Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85522, 2023
Submissão: 02/10/2023 • Aprovação: 01/02/2024 • Publicação: 04/04/2024
2 CATÁSTROFE: DE ELEMENTO QUALITATIVO DA TRAGÉDIA À TEORIA CIENTÍFICA
3 O TERREMOTO (ERDBEBEN) COMO METÁFORA EM NIETZSCHE
4 NIETZSCHE E O TERREMOTO DE NICE EM 1887
5 A GRANDE SAÚDE: PASSAR POR MUITAS DOENÇAS E MUITAS SAÚDES
Dossiê
Nietzsche e as consequências de um grande terremoto: Metafísica ou Grande Saúde?
Nietzsche and the Consequences of a Major Earthquake: Metaphysics or Great Health?
Wilson Antonio Frezzatti Junior I
IUniversidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo, PR, Brasil
RESUMO
Por meio de sua fisiopsicologia, isto é, da morfologia e doutrina do desenvolvimento da vontade de potência, Nietzsche avalia a condição impulsional de indivíduos e culturas. Assim, produções que afirmam a vida como um movimento contínuo de autossuperação são sintomas de uma dinâmica saudável; mórbidos são os organismos que procuram estratégias de conservação e paralisação das mudanças, como, por exemplo, a metafísica. Nesse contexto teórico, este artigo pretende investigar a reação de Nietzsche em face de um grande terremoto ocorrido em Nice no ano de 1887, vivenciado pelo próprio filósofo. Nietzsche acredita ter a grande saúde, o que o habilita a rejeitar a busca, imposta por uma catástrofe à maioria dos seres humanos, de valores eternos em instâncias transcendentes.
Palavras-chave: Catástrofe; Fisiopsicologia; Grande Saúde; Vontade de potência
ABSTRACT
Keywords: Catastrophe; Great health; Physio-Psychology; Will to power
No prefácio de 1886 a A gaia ciência, Nietzsche propõe uma especial relação entre filosofia e saúde: toda filosofia é expressão e sintoma da condição fisiopsicológica de seu autor (cf. Nietzsche, 1999, v. 3, p. 347-349)[1]. Em alguns filósofos, com impulsos potentes e altamente hierarquizados, expressa-se seu transbordamento como uma gloriosa gratidão. Em outros, com impulsos impotentes e desierarquizados, a filosofia é sintoma da necessidade de narcose, tranquilidade e alheamento de si. Para o filósofo alemão, os pensadores doentes predominam na história da filosofia. Seria de grande interesse dos psicólogos investigar o que ocorre com o pensamento em certos tipos fisiopsicológicos sob o impacto de dificuldades ou obstáculos. A Nietzsche não interessa apenas o diagnóstico de determinada filosofia, se ela é sintoma de saúde ou morbidade, mas também realizar experimentos (Experimente) com o pensamento. Experimentos que são possíveis de realizar conosco mesmo:
Após uma tal interrogação de si mesmo, ensaio consigo mesmo [Selbst-Versuchung], aprendemos a olhar mais sutilmente para todo o filosofar que houve até agora; [...] sabemos agora para onde o corpo doente, com sua carência [Bedürfniss], inconscientemente empurra, impele, atrai o espírito – para sol, sossego, brandura, paciência, remédio, bálsamo para todo e qualquer sentido. (A gaia ciência, “Prefácio” § 2; Nietzsche, 2001, p. 11) [2]
Toda filosofia metafísica, portanto, é sintoma de uma dinâmica impulsional doentia: a pura espiritualidade, os conceitos eternos e imutáveis, as dualidades de opostos qualitativos absolutos e a oposição aparência-realidade são artifícios de conservação para mascarar a mutabilidade e a multiplicidade do vir-a-ser, insuportáveis para fisiologias enfraquecidas. Ressaltamos que eles são artifícios ilusórios. Assim, para o filósofo alemão, a filosofia até então, em sua quase totalidade, nada mais seria que uma má interpretação sobre o corpo e a existência.
E Nietzsche, como ele se coloca diante de sua própria proposta fisiopsicológica? No prólogo acima citado, ele pergunta: “Mas deixemos o Sr. Nietzsche de lado, que temos nós com o fato de o Sr. Nietzsche haver recuperado a saúde?” (A gaia ciência, “Prefácio” § 2; Nietzsche, 2001, p. 10)[3]. O Sr. Nietzsche é o filósofo que experimentou consigo mesmo, observou seu pensamento diante das dificuldades e sabe que sua configuração fisiopsicológica básica é saudável, pois conhece as vantagens que a sua saúde instável lhe fornece:
Um filósofo que percorreu muitas saúdes e sempre as torna percorrer passou igualmente por outras tantas filosofias: ele não pode senão transpor seu estado, a cada vez, para a mais espiritual forma e distância – precisamente essa arte de transfiguração é filosofia. (A gaia ciência, “Prefácio” § 3; Nietzsche, 2001, p. 12)[4]
Em outras palavras, a filosofia do Sr. Nietzsche não é monolítica, estanque, dogmática. Ela é perspectivística: o conhecimento não é universal, e a verdade não é absoluta, mas são interpretações condicionadas pelo contexto impulsional[5].
A esse tipo de filósofo, não é permitido distinguir a alma do corpo, daí o sentido principal da fisiopsicologia e sua experimentação: os impulsos ou forças em luta por mais potência não são físicos nem psíquicos, são quanta de potência que se expressam como tendência a aumentar. Eles não são elementos últimos, mas processos em que há sempre relação entre eles. Nesse contexto: “Viver – isso significa, para nós, transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo” (A gaia ciência, “Prefácio” § 3; Nietzsche, 2001, p. 13)[6]. Sendo assim, a dor, as dificuldades e a doença não devem ser evitadas, elas devem ser enfrentadas, pois aprofundam o autoconhecimento: “retornamos uma outra pessoa, com algumas interrogações mais, sobretudo com a vontade de ora em diante questionar mais, mais profundamente, severamente, duramente, maldosamente, silenciosamente do que até então se questionou” (A gaia ciência, “Prefácio” § 3; Nietzsche, 2001, p. 13)[7]. Passa-se a desconfiar daquilo que até então se considerava o mais bem estabelecido, o mais seguro. Nietzsche vai comparar essas mudanças com aquela causada por uma catástrofe, mais especificamente um terremoto, como veremos adiante. Não se acreditará mais nas verdades absolutas, na realidade imóvel do mundo, pois “para isso somos demasiadamente experimentados [erfahren], sérios, alegres, escaldados, profundos...” (A gaia ciência, “Prefácio” § 4; Nietzsche, 2001, p. 14)[8].
Inserido nesse cenário teórico, este artigo pretende investigar a reação de Nietzsche em face de um grande terremoto ocorrido em Nice no ano de 1887, vivenciado pelo próprio filósofo. Proporemos que Nietzsche acredita ter a grande saúde, o que o habilita a rejeitar a busca de valores eternos em instâncias transcendentes, imposta por uma catástrofe à maioria dos seres humanos. Antes de desenvolvermos essas ideias, abordaremos a noção de catástrofe para, num primeiro momento, justificar nossa associação dessa concepção ao terremoto conforme entendido por Nietzsche. Ainda, num segundo momento, mostraremos como o terremoto aparece nos textos de Nietzsche: como metáfora e como vivência.
2 Catástrofe: de elemento qualitativo da tragédia à teoria científica
A palavra catástrofe é definida, no dicionário Aurélio, como:
[Do gr. katastrophé, “reviravolta”, pelo lat. catastrofe.] S.f. 1. Acontecimento súbito de consequências trágicas e calamitosas. 2. Fig. Grande desastre ou desgraça; calamidade. 3. Teat. Na tragédia clássica, conclusão ou consumação da ação trágica; acontecimento principal, decisivo e culminante na tragédia, no qual a ação se esclarece inteiramente, e se estabelece o equilíbrio moral. [Cf. catástase.][9] 4. Teat. P. ext. O fim funesto decorrente da ação trágica. (Ferreira, 1986, p. 368)
Interessa-nos agora a terceira definição. Brandão considera catástrofe (catastrofh) a queda do herói, na qual a ordem cósmica se equilibra, após o transtorno causado por sua hybris (cf. Brandão, 1985, p. 17-19). Portanto, a ultrapassagem do métron afeta não só o indivíduo, mas também o cosmos. Isso ocorre porque a moira (destino) é a medida de todas as coisas, e não o homem. Assim, o herói trágico tem responsabilidade por seu próprio sofrimento[10]. Em Ésquilo, a catástrofe é a conciliação entre a moira e a diké (justiça). Mas, mais do que no equilíbrio cósmico, nosso foco está na definição que Aristóteles dá para o que tradicionalmente foi entendido como catástrofe: o terceiro elemento qualitativo do mito, a saber, a dor e o sofrimento (pathos), o que nos aproxima da definição 1 do verbete[11].
Nas décadas de 1960 e 1970, René Thom e Christopher Zeeman desenvolvem, de forma independente, a teoria da catástrofe, baseados na teoria das singularidades dos mapeamentos suaves de Hassier Whitney e na teoria das bifurcações dos sistemas dinâmicos de Henri Poincaré e Aleksandr Andronov (cf. Arnold, 1989, p. 19)[12]. Catástrofe, nesse contexto, é uma mudança súbita e violenta, uma resposta descontínua dada por sistemas em consequência de variações suaves nas condições externas. Trata-se de investigar, por meio de um tratamento matemático, pequenas alterações que tiram um sistema de seu equilíbrio e causam grandes e repentinas mudanças – prever o que, num primeiro momento, parece ser imprevisível.
Thom faz uma reflexão interessante sobre a teoria da catástrofe: sua teoria, do ponto de vista filosófico, não traria nenhuma grande resposta às grandes questões do ser humano, mas favoreceria uma visão dialético-heraclitiana do universo, “de um mundo que é o teatro contínuo da luta entre logoi, entre arquétipos” (Thom, “Catastrophe Theory: its presente state and future perspectives” apud Arnold, 1989, p. 146). Talvez, pensa Thom, ela terá o mesmo destino da psicanálise, ou seja, esta não cura doenças mentais na prática, mas nos traz um conhecimento profundo do ser humano. A teoria da catástrofe nos colocaria diante de uma situação como na Ilíada, em que um herói só pode se opor à vontade de um deus invocando o poder de uma divindade antagonista àquela, sendo que o resultado da luta é incerto[13]. Mais ainda, essa teoria deveria nos mostrar o caráter inelutável de certas catástrofes, como a doença e a morte: “O conhecimento não será necessariamente mais uma promessa de triunfo, ou de sobrevida, ele poderia ser muito bem a certeza de nosso fracasso, de nosso fim”.
Nossa intenção é entender o terremoto como um processo catastrófico conforme entendido pela ciência, isto é, como o acúmulo de pequenas forças tectônicas que gera um efeito abrupto e violento, e considerar a vivência de seus efeitos segundo a perspectiva trágica, ou seja, como uma reviravolta, uma peripécia, que muda a compreensão de mundo das pessoas, que buscam equilibrar a experiência com alguma justificativa. Mais especificamente, pretendemos mostrar que, segundo Nietzsche, a experiência de um terremoto faz a maioria das pessoas – o rebanho, como o filósofo frequentemente diz – buscarem a segurança nos entes imutáveis e eternos do além-mundo – na metafísica[14] – e que, para o próprio Nietzsche, que se considera portador de uma condição fisiológica elevada, a experiência sísmica apenas confirma o que ele já vivenciava ou acreditava vivenciar: o mundo como um vir-a-ser de contínua transmutação e de eterno conflito; em outras palavras, uma existência trágica[15].
O terremoto como uma experiência aterradora, capaz de mudar concepções de mundo, é bem explicitada por uma página do diário de viagem de Charles Darwin ao redor do globo no H.M.S. Beagle entre 1832 e 1836. Em 20 de fevereiro de 1835, o naturalista inglês estava em San Carlos (atual Ancud), na ilha chilena de Chiloé, quando ocorreu um severo terremoto[16]. Darwin estava na praia:
O balanço do chão era muito perceptível. As ondulações pareciam a mim e a meu acompanhante virem do leste, enquanto outros acharam que elas provinham do sudoeste, o que mostra quão difícil é, em todos os casos, perceber a direção dessas vibrações [...] o movimento me deixou quase tonto (Darwin, 1989, p. 228).
Ele compara a agitação corporal àquela da patinação sobre gelo fino, que se deforma sob o peso do corpo; durou apenas dois minutos, mas a percepção do tempo durante o abalo sísmico era muito maior, seu efeito foi drástico:
um forte terremoto, de uma vez só, destrói as mais antigas associações: o mundo, o próprio símbolo de tudo o que é sólido, movia-se debaixo de nossos pés como uma crosta sobre um fluido; em um segundo, é transmitida à mente uma estranha ideia de insegurança, que horas de reflexão nunca teriam criado (Darwin, 1989, p. 228-229).
Na cidade, onde o Capitão FitzRoy e seus oficiais estavam, o cenário era horrível, “embora as casas, construídas de madeira, não tivessem desmoronado, elas foram tão violentamente chacoalhadas que as tábuas rangeram e se abalaram. As pessoas saíram correndo para fora de suas casas alarmadas no mais alto grau” (Darwin, 1989, p. 229). Darwin não tem dúvida que é essa sensação súbita de insegurança em relação ao que nos parece sólido que causa o horror nos terremotos, o qual também acontece ao se perceber alterações nas marés e nas ondas.
Veremos que Nietzsche se utiliza dessa perda abrupta da estabilidade costumeira como metáfora dos choques sobre a certeza do conhecimento, mas que também descreve situações semelhantes às de Darwin quando vivenciou um grande terremoto em Nice.
3 O terremoto (Erdbeben) como metáfora em Nietzsche
Em seus textos de juventude, a metáfora já estava presente. No parágrafo V do texto não publicado, escrito entre 1873 e 1875, A filosofia na época trágica dos gregos, a concepção do fluxo constante de movimento do mundo provocaria uma sensação de terremoto naqueles que acreditam reconhecer algo rígido, acabado e sólido na existência:
O eterno e único vir-a-ser, a inteira impermanência de tudo o que é efetivo [Wirklichen], que apenas atua e vem a ser continuamente, mas nunca é, tal como ensina Heráclito, consiste numa representação assustadora e atordoante, que, em sua influência, se aproxima ao máximo da sensação de quem, num abalo sísmico [Erdbeben], perde a confiança na terra bem firmada. Foi necessária uma força espantosa para transpor esse efeito no seu contrário, no sublime e na feliz admiração. (Nietzsche, 2008, p. 59)[17]
Em outro texto de juventude, na Segunda Consideração Extemporânea: Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida (1874), a ciência provoca um abalo na crença do permanente e do eterno. No parágrafo 10 dessa obra, Nietzsche contrapõe a ciência à vida. Em sua visão, que parece ter um tom diferente do apresentado no texto acima, o aistórico (unhistorisch) e o supra-histórico (überhistorisch) devem prevalecer para que a vida tenha significado. O aistórico é a arte e a força de poder esquecer, enquanto o supra-histórico desvia a visão do vir-a-ser em direção daquilo que dá à existência o caráter de eternidade e identidade. Isso é conseguido pela arte e pela religião. A ciência, por sua vez, vê em tudo algo que veio a ser, histórico, possuindo um ódio ao esquecimento, e insere o homem “em um mar infinito e ilimitado de ondas luminosas do conhecimento do devir”, o que configuraria uma doença, a doença histórica. Para o jovem Nietzsche, o ser humano não pode viver dessa forma:
Assim como as cidades desmoronam e ficam desertas em um terremoto [Erdbeben] e o homem só sai de sua casa, no solo vulcânico, tremendo e fugidio, a vida colapsa. tornando-se fraca e temerosa, quando o abalo de conceitos [Begriffsbeben] que a ciência provoca toma do homem a crença no fundamento de toda segurança e tranquilidade, a crença no permanente e no eterno. (II Consideração extemporânea § 10; Nietzsche, 2017, p. 142)[18]
A perspectiva apresentada sobre Heráclito é a que vai prevalecer em toda sua obra a partir de Humano, demasiado humano (1878): a forte crítica à metafísica e aos entes eternos e imutáveis. Na Parte III de Assim falava Zaratustra, o terremoto é metáfora para a grande transformação anunciada por Zaratustra: a transvaloração de todos os valores[19]. No discurso “Dos três males” § 3, vemos expressa a destruição dos valores vigentes esgotados realizada pela superação da moral cristã niveladora e pelo predomínio da perspectiva de expansão da vontade de potência: “Ambição de domínio: o terremoto que rompe e destroça tudo o que é carcomido e oco; a rolante, punitiva destruidora de sepulcros caiados; o coriscante ponto de interrogação ao lado de prematuras respostas” (Nietzsche, 1980, p. 195)[20]. Tal disposição é entendida por Zaratustra como uma “virtude dadivosa”[21].
Uma nova cultura elevada, com novos valores surgidos como de um terremoto, é anunciada no discurso “Das velhas e novas tábuas” § 25:
Ó meus irmãos, não passará muito tempo e novos povos surgirão e novas fontes se lançarão, rumorejando, em novas profundezas.
Por que o terremoto – obstrui, sim, muitas fontes e deixa muita gente morrendo de sede, mas, também, traz à luz forças íntimas e misteriosas.
O terremoto revela novas fontes. Ao ruir de velhos povos irrompem novas fontes. (Nietzsche, 1980, p. 219)[22]
Novas fontes significam novos valores, e, na obra mais querida por Nietzsche, não se trata de um novo sistema de valores absolutos. Tratam-se de experimentos ou tentativas (Versuche) para uma nova e elevada cultura, e não de um contrato social.
Na Parte IV de Assim falava Zaratustra, o terremoto também é metáfora da transformação radical para aqueles que não conseguem se desvencilhar dos antigos valores. Em “Da ciência”, um dos homens superiores[23], o homem consciencioso – o homem de ciência –, busca, como todos os outros, segurança em Zaratustra e diz aos seus companheiros reunidos na caverna do sem-deus:
Eu, com efeito, procuro mais segurança: por isso vim ter com Zaratustra. Porque ele é ainda a torre e a vontade mais firmes –
Hoje em dia, quando tudo vacila, quando a terra toda treme. Vós, porém, quando vejo vossos olhos neste momento, parece-me, quase, que procurais mais insegurança – mais calafrios, mais perigos, mais terremotos. Quer-me quase parecer que desejais – desculpai-me a presunção, ó homens superiores –
Que desejais a vida pior e mais perigosa. (Nietzsche, 1980, p. 303)[24]
Mas é justamente isto que Zaratustra ensina: a vida com riscos, a coragem para a mudança, sem medos e sem o apelo a narcóticos que suavizam a existência. Percebemos que aqui a ciência recebe um papel inverso ao da II Consideração extemporânea: para o homem consciencioso, é segurança, a certeza da verdade; para o Nietzsche da Extemporânea, o caráter histórico da ciência solapa os profundos significados da existência humana.
Ainda com um tom otimista em relação à elevação da cultura, no aforismo 358 do Livro V de A gaia ciência (1886), Nietzsche vê, em sua época, a sociedade religiosa do cristianismo, isto é, a Igreja, abalada em seus alicerces, como um campo de ruínas produzido por tremores sísmicos: “a crença em Deus foi derrubada, a crença no ideal cristão-ascético trava ainda seu derradeiro combate” (Nietzsche, 2001, p. 258)[25]. Uma obra tão sólida – “foi a última construção romana!” – não foi destruída de uma vez só: “foi preciso que toda espécie de terremotos a sacudisse, que houvesse a colaboração de todo espírito que fura, escava, corrói, umedece”. O filósofo alemão indica, como principal força sísmica, os alemães, mais especificamente a Reforma Luterana: aqueles que mais se empenharam em conservar o cristianismo foram os que mais contribuíram para o seu abalo[26].
Como em Assim falava Zaratustra, em Ecce homo, ”Por que sou um destino” § 1 – livro escrito em estilo autobiográfico –, a transvaloração de todos os valores é vista como um terremoto avassalador, mas aqui os abalos estão associados ao próprio Nietzsche: “Um dia, meu nome será ligado à lembrança de algo tremendo – de uma crise como jamais houve sobre a Terra, da mais profunda colisão de consciências, de uma decisão conjurada contra tudo o que até então foi acreditado, santificado, requerido” (Nietzsche, 1995, p. 109)[27]. Nietzsche assume a transvaloração de todos os valores como sua tarefa pessoal: a superação das dualidades de qualidades absolutas e contrárias, tais como bem-mal, verdade-falsidade, corpo-alma etc., ou seja, a “oposição à mendacidade de milênios”. Para ele, quando o embate ocorrer, “teremos comoções, um espasmo de terremotos, um deslocamento de montes e vales como jamais foi sonhado”.
Não é apenas em sua obra publicada que aparece a metáfora do terremoto como o efeito de mudanças culturais; em suas cartas de juventude, ela igualmente está presente. Ao seu amigo filólogo Hermann Mushacke, em 11 de julho de 1866, Nietzsche fala sobre as mudanças que encaminham a unificação da Alemanha, expressa seu orgulho de ser prussiano e pergunta: “Não se tem a estranha sensação de que um terremoto tornou inseguro o terreno que se acreditava inabalável, como se a história [Geschichte] começasse a rolar após anos de estagnação e estivesse esmagando inúmeras circunstâncias com sua força?” (eKGWB BVN-1866, 511)[28].
Dezessete dias após o fim da Guerra Franco-Prussiana e da Comuna de Paris, Nietzsche comenta a notícia de que os revolucionários da Comuna teriam saqueado e incendiado o Museu do Louvre[29], temendo que a tomada de poder pelo povo destruísse a cultura:
O que é um estudioso diante de tais terremotos da cultura [Cultur]? Quão minúsculo alguém se sente! Usa-se toda a vida e as melhores forças para compreender e explicar melhor um período da cultura; como aparece essa profissão quando, em um único dia infeliz, se reduz a cinzas os documentos mais valiosos de tais períodos! (Carta ao filólogo e reitor da Universidade da Basileia Wilhelm Vischer-Bilfinger, responsável pela contratação de Nietzsche; eKGWB BVN-1871, 134).
Mas, como já sabemos, Nietzsche realmente vivenciou um grande terremoto. Embora essa experiência não seja citada explicitamente em seus textos publicados, acreditamos encontrar nesses escritos as consequências e a sua postura diante da catástrofe, relatadas nas cartas de 1887.
4 Nietzsche e o terremoto de Nice em 1887
Não foi apenas o grande terremoto de 1887 que Nietzsche vivenciou em Nice. Em carta ao seu grande amigo e teólogo Franz Overbeck, datada de 20 de fevereiro de 1885, o filósofo alemão conta que não consegue escrever devido a mais uma crise de dores de cabeça e dificuldades de visão, sofrimento agravado pelas condições da cidade francesa: “O inverno em Nice, desta vez, foi ruim e tem sido estranho. Uma inundação como não ocorria há 50 anos; dois terremotos; quatro vezes houve fortes chuvas com duração de 2 a 3 dias – algo inaudito aqui. Todos os doentes ficaram mais doentes” (eKGWB BVN-1885, 576)[30]. A Resa von Schirnhofer, doutora em filosofia pela Universidade de Zurich e também amiga de Malwida von Meysenbug, Nietzsche diz, em 11 de março, que foram “dois pequenos terremotos” (eKGWB BVN-1885, 578).
O terremoto de 23 de fevereiro de 1887 realmente foi grave, atingindo a Riviera Francesa e parte do norte da Itália. Seu epicentro exato é desconhecido, mas está localizado em algum ponto da Ligúria Ocidental, tendo se iniciado às 05h21min (hora local). Sua magnitude de momento foi de 7 em Nice, atingindo 8 Mw em outros locais, tendo como resultado tsunamis e mais de 1.000 mortos[31]. Nas descrições de Nietzsche, interessa-nos as comparações que ele faz entre as suas reações e aquelas das outras pessoas. Não nos preocuparemos com a veracidade ou não de seus relatos acerca do efeito do terremoto sobre si mesmo, importa-nos o modo que ele o expressou. Exploraremos a sua postura em seguida.
Igualmente ao prefácio de A gaia ciência, que apresentamos acima, Nietzsche viu o terremoto como uma experiência nova e rara, chamando-o até de “bem-intencionado [wohlgemeinten]”: “Porque vivemos a interessante expectativa de perecer – graças a um terremoto bem-intencionado que não fez apenas todos os cães uivarem por toda a parte” (carta ao pintor e escritor Reinhart von Seydlitz de 24 de fevereiro de 1887; eKGWB BVN-1887, 807). Para ele, foi interessante e divertido ver “quando as velhas casas chacoalham sobre alguém como moedores de café!, quando o tinteiro se torna independente!, quando as ruas se enchem de figuras seminuas aterrorizadas e com sistemas nervosos em frangalhos!”. Ainda, na mesma carta, Nietzsche destaca sua disposição em meio à multidão:
a população acampada dia e noite [na rua], um visual bem militar. [...] [os hóspedes dos hotéis] comiam e bebiam ao ar livre; e, além de uma velha muito piedosa, que estava convencida que o bom Deus não lhe permitiria nenhum mal, eu era a única pessoa alegre em meio a máscaras sinceras e “corações sensíveis [fühlenden Brüsten]”[32].
Em um cartão postal de mesma data ao seu grande amigo e músico Heinrich Köselitz, apelidado de Peter Gast, Nietzsche confessa sua ironia, já presente na mensagem acima:
Esta noite, por volta das 2-3 horas, dei uma volta e visitei algumas pessoas amigas minhas que acreditavam evitar o perigo ficando ao ar livre, em bancos ou em coches de aluguel. Eu também estou bem, nem um momento de terror – e até mesmo uma grande dose de ironia! (eKGWB BVN-1887, 805)
Ainda no mesmo dia, confirma sua pretensa frieza à sua mãe, Franziska Nietzsche: “É certo que a maioria dos forasteiros perderam a cabeça, mas tua velha criatura, não” (eKGWB BVN-1887, 806). À sua grande amiga Malwida, escritora e feminista, relata a mesma postura inabalável e que escrevia em meio aos escombros:
Pessoalmente, não “caí”, e mesmo naquela terrível manhã em que Nice parecia um hospício, trabalhei com muita calma em meu quarto (aliás, a casa estava deserta); [...] Além disso, o terremoto danificou tanto a casa em que foram escritas a terceira e a quarta partes do Zaratustra, que está sendo demolida. – Efemeridade! (carta de final de fevereiro de 1887; eKGWB BVN-1887, 809)
Podemos inferir que a condição fisiopsicológica do Sr. Nietzsche faz com que ele suporte a crua experiência da mutabilidade e efemeridade das coisas em meio ao vir-a-ser, em meio às catástrofes, ao menos em seu discurso[33], que ainda é o mesmo no início de março. Para o seu editor em Leipzig, Constantin Georg Naumann, escreve: “Seguramente leu acerca de nosso terremoto: os jornais dão uma imagem exagerada. Eu, pessoalmente, não fui ‘derrubado’” (02 de março de 1887; eKGWB BVN-1887, 810). A Köselitz, o filósofo expressa como enfrenta a previsão de ocorrência de mais tremores em março: “Até agora tenho me mantido com suficiente sangue frio e tenho vivido, em meio a milhares que enlouqueceram, com um sentimento de ironia e fria curiosidade. [...] O repentino, o imprévu, tem seu atrativo...” (07 de março de 1887; eKGWB BVN-1887, 814).
Fica claro, portanto, que Nietzsche sente que consegue lidar com as catástrofes, com as mudanças bruscas e com a efemeridade das coisas de modo diferenciado das outras pessoas. Ele não se desespera nem apela para forças transcendentes, como a “velha muito piedosa” que se sentia protegida por Deus: Nietzsche tem a grande saúde (grosse Gesundheit).
5 A grande saúde: passar por muitas doenças e muitas saúdes
Em Nice, durante o terremoto, Nietzsche teve a oportunidade de fazer um experimento, conforme apresentado no prefácio de A gaia ciência: o que ocorre com o pensamento do Sr. Nietzsche diante de uma catástrofe? A resposta a essa pergunta, ainda segundo esse prefácio, mostraria para que direção a reação de uma determinada configuração impulsional leva o pensamento: para a fuga através dos conceitos metafísicos imutáveis e eternos ou para o enfrentamento da efemeridade humana. Ainda mais: ao analisarmos essas respostas, que são tratadas pelo filósofo alemão como sintomas, poderíamos inferir se a dinâmica impulsional é saudável ou mórbida.
A disposição de Nietzsche durante e após o terremoto seria sintoma de um arranjo impulsional forte, isto é, potente e altamente hierarquizado, o que significa que o filósofo alemão enfrentaria as dores e as dificuldades com serenidade, sem apelar para uma instância transcendente e sem se desesperar. Tal disposição faz com que a experiência de uma doença ou de uma grande dificuldade renove o convalescente:
Com que malícia escutamos agora o barulho da grande feira com que o homem culto citadino se deixa violentar por arte, livros e música até sentir prazeres espirituais, não sem a ajuda de bebidas espirituais! [...] como se tornou estranho ao nosso gosto esse romântico tumulto e emaranhado de sentidos que o populacho culto adora, e todas as suas aspirações ao excelso, elevado, empolado! (A gaia ciência, “Prefácio” § 4; Nietzsche, 2001, p. 14)[34]
Como convalescente, Nietzsche rejeita a verdade a todo custo, especialmente uma verdade projetada para o além-mundo: “esse desvario adolescente no amor à verdade – nos aborrece: para isso somos demasiadamente experimentados, sérios, alegres, escaldados, profundos...”.
Nietzsche não passou apenas por uma doença e uma convalescença. Em Ecce homo, “Por que sou tão sábio” § 2, ele afirma:
Sem considerar que sou um décadent, sou também o seu antagonista [Gegensatz]. Minha prova para isso é, entre outras, que instintivamente sempre escolhi os remédios certos contra os estados ruins: enquanto o décadent em si sempre escolhe os meios que o prejudicam. (Nietzsche, 1995, p. 25)[35]
Esses meios prejudiciais são, por exemplo, o desespero e a transcendência. O filósofo alemão explicita que pensa ter uma configuração impulsional excepcional, pois não precisou de nenhum médico, curou a si mesmo: “A condição para isso – qualquer fisiologista admitirá – é ser no fundo sadio [im Grunde gesund ist]. [...] para alguém tipicamente são [...] o estar enfermo pode ser até um enérgico estimulante ao viver, ao mais-viver”. Nietzsche sublinha o caráter renovador das experiências limitantes e dolorosas para os “sadios no fundamento”, enquanto os tipicamente mórbidos não conseguem curar a si mesmos nem abrir mão dos consolos metafísicos tradicionais. E, igualmente ao que vemos quando, em suas cartas, compara si próprio com as outras pessoas em Nice, o filósofo considera-se distinto, distante e seletivo instintivamente: “[o saudável no fundamento] está sempre em sua própria companhia, lide com homens, livros ou paisagens: honra na medida que elege, concede, confia”. Sua calma e tranquilidade, postas nas cartas, também está presente em “Por que sou tão sábio” § 2: “Reage lentamente a toda sorte de estímulo, com aquela lentidão que uma larga previdência e um orgulho conquistado nele cultivaram [...] Descrê de ‘infortúnio’ como de ‘culpa’: acerta contas consigo, com os outros, sabe esquecer”. Não temos certeza se esses excertos de Ecce homo foram escritos inspirados em suas cartas de fevereiro a maio de 1887, mas a postura é, para nós, muito semelhante.
Se, como vimos acima, uma filosofia é uma interpretação do corpo e, consequentemente, vários estados de saúde e de doença produzem várias filosofias (cf. A gaia ciência, “Prefácio” § 2; Nietzsche, 1999, v. 3, p. 347-349), para a filosofia proposta por Nietzsche deve haver um tipo próprio e elevado de saúde, a grande saúde:
Nós, os novos, os sem-nome, os difíceis de entender, nós, os nascidos cedo de um futuro ainda indemonstrado - nós precisamos, para um novo fim, também de um novo meio, ou seja, de uma nova saúde, de uma saúde mais forte, mais engenhosa, mais tenaz, mais temerária, mais alegre, do que todas as saúdes que houve até agora. (A gaia ciência § 382; Nietzsche, 1999, v. 3, p. 635-636)
A grande saúde não busca prudência ou conservação, mas a experiência e o desbravamento: ela não é obtida definitivamente, deve ser constantemente conquistada. Seu resultado é o descontentamento com o “homem do presente” e o aparecimento de um novo horizonte: uma grande seriedade, na qual as verdadeiras questões são postuladas, uma seriedade das coisas “terrestres”. Em Ecce homo, “Por que sou um destino” § 8, temos o embate entre a fuga propiciada pelas noções metafísicas e aquilo que realmente interessa numa vida saudável:
Inventada a noção de “além”, “mundo verdadeiro”, para desvalorizar o único mundo que existe – para não deixar à nossa realidade terrena nenhum fim, nenhuma razão, nenhuma tarefa! A noção de “alma”, “espírito”, por fim “alma imortal”, inventada para desprezar o corpo, torná-lo doente – “santo” –, para tratar com terrível frivolidade todas as coisas que na vida merecem seriedade, as questões de alimentação, habitação, dieta espiritual, assistência aos doentes, limpeza, clima! Em lugar da saúde a “salvação da alma” [...]. (Nietzsche, 1995, p. 116)[36]
Enfim, a incapacidade de discernir o próprio interesse e a destruição de si próprio tornam-se qualidades, dever e santidade no homem. Uma imagem da grande saúde muito utilizada por Nietzsche é a resistência necessária para viver nas alturas, nas mais altas montanhas[37]: “para isso [a grande saúde] seria necessário o hábito do ar cortante das alturas, de andanças no inverno, de gelo e montanhas em todos os sentidos” (Genealogia da moral, “II dissertação” § 24; Nietzsche, 1999, v. 5, p. 336)[38]. Filosofia é, para Nietzsche, a “vida voluntária no gelo e nos cumes” (Ecce homo, “Prefácio” § 3; Nietzsche, 1999, v. 6, p. 258-259), isto é, enfrentar tudo o que é estranho e questionável na existência, aquilo que foi ocultado pela tradição metafísica e religiosa. E, para isso, é necessária a grande saúde. Para criar, ela é também necessária: é preciso criar novos valores e novas formas de pensar, tendo como meta a superação da moral da renúncia, do aniquilamento de si, que ensinou a desprezar os impulsos primordiais (cf. Ecce homo, “Por que sou um destino” § 7; Nietzsche, 1999, v. 6, p. 371-373). A perda da saúde e sua consequente convalescença num ciclo contínuo também são necessárias, já que com esse processo novas perspectivas aparecem e podem substituir as anteriores.
No entanto, na civilização europeia de sua época, Nietzsche vê a doença não como uma oportunidade de conhecimento, mas como tarefa de negar a vida em um meio predominantemente decadente:
Enfraquecer os desejos, os sentimentos de prazer e desprazer, a vontade de potência, o sentimento de orgulho, de ter e querer mais; o enfraquecimento como humildade; o enfraquecimento como fé; o enfraquecimento como desgosto e vergonha de tudo o que é natural. (eKGWB NF 1888, 14 [65])[39]
Há a incapacidade de superar o profundo estado de morbidade: “a negação da vida, como enfermidade e debilidade habitual...”.
O filósofo alemão denuncia que o esgotamento se aprofunda, pois, ao invés de se buscar fortalecimento, a decadência é justificada, isto é, interpretada (Auslegung) através da moralização: a calma da exaustão e o entorpecimento são confundidos com a “calma da força”, ou seja, com a abstenção da reação, “típica de deuses” (eKGWB NF 1888, 14 [65]). A moral cristã mascara a doença por meio de um estado espiritual-ascético ideal.
Entendemos que o pensamento de Nietzsche que expusemos acima se sustenta na sua doutrina da vontade de potência, na qual as dualidades de qualidades absolutas contrárias, como bem/mal, verdade/falsidade etc., são superadas pela postulação de um campo quantitativo contínuo: a linguagem, na ciência e em outros âmbitos, não consegue superar sua grosseria e ir além de representar oposições, onde haveria unicamente várias sutilezas de graus de potência e de hierarquização (cf. Para além de bem e mal § 24; Nietzsche, 1999, v. 5, p. 41-42). Assim, saúde e doença também não são qualidade contrárias, mas expressões ou sintomas de graus de potência de impulsos e seus graus de hierarquização. No fragmento póstumo de 1888, 14 [65], lemos:
Saúde e doença não são em nada essencialmente diferentes, como acreditavam os médicos antigos e acreditam alguns praticantes ainda hoje. Não se deve fazê-las princípios ou entidades distintas que lutam pelo organismo vivo e fazem dele seu campo de batalha. [...] Efetivamente, existem apenas diferenças de grau entre essas duas formas de existência: o exagero, a desproporção, a desarmonia dos fenômenos normais constituem o estado mórbido. Claude Bernard. ( eKGWB NF 1888, 14 [65])[40]
Essa ideia do exagero, proposta por Claude Bernard, é transposta por Nietzsche na desierarquização dos impulsos na luta por mais potência.
No mesmo fragmento póstumo, temos ainda uma outra ideia que responde à pergunta por que interessa a recuperação da saúde do Sr. Nietzsche, feita no prefácio de A gaia ciência: “O valor de todos os estados mórbidos consiste em que mostram em lente de aumento certos estados normais, que, como tais, não são fáceis de ver”[41]. É dessa forma que Nietzsche percebe – ou pensa perceber – que tem a predisposição para a grande saúde, que ele é saudável no fundamento. O filósofo alemão não apenas se recupera constantemente de suas doenças, de suas dificuldades e, especialmente no contexto deste artigo, dos efeitos de uma catástrofe, mas precisa ficar doente para mudar seu pensamento e suas próprias perspectivas, adquirir outros pontos de vista, enfim, possuir forças de resistência e, principalmente, de superação contra os perigos.
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Contribuição de autoria
1 –Wilson Antonio Frezzatti Juniorr.
Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP)
https://orcid.org/0000-0002-7519-3789 • wfrezzatti@uol.com.br
Contribuição: Escrita e primeira redação
Como citar este artigo
FREZZATTI JUNIOR, W. A. Nietzsche e as consequências de um grande terremoto: Metafísica ou Grande Saúde?. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 14 , n. 2, e85522, p. 1-21, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378685522. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
[1] Aqui fisiopsicologia significa a investigação da dinâmica dos impulsos ou forças em luta por mais potência. Tal dinâmica constitui todos os corpos vivos e não vivos. Neste artigo, utilizaremos fisiopsicologia e fisiologia como sinônimos. Em Para além de bem e mal § 23, Nietzsche define a fisiopsicologia como “morfologia e doutrina do desenvolvimento da vontade de potência [Morphologie und Entwicklungslehre des Willes zur Macht]” (Nietzsche, 1999, v. 5, p. 38). Sobre a fisiopsicologia, cf. Frezzatti, 2019, p. 161-173. Sobre a vontade de potência, cf. Marton, 2000, p. 41-72 e Müller-Lauter, 1997.
[2] Conforme tradução de Paulo César de Souza (a partir de agora, PCS). As citações cuja tradução não for indicada são de nossa responsabilidade.
[3] Conforme tradução de PCS.
[4] Conforme tradução de PCS.
[5] Sobre o perspectivismo nietzschiano, cf. Corbanezi, 2016, p. 336-338, e sobre a noção nietzschiana de interpretação, cf. Azeredo, 2016, p. 273-276.
[6] Conforme tradução de PCS.
[7] Conforme tradução de PCS.
[8] Conforme tradução de PCS.
[9] A definição de catástase é: “[Do gr. katástasis.] S.f. 1. Constituição, temperamento. 2. Teat. A terceira parte da tragédia clássica, que se segue à prótase e à epítase, e na qual os acontecimentos ou peripécias se adensam, se precipitam e se esclarecem; desenredo, desenlace. [Cf., nesta acepç.: catástrofe.] 3. Fon. V. articulação (5).” (Ferreira, 1986, p. 368).
[10] Nessa perspectiva, a ultrapassagem do métron (a hybris) ocorre quando o anér (herói) está em estado de êxtase (sair de si), tornando-se hypocrites (outro). Isso gera a nemesis (ciúme divino) e, em consequência, a ate (cegueira da razão), a punição imposta pela moira (cf. Brandão, 1985, p. 11).
[11] Eudoro de Souza traduz pathos como catástrofe ou catastrófico (cf., por exemplo, Poética XIV 1453b, in Aristóteles, 1973, p. 455). Por sua vez, Gazoni (2006, 79) prefere traduzir esse termo para evento patético ou patético. O pathos é definido no capítulo XI da Poética como uma das partes do enredo: “O evento patético [...] é uma ação destrutiva ou dolorosa, como as mortes, os sofrimentos e ferimentos em cena e tudo quanto seja desse tipo” (conforme tradução de Gazoni, 2006, p. 79). Segundo Gazoni (2006, p. 87): “A definição, entretanto, parece restringir o evento patético às ações danosas efetivamente realizadas, e aqui esse âmbito estende-se também às ações quase realizadas”. Para nós, não estão claras as razões da opção de se usar o termo “catástrofe” para traduzir pathos, no entanto nosso objetivo não é esclarecê-la, mas reter o sentido de ações danosas e destrutivas resultantes de uma ação trágica.
[12] A teoria de Whitney estuda os pontos máximo e mínimo de uma função, permitindo mapeamentos com várias funções de diversas variáveis. A teoria de Poincaré e Andronov aborda reorganizações qualitativas ou metamorfoses de vários elementos, resultantes de alterações de seus parâmetros.
[13] Thom afirma sobre a visão proporcionada pela teoria da catástrofe: “Trata-se de uma visão fundamentalmente politeísta a que ela nos conduz: em todas as coisas, é necessário reconhecer a mão dos deuses” (Thom, “Catastrophe Theory: its presente state and future perspectives” apud Arnold, 1989, p. 146). A mão dos deuses representa as forças naturais que se opõem umas às outras, as quais, após um certo tempo, produzem as catástrofes.
[14] Esse é o movimento de criar ídolos vazios, niilistas, para iludir-se quanto à realidade (Wirklichkeit) do mundo (cf. Crepúsculo dos ídolos, “Prefácio”; Nietzsche, 1999, v. 6, p. 57-58). Ou como Nietzsche declara nas linhas finais da III Dissertação da Genealogia da moral: “O homem prefere ainda querer o nada do que nada querer...” (Nietzsche, 1999, v. 5, p. 412).
[15] A postura de Thom, descrita acima, se próxima dessa disposição trágica.
[16] O terremoto ocorreu às 11h30min (hora local) e tem magnitude estimada de 8,5 Mw. Como a narrativa de Darwin sugere, o abalo sísmico provocou um tsunami que destruiu a cidade de Talcahuano (cf. 1835 Concepción earthquake. https://en.wikipedia.org/wiki/1835_Concepción_earthquake). Relata-se ao menos 50 mortos na região atingida pelo terremoto e pelo tsunami.
[17] Tradução conforme Fernando M. de Barros.
[18] Tradução conforme André L. M. Itaparica, modificada.
[19] A transvaloração de todos os valores é a ultrapassagem das dualidades de qualidades absolutas e contrárias, não se tratando de uma simples inversão. Sobre esse conceito, cf. Rubira, 2016, p. 399-402.
[20] Tradução conforme Mário da Silva (a partir de agora, MS).
[21] “Da virtude dadivosa” é o último discurso da Parte I de Assim falava Zaratustra, cf. Nietzsche, 1999, v. 4, p. 97-102.
[22] Tradução conforme MS.
[23] Em Assim falava Zaratustra, Parte IV, os homens superiores são aqueles que, embora tenham consciência da exaustão dos valores vigentes e os rejeitem, não são capazes de se livrar completamente deles e criar novos valores.
[24] Tradução de MS.
[25] Tradução conforme PCS. Como derradeiro combate, Nietzsche se refere ao que entende como as sombras de Deus presentes, por exemplo, nas noções de verdade na ciência e de igualdade nas correntes políticas niveladoras (democracia, socialismo e anarquismo).
[26] Essa ideia é corroborada em A gaia ciência § 148 (1882): “Em termos relativos, não houve jamais um povo mais cristão do que os alemães do tempo de Lutero: a sua cultura [Cultur] cristã estava prestes a desabrochar num centuplicado esplendor – faltava apenas uma única noite; mas ela trouxe consigo o temporal que pôs fim a tudo” (Tradução de PCS, in Nietzsche, 2001, p. 159). Em O anticristo § 61, Nietzsche dirá o contrário: o cristianismo, em um momento em que a corrupção estava demolindo-o, perdurou por ação do movimento luterano, um movimento antirrenascentista (cf. Nietzsche, 1999, v. 6, p. 250-252).
[27] Tradução conforme PCS.
[28] eKGWB indica Nietzsche Source: Digital Critical Edition; BVN refere-se às cartas de Nietzsche; e os números seguintes apontam o ano e o número da carta.
[29] De fato, Paris estava destruída após o embate entre tropas francesas e prussianas e também pela guerra civil. No entanto, o Louvre não sucumbiu às chamas: escapou por pouco, sendo atingido levemente pelo incêndio nas Tuileries (cf. Halévy, 1989, p. 88-89 e Safranski, 2001, p. 62-63).
[30] Não há registro, no The Share European Earthquake Catalogue (SHEEC), de terremotos no Mediterrâneo próximos da data dessas cartas de Nietzsche de 1885 (cf. https://www.emidius.eu/SHEEC/catalogue).
[31] Informações obtidas no site The Share European Earthquake Catalogue (SHEEC) 1.000-1.899, https://www.emidius.eu/SHEEC/catalogue.
[32] A frase “em meio a máscaras sinceras e ‘corações sensíveis’” é referência a um verso do poema “O mergulhador” (Der Taucher, 1797), composto por Friedrich Schiller: “Entre máscaras, o único coração sensível”. No poema, um jovem se lança em um redemoinho marítimo para buscar uma taça de ouro jogada pelo rei. Ao conseguir recuperar a taça, o jovem descreve os horrores das profundezas marinhas. O rei, ao lançar a taça ao mar mais uma vez, para saber mais sobre o fundo do mar, promete tornar o jovem um cavaleiro e a mão de sua filha, mas, desta vez, o mergulhador morre na tentativa.
[33] No entanto, em outra carta, a Overbeck de 24 de março de 1887, Nietzsche mostra que seus sentimentos reais em relação àquela casa poderiam ser outros: “O quarto andar da Pension de Genève, onde surgiram as 3ª e 4ª partes do meu Zaratustra, será agora totalmente demolido, depois de o terremoto tê-lo abalado completamente. Essa ‘efemeridade’ me machuca. – O chão ainda treme ocasionalmente” (eKGWB BVN-1887, 820). Palavras semelhantes aparecem em carta datada de 05 de junho de 1887 à sua irmã Elisabeth Förster-Nietzsche (cf. eKGWB BVN-1887, 855). Outra possibilidade é Nietzsche ter ficado realmente afetado a partir da ocorrência dos tremores secundários.
[34] Tradução conforme PCS.
[35] Tradução conforme PCS, modificada.
[36] Tradução conforme PCS.
[37] Em Ecce homo, “Assim falava Zaratustra” § 2, Nietzsche reivindica a grande saúde como o pressuposto fisiológico de Zaratustra e o explica com a citação de A gaia ciência § 382 (cf, Nietzsche, 1999, v. 3, p. 635-636). O ar frio das alturas é também o ambiente de Zaratustra. Durante a viagem até as ilhas bem-aventuradas, Zaratustra fala à sua consciência (Gewissen): “Eu já desejava o inverno e o gelo: ‘Oh, que o gelo e o inverno me fizessem ranger e estalar de novo!’. Suspirei: — então uma névoa gelada subiu de mim” (Nietzsche, 1999, v. 4, p. 205).
[38] Esse é o ar que Nietzsche credita aos seus próprios escritos, o qual, para ser suportado, é preciso uma compleição instintual saudável: “Quem sabe respirar o ar de meus escritos sabe que é um ar das alturas, um ar forte. É preciso ser feito para ele, senão há o perigo nada pequeno de se resfriar. O gelo está próximo, a solidão é monstruosa – mas quão tranquilas banham-se as coisas na luz! Com que liberdade se respira!” (Ecce homo, “Prefácio” 3; conforme tradução de PCS, in Nietzsche, 1995, p. 18).
[39] No caso dos fragmentos póstumos citados pela eKGWB, NF significa Nachgelassene Fragmente (Fragmentos póstumos); seguem-se o ano, o número do caderno e o número de sequência do fragmento.
[40] Essa concepção da relação entre saúde e doença foi encontrada por Nietzsche no também fisiologista francês Charles Richet, em O homem e a inteligência. Fragmentos de fisiologia e de psicologia (1884), do qual citamos um excerto representativo: “[Os fatos normais e os fatos patológicos] estão estreitamente unidos. Claude Bernard repetia isso frequentemente em seus cursos e em suas conversas: um fato mórbido é apenas um exagero de um fato normal” (Richet, 1884, p. 542).
[41] eKGWB NF 1888, 14 [65]. Essa postura se aproxima do método patológico de Théodule Ribot, no qual a doença desmonta as estruturas fisiológicas no sentido inverso ao da evolução: com isso, pode-se conhecer o próprio processo evolutivo. Sobre esse tema, cf. Frezzatti, 2019, p. 121-134.