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Descrição gerada automaticamente

Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85445, 2023

DOI: 10.5902/2179378685445

ISSN 2179-3786

Submissão: 02/10/2023 Aprovação: 01/02/2024 Publicação: 05/04/2024

1 INTRODUÇÃO.. 2

2 NEC PLUS ULTRA.. 5

3 A ASTÚCIA DE PANDORA.. 14

4 O FETICHISMO DOS MEIOS E O SEU SEGREDO.. 18

5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES. 23

REFERÊNCIAS. 24

 

Dossiê

Ninguém mais lerá a inscrição “Era uma vez...”

No one else will read the inscription “Once upon a time…”

Alisson Ramos de Souza IÍcone

Descrição gerada automaticamente

IUniversidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil

RESUMO

O presente artigo pretende apresentar, a partir da filosofia de Günther Anders, a mudança de nosso estatuto metafísico com o advento do antropoceno, o qual borrou os contornos que distinguiam a história natural e a história humana, em razão das mudanças climáticas. Tornamo-nos seres de um novo gênero, mas, também, apocalípticos de um novo gênero, a saber, apocalípticos profiláticos. O eixo apocalíptico já não é mais aquele da bomba, antes, é o do aquecimento global. A ideia progresso – que no século XX perdeu sua dimensão emancipatória – tornou o desenvolvimento técnico cúmplice da catástrofe, na medida em que o progresso oferece uma compreensão distorcida da história e do tempo. Seria preciso reeducar a nossa imaginação moral para adiar o fim do mundo.

Palavras-chave: Günther Anders; Progresso; Catástrofe

ABSTRACT

This paper intends to present, based on the philosophy of Günther Anders, the change in our metaphysical status with the advent of the Anthropocene, which blurred the contours that distinguished natural history and human history, due to climate change. We have become beings of a new genre, but also apocalyptic of a new genre, namely, prophylactic apocalyptist. The apocalyptic axis is no longer that of the bomb, but rather that of global warming. The idea of progress – which in the 20th century lost its emancipatory dimension – made technical development an accomplice to the catastrophe, to the extent that progress offers a distorted understanding of history and time. It would be necessary to re-educate our moral imagination to delay the end of the world.

Keywords: Günther Anders; Progress; Catastrophe

“That is the way the world ends. Not with a bang but a whimper”. T. S. Elliot

1 INTRODUÇÃO

Se é certo, como disse Hegel certa vez, que a filosofia é um tipo de saber que não profetiza, na medida em que ela é um empreendimento que sempre chega com atraso, servindo apenas para constatar aquilo que já aconteceu, então, uma reflexão sobre a catástrofe, se ela se pretende filosófica, deve se dirigir sobre o que já está consumado. Com efeito, ou se trata aqui de uma profecia de um áugure ou a catástrofe já aconteceu, ou, no limite, está acontecendo. Antes de compreender o que nos levou à catástrofe, seria necessário compreender o que é catástrofe, isto é, perguntar por seu sentido, defini-la e conceituá-la e, a partir daí, desenvolver uma reflexão sobre o tema, então, só depois estaremos autorizados a verificar se estamos de fato vivendo sob o signo da catástrofe. Porém, a urgência da situação exige abordar o problema de imediato, assumindo que os dias de reflexão ficaram para trás: é preciso transformar o mundo mais do que interpretá-lo. Se houver um depois, podemos fazer um balanço e todas a considerações devidas: talvez, a reflexão possa ser adiada, mas não a própria catástrofe. De algum modo, supor que a catástrofe deve ser impedida significa admitir que a catástrofe já está presente, ao menos, enquanto uma possibilidade.

É uma injunção do bom senso exigir que uma investigação – que se pretende razoável – comece a partir de resultados factuais, testando seus mecanismos e condições de possibilidade. No entanto, o que se busca aqui são as causas de um não-acontecimento. Assim como nas reflexões de Günter Anders (2002, p. 316), “estamos nos ocupando de algo que não aconteceu”. O nosso procedimento é caricatural[1], na medida em que “se um objeto permanece, por essência, indistinto, minimizado ou recalcado, é preciso, então, para expô-lo – e assim trazer à tona a verdade que há nele – remediar essa indeterminação, exagerando ainda mais seus contornos, visto que eles estão ordinariamente ‘borrados’” (Anders, 2002, p. 262).

O terreno filosófico de Anders era aquele da bomba, o nosso, da crise climática[2], ou melhor, Anders é o pensador de uma catástrofe brusca e ruidosa, a saber, a catástrofe da bomba. Por isso, seria necessário perguntar se o que ele diz ainda guarda alguma pertinência. Certamente, nosso mundo expira, todavia, não com uma explosão – para empregar a expressão de Elliot –, mas com um gemido. As reflexões de Anders incidiam sobre o apocalipse nuclear, e o que se trata de investigar, aqui, é o apocalipse climático, devido ao aquecimento global e as mudanças climáticas – nomeados antropoceno ou intrusão de Gaia, pouco importa – que, a cada dia, tornam-se irreversíveis. Deve-se lembrar, entretanto, que “a angústia do aquecimento global faz ressurgir a lembrança da época em que muitos temiam uma guerra nuclear global” (Chakrabarty, 2013, p. 22). De todo modo, é a questão do fim que se coloca em ambos os casos. O nosso século já não prefere acreditar num fim repentino, mas, no fim progressivo: nosso mundo se tornou moribundo. E o fim progressivo está ligado também ao fim do progresso; se nos for permitido dizer, o grande acontecimento da nossa época é o fim dos grandes acontecimentos, ou, o que dá no mesmo, o apocalipse climático. Assim, o anúncio da catástrofe é, ao mesmo tempo, o anúncio do fim do progresso. Para Anders, a bomba de Hiroshima havia modificado nosso estatuto metafísico; deve-se acrescentar aí uma segunda metamorfose, aquela derivada da indistinção entre história natural e humana. Dito isso, o artigo divide-se em três momentos: primeiramente, será apresentado, o esvaziamento da noção de progresso e os paradoxos do tempo profético; em seguida, trataremos da mudança de estatuto ontológico de nossa espécie. Por fim, apresentaremos a secularização da noção de apocalipse e as causas do nosso cegamento diante do apocalipse climático, apostando na restituição de nossa imaginação moral.

2 nec plus ultra

Günther Anders (2007, p. 11) adota um acontecimento decisivo para a reconfiguração de nosso estatuto metafísico: o acontecimento nomeado Hiroshima. Tornamo-nos outros, a partir daí; “somos seres de um novo gênero”, segundo ele. Doravante, “passamos do posto do ‘gênero dos mortais’ àquele do ‘gênero mortal’” (Anders, 2007, p. 13). Isso deve ser compreendido não somente no sentido de dever-morrer, mas também no sentido de poder-morrer. Mas por que Hiroshima é o acontecimento decisivo para nossa transformação metafísica? Até 1945, segundo Anders (2007, p. 13), “não exercíamos senão um papel coadjuvante em uma peça sem fim, em uma peça em que quebrávamos nossa cabeça para saber ela tinha ou não um fim. A peça na qual representamos homens impotentes se tornou, agora, ela mesma secundária”. Todo relato da emancipação racional – herdado da Aufklärung – foi jogado fora, uma vez que a promessa da técnica se cumpriu sob a forma da destruição em massa. A técnica e o esclarecimento caminham em proporção inversa, já ensinavam Adorno e Horkheimer. Se o progresso se confunde com a catástrofe[3], como sugeriu Walter Benjamin, a Revolução deve deter o progresso, isto é, puxar o freio de emergência, na medida em que “se a humanidade permitir que o trem siga seu caminho – já inteiramente traçado pela estrutura de aço dos trilhos – se nada vier interromper seu curso vertiginoso, vamos rápida e diretamente para o desastre, o choque ou a queda no abismo” (Löwy, 2005, p. 94). O célebre adágio de Fredric Jameson, segundo o qual era mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo era uma maneira de lembrar que o apocalipse havia se secularizado, isto é, havia deixado de ser um artigo de fé para se tornar um artigo da ciência. Entretanto, ainda somos cegos diante dessa Revelação, porquanto a cega confiança no progresso resiste a despeito de seu teor ter se esvaído: a crença no progresso – que havia se tornado uma espécie de segunda natureza – nos ensinou que “pertence à essência de nosso mundo histórico ser inevitavelmente sempre melhor” (Anders, 2007, p. 88-89). Com efeito, o progresso havia sido o ópio moderno. A crença no progresso, observa Anders (2002, p. 309):

É a crença à qual aderimos durante gerações, a crença numa progressão pretensamente automática da história, que nos privou da capacidade de visar o “fim”. Privou até mesmo aqueles entre nós que já não acreditam no progresso. Porque a nossa atitude perante o tempo, nossa maneira de visar o fim em particular, recebeu sua forma da crença no progresso e ainda não a perdeu.

Se aqueles que acreditam no progresso recusam-se a imaginar um fim, é porque esta crença se reveste em uma “uma mentalidade que tem uma ideia muito específica de ‘eternidade’, que representa como uma melhoria ininterrupta do mundo” (Anders, 2002, p. 311). Mas o progresso não é somente uma imagem da história, mas, de modo mais profundo, uma imagem do tempo, ou seja, de um esquema que contém começo, meio e fim, distribuindo passado, presente e futuro. A história é compreendida, assim, como aprioristicamente sem fim, ela é “um destino feliz, como a progressão imperturbável e irresistível do sempre melhor (Anders, 2002, p. 309). Todavia, já não há mais finalidade, mas somente Fim: a escatologia se tornou o único logos possível, justamente, porque o logos já não é possível. O fim que se assiste hoje, de maneira impassível e desinibida, já não é mais aquele do estardalhaço da bomba, mas, antes, é um gemido tímido, um estertor quase silencioso, a despeito dos alertas dos cientistas a respeito da emergência climática. O futuro deixa de se inscrever numa teleologia histórica: o por vir já não terá história, visto que “nem tudo o que está por vir deve necessariamente ser considerado ‘futuro’” (Anders, 2002, p. 314). Hoje, a bomba atômica parece-nos uma ameaça distante, sobretudo, porque temos outras emergências para lidar: o aquecimento global. As alterações climáticas são fenômenos de longue durée, geo-históricas, elas dizem respeito mais à história mundial (weltgeschichte) do que a um momento particular que denominamos a nossa época, visto que “a história (a historicidade) da mudança climática não cabe dentro da história (e da historiografia) da mundialização” (Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 109).

Acontecimentos e fatos são historicamente infraliminares quando sua significação é tão ínfima que os historiadores não os mencionam em suas obras; a disciplina histórica negligencia tais acontecimentos devido à sua irrelevância: é o caso da sesta de um homem político, ou ainda, da primeira dentição de um imperador. Inversamente, há acontecimentos historicamente supraliminares, visto que eles são tão incalculavelmente grandes que excedem a dimensão histórica: é o caso das catástrofes naturais. A título de exemplo, “o desaparecimento da Atlântida”, afirma Anders (2002, p. 291), “(assumindo que ela tenha existido) não foi uma catástrofe histórica, uma catástrofe que ocorreu na história; antes, como evento final na história da Atlântida, foi algo que não conseguiu entrar na história: algo ‘historicamente supraliminar’”. Anders (2002) observa que, em nossa época, as experiências deixaram de ser meramente históricas, elas se tornaram “historicamente supraliminares”.

Quando o futuro se encontra ameaçado, são os próprios mortos que se encontram em perigo, visto que é a própria aventura humana que se encontra em jogo. Por isso, “pode ser que o futuro não precise de nós, mas nós, nós precisamos do futuro porque é ele que dá sentido a tudo o que fazemos” (Dupuy, 2013, p. 200). É o futuro que confere sentido às ações presentes e passadas: na ausência de futuro tudo terá sido debalde. É próprio a qualquer acontecimento, diz Stengers (2015, p. 31), “fazer com que o futuro que será seu herdeiro se comunique com um passado contado de modo diferente”. Um acontecimento se prolonga, portanto, em duas direções: modifica o passado, ao mesmo tempo, em que modifica o futuro. Mas não havendo mais futuro, não somente o futuro ele mesmo perde sua relevância, mas também o passado. Com efeito, é a própria história, diz Anders (2007, p. 18), que está “doravante em perigo de se reduzir (como se ela fosse uma parte de si mesma) a um acontecimento final”. Anders (2007, p. 20) acrescenta que “pertencerá à ‘essência’ da totalidade da História que aconteceu (à diferença dos acontecimentos que aconteceram nela) que ninguém se lembrará dela e não poderá transmiti-la à posteridade” (Anders, 2007, p. 20). Sem transmissão e sem continuidade não há também história. A nossa época não poderá nem mesmo ser comparada a qualquer outra, pois já não teremos mais a chance de passar o bastão prometeico para as gerações futuras.

*

Hypothesis fingo: é preciso imaginar o fim do mundo para deter o fim do mundo, ou melhor, deve-se pensar a catástrofe para não ser cúmplice dela. Nesse sentido, Hans Jonas (1992, p. 168) nota que “a profecia do infortúnio é feita para evitar que ela se realize; e zombar, posteriormente, dos eventuais sinais do seu alarme, lembrando que o pior não se realizou, seria o cúmulo da injustiça: pode ser que seu dano seja seu mérito”. Eis o paradoxo do tempo catastrófico: “se se deve prevenir a catástrofe tem-se de acreditar em sua possibilidade antes que ela se produza. Se, inversamente, consegue-se preveni-la, sua não-realização a mantém no domínio do impossível, e os esforços de prevenção aparecem nela retrospectivamente inúteis” (Dupuy, 2002, p. 11). Certamente, este é um risco que estamos dispostos a correr; do contrário, isto é, se a profecia se concretizar, então, não haverá nenhum tribunal no futuro para realizar o nosso julgamento. Devemos nos declarar culpados por suspeita – sem presunção de inocência –, pois só assim se pode evitar a catástrofe maior. Deve-se, portanto, dizer que a catástrofe já aconteceu para que ela não se realize; por isso, não se trata de afirmar que sua proximidade é algo que nos espreita logo a frente, cuja possibilidade se torna a cada dia mais real. É preciso que o acontecimento aconteça para que ele não possa acontecer, ou melhor, se repetir. Noutras palavras, para impossibilitar o possível, devemos agir como se possível já tivesse se realizado. E a catástrofe já é real, embora não tenha sido atualizada, por conseguinte, já não é na lógica do possível-real que ela deve ser anunciada, mas naquela do virtual e do atual.

Paradoxalmente, é preciso que o futuro não se concretize para que haja futuro. Se o futuro está, como observa Lapoujade (2013, p. 237) encerrado “no interior dos limites do capitalismo, que captura todas as suas possibilidades para estender-se, propagar-se”, devemos então revogar a ideia mesma de futuro. E não é possível compor com capitalismo, segundo a expressão de Stengers (2015), antes, deve-se lutar contra o seu domínio. Nesse sentido, “nomear Gaia, a que faz intrusão, significa que já não há depois. É agora que se tem de aprender a responder, que se tem, especialmente, de criar práticas de cooperação de substituição com aqueles e aquelas que a intrusão de Gaia estimula doravante a pensar, imaginar e agir” (Stengers, 2015, p. 51). Em suma, é preciso dizer que não haverá mais futuro, ou, o que dá no mesmo, que a catástrofe já aconteceu. O anúncio do fim do futuro diz respeito mais ao nosso tempo do que a um tempo por vir. Trata-se de “uma espécie de avaliação do presente; talvez a ideia mesma de futuro não seja outra coisa senão um diagnóstico do presente (Lapoujade, 2013, p. 233-234). Por isso, o anúncio da catástrofe não se dirige ao futuro, mas ao presente. Assim, anunciar a catástrofe talvez seja a única maneira de impedi-la. Segundo Jean-Pierre Dupuy (2013, p. 201):

A prevenção consiste em fazer com que um futuro possível que não queremos que aconteça não se atualize. A catástrofe, ainda que não se tenha realizado, conservará o estatuto de possível, não no sentido de que ainda seria possível que ela se realizasse, mas no sentido de que sempre será verdade que ela poderia ter se realizado. Quando se anuncia que uma catástrofe se aproxima a fim de evitá-la, este anúncio não tem o estatuto de uma pré-visão, no sentido estrito do termo: ele não pretende dizer o que será o futuro, mas simplesmente dizer o que teria sido o futuro se não se tomasse cuidado.

            A nomeação da catástrofe não é um enunciado descritivo, mas, performativo, ou seja, é mais uma operação do que uma definição. Nesse sentido, “nomear [a intrusão de Gaia] não é dizer a verdade, e sim atribuir àquilo que se nomeia o poder de nos fazer sentir e pensar no que o nome suscita” (Stengers, 2015, p. 37). De certo modo, é preciso ensaiar o fim do mundo para não que ele não seja encenado. A profecia da catástrofe tem, então, uma dimensão performativa, um pouco como faz o arauto da revolução, visto que “dizendo as coisas, ela as faz vir a existir” (Dupuy, 2013, p. 205). Mas, diferente do que deve ocorrer no anúncio de uma revolução, “trata-se de dirigir-se por um projeto negativo que toma a forma de um futuro fixo, de um destino, que não queremos” (Dupuy, 2013, p. 205). Nesse sentido, Dupuy lembra a parábola de Noé, contada por Anders:

Noé estava cansado de fazer o papel dos profetas da desgraça e de sempre anunciar uma catástrofe que não acontecia e que ninguém levava a sério. Um dia, ele se vestiu com um saco velho e jogou cinzas sobre a cabeça. Este gesto só era permitido àquele que chorava por um filho querido ou pela esposa. Vestido com o traje da verdade, ator da dor, ele voltou para a cidade, decidido a colocar a seu favor a curiosidade, a maldade e a superstição dos habitantes. Logo ele reuniu à sua volta uma pequena multidão curiosa, e as questões começaram a aparecer. Perguntaram a ele se alguém havia morrido e quem era a pessoa morta. Noé lhes respondeu que muitos estavam mortos e, para grande divertimento dos seus ouvintes, ele lhes disse que os mortos eram eles mesmos. E, quando lhe perguntaram quando esta catástrofe tinha acontecido, ele respondeu: amanhã. Aproveitando-se então da atenção e da confusão, Noé ergueu-se em toda sua grandeza e se pôs a falar: depois de amanhã o dilúvio será alguma coisa que terá sido. E quando o dilúvio tiver sido, tudo o que é não terá jamais existido. Quando o dilúvio tiver levado tudo o que é, tudo o que terá sido, será tarde demais para lembrar porque não existirá mais ninguém. Então não haverá mais diferença entre os mortos e os que os choram. Se eu vim diante de todos foi para inverter o tempo, para chorar hoje os mortos de amanhã. Depois de amanhã será tarde demais. Com isso, ele voltou para casa, tirou seus trajes, limpou a cinza que lhe cobria o rosto e foi para a oficina. À noite, um carpinteiro bateu à sua porta e disse: deixe-me ajudá-lo a construir a arca, para que isto não se torne verdadeiro. Mais tarde, um telhador se juntou aos dois dizendo: chove sobre as montanhas, deixem-me ajudá-los para que isto não aconteça (Anders apud Dupuy, 2013, p. 196).

Dupuy (2013, p. 202) nota que “o futuro anunciado não tem de coincidir com o futuro atual, a antecipação não tem de se realizar, porque o ‘futuro’ anunciado ou antecipado não é, de fato, o futuro, mas um mundo possível, que é e permanecerá não atual”. Dizer que o futuro anunciado permanecerá possível, embora não atual, significa, assumir que há uma distinção entre realização e atualização. É Deleuze (1988) quem faz uma distinção entre os pares possível-real e virtual-atual. Em relação ao virtual deve-se tomar o cuidado para não retirar a realidade que ele já possui, e não atribuir uma atualidade que ele não tem. O processo do possível é a realização, ele deve se realizar. Dito de outro modo, o processo do possível é a realização, o que significa que ele não tem realidade; mais ainda, ele se opõe ao real. O processo do virtual, por sua vez, é a atualização, uma vez que o virtual não necessita se realizar: “ele possui uma plena realidade por si mesmo” (Deleuze, 1988, p. 339). Considerado dessa maneira, o virtual é real, mas o possível, não. Embora não designe um estado de coisas presente, o virtual é dotado de realidade. Enquanto o atual possui uma existência no extenso, a virtual possui uma insistência na intensidade. Se a catástrofe anunciada permanecerá de algum modo – isto é, persistindo e insistindo –, é porque ela não é meramente possível: ela já é real, embora enquanto virtual. A catástrofe deve nos assombrar, mas não se atualizar.

Seria o caso de distinguir entre um possível-real e um possível meramente imaginário. Um possível-imaginário define-se por sua atualidade; o possível-real, por outro lado, define-se por sua virtualidade. Um possível imaginário é aquilo que pode ou não acontecer e, de certo modo, pode-se dizer que ele antecede o acontecimento, mas um possível real, inversamente, não antecede o acontecimento, ao contrário, é o acontecimento que cria o possível, inaugurando um novo campo de possíveis. O estatuto do possível é mais psicológico e imaginário do que objetivo. Quando um possível-imaginário se atualiza, ele não traz nada de novo, pois este possível – meramente possível – é um decalque do atual que ele imita por restrição. Ou ainda: quando um possível imaginário se atualiza tem-se um dejà-vu, mas quando um possível real se atualiza tem-se, antes, um jamais-vu. Tem-se, aqui, um real sem surpresa, dado de antemão e incapaz de criar linhas divergentes, uma vez que a ideia de possível sugere um real completamente feito, pré-formado e preexistente, que passa a existência como que num passe de mágica. Assim compreendido, o real é somente uma transposição do possível, e se sucumbe inevitavelmente em uma ilusão retrospectiva que consiste em retroprojetar no real uma imagem abstrata dele mesmo. Tudo se passa como se o real reproduzisse o possível, como se o real não fosse uma produção, mas uma reprodução. Um possível-real, por sua vez, em nada se assemelha ao atual; antes, o possível-real – sendo virtualidade – opera por diferenciação. Vale observar que o virtual já é real, ou seja, não falta realidade a ele. Portanto, o virtual não se realiza, mas se atualiza. A atualização não opera por semelhança, mas por diferenciação. O virtual não precisa se realizar – visto que já é real –, mas tem que se diferenciar. E se atualizar é coisa distinta de imitar ou reproduzir: a atualização do virtual é um processo de emergência da novidade. Dito de outro modo, a atualização cria linhas divergentes e sem semelhança que explicam a multiplicidade virtual. Uma vez mais, no possível-imaginário a disjunção é exclusiva: escolhe-se um termo e se abdica do outro; mas o possível-real se passa de maneira diferente. A disjunção ainda subsiste, mas ela deixa de ser exclusiva e se torna inclusiva. Assim, a disjunção inclusiva não conduz à indiferenciação, pois os termos preservam sua distância indelével, sem suprassumir-se. É em nome do possível-real que se deve enunciar e anunciar o possível-imaginário. É preciso impossibilitar o possível-imaginário para possibilitar o possível-real.

3 A ASTÚCIA DE PANDORA

Talvez, a verdadeira vingança de Zeus contra o nosso orgulho prometeico seja persistência da esperança[4], pois é ela que sustenta a crença no progresso, que confere lastro à ideia de que o amanhã será melhor do que o ontem. Para nós, a marcha para o futuro contém na situação esperada sempre o germe de uma situação melhor. Vivemos como que condenados ao melhor dos mundos possíveis: inevitavelmente, “não se pode imaginar nada melhor que o fato de se tornar sempre melhor” (Anders, 2007, p. 89). Acreditamos que sempre estamos em condição melhor que a dos nossos antepassados. A despeito do diagnóstico do fim das grandes narrativas emancipadoras, perdura ainda a crença na possibilidade do resgate do projeto das Luzes, a fim de restabelecer as promessas da racionalidade. Outros preferem apostar as suas fichas no fim, na aceleração da catástrofe para que – num perverso teleologismo dialético – algo de bom possa surgir. De um modo ou de outro, “o amanhã assume o caráter duplo de uma insignificância e de uma catástrofe possível; entre uma coisa e outra, transcorre uma pequena esperança de travessia” (Sloterdijk, 2012, p. 150). Seria preciso abrir uma última ferida em nosso orgulho narcísico, qual seja, despojar-nos de nossa confiança histórica, admitindo que não somos senão caipiras cósmicos. Anders (2002) sugere que já não se trata mais de saber como a humanidade deve continuar existindo, mas, antes, se ela deve continuar existindo, pois o mundo passa muito bem sem nós. Maneira de dizer que “somos nós que precisamos do futuro, e não o futuro que precisa de nós” (Dupuy, 2013, p. 200). Para Anders (2007, p. 14):

A desilusão daqueles que inicialmente acreditaram ingenuamente, presas de uma loucura de grandezas metafísicas, habitar o centro do universo, mas de repente tiveram de reconhecer que este último poderia funcionar tão bem sem eles, que a sua capital não era, de fato, nada além do que uma cidade provinciana sem importância que ninguém observava desde um outro planeta.

Reconhecer isso equivale ferir o nosso orgulho geocêntrico e abandonar o trono de espécie eleita. No entanto, nossa espécie deixa pegadas ecológicas por onde caminha. É claro que a nossa espécie sempre teve uma relação interativa com a natureza, mas o que ocorre, hoje, diferente de qualquer época histórica, é a capacidade que temos de modificar a natureza de modo indelével. A distinção entre história natural e humana deixou de vigorar, “os cientistas do ambiente postulam que o ser humano se tornou muito maior do que o simples agente biológico que sempre foi. Os seres humanos agora exercem uma força geológica” (Chakrabarty, 2013, p. 9). Para o bem ou para o mal, exercemos uma força jamais vista em nossa recente história[5]. Fenômenos climáticos extremos não podem mais ser atribuídos ao capricho dos deuses, visto que os fenômenos naturais se tornaram, há algum tempo, antrópicos. Tornamo-nos, de uma só vez, titãs e pigmeus, ou melhor, “seres em suspenso [en sursis] – seres mortais como um grupo e não como indivíduos” (Anders, 2002, p. 269). Não somos simplesmente formadores de mundo, ao mesmo tempo, somos destruidores de mundo. A história humana sempre foi vista como uma espécie de superestrutura que se eleva sobre uma infraestrutura natural. Tínhamos a segurança de que havia, de um lado, a Φύσις e a τέκνη, de outro; mas, agora essas duas ordens se tornaram, por assim dizer, indistintas. Isso ocorre porque as ações humanas comparam-se em escala ao movimento das placas tectônicas; um pouco como se o humano tivesse finalmente se reconciliado com a natureza.

É lícito dizer que mais do que representantes de uma geração histórica, a saber, a primeira geração dos últimos homens, tornamo-nos seres de uma nova espécie – embora não tenhamos mudado anatomicamente –, trata-se de uma mudança completa “na nossa posição em relação ao universo e a nós mesmos [...] seres que não são menos distinguíveis do tipo ‘homem’, tal como tem sido usado até agora, do que o super-homem se distinguia do homem aos olhos de Nietzsche” (Anders, 2002, p. 266). Segundo Anders (2007, p. 19):

Sempre se falou de não-ser, mas era de uma não-ser no espaço do ser que estava em questão. Sempre houve seres para falar desse não-ser. Era sempre de um “não-ser para nós”, de um “não-ser ao uso do homem” que estava em questão. O que se tem, agora, diante de nós, é um “não-ser para ninguém”. Ninguém mais terá a chance de ler a inscrição “era uma vez”.

A história perde, assim, sua dimensão iterativa: a primeira vez da tragédia será também a última. Não à toa, Anders (2007, p. 20) nos caracteriza como “a primeira geração dos últimos homens”. Se o apocalipse é o que nos aguarda no futuro, pode-se dizer que o futuro já começou, ou melhor, a ausência de futuro já começou. Já não vivemos, pois, o fim dos tempos; ao contrário, vivemos o tempo do fim. É aí que intervém a noção de apocalipse, o qual deixou de ser um artigo de fé. Nas escatologias religiosas, o juízo final é aguardado e esperado ansiosamente, visto que há a promessa do reino de Deus. O fim dos tempos não é o fechamento, mas abertura para uma situação positiva. Dito de outro modo, o fim não é, de fato, um fim. Hoje, diz Anders (2007, p. 88), “dispomos do conceito de apocalipse nu, isto é, de um conceito de apocalipse que consiste em um simples fim do mundo que não implica a abertura de uma nova situação positiva (a situação do ‘reino’)” (Anders, 2007, p. 88). Não esperamos nenhum reino de Deus, na verdade, não esperamos nada. Por conseguinte, além de um novo gênero de homens, tornamo-nos também apocalípticos de um novo gênero: tornamo-nos apocalípticos profiláticos. À diferença dos apocalipses clássicos, não apenas acreditamos ou esperamos o fim, mas “nossa paixão apocalíptica não tem outro objetivo senão impedir o apocalipse” (Anders, 2007, p. 30). Para Anders (2007, p. 30), “ninguém jamais teve este objetivo na história da escatologia: sobre o fundo das atitudes apocalípticas conhecidas da história das religiões, este objetivo é provavelmente absurdo. Mas ela é somente, enquanto tal, uma reação a uma coisa ela mesma absurda”. Só nos resta adiar o fim do mundo, ou seja, evitar que o futuro se concretize. O fim deixou de ser metafórico para qualificar o momento apocalíptico, antes, “é o discurso que se sustentava outrora sobre o ‘fim’ que é metafórico (Anders, 2007, p. 112). Isso se deve porque o próprio futuro deixou de ter uma dimensão soteriológica, na medida em que se trata de uma corrida que não leva a parte alguma. Nesse sentido,

[...] nossa posição se tornou tão clara-obscura quanto foi a situação escatológica dos cristãos. Nada seria mais funesto do que não saber se devemos assistir a catástrofe como se ainda estivesse diante de nós [...]; ou se podemos nos permitir [...] nos organizar no mundo como se já tivéssemos passado para o outro lado da montanha; ou mesmo se podemos considerar o fim como um “acontecimento perpétuo” (Anders, 2007, p. 98).

Embora estejamos vivendo com a espera angustiante do fim, a disposição escatológica parece ter desaparecido. Um pouco como se vivêssemos de maneira intemporal: o futuro não nos pertence mais, motivo pelo qual estamos privados de um horizonte que nos permita vislumbrar a possível catástrofe. Ora, para Anders (2002), se permanecemos incapazes de pensar na iminente desaparição do futuro, quer dizer, da possível catástrofe, é porque, em larga medida, simplesmente ignoramos o futuro. A catástrofe é como a carta roubada que nos cega: não devido ao seu caráter auto evidente, mas porque o próprio horizonte de manifestação não pode mais ser concebido.

4 O fetichismo dos meios e o seu segredo

A produção de meios tornou-se o fim da nossa própria existência. Os meios justificam os fins: o mundo inteiro deve ser oferecido em sacrifício no altar do progresso. Anders (2023, p. 27) sugere que “devemos renunciar definitivamente à ingênua esperança otimista do século XIX de que o ‘esclarecimento’ (Aufgeklärtheit) do ser humano avançaria automaticamente com o desenvolvimento técnico”. Alternativas cínicas, por exemplo, “desenvolvimento sustentável” vendem as soluções dos problemas que o próprio capitalismo causou. E não é possível compor com o capitalismo. Tornamo-nos cegos ao apocalipse, visto que o trabalho maquinal sequestrou a dimensão do fim. Nesse sentido, tudo o que produzimos com auxílio da técnica, “impossível de ser contida, e os efeitos que somos capazes de desencadear são tão grandes e tão explosivos que nós não mais conseguimos compreendê-los, que dirá então identificá-los como nossos” (Anders, 2023, p. 26). Era o que já observava Marx a respeito do fetichismo da mercadoria: a segmentação das atividades produtivas no modo de produção capitalista aliena não apenas o trabalhador daquilo que ele produz: mas também a sua faculdade imaginativa, por conseguinte, foi-nos roubado também “a faculdade de fazer uma imagem do processo” (Anders, 2023, p. 26). Na atividade instrumentalizada, a ideia do que se está fabricando é desmantelada: age-se sem ideia. Segundo Anders (2023, p. 25-26):

[...] aquilo que nós agora conseguimos fazer (e por isso realmente fazemos) é maior que aquilo do qual conseguimos fazer uma imagem; que se abriu um vão entre a nossa faculdade de produção (Herstellung) e de imaginação (Vorstellung), e esse vão se alarga a cada dia; que nossa capacidade de produção, uma vez que não há limites para o aumento de nosso desempenho técnico, é desmesurada, e nossa capacidade de imaginação é, por natureza, limitada.

Os efeitos da divisão do trabalho condenam-nos a nos concentrar numa parte minúscula do processo. Assim, o trabalho especializado nos confina existencialmente. Pior ainda, o homem enquanto tal, lembra Anders (2002) já não existe mais, somos apenas seres que agem e produzem. Desse modo, afirma Anders (2007, p. 16), o homem se tornou “um ser negligenciável entre milhares de outros e que não merece nada melhor do que juntar-se ao amontoado de coisas contingentes”, porquanto não se tem mais qualquer ligação particular com o resto[6]. Entretanto, não somente a nossa imaginação foi-nos espoliada, mas também a nossa percepção: os efeitos de nosso trabalho e ação, devido à sua grandeza, ultrapassam o que podemos apreender, tornando-se obscuros diante de nossos olhos. Somos mais ou menos autômatos, e “não estamos mais à altura de nossas próprias ações” (Anders, 2023, p. 29). Desse modo, tornamo-nos incapazes também de reagir. Cegamo-nos quando aquilo a que deveríamos reagir é demasiado grande[7], portanto, também o nosso senso de reponsabilidade fracassa. Quando não se conhece mais o fim de sua própria atividade também não se tem mais necessidade de se ter uma consciência moral, diz Anders (2002). Outrora, era a desmedida do sublime – e seu misto de prazer e terror – que fazia nossa faculdade da imaginação declarar falência. Mas, agora, aquilo que fracassa não é apenas isto ou aquilo, ou seja, “não somente nossa imaginação e nossa percepção – tornamo-nos fracassados até o fundamento de nossa existência, ou seja, realmente em todos os aspectos” (Anders, 2023, p. 28). Anders (2023, p. 26-27) observa que:

Quanto mais complicado é o aparato no qual estamos instalados, quanto maiores são seus efeitos, tanto menos o enxergamos, tanto menor é a nossa chance de compreender os mecanismos dos quais somos parte. Em suma: embora seja obra humana e mantido em marcha por todos nós, nosso mundo, visto que escapa tanto à nossa imaginação quanto à nossa percepção, torna-se cada dia mais obscuro. Tão obscuro que nem sequer conseguimos mais reconhecer seu obscurecimento.

Em suma, se estamos cegos ao apocalipse, é porque a imagem do fim último nos foi confiscada. Não apenas os efeitos do nosso trabalho deixaram de nos interessar, mas a representação do efeito final em geral. Quando a finalidade de nossa atividade é desmantelada, perde-se também a imagem do futuro, desse modo, não se compreende mais que o próprio futuro está desaparecendo, portanto, somos cegos diante do apocalipse. A potência da técnica cresce em proporção inversa à nossa impotência. Nossa época se distingue das demais por conjugar, ao mesmo tempo, a proximidade do fim e o sem fim. Foi dito mais acima que o “apocalipse sem reino” que nos aguarda faz com que não esperemos mais nada. É importante insistir nesse “não esperar nada”, porque uma das causas da nossa desinibição e impassibilidade diante da iminência apocalíptica, como observa Latour (2020), reside justamente nessa ausência de expectativa: como se nada mais pudesse nos acontecer. Com efeito, “não é certo que já esperamos o fim dos tempos. É certo, por outro lado, que vivemos definitivamente no tempo do fim e que o mundo no qual vivemos é, por conseguinte, um mundo incerto” (Anders, 2007, p. 116). Um mundo que, pelo triunfo da técnica, excede a nossa compreensão, pois ele é “tão enorme que deixou de ser, em sentido psicologicamente verificável, realmente ‘nosso’. Pois ele se tornou ‘demais’ para nós (Anders, 2023, p. 25). Trata-se de um mundo em que já não é mais possível examinar os seus agentes. Eis porque “o ato não será mais dito bom ou mau segundo seu autor, ao contrário, este que será dito bom ou mau segundo seu ato” (Anders, 2002, p. 328). Trata-se também de um problema de natureza moral, na medida em que quando “não se conhece mais, não se tem necessidade de conhecer ou não deve conhecer o fim de sua atividade, claramente também não tem necessidade de ter uma consciência moral” (Anders, 2002, p. 321).

Com efeito, responsabilizar-nos pela catástrofe significa colocarmo-nos como o seu agente, mas, inversamente, significa que também nós podemos ser os responsáveis por detê-la. Bastaria então uma dose de boa vontade? Bastaria adotar um regressimo, isto é, um progressismo de sinal trocado a fim de deter a locomotiva do progresso? Evidentemente que não. O aviso de Cassandra dos especialistas nos mostra que o quadro desolador em que já estamos vivendo se torna, cada vez mais, irreversível. É tranquilizador saber que o fim da nossa existência não foi decretado por nenhuma superpotência, “mas por nós mesmos, ou seja, isso não foi necessariamente decretado” (Anders, 2007, p. 29). Deve-se recordar, entretanto, que o aquecimento global não é uma praga divina, ele tem as nossas digitais: morreremos, pois, de suicídio ecológico. Isso é parcialmente verdadeiro, uma vez que nos oferece uma imagem errônea do problema, pois as responsabilidades não podem ser igualmente compartilhadas. Trata-se mais de assassinato – ou genocídio, se preferir – do que de uma morte autoinduzida, considerando que os efeitos do colapso climático não atingirão todos de maneira indistinta. Adotar medidas paliativas, abandonando hábitos como diminuir o consumo de carne, fechar as torneiras, deixar os carros na garagem etc. dá a falsa impressão de todos são, mais ou menos, culpados pela crise climática. É evidente que todos têm o seu quinhão de culpa, mas é falso acreditar que a catástrofe nos une socialmente, economicamente, filosoficamente. À diferença do bom senso, a culpa não é a coisa mais bem partilhada no mundo. Anders (2002, p. 284) afirma que “falar de ‘suicídio da humanidade’ equivale a diluir a responsabilidade, a dar-lhe uma extensão que a torna um excelente álibi. Ninguém é mais culpado, todo mundo é virtualmente cúmplice” (Anders, 2002, p. 284). Na verdade, não estamos diante de um apocalipse climático que nós mesmos causamos. Os países em desenvolvimento e aqueles na periferia do capitalismo não podem e não devem ser responsabilizados de igual maneira como as potências do velho mundo. Para Anders (2002, p. 284), statements como: “’Estamos diante de um apocalipse que nós mesmos causamos’”, ou ainda; ’Não estamos à altura dos instrumentos que nós próprios fizemos’”, são ilegítimos, na medida em que impossibilita a distinção entre culpados e vítimas. Os autênticos problemas morais são aqueles, segundo Anders (2002), em que se pode distinguir sem hesitação culpados e vítimas. Todavia, como julgar um ato de tão desmedido, em que esta zona gris de culpabilidade em que o algoz tem as mesmas feições de sua vítima? Para Anders (2002, p. 328), “quando se trata de um ato de tal amplidão, sua moralidade não depende mais da moralidade de seu autor, de sua boa vontade, mais ou menos, de seu discernimento ou de suas convicções, mas – em última instância – dos efeitos de ato mesmo”

5 algumas considerações

A tarefa decisiva de nossa época é deter ou, ao menos, adiar a catástrofe iminente, na medida em que a crise climática, talvez, seja o momento mais crítico de nossa época. E a crise, lembra o historiador alemão, exige uma decisão[8]. A nossa injunção primeira passa pelo dever do pessimismo e do catastrofismo. Aliás, a mensagem fundamental de Anders, segundo Danowski e Viveiros de Castro (2014, p. 114) é a de que “temos o dever de ser de pessimistas”. Trata-se de um imperativo de natureza moral, porquanto “os fatores responsáveis ​​de nosso ‘cegamento diante o apocalipse’ são eles próprios de natureza moral” (Anders, 2002, p. 317).  A fim de evitar o apocalipse, temos o dever de imaginar o pior fim possível – justamente porque o fim já se tornou possível –, por isso, “a única tarefa moral decisiva hoje, na medida em que nem tudo ainda está perdido, consiste em educar a imaginação moral” (Anders, 2002, p. 304). E, inversamente, devemos moralizar a imaginação: age de tal modo como se já estivéssemos vivendo sob o signo do fim. Eis o imperativo categórico de nossa época, na medida em que o próprio fim deve ser imaginado como um fim em si mesmo. Segundo Anders (2002, p. 311)

Não se trata de querer reabilitar artificialmente a angústia do apocalipse e o medo do inferno. O que quero dizer é apenas que a expectativa do juízo final e do inferno é precisamente o que fez os homens conhecerem a angústia; que este medo dos suplícios desmedidos que deveriam superar todos os “medos intramundanos” que somos capazes de experimentar diante deste ou daquele perigo, inclusive diante da nossa própria morte; e que este medo se assemelha, incomparavelmente mais do que aquele que podíamos sentir sob o reino do terror e sob o tapete de bombas, à angústia que hoje seria legítima experimentar.

Se é necessário ser pessimista, é para enfrentar o indiferentismo. É certo que o fim nos assombra, no entanto, lembra Anders (2002, p. 308), “reina uma ‘calmaria mortal’ no plano escatológico”. Isso se deve porque “somos simplesmente analfabetos da angústia. Se tivéssemos que resumir a nossa época em uma fórmula, o melhor ainda seria descrevê-la como ‘uma era onde a angústia se tornou impossível’” (Anders, 2002, p. 295). Um pouco como se o nosso encontro com o nada tivesse deixado de ter importância. Ora, se devemos levar em consideração o momento apocalíptico, é porque “o momento do risco de um possível apocalipse, pois este nos oferece a chance de um encontro com o não-ser” (Anders, 2007, p. 23). Portanto, devemos nos angustiar a fim de despertar para o apocalipse.

REFERÊNCIAS

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ANDERS, Günther. L’obsolescence de l’homme: sur l’âme à l’époque de la deuxième révolution industrielle. Paris (França): Éditions Ivrea, 2002.

ANDERS, Günther. Nós, filhos de Eichmann: carta aberta a Klaus Eichmann. São Paulo: Elefante, 2023.

BENJAMIN, Walter. Parque Central. In: BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 151-181.

CATALANI, Felipe. Filosofia moral no mundo do pós-guerra: Estudos sobre Adorno. 2019. 180 p. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

CHAKRABARTY, Dipesh. O clima da história: quatro teses. Sopro, 2013 [2009], 91: 2-22. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n91.html. Acesso em: 26/08/2023.

DANOWSKI, Déborah; VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Editora Cultura e Barbárie, 2014.

DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

DUPUY, Jean-Pierre. Chorar as mortes que virão: por um catastrofismo ilustrado. In: NOVAES, Adauto (org.). Mutações: o futuro não é mais o que era. São Paulo: Edições Sesc SP, 2013, p. 191-207.

DUPUY, Jean-Pierre. Pour une catastrophe eclairée: Quand l’impossible est certain. Paris (França): Éditions du seuil, 2002.

GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2005.

JONAS, Hans. Le principe responsabilité : une éthique por la civilisation technologique. 2ªed. Paris (França): Les Éditions du CERF, 1992.

KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999.

LAPOUJADE, David. Desprogramar o futuro. In: NOVAES, Adauto (org.). Mutações: o futuro não é mais o que era. São Paulo: Edições Sesc SP, 2013, p. 233-246.

LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo/ Rio de Janeiro: Ubu/Ateliê de Humanidades, 2020.

LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.

SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.

STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

Contribuição de autoria

1 – Alisson Ramos de Souza:

Doutorando em Filosofia na Universidade Federal de São Carlos

https://orcid.org/0000-0001-5856-5168 • alissonramosdesouza@gmail.com

Contribuição: Escrita e primeira redação.

Como citar este artigo

SOUZA, A. R. Ninguém mais lerá a inscrição “Era uma vez...”. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85445, p. 1-22, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378685445. Acesso em: dia mês abreviado. ano.

 



[1] “[...] a finalidade da enunciação exagerada é impedir a sua realização, para a qual o curso do mundo tende. Assim como anunciar a utopia, antecipando-a, deve ter o efeito de produzi-la, o anúncio da catástrofe deve ter o efeito de evitá-la” (Catalani, 2019, p. 78).

[2] Na verdade, seria impreciso falar em “crise climática”. Bruno Latour (2020) observa que chamar de crise dá a falsa impressão de que se trata um momento passageiro, isto é, de algo que vai passar e logo retornaremos à normalidade. Deveríamos, antes, falar em um novo regime climático, pois se trata de uma profunda mutação, uma metamorfose radical em nossa relação com o mundo.

[3] “Deve-se fundar o conceito de progresso na ideia da catástrofe. Que tudo ‘continue assim’, isto é a catástrofe. Ela não é o sempre iminente, mas sim o sempre dado. O pensamento de Strindberg: o inferno não é nada a nos acontecer, mas sim esta vida aqui. A salvação se apega à pequena fissura na catástrofe contínua” (Benjamin, 1989, p. 174).

[4] “Pandora é, num mito hesiódico, a primeira mulher. Foi criada por Hefesto e por Atena, com o auxílio de todos os outros deuses. Cada um deles lhe atribui um dom: recebeu assim a beleza, a graça, a destreza manual, a capacidade de persuadir e outras qualidades. Mas Hermes colocou no seu coração a mentira e a astúcia. Hefesto fê-la à imagem das deusas imortais, e Zeus destinou-a à punição da raça humana, à qual Prometeu tinha acabado de dar o fogo divino. Foi esse o presente que todos os deuses ofereceram então aos homens, para lhes causar a desgraça. No poema Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo conta que Zeus enviou Pandora a Epimeteu. Seduzido por sua beleza, este tomou-a por esposa, esquecendo os conselhos de seu irmão Prometeu, que o advertira no sentido de jamais aceitar um presente de Zeus. Ora havia um vaso [...] que continha todos os males. Estava coberto por uma tampa, que impedia o conteúdo de se extravasar. Mal chegou à Terra, Pandora, movida por uma imensa curiosidade, levantou a tampa do recipiente, e todos os males se espalharam sobre a humanidade. Apenas a esperança, que estava no fundo, ficou, por não conseguir sair antes de Pandora voltar a colocar a tampa do vaso. Segundo outra versão, este vaso conteria não os males, mas tudo o que de bom existe, e Pandora tê-lo-ia levado a Epimeteu como presente de núpcias, a mando de Zeus. Abrindo imponderadamente o recipiente, ela deixou escapar os bens, que voltaram para a morada dos deuses em vez de permanecerem entre os mortais. Os homens foram assim condenados a sofrer toda a casta de males; só a esperança, pobre consolação, lhes restava” (Grimal, 2005, p. 353-354).

[5]Chamar seres humanos de agentes geológicos é ampliar nossa imaginação acerca do humano. Os seres humanos são agentes biológicos, coletivamente e também como indivíduos. Sempre o foram. Nunca houve um ponto na história humana em que os seres humanos não fossem agentes biológicos. Mas apenas histórica e coletivamente podemos nos tornar agentes geológicos, isto é, assim que al­cançamos números e inventamos tecnologias que sejam de uma escala suficientemente grande para causar impacto no próprio planeta. Caracterizar-nos como agentes geológicos é atribuir-nos uma força de escala igual àquela liberada nas vezes em que houve extinção em massa das espécies” (Chakrabarty, 2013, p. 9-10).

[6] Anders (2002, p. 319) nota que “a existência do homem atual não é mais, a maior parte do tempo, pura ‘atividade’ ou pura ‘passividade’. Ele não é mais nem completamente ativo nem completamente passivo, mas, em vez disso, ‘neutro’, no meio do caminho entre a atividade e a passividade. Pode-se, portanto, qualificar a sua existência como ‘instrumentalizada’”.

[7] “[...] o ‘grande demais’ nos torna frios, ou melhor (pois também a frieza seria ainda uma espécie de sentimento), nem mesmos frios, mas completamente indiferentes: tornamo-nos ‘analfabetos emocionais’, que, confrontados com ‘textos grandes demais’, simplesmente não reconhecem mais estarem diante de textos” (Anders, 2023, p. 29-30).

[8] “Pertence à natureza da crise que uma decisão esteja pendente mas ainda não tenha sido tomada. Também reside em sua natureza que a decisão a ser tomada permaneça em aberto. Portanto, a insegurança geral de uma situação crítica é atravessada pela certeza de que, sem que se saiba ao certo quando ou como, o fim do estado crítico se aproxima. A solução possível permanece incerta, mas o próprio fim, a transformação das circunstâncias vigentes – ameaçadora, temida ou desejada –, é certo. A crise invoca a pergunta ao futuro histórico” (Koselleck, 1999, p. 111).