primeiro manuscrito desse texto, datado de 1919, Freud escreveu “Bedingungen” (condições) no lugar de “Bedeutungen” (significados), na formulação anterior (Cf. Idem, p. 60). Nas notas de sua brilhante tradução desse texto, Maria Rita Moraes destacou que essa modificação pode indicar uma preocupação de Freud maior, em APP, com as condições naturais e o fundamento energético que determinam o surgimento das sensações de prazer e desprazer, do que qualquer posição moral ou metafísica a partir delas: “Freud está buscando, o que define, o que determina as sensações de prazer e de desprazer do que seu significado. Teríamos assim uma acepção distinta de ‘Bedingung’, que, além de ser ‘condição’, pode também ser ‘Grundlage’, o que determina, o que define, a base, o fundamento” (Moraes. In: Freud, 2020, p. 210). Isto, porém, é naturalmente um debate em aberto, e por duas razões principais: primeiro, porque é difícil precisar o peso que uma palavra de um manuscrito inédito tem diante da de um texto publicado; e segundo, porque não podemos nos esquecer de que Freud reconhece, explicitamente, que APP não é um texto empírico, mas radicalmente especulativo: “O que se segue é especulação, às vezes especulação extremada, que cada um pode apreciar ou dispensar, conforme a atitude que lhe for própria” (Freud, 2010a, p. 184). APP, portanto, é um texto de psicologia profunda ou metapsicologia – palavra essa que, conforme Oswaldo Giacoia, deriva do termo “metafísica”: “Não se pode ignorar que a palavra metapsicologia é evidentemente derivada da palavra metafísica” (Giacoia, 2008, p. 21). Assim, se, por um lado, há uma enorme dificuldade em ler esse ensaio como dono de um caráter moral (muito embora ele seja a base teórica mais fundamental a outras especulações de cunho moral, como O mal-estar na civilização), por outro, que ele possua um caráter nitidamente metapsicológico, e possivelmente metafísico, se depreende de várias pistas que também merecem atenção: sua natureza “aberta” e especulativa, suas diversas referências a filósofos (Platão, Schopenhauer, Fechner), o tipo de argumento que Freud emprega ao longo do texto (morremos por razões internas, Eros é regressivo, etc.), o objeto que é disputado (a origem e finalidade dos instintos, os empenhos mais fundamentais de todo reino orgânico, etc.), o parentesco assinalado por Giacoia entre metapsicologia e metafísica: tudo isso impede que APP seja definido como um texto estritamente empírico. Não procuramos, aqui, uma compreensão exaustiva desses temas. Apenas salientamos que se há algumas dificuldades qualitativas para que o que Freud desenvolve em APP seja identificado ao que Schopenhauer defende em sua metafísica dos costumes, nos parece que também há elementos (como buscamos indicar) que autorizam uma aproximação entre ambos os autores – o que inclusive foi proposto pelo próprio Freud. Cremos que esse segundo lado da relação de ambos os autores (o de sua confluência teórica, a partir de certos temas específicos, e apesar das diferenças) foi reconhecido e valorizado por Giacoia, autor que nos influenciou amplamente em nossa busca de exploração das raízes schopenhauerianas de APP: “É em razão de tais necessidades [que balizam o esforço de Freud em APP], e sob a pressão de questões apresentadas pela pesquisa derivada da prática clínica, que a metapsicologia [freudiana] terá, por necessidade lógica e metodológica, de recorrer a uma base ontológica sólida e consistente. Ontologia para a qual concorrem até mesmo elementos extraídos do mito e da filosofia de Schopenhauer, devidamente ressignificados nos quadros e marcos teóricos próprios da psicanálise” (Idem, p. 48).

[11] Cf. Atzert, 2005, p. 192.