Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85340, 2023
Submissão: 02/10/2023 • Aprovação: 01/02/2024 • Publicação: 05/04/2024
2 O ANTROPOCENO E A DISCUSSÃO DO TERMO NAS HUMANIDADES
3 A ATUALIDADE DE SCHOPENHAUER FRENTE AO PROBLEMA
5 O CUIDADO DA NATUREZA COMO RESULTADO DA SABEDORIA DE VIDA
Dossiê
O Antropoceno e a contribuição da Eudemonologia schopenhaueriana para pensar a crise ambiental
The Anthropocene and the contribution of Schopenhauerian Eudemonology to thinking about the environmental crisis
I Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro , Rio de Janeiro, RJ, Brasil
II Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro , Rio de Janeiro, RJ, Brasil
RESUMO
A ideia de um novo período geológico expressa pelo conceito de Antropoceno nos dá a dimensão do impacto humano sobre a Terra. Nós, os humanos contemporâneos, somos uma força geológica, ou melhor, o nosso modo de existência se tornou essa força. Relatórios do Painel do Clima da ONU, dados climatológicos, projeções, entre outras fontes científicas, tornaram-se objetos de interesse da reflexão filosófica sobre o futuro em um planeta fortemente impactado pelos excessos da civilização tecnológica. Tal situação impõe à filosofia contemporânea o desafio não apenas de encarar o problema, mas também de pensar em outras possibilidades de existência que fortaleçam o vínculo com a Terra. Neste sentido, o presente artigo tem o intuito de apresentar em linhas gerais a discussão sobre a ideia de Antropoceno e a proposta eudemonológica schopenhaueriana a partir da atualização do pensamento de Schopenhauer, para pensarmos o cenário catastrófico que está se configurando com a constatação da gravidade de nosso tempo.
Palavras-chave: Eudemonologia; Antropoceno; Schopenhauer
ABSTRACT
Keywords: Eudemonology; Anthropocene; Schopenhauer
A ideia de um novo período geológico expressa pelo conceito de Antropoceno nos dá a dimensão do impacto humano sobre a Terra. Nós, os humanos contemporâneos, somos uma força geológica, ou melhor, o nosso modo de existência se tornou essa força. Relatórios do Painel do Clima da ONU, dados climatológicos, projeções, entre outras fontes científicas, tornaram-se objetos de interesse da reflexão filosófica sobre o futuro em um planeta fortemente impactado pelos excessos da civilização tecnológica.
Tal situação impõe à filosofia contemporânea o desafio não apenas de encarar o problema, mas também de pensar em outras possibilidades de existência que fortaleçam o vínculo com a Terra. Neste sentido, o presente artigo tem o intuito de apresentar em linhas gerais a discussão sobre a ideia de Antropoceno nas ciências humanas e uma proposta eudemonológica schopenhaueriana, através da atualização do pensamento de Schopenhauer, para pensarmos o cenário catastrófico que está se configurando com a constatação da gravidade de nosso tempo.
2 O Antropoceno e a discussão do termo nas humanidades
O termo antropoceno foi cunhado no início dos anos 1980 pelo ecologista da Universidade de Michigan, Eugene Stoermer. Ele introduziu o termo para se referir à crescente evidência dos efeitos transformadores das atividades humanas na Terra. Desde o início de 2000, a palavra antropoceno começou a aparecer nos meios de divulgação cientifica como um alerta, um sinônimo de catástrofes futuras que serão ocasionadas pelos efeitos de nossas forças produtivas. Conforme pontuou Donna Haraway (2016), a aparição mais dramática do termo ocorreu quando o químico atmosférico e vencedor do Prêmio Nobel, o holandês Paul Crutzen, se juntou a Stoermer para propor que as atividades humanas são de tal tipo e magnitude que merecem serem equiparadas a uma forca geológica[1]. Daí a proposta do uso do antropoceno para nomear uma nova época geológica que substituiu o Holoceno (época atual que começou no final da última era glacial). Entre os diversos indícios da força antropogênica sobre o sistema Terra, está o crescente aumento de CO2 na atmosfera devido à emissão de gases a partir da queima de combustíveis fósseis, a acidificação e o aquecimento dos oceanos (a temperatura do oceano atlântico bateu recorde nesse ano de 2023, atingindo cerca de 38 graus no golfo do México[2]).
Donna Haraway destaca em Staying with the trouble que, desde meados de 2008, “a adoção do termo Antropoceno obteve apoio no discurso popular e científico no contexto de esforços urgentes para encontrar maneiras de falar, teorizar, modelar e administrar uma Grande Coisa chamada Globalização.” (Haraway, 2016, p. 45). Ou seja, a ideia de antropoceno nos ajuda a pensar em termos de impacto ecológico a globalização de todo um modo de produção industrial, como também, um modo de existência que é fruto do capitalismo, embora a pensadora não concorde plenamente com a adoção do termo para nomear a época em que vivemos.
Ela ainda destaca que “a modelagem - o modelo científico - das mudanças climáticas é um poderoso ciclo de feedback positivo que provoca mudanças de estado em sistemas de discursos políticos e ecológicos.” (Haraway, 2016, p. 45). Um modelo climático configura uma representação dos processos do sistema climático da Terra, sejam eles biológicos, químicos e físicos. Essas modelagens são importantes para compreendermos as interações entre diferentes partes do sistema Terra através de simulações, como a interação entre a atmosfera, o oceano e a superfície terrestre, o oceano e as calotas polares, etc.
O uso do termo Antropoceno para nomear a época em que nós humanos nos tornamos uma força geológica que está alterando as condições terrestres expressa muito bem o drama de nosso tempo. Todavia, como aponta Jason Moore, na introdução de Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism,
o Antropoceno soa o alarme — e que alarme! Mas não pode explicar como essas mudanças alarmantes aconteceram. Questões de capitalismo, poder e classe, antropocentrismo, enquadramentos dualistas de “natureza” e “sociedade” e o papel dos estados e impérios – todos são frequentemente enquadrados pela perspectiva dominante do Antropoceno. (Moore, 2016, p. 5).
A complexidade e o emaranhamento das questões são enormes, tanto que alguns teóricos e teóricas das ciências humanas, como Moore e Haraway, estão questionando o uso do termo “antropoceno” para nomear a nossa época. James Moore ressalta que a ideia de Antropoceno traz consigo um problema fundamental, que é a compreensão de que a nossa crise é a culminação de uma separação entre humanidade e natureza, que o nosso modo de existir está matando a natureza, como se fôssemos de fato algo separado da própria natureza. Ele pontua que
o argumento do Antropoceno mostra o dualismo Natureza/Sociedade em seu estágio mais alto de desenvolvimento. E se o Antropoceno – como argumento histórico e não geológico – é inadequado, ainda assim é um argumento que merece nossa apreciação. (Moore, 2016, p. 3).
Como também, a nossa atenção, pois a discussão tem o potencial de produzir novos pensamentos sobre o problema ambiental. Para Moore, o padrão binário estabelecido pelo pensamento eurocêntrico, que postula a separação Natureza/Sociedade, está em conformidade com toda uma série de exclusões humanas e essas opressões são fundamentais para a economia política do capitalismo, que tem por base e estratégia a acumulação barata da natureza. Em sua argumentação, Moore (2016) compreende que o capitalismo é responsável pela opressão, em termos políticos, das pessoas consideradas “mais próximas da natureza”, ou de um estado de natureza, como as mulheres, as pessoas racializadas, as pessoas que expressam a sexualidade e o gênero fora do padrão binário europeu. Neste sentido, assim como a natureza, essas pessoas são baratas. Ele aponta que “para o capitalismo, a Natureza é ‘barata’ num duplo sentido: tornar os elementos da Natureza ‘baratos’ no preço; e também baratear, degradar ou tornar inferior em um sentido ético-político” (MOORE, 2016, p. 2-3). O autor afirma que esse tipo de pensamento está entrelaçado nas transformações capitalistas dos últimos cinco séculos e que o termo “Capitaloceno” nomeia de forma mais adequada a nossa época.
No texto “Pensamento tentacular: Antropoceno, Capitaloceno, Chthuluceno”, Donna Haraway (2016) reforça que o nome antropoceno não é adequado para a nossa época, mas ela sabe que é provável que ainda necessitemos utilizar a ideia de antropoceno por ser menos controversa que Capitaloceno. Entre alguns motivos para não concordar com o termo antropoceno, Haraway destaca que
Antropoceno é um termo mais facilmente significativo e utilizável por intelectuais em classes e regiões de riqueza; não é um termo idiomático para clima, tempo, regiões, cuidados com o país, especialmente, mas não unicamente, entre a população indígena” (Haraway, 2016, p. 49).
O que Haraway parece criticar é que nem todos os humanos, nem todos os anthropos, estão imbricados nos processos que resultaram e resultam na iminência da catástrofe planetária.
Em Há mundos porvir, Danowski e Viveiros de Castro nos lembram da crítica de Chakrabarty à adoção do termo Capitaloceno em substituição ao Antropoceno ao mencionar que Moore entende que “a origem da crise reside, em última instância, nas relações de produção antes que nas (e antes das) forças produtivas, se podemos nos exprimir assim.” (Danowski e Viveiros de Castro, 2014, p, 28).
Embora haja controvérsias sobre qual termo adotar, o fato é que estamos nos aproximando cada vez mais de um ponto de não retorno e da catástrofe.
3 A atualidade de Schopenhauer frente ao problema
A filosofia de Schopenhauer é interpretada como pessimista na maioria dos manuais de história da filosofia e por muitos estudiosos de sua obra. Isto ocorre, sobretudo, pelo fato de que essas leituras partem da consideração de um pessimismo metafísico, com base na sua ética da compaixão e na teoria sobre a ascese. De acordo com essas interpretações, o ponto central da filosofia schopenhaueriana seria a redenção frente ao sofrimento inerente à existência.
De acordo com a leitura do que se convencionou chamar de “esquerda schopenhaueriana”, o pessimismo de Schopenhauer não pode ser reduzido a um mero quietismo (Lütkehaus, 2007). O professor Lütkehaus problematiza a ideia de que só haveria uma interpretação possível da obra de Schopenhauer e se pergunta se o pessimismo do filósofo é um quietismo. De acordo com Felipe Durante:
Para Lütkehaus, o pessimismo, considerado ontologicamente, não pode ser entendido como um quietismo, porque ele não pode significar a manutenção do status quo político e social; ao contrário, ele acaba por engendrar uma filosofia da práxis do como-se (Als-Ob). A investigação do professor baseia-se na constatação de uma compaixão ativa, a qual ele interpreta como uma possibilidade de desenvolvimento das potencialidades da esfera prática da filosofia do autor, e no que resulta na tentativa de minimizar o máximo possível os sofrimentos no mundo. (Durante, 2017, p. 175).
Desse modo, o que define a direita schopenhaueriana seria a ideia de que o sofrimento levaria à resignação e o que define a esquerda seria a teoria de que o sofrimento poderia levar à ação, possibilitando o “menos pior dos mundos possíveis”. Uma transformação da realidade para uma versão “menos pior”, ainda que a felicidade e o equilíbrio pleno não sejam possíveis, considerando nossa dinâmica de desejo e o egoísmo humano.
Tratar da atualidade de Schopenhauer parece um tanto equivocado se considerarmos a recusa do autor (W II, Cap. 36) à pretensão de que a história poderia orientar nosso conhecimento sobre o mundo. No entanto, como esclarece Leandro Chevitarese:
É fundamental observar que Schopenhauer não se opõe a história per se, acima de tudo, o que rejeita é a pretensão de que a história possa descrever a essência íntima dos fenômenos, ou a natureza da humanidade. A história, na verdade, nos apresenta a descrição fenomênica da manifestação da vontade, ou seja, nos apresenta a mesma coisa sob diferentes formas. Poder-se-ia dizer: como numa peça de teatro, tem-se o mesmo enredo interpretado por diferentes personagens, em diferentes cenários. Todavia, ao assistir essas diversas "montagens", é possível uma visão mais ampla desse "enredo". Isto é o que se passa com o indivíduo: observando seus atos, como quem assiste uma peça de teatro, é possível uma visão mais clara sobre seu imutável caráter, expresso empiricamente em cenários diferentes. Não é possível, no entanto, supor que a humanidade — mera abstração, tendo em vista que somente os indivíduos são reais — possa atingir propriamente uma "consciência de si", um conhecimento de seu "caráter". Schopenhauer certamente rejeitaria de modo enfático tal possibilidade, este "hegelianismo vulgar". Tal "autoconhecimento" é restrito necessariamente aos indivíduos. Somente estes podem aprender algo com a experiência empírica e a história, aplicando a sua prática de vida pessoal, ainda que articulada a projetos coletivos. (Chevitarese, 2018, p. 48).
Nesse sentido, pensamos a atualidade de Schopenhauer a partir da perspectiva de Max Horkheimer, que consideramos ser o criador da leitura à esquerda e nos permite destacar outras nuances da filosofia schopenhaueriana, a fim de pensar possíveis contribuições da sua obra para as questões contemporâneas e como ela poderia nos levar a algumas transformações individuais e coletivas. Nos Textos: Schopenhauer und die Gesellschaft (Schopenhauer e a Sociedade), de 1955, e Die Aktualität Schopenhauers (A Atualidade de Schopenhauer), de 1960/61, o autor ressalta a atualidade do pensamento schopenhaueriano, não no sentido do pensamento que pretende ser compreendido pelos seus contemporâneos, já que o próprio Schopenhauer (E II, p. 212) havia alertado para a dificuldade de compreensão da verdade, dependendo do contexto histórico, e não esperava ser entendido pelos seus contemporâneos.
No texto A atualidade de Schopenhauer, Horkheimer afirma o quanto Schopenhauer previu certos acontecimentos e que o solitário de Frankfurt era uma espécie de pessimista clarividente. Horkheimer chama atenção para o fato de que o pessimismo schopenhaueriano recusa o otimismo hegeliano em face da história. Ele observou a história mundial de forma desconfiada e a expos como “o imutável e imperecível” (HORKHEIMER, 2018, p. 195). Nesse sentido, a interpretação de Horkheimer leva em consideração a atualidade de Schopenhauer do ponto de vista da história.
Ele se identificava profundamente com a luta contra a superstição, a intolerância e o dogmatismo racionalista. O que no Esclarecimento ainda lhe parecia suspeito e até mesmo absurdo, era a equiparação de uma existência terrível, hoje ou no futuro, ou até mesmo da sanguinolenta história, com aquilo que deve ser. Nem o reconhecimento de uma humanidade futura que não tentasse se exterminar reciprocamente, como materialização do bem, parecia-lhe uma compensação. Se nem mesmo os pregadores da história secular da salvação podem recorrer a ele, tanto menos o podem fazer os defensores daquilo que já existe. Schopenhauer retirou a solidariedade em relação ao sofrimento e a comunidade entre os homens desamparados no universo do domínio da teologia, da metafísica, bem como de todo tipo de filosofia positiva da história e da sanção filosófica, sem, por isso, de forma alguma defender a crueldade. (Horkheimer, 2018, p. 200).
Schopenhauer anteviu certas barbaridades da história, sem com isso prometer qualquer tipo de positivismo ou esperança, sem se deixar corromper pelas ideias dos seus contemporâneos, mas permanecendo em uma postura crítica. Em Schopenhauer e a sociedade, afirma Horkheimer com relação à obra schopenhaueriana que:
por mais que esta sustente como tese principal a inevitabilidade do padecer e da ação indigna e sobressaia a inutilidade do protesto, seu estilo constitui um protesto único contra o que seja assim; a crueldade não se converte em ídolo, e sua interpretação positiva lhe é abominável. (Horkheimer, 1966b, p. 158).
Para Horkheimer a compaixão para com todos é a forma pela qual é possível combater os sofrimentos do mundo e lutar pelas melhorias sociais, somente a solidariedade entre os viventes poderia transformar o mundo, diminuindo suas dores. Não há como transformar a realidade recorrendo ao positivismo. Isso só é possível quando conhecermos as contradições humanas e mundanas, sem recorrer a nacionalismos, nem a teorias transcendentes de justiça, assim haverá espaço para a verdadeira solidariedade.
Agora posso dizer de maneira mais clara porque Schopenhauer é o mestre de nosso tempo. A doutrina da vontade cega como daquilo que é eterno retira do mundo o enganoso fundo dourado que a velha metafísica oferecia a ele. Ao expressar e ao manter no pensamento aquilo que é negativo, em completa oposição ao positivismo, é exposto pela primeira vez o motivo para a solidariedade entre os homens e os seres em geral: o desamparo. Nenhuma aflição é compensada em um além qualquer. O ímpeto de amenizá-la nessa vida surge da incapacidade de, tendo plena consciência dessa maldição, suportá-la e tolerá-la quando existe a possibilidade de acabar com ela. Para semelhante solidariedade, que se deve à falta de esperança, o conhecimento do principii individuationis é secundário. (...) Ficar ao lado daquilo que é temporal, contra aquilo que é impiedosamente eterno, é o que significa moral no sentido schopenhaueriano. Nem mesmo o mito da transmigração das almas, de acordo com o qual a alma, depois da morte, fora do tempo e do espaço encontra o corpo que deve corresponder ao ponto de seu processo de purificação, exerce influência sobre a moral, pois, do contrário, ela seria cálculo. A impiedosa estrutura da eternidade poderia ser capaz de engendrar a comunidade dos desamparados, assim como a injustiça e o terror na sociedade possuem como consequência a comunidade dos resistentes. (...) Quando a juventude reconhece a contradição entre a situação das forças humanas e a situação da Terra e não permite que nem nacionalismos fanatizantes nem teorias de uma justiça transcendente lhe turvem o olhar, pode-se esperar que identificação e solidariedade se tornem decisivas em sua vida. O caminho para se chegar até aí passa pelo conhecimento tanto da ciência como da política, assim como das obras da grande literatura. (Horkheimer, 2018, p. 206).
Considerando as interpretações de Horkheimer e do professor Lütkehaus, levantamos a hipótese de que a prática da compaixão e da solidariedade constitua também uma máxima para a sabedoria de vida proposta por Schopenhauer. Levando em consideração a ideia de que o pessimismo não é um quietismo, sob a perspectiva da esquerda schopenhaueriana, pode-se ainda formular a interpretação de que a atualidade de Schopenhauer consiste no fato de que sua filosofia permite sempre uma leitura atemporal e nos convoca ao enfrentamento do sofrimento e ao combate à miséria humana ainda hoje, mostrando-nos que é possível aprender com o tempo e a história para viver uma vida menos infeliz possível. Desse modo, propomos uma terceira via de interpretação e reflexão sobre o problema ambiental contemporâneo a partir da ética-prática de Schopenhauer, como um dos caminhos possíveis presentes na filosofia do autor, que talvez possa auxiliar-nos para pensar o desequilíbrio ambiental que estamos vivenciando e do qual somos responsáveis.
Um dos debates atuais em torno da filosofia schopenhaueriana ocorre acerca do papel da eudemonologia, isto é, de uma filosofia prática voltada para a tentativa de tornar a vida menos infeliz possível. As interpretações que dão importância aos aspectos da filosofia prática do autor, podem ser entendidas como alinhadas ao que vimos ser uma interpretação schopenhaueriana de esquerda. As obras levadas em consideração nesse debate são os Aforismos para Sabedoria de Vida (A), contida nos Parerga e Paralipomena (PP), e no texto A arte de ser feliz, organizado e publicado por Franco Volpi a partir dos manuscritos póstumos de Schopenhauer. No Brasil, o debate acerca da eudemonologia schopenhaueriana aparece pela primeira vez na tese de doutorado de Leandro Chevitarese, que assimila a proposta/hipótese de Thomaz Brum de uma ‘espécie de sabedoria teatral’ (Brum, 1998, p.51). Além disso, outros textos e teses que tratam do tema são: um texto de Jair Barboza (Barboza, 2003); Jorge Luiz Viesenteiner em artigo para a Voluntas (Revista internacional de estudos sobre Schopenhauer); a tese de Vilmar Debona (Debona, 2013) e a tese de Felipe Durante (Durante, 2017), entre outros.
Com a eudemonologia ocorre uma mudança de perspectiva na filosofia schopenhaueriana, na qual a chave não é mais o ponto de vista ético-metafísico, mas o ponto de vista de uma ética empírica. Essa mudança de perspectiva o autor chama de acomodação. Isso só é possível, pois a eudemonologia está fundamentada em uma torção do conceito de existência, como se a existência fosse desejável:
Tomo aqui o conceito de sabedoria de vida inteiramente em sentido imanente, a saber, no da arte de conduzir a vida do modo mais agradável e feliz possível. O estudo dessa arte poderia também ser denominado eudemonologia; seria, pois, a instrução para uma existência feliz. Esta, por sua vez, deixa-se definir – considerada de modo puramente objetivo ou, antes, pela ponderação fria e madura (pois aqui se trata de um juízo subjetivo) - como algo que seria preferível à não-existência. Desse conceito, segue-se que nos apegamos a ela por ela mesma, não meramente por medo da morte; e, ainda, que gostaríamos de vê-la durar de modo indefinido. Se a vida humana corresponde, ou simplesmente pode corresponder ao conceito de tal existência, é uma questão que, como se sabe, a minha filosofia nega; ao contrário, a eudemonologia pressupõe a sua afirmação. Esta, na verdade, baseia-se no erro inato, cuja representação abre o capítulo 49 do volume II de minha obra principal. Não obstante, para poder abordar o tema, tive de desviar-me totalmente do ponto de vista superior, ético-metafísico, ao qual conduz a minha filosofia propriamente dita. Por conseguinte, toda a discussão aqui conduzida baseia-se, de certo modo, numa acomodação, já que permanece presa ao ponto de vista comum, empírico, cujo erro conserva. (A, introdução, p. 1/2).
A partir do primeiro capítulo Schopenhauer faz uma divisão fundamental que diz respeito à diferença na sorte dos mortais (A, cap. 1, p. 3); são elas: O que alguém é, ou seja, sua personalidade no sentido amplo; O que alguém tem, isto é, propriedade e posses e Aquilo que alguém representa: o que alguém é na representação dos outros (honra, posição e glória). Para o autor, o que alguém é, a sua essência é muito mais importante para sua felicidade ou infelicidade do que o que se tem ou se representa socialmente, pois o principal para nossa existência encontra-se dentro de nós mesmos, não nas coisas, nem na opinião alheia. Portanto, nosso contentamento ou descontentamento são resultados do nosso querer, sentir e pensar.
Para o filósofo, a realidade é sempre formada através da representação, composta por duas metades (sujeito e objeto). De modo que a melhor metade objetiva aliada a uma subjetiva obtusa fornece uma realidade de má qualidade. Portanto, o que é externo pouco importa para Schopenhauer, tendo em vista que as diferenças só existem do ponto de vista externo; considerando-se o ponto de vista interno, do núcleo do fenômeno, somos todos iguais, apenas interpretamos papéis diferentes no grande espetáculo da vida, isto é, “as diferenças de posição e riqueza fornecem a cada um seu papel a ser representado, ao qual, porém, não corresponde absolutamente uma diversidade íntima de felicidade e contentamento” (A, cap. 1, p. 6).
Se de acordo com a filosofia schopenhaueriana não podemos deixar de ser o que somos e o que somos influencia diretamente em nosso modo de experienciar o mundo, a única coisa que podemos fazer é empregar a personalidade da melhor maneira possível, evitando maiores sofrimentos. No entanto, temos visto que a degradação ambiental gera sofrimentos para a população humana e para outras diversas espécies, causando enorme desequilíbrio e sofrimento planetário. Sendo assim, argumentamos que uma das maneiras de expressar a sabedoria de vida para uma existência menos infeliz possível, através de uma ética prática/empírica, seria justamente evitar a degradação da natureza com o intuito de reduzir não só o nosso sofrimento, mas também o dos outros seres, que sofrem com o impacto das nossas ações, sem ao menos ter opção de defesa. Considerando o sofrimento e o risco que todos correm, inclusive de extinção, podemos pensar na ética-prática de Schopenhauer como um caminho, ainda que como egoísmo prático para redução de danos e para encontrar maneiras de adiar o fim do mundo.
5 O CUIDADO DA NATUREZA COMO RESULTADO DA SABEDORIA DE VIDA
O Antropoceno representa a calamidade que deveria nos mobilizar e nos convocar a responsabilidades diante do impacto dos nossos hábitos e estilo de vida nos ecossistemas. Infelizmente, temos visto que, apesar da mobilização de alguns, outros se mantêm insensíveis às evidências, chegando inclusive ao negacionismo. Continuamos ignorando as evidências científicas e os governos adotam medidas cada vez mais destrutivas e cruéis. Parece-nos que tudo indica que tanto do ponto de vista ético-metafísico, quanto ético-prático nada esteja garantido, uma vez que muitos têm se mostrado insensíveis às questões em torno da ética ambiental. No entanto, talvez valha insistir numa espécie de pedagogia, ainda que essa seja baseada no egoísmo, na ideia de que conservando a natureza poderíamos garantir uma melhor vida para todos e a continuidade da nossa espécie. Se a compaixão é uma experiência mais rara, talvez possamos insistir em um ponto de vista mais racional, sem deixar de tentar ensinar e sensibilizar as pessoas para que mudem sua conduta. A eudemonologia de Schopenhauer pressupõe uma visão metafísica sobre a natureza do mundo e consequentemente do humano, cujo objetivo é aprender com a sabedoria de vida para minimizar o sofrimento e ter uma vida menos infeliz.
Pretendemos aqui fornecer uma via, a partir da filosofia schopenhaueriana de interpretação e tentativa de lidar com o problema ambiental contemporâneo, ainda que ela incorra em um egoísmo prático, tendo em vista que pode levar à diminuição do sofrimento não só da espécie humana, mas dos outros seres, sobretudo dos animais, o que consideramos de extrema importância.
Considerando o sofrimento animal e dos outros seres não humanos, argumentamos que se não houver possibilidades de supressão do sofrimento pela via metafísica da compaixão – que é rara – e pela via estética[3], talvez seja possível educar os indivíduos considerando o caráter adquirido, já que o caráter inato pode nos levar à afirmação de motivos cada vez mais egoístas dependendo do indivíduo em questão. Por isso, a partir do conhecimento (racional) que nos possibilita refletir e aprender com a experiência talvez seja possível refinar os motivos que levam os indivíduos a agir através da educação e da sensibilização para o problema ambiental, sem precisar prescrever ou moralizar.
Uma das questões debatidas atualmente diz respeito ao direito dos animais; diante de tanto sofrimento, alguns ativistas militam pelo fim do consumo de alimentos e produtos de origem animal ou pelo menos para que os animais tenham uma vida digna e livre de sofrimentos antes do abate. De acordo com os postulados da ética-empírica de Schopenhauer, poderíamos pensar possíveis acordos entre humanos e não-humanos, em um sentido mais diplomático. Pensando em outros agenciamentos possíveis, que levem em consideração que humanos e não-humanos têm direito à existência, ainda que o egoísmo e o apelo ao consumo sejam predominantes. Mas como modificar as ações dos indivíduos considerando-se o egoísmo e a dinâmica volitiva? A partir da metafísica de Schopenhauer parece um tanto complexa essa equação, no entanto, poderíamos investir em medidas educativas e legislativas para um melhor viver.
Se ampliarmos as considerações eudemonológicas, considerando que para o nosso bem-viver é preciso que todos sejam protegidos e vivam melhor, incluindo os animais e os outros seres não-humanos, podemos argumentar que a conservação da natureza gera uma vida menos infeliz possível para todos. Nessa direção, também criar leis que impeçam que injustiças sejam cometidas, poderia garantir, de alguma maneira, que as ações de conservação ambiental fossem respeitadas.
Sabe-se que Schopenhauer é atrelado a posições politicamente conservadoras por causa de alguns episódios de sua biografia[4] que denotam seu comportamento reacionário e pelos seus escritos tardios. A partir das suas teorias do Estado e do direito, o autor é considerado tanto liberal por um lado, como conservador por outro. Devido ao fato de que o filósofo defende o direito à propriedade privada, à liberdade de imprensa, à meritocracia nas carreiras (liberais) e, por outro lado, o regime monárquico, etc. (conservador).
Desse modo, a filosofia política Schopenhaueriana e suas doutrinas do direito poderiam ser aproximadas do que foi denominado por direitos humanos de primeira geração. No entanto, a partir de uma leitura à esquerda, seria possível a partir de sua filosofia pensar nos direitos humanos de segunda e terceira geração, como mostrou Felipe Durante em sua tese de doutoramento (Durante, 2017, p. 253).
A filosofia de Schopenhauer, apesar de não tratar de forma direta da questão dos direitos humanos de terceira geração - e ela nem poderia - fornece elementos e ferramentas importantes para se pensar a questão. A partir de uma perspectiva teórica, é possível criar hipóteses sobre como as motivações agiriam na constituição de uma cultura do aparente respeito, do incentivo e da implementação dos direitos humanos que partisse dos indivíduos – seja essa cultura auto interessada ou desinteressada, i.e., guiada pelo egoísmo, ou pela compaixão, e, neste último caso, ela seria moralmente boa.
Se por causa do nosso egoísmo, advindo da vontade, não formos levados a uma experiência moralmente boa (compaixão), talvez possamos aprender e conduzir melhor as nossas ações, ainda que para isso seja preciso a intervenção do Estado para evitar injustiças quanto aos animais e outros crimes ambientais. Como argumentou Durante, a partir desse espaço de manobra poderíamos entender schopenhauerianamente, ainda que de modo herege, como os direitos de terceira geração são fundamentais para o melhor viver e a conservação de todos.
A filosofia nos convida a pensar não só o que o filósofo pensou, mas também nos provoca a olhar para a realidade que habitamos, que nos atravessa. Nesse sentido, Schopenhauer nos convoca, a partir de sua filosofia, a considerar uma ética ambiental como ato de compaixão e amor para com todos os seres.
Tendo em vista o fato de que a Filosofia não se limita a ser uma disciplina descritiva, que se compromete meramente a tratar sobre o que os autores escreveram, do modo como escreveram, na época em que pensaram, mas nos proporciona questionar a partir dos filósofos que nos emprestaram os olhos para enxergarmos outros aspectos do mundo. Nesse sentido, a perspectiva apresentada nesse artigo se apresenta como uma leitura heterodoxa, “herética” da filosofia schopenhaueriana, através da qual seria possível pensar chaves de leitura para o problema ambiental que nos espreita, partindo de pressupostos eudemonológicos schopenhauerianos e se estendendo para além deles.
Seguimos o caminho com a filosofia de Schopenhauer, contra e para além dela com o intuito de trazer à tona algumas possibilidades de pensamento e enfrentamento do enorme problema que nos assola. No entanto, não podemos deixar de destacar aqui que a crítica veemente de Schopenhauer a modernidade e sua compreensão de mundo nos leva a pensar para além do ponto de vista conformista ou individualista que nutre o capitaloceno.
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Contribuição de autoria
1 – Iasmin Martins Souto:
Doutoranda em Filosofia pela PUC RJ
https://orcid.org/0000-0002-7175-5350 • iasmim.martins98@gmail.com
Contribuição: Escrita e primeira redação.
2 – Iasmin Bobsin:
Doutora em Filosofia pela PUC RJ e professora na UFRRJ
https://orcid.org/0000-0002-8210-7498 • michellebobsin@ufrrj.br
Contribuição: Escrita e primeira redação.
Como citar este artigo
SOUTO, I. B.; BOBSIN, M., O Antropoceno e a contribuição da Eudemonologia schopenhaueriana para pensar a crise ambiental. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.14, n. 2, e85340, p. 1-18, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378685340. Acesso em: dia mês abreviado. ano.