Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85286, 2023
Submissão: 02/10/2023 • Aprovação: 01/02/2024 • Publicação: 05/04/2024
4. JONAS E O DEBATE SOBRE CATASTROFISMO E COLAPSOLOGIA
5 CATASTROFISMO VERSUS IMOBILISMO..
Dossiê
O catastrofismo metodológico de Hans Jonas
The methodological catastrophism of Hans Jonas
IPontifícia Universidade Católica do Paraná , Curitiba, PR, Brasil
RESUMO
Pretende-se, nesse artigo, analisar o conceito de “catastrofismo metodológico” a partir da ética da responsabilidade desenvolvida por Hans Jonas. Para isso, iniciaremos analisando o diagnóstico do autor a respeito das dificuldades contemporâneas de enfrentamento da emergência climática. A partir daí, demonstraremos qual é o lugar de Jonas no debate que envolve o catastrofismo e a colapsologia, demonstrando que esta última levaria a um imobilismo, enquanto a primeira – caso usada metodologicamente – deveria conduzir a um engajamento em vista do enfrentamento da situação e de sua superação. Nesses termos, o catastrofismo metodológico de Jonas ampara-se em um apelo à responsabilidade, compreendida como uma reorientação das ações humanas em vista de garantir as condições de uma vida autêntica no futuro.
Palavras-chave: Hans Jonas; Catastrofismo; Colapsologia; Responsabilidade; Emergência climática
ABSTRACT
This article aims to analyze the concept of "methodological catastrophism" through the lens of the ethics of responsibility developed by Hans Jonas. To do so, we will begin by examining the author’s diagnosis regarding contemporary challenges in addressing the climate emergency. From there, we will demonstrate Jonas's position in the debate surrounding catastrophism and collapsology, showing that the latter leads to immobilism, while the former – if used methodologically – should lead to engagement in addressing the situation and its overcoming. In these terms, Jonas's methodological catastrophism is grounded in an appeal to responsibility, understood as a reorientation of human actions to ensure the conditions for authentic life in the future.
Keywords: Hans Jonas; Catastrophism; Collapsology; Responsibility; Climate emergency
A emergência, nesse caso, é descrição de um cenário para o qual é necessário reunir forças inimagináveis e empenhar todos os esforços para que o pior seja evitado. Para Jonas, como pretendemos demonstrar neste artigo, o primeiro passo exige um diagnóstico lúcido e preciso da gravidade da situação e, em seguida, a utilização desse diagnóstico como estratégia para o seu enfrentamento. Em outras palavras, trata-se de reconhecer a catástrofe por meio de uma heurística que nos dê uma imaginação cientificamente amparada (como aquela fornecida pelos cientistas do clima) capaz de despertar em nós um sentimento de responsabilidade que nos engaje em estratégias efetivas em vista de impedir que a catástrofe nos alcance. Vejamos como isso ocorreria.
Às vésperas da Rio 92, Jonas tem plena consciência da catástrofe que se avizinha e alcança já inúmeras comunidades humanas e seres extra-humanos, mas também das dificuldades que a humanidade tem enfrentado para tomar medidas diante dessas ameaças – medidas que, segundo ele, exigiriam grandes sacrifícios, vontade política e ação efetiva e urgente por parte dos governos. Se a guerra fria tinha trazido à tona o risco da catástrofe nuclear, a crise ambiental coloca em andamento outro tipo de calamidade, tão mais grave quanto, precisamente, mais lenta e silenciosa – e, por isso mesmo, muito mais difícil de ser detectada e enfrentada. Sua ética, não por acaso, se ampara em ideias como modéstia, austeridade e frugalidade nos estilos de vida e, mais ainda, na imposição de freios voluntários à aquisição de novos poderes quando – ele sabe – é o sucesso, e não o fracasso da tecnologia que representa agora o seu potencial apocalíptico (cf. Jonas, 2013, p. 25). Tais elementos, que contrastam diretamente com a sedução do progresso e o espírito de abundância e gula mobilizados pelo capitalismo vigente, seriam, segundo dele, de “grande utilidade nessa época que se avizinha, na qual se exigirão de nós grandes esforços e sacrifícios” (Jonas, 2006, p. 245). Pensando no evento da ONU, Jonas está desacreditado em relação às chamadas “elites políticas” que seriam os “salvadores da humanidade”, as quais, baseadas no regime democrático, alcançassem sucesso no enfrentamento da emergência climática. “Isso supera totalmente minhas expectativas”, declara o filósofo, desesperançoso, acrescentando que isso seria um “utopismo impossível de se tornar realidade” (Jonas, 2001, p. 40). O que é mais possível de imaginar, diz ele (recuperando um dos seus conceitos mais centrais, a heurística do temor, que descreveremos mais adiante) é que “a irrupção de terríveis circunstâncias” (2001, p. 41) que obriguem os “grupos de poder econômico, político e social” a realizarem acordos de última hora, para salvar a humanidade e a natureza. Em outras palavras, porque não foram tomadas as medidas a tempo de evitar o pior, então as políticas serão sempre políticas de emergência e os acordos internacionais deverão se efetivar a partir de uma “renúncia global” fundada na própria crise imposta pela escassez dos “limitados tesouros da Terra” (2001, p. 41).
Na verdade, Jonas se mostra pouco confiante no poder da democracia em solucionar o problema. Para ele, a catástrofe levará a humanidade a uma situação absolutamente grave, na qual será necessária uma espécie de “ditadura ecológica”, cujas decisões unilaterais seriam a última saída diante da gravidade dos fatos. Uma tal proposta, em torno da qual se instalou uma grande polêmica e inúmeros mal-entendidos, deve ser compreendida não como uma proposta, mas como uma ameaça: se não fizemos o que é necessário, chegaremos no absurdo de ter de abrir mão da nossa liberdade para salvar a nossa vida. Esse é o dilema das democracias: “tenho a suspeita”, afirma o autor, “de que a democracia, tal como hoje funciona – com sua orientação ao curto prazo – não é uma forma de governo adequada a longo prazo” (2001, 41). A questão, portanto, diz respeito à relação entre liberdade e renúncia: qual é a capacidade que temos de sacrificar um pouco de nossa liberdade (de consumo, por exemplo), em benefício da garantia de uma existência livre (ou seja, não acossada pelos horrores da própria catástrofe)? Em outros termos, a catástrofe ambiental exige uma atitude urgente da parte dos governos ditos democráticos, em vista de salvar a própria democracia: Jonas tem clareza de que a reivindicação de liberdade absoluta não deve ser considerada inquestionável, antes o contrário, para ele “não se deve esquecer que a liberdade pode existir apenas desde que ela mesma se limite” (2001, p. 41). Em outras palavras, “uma liberdade individual ilimitada [como desejam os arautos do programa baconiano moderno que é, por isso, um programa niilista] se destrói, porque não é compatível com as liberdades dos demais indivíduos” (2001, p. 41-42). A era de sacrifícios, nesse caso, também exige a imposição de limites à própria liberdade do fazer humano, no horizonte da vida excessiva e do “luxo desmesurado” incentivados pela atual dieta socioeconômica baseada na “vontade de ilimitado poder” (Jonas, 2013, p. 34) que orienta as ações humanas no presente. Para o filósofo, a ameaça da catástrofe, portanto, passa a exigir a capacidade para o sacrifício, para o qual, em primeiro lugar, exige-se “conhecimento e compreensão do problema em questão” e, em segundo lugar, “muita liberdade em relação aos próprios interesses e certo grau de altruísmo e de entrega aos interesses, por assim dizer, verdadeiros do ser humano” (2001, p. 42-43). Nesse caso, a liberdade não reside no fazer o que se deseja, mas na capacidade de renunciar a fazer aquilo que, caso realizado, ameace o interesse último e mais primordial da vida humana, que é a sua própria existência no futuro.
Por isso, para evitar a catástrofe, seria necessária uma espécie de nova aliança política orientada pela renúncia ao consumo e à degradação da natureza. Referindo-se à Cúpula da Terra no Rio, Jonas afirma: “é isso que tentam alcançar as convenções internacionais, cujo objetivo é encorajar uma renúncia global à competição desenfreada pelos recursos limitados da terra” (Jonas, 2001, p. 41). Embora essa tenha sido, ao longo dos últimos anos, uma constância no debate ambiental promovido pela comunidade internacional, é bem verdade que Jonas tinha razão quanto à sua descrença na contribuição efetiva desse debate para alterar o rumo dos fatos: ao invés de renúncia global e sacrifício pessoal, o regime capitalista que se alargou sobre os horizontes da Terra por meio da globalização, tem incentivado o recrudescimento do consumo e do esgotamento dos bens naturais, fortalecendo a onda de extinção da vida sobre o planeta a tal ponto que a humanidade mesma se encontra em perigo de extinção.
Ocorre que, para Jonas, só a disposição para o sacrifício dá esperanças, como sugere o título de outra entrevista de Jonas, ao jornal Stern, de 23 de junho de 1988: “se nós não estivermos prontos para o sacrifício, não há esperança” (Jonas, 2001, p. 149). Para Jonas, “nosso apetite pelo consumo não deve mais crescer constantemente, como tem acontecido até agora” e, ao invés disso, “precisamos adotar um modo de vida mais moderado” (Jonas, 2001, p. 151) – e isso demanda tanto uma espécie de ascese individual quanto, sobretudo, uma ação política de médio e longo prazo. Ocorre que, para ele, não parece haver disposição para uma tal coisa entre os governos de então – o que explica a sua descrença. Esse é o tema da parte final do discurso de Jonas, proferido em 1987, quando da entrega do Prêmio da Paz dos livreiros alemães:
Qualquer que seja o futuro, devemos de fato viver à sombra de uma calamidade iminente. Mas ter consciência dessa sombra, como já acontece hoje, é o que paradoxalmente consiste no vislumbre da esperança: é de fato o que impede que a voz da responsabilidade desapareça. Essa luz não brilha no caminho da utopia, mas o seu alerta ilumina o nosso caminho tal como a fé na liberdade e na razão. Assim, o princípio da responsabilidade e o princípio da esperança finalmente se unem, mesmo que não se trate mais da esperança exagerada de um paraíso terrestre, mas de uma esperança mais moderada quanto à possibilidade de continuar a habitar o mundo no futuro e quanto a uma sobrevivência humanamente digna da nossa espécie, tendo em conta o patrimônio que lhe foi confiado e que, embora certamente não seja miserável, não é menos limitado. É esta carta que eu gostaria de jogar. (Jonas, 2001, p. 192)
À esperança, assim, teria de ser somada a responsabilidade, na medida em que ela não deveria deixar de reconhecer as sombras da “calamidade iminente” que se abatem sobre a humanidade.
Para Jonas, a calamidade ambiental que nos afeta é resultado da tecnologia, cujos poderes descontrolados e pretensamente ilimitados, têm matado a “galinha dos ovos de ouro” e serrado “o galho sobre o qual se está sentado” (Jonas, 2006, p. 40). Isso porque, para ele, “a civilização técnica tem uma forte propensão a degenerar de forma desproporcional e descontrolada”, dado que “existem forças econômicas e outras em ação que aceleram o processo e que estão além do nosso controle”. Isso nos coloca em estado de calamidade: “Estamos numa espécie de estado de emergência, numa situação clínica, à beira da cama de um doente. E nós somos aqui simultaneamente os pacientes e os médicos.” (2001, p. 150). Nesse ponto, Jonas chama atenção para o papel dos filósofos que, segundo ele, deveriam “assumir o papel de profeta da desgraça” (2001, p. 149) porque “algo muito pior nos espera” (2001, p. 153). Ocorre que uma tal posição não deve ser motivada por fatalismo: “resignar-se ao fatalismo é já perder a batalha” (2001, p. 153). Dessa forma, Jonas tanto recusa uma esperança desvinculada de uma clareza de consciência sobre a gravidade dos fatos (que, no limite, leva ao negacionismo tão em voga em nossos dias) quanto, ao mesmo tempo, rejeita uma profecia que abra mão de pensar a catástrofe. Além disso, em nome de uma crítica do utopismo tecnológico, Jonas pensa a utilidade da desgraça por meio de uma pedagogia da catástrofe que não nos leve ao fatalismo e ao imobilismo mas, ao contrário, indique o caminho possível para evitar o mal imaginado e, em último caso, que nos prepare (na forma de uma antecipação) para viver sob a sua sombra. É nesse ponto, precisamente, que chegamos ao conceito de um catastrofismo metodológico. Para Jonas, quando utilizado de forma metodológica, a catástrofe (ou melhor ainda, a imaginação da catástrofe) pode ajudar a despertar o sentimento de responsabilidade, dado que, com ele, seria possível o reconhecimento antecipado do malum que deve encorajar para uma resistência a ele. Isso seria, segundo o filósofo, um papel da ética (e é precisamente aí que os filósofos se tornam “profetas da desgraça”): ela deve prever os efeitos distantes absolutamente negativos (a sua promessa escatológica, cf. Jonas, 2013, p. 25) por meio de “diagnósticos hipotéticos relativos ao que se deve esperar, ao que se deve incentivar ou ao que se deve evitar” (Jonas, 2006, p. 70). Note-se como, portanto, a imaginação do futuro que dá preferência ao prognóstico negativo opera por meio de uma “heurística do temor” (2006, p. 70) segundo a qual é necessário olhar para a catástrofe a fim de evitá-la. O medo se torna, assim, um móvel ético que, para Jonas, provocaria um sentimento de responsabilidade capaz de orientar as ações do presente para que o mal futuro seja evitado: “o efeito final imaginado deve conduzir à decisão sobre o que fazer agora e ao que renunciar”, algo que, afinal, “justifique a renúncia a um desejável efeito próximo em favor de um efeito distante” (Jonas, 2006, p. 74). Eis como estaríamos, afinal, preparados para enfrentar a era de sacrifícios que advém: imaginar a catástrofe futura justifica a renúncia presente e capacita a enfrentá-la adequadamente.
Precisamos perguntar quem ou o que nos colocou diante da catástrofe, por que e como entramos nela e se podemos escapar de suas consequências ou mesmo evitá-la. Elizabeth Kolbert afirma, tanto em seu livro A sexta extinção (2014) quanto no mais recente Sob um céu branco: a natureza no futuro (2021), que estamos vivendo tempos catastróficos em vários sentidos e que isso está ligado ao processo de expansão da presença humana no plante. Em seu texto para O livro do clima, organizado por Greta Thunberg com a participação de inúmeros especialistas de variadas áreas, Kolbert afirma: “as nossas armas mais perigosas seriam a modernidade e o seu fiel parceiro, o capitalismo tardio”. Para a autora, “no século XX, os impactos humanos começaram a se intensificar num ritmo não apenas linear, mas exponencial” (2023, p. 13). Os cientistas têm chamado esse evento com um novo nome: Antropoceno[1], a era em que o ser humano se tornou uma força geológica capaz de alterar de forma radical a história da vida na Terra. Por isso, na verdade, o Antropoceno não é a era do poder, mas a era da catástrofe: “longe de abrir a possibilidade de controle global do planeta através de tecnologias apropriadas, o Antropoceno marca o fim desta ambição: o sistema global do planeta está fora do nosso controle, estamos caminhando para o desastre” (Larrère, 2020, p. 45). O colapso que se avizinha está ligado ao esgotamento dos recursos naturais que embasaram a ampliação dos poderes tecnológicos e, por isso, o Antropoceno coloca em xeque precisamente a capacidade da natureza em continuar fornecendo a matéria prima do progresso. Nas palavras de Jonas, não se trata mais de “saber precisamente o que o homem ainda é capaz de fazer, mas o quanto a natureza é capaz de suportar” (Jonas, 2006, p. 301). Isso exige, antes de qualquer coisa, o reconhecimento dos limites impostos pela natureza às ações humanas, algo que deve começar pela pergunta: “a que distância nos encontramos deles?” (Jonas, 2006, p. 301). Jonas, não por acaso, denuncia o “estilo de vida perdulário” (Jonas, 2006, p. 245) que foi “incentivado por uma crença equivocada que uniu o conforto à ideia de felicidade, com o preço da destruição da natureza” (Oliveira, 2023, p. 23). O problema é que o Antropoceno é a era do deslimite (ou da crença no progresso ilimitado). É o que destacam os Larrère:
Já em 2004, o Programa Internacional Geosfera-Biosfera (IGPB) estabeleceu uma série de indicadores socioeconômicos (tais como população mundial, população urbana, consumo de energia, consumo de fertilizantes, consumo de água e PIB global) e indicadores ecológicos (tais como concentrações atmosféricas de gases com efeito de estufa [CO2, N2O, CH4], acidez dos oceanos e a diminuição da área das florestas tropicais). O seu antigo diretor, Will Steffen, e os seus colegas, produziram um conjunto de curvas em 2015 mostrando a evolução atualizada destes indicadores ao longo dos anos. Desde os anos 50, todas estas curvas têm crescido exponencialmente! (Larrère; Larrère, 2020, p. 67).
Esse é o relato da catástrofe, algo que se agrava precisamente porque Jonas tinha razão quando suspeitou que as instâncias internacionais disponíveis seriam insuficientes e até mesmo ineficazes diante da grandiosidade do que está em jogo. Bruno Latour (2020, p. 75) afirma que “não existe mais Terra capaz de corresponder ao horizonte do Global” imposto pela globalização, considerada por ele como mais um capítulo na longa história da perturbação natural provocada pelo capitalismo moderno, cujo símbolo foi Donald Trump. Para Latour, Trump representa (fala em nome) uma elite obscurantista que já sabe que a catástrofe é certa (não há mundo mais para todo mundo, caso o estilo de vida atual [deles] seja mantido como o único ideal) e que, por isso, investe seus bilhões na busca por uma saída do planeta, deixando para trás uma Terra colapsada. Sua voz diz: “desregulemos, desregulemos; lancemo-nos na extração desenfreada de tudo o que resta ainda a extrair – Drill baby drill! Terminaremos por ganhar, apostando nesse louco, trinta ou quarenta anos de alívio para nós e nossos filhos. Depois disso, que venha o dilúvio, de todo modo estaremos mortos” (Latour, 2020, p. 49). Essa é a perspectiva do presenteísmo absoluto, que ignora os riscos futuros simplesmente porque não acredita mais no futuro. Com Trump, por isso, a ignorância da catástrofe chegou ao poder: “pela primeira vez”, escreve Latour, “o negacionismo climático define a orientação da vida pública de um país” e, com isso, leva ao fim da política, entendida como arte do bem comum.
Johan Rockström (2023, p. 32), também descreve o Antropoceno a partir da catástrofe evidente. Para ele: “A quantidade de CO2 que já emitimos com a queima de combustíveis fósseis (cerca de 500 bilhões de toneladas de carbono) e a destruição ambiental que promovemos são suficientes para afetar o planeta pelos próximos 500 mil anos”. Uma tal situação existe porque “nós desencadeamos o Antropoceno há cerca de sete décadas, quando a nossa economia industrializada e movida por combustíveis fósseis se tornou de fato globalizada”. Tudo isso vem sendo chamado de “a grande aceleração”, a qual está explicitada no “rápido aumento das emissões de gases do efeito estufa, do uso de fertilizantes, do consumo de água, da captura de peixes marinhos e da degradação da biosfera terrestre, para mencionar apenas alguns fatores” (Rockström, 2023, p. 32). O autor, contudo, descreve o cenário de forma dramática: “o drama, contudo, é muito mais amplo do que essa percepção quase inconcebível” porque “nosso planeta começa a dar sinais de uma incapacidade de tolerar mais abusos” (Rockström, 2023, p. 32). O Antropoceno é, portanto, a era da catástrofe – queiramos ou não.
Em seu livro Naufrágios sem espectador: a ideia de Progresso (2000), Paolo Rossi lembra que a ideia de catástrofe pode despertar diferentes sentimentos, o primeiro deles é, precisamente, o imobilismo: “diante de uma crise profunda, tendo em vista um presente inaceitável, pode-se reagir com ansiedade, angústia, sentimento de inutilidade das coisas humanas ou de uma inevitável catástrofe” (2000, p. 63). O segundo sentimento tem a ver com a esperança: “a impressão de viver numa época de grandes mudanças dê lugar à esperança”, dado que se começa a imaginar que as crises possam “arrastar consigo edifícios putrescentes” (2000, p. 63). A catástrofe pode, afinal, oferecer novas possibilidades. Jonas certamente concordaria com esse segundo aspecto. Para ele, há algo que precisa ser superado, algo que está intrinsecamente arraigado na própria concepção da modernidade – precisamente a ideia de Progresso[2]. Tal conceito, na medida em que se associou às promessas tecnológicas, passou a representar um novo horizonte de sentido para a humanidade, no qual não há lugar para a imaginação do pior, mas, ao contrário, apenas para a utopia que traduz precisamente a crença de que o futuro será muito melhor do que o presente (crença que, ademais, caracteriza o próprio Progresso) e que, portanto, as ações do presente não precisam de nenhum questionamento ou imposição de limites, dado que o “melhor dos mundos possíveis” será produzido por elas, na medida em que o futuro é resultado do presente. Assim, o catastrofismo metodológico de Hans Jonas se apresenta como uma alternativa ética de primeira grandeza: ele, aliás, contribui para resgatar precisamente o lugar da ética em relação à tecnologia, já que toda utopia – porque não questiona a ação do presente, mas a confirma por meio da projeção otimista do futuro – dispensa qualquer preocupação com as ações, ou seja, isenta a humanidade de agir eticamente. Não é por outro motivo que todos os tecnocratas e tecnoprofetas (que são também tecno-utópicos) dão de ombros ou recusam qualquer exame ético. A ética da responsabilidade, nesse caso, evidencia a urgência de outra posição e, por isso, torna o catastrofismo algo teoricamente tão central.
4. Jonas e o debate sobre catastrofismo e colapsologia
Além da longa tradição cristã que usou a colapsologia como ingrediente capaz de orientar o comportamento dos fiéis e dos apelos dos profetas bíblicos, podemos dizer que Jonas não está sozinho em tematizar o catastrofismo. Podemos dizer que a lista de livros sobre o assunto é bastante longa e inclui, por exemplo, a obra La Fin du monde par la Science, publicado em 1855 (precisamente no ano da Exposição Universal de Paris), pelo advogado e ensaísta francês Eugène Huzar. Depois dele a lista cresceu enormemente em meados do século XX, incluindo títulos como Road to Survival, do ecólogo norte-americano William Vogt (de 1948); Our Plundered Planet (de 1948), do conservadorista norte-americano Henry Fairfield Osborn Jr.; e mesmo The Biological Time Bomb (1968), How to Avoid the Future (1975) e The Doomsday Book: Can the World Survive? (1972), do escritor e jornalista britânico Gordon Rattray Taylor. O tema do catastrofismo reapareceu nos últimos anos associado à questão ambiental, incluindo livros marcantes como The Risk Society, de Ulrich Beck, publicado em 1996.
Mais recentemente a lista inclui: The Five Stages of Collapse (de 2013) ou mesmo o mais recente Reinventing Collapse: The Soviet Example and American Prospects (de 2008) do russo radicado nos Estados Unidos, Dmitry Orlov, considerado o fundador da colapsologia; De quoi l’effondrement est-il le nom? (2016), do belga Renaud Duterme; Pourquoi tout va s’effondrer (2021), do francês Julien Wosnitza, fundador da organização Wings of the Ocean que luta contra a poluição plástica; Une autre fin du monde est possible (2018), de Pablo Servigne, Raphaël Stevens e Gauthier Chapelle, para quem a nossa geração vive um dilema sem precedentes: ou ela sofre o impacto da violência dos cataclismos que se avizinham ou ela, para evita-los, desencadeia o fim de um determinado mundo – ou promove determinado fim para o mundo que se desenhou desde a revolução industrial. Além disso, podemos citar Survivre à l’Anthropocène. Par-delà guerre civile et effondrement (2018), do doutor em filosofia política Enzo Lesourt; Plutôt couler en beauté que flotter sans grâce. Réflexions sur l’effondrement (2019), da militante ecossocialista e política francesa Corinne Morel Darleux; Face à l’effondrement. Militer à l’ombre des catástrofes, do ecologista político francês Luc Semal (2019).
A esse inventário somamos, pelo menos, outros dois textos capitais que foram escritos por leitores/as de Hans Jonas: Pour un catastrophisme éclairé. Quand l’impossible est certain (2021), de Jean-Pierre Dupuy e o mais recente Le pire n’est pas certain. Essai sur l’aveuglement catastrophiste (2020), dos belgas Catherine e Raphaël Larrère. Em língua portuguesa, o tema ganhou destaque nos trabalhos de Débora Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, especialmente com Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins, de 2017 e os trabalhos de pensadores indígenas como Ailton Krenak (Ideias para adiar o fim do mundo, de 2020) e o decisivo A queda do céu, de Davi Copenawa com Bruce Albert. Essa lista, obviamente, não se pretende exaustiva; trata-se, antes, de demonstrar como tema tem importância teórica, especialmente nos últimos anos e como Hans Jonas participa desse debate de forma decisiva, por meio dos conceitos de “futurologia comparativa” e “heurística do temor” (Jonas, 2006, p. 70), conforme veremos a seguir.
Foi Jean-Pierre Dupuy o primeiro a chamar atenção para o uso estratégico da catástrofe. O autor segue o problema levantado, por exemplo, por Bergon, após a primeira Guerra Mundial, a respeito da eclosão do impossível como inevitável: a guerra trouxe/traz, sem dúvida, a experiência da catástrofe ao primeiro plano da civilização e isso, pior ainda, não como um dos seus avessos, mas como um dos seus produtos. Ora, como prevenir o impossível, como tomar medidas de precaução diante dos riscos eminentes que não estão nos planejamentos e, mais ainda, que sequer fazem parte do horizonte de sentido imaginável. As guerras (e agora, a questão climática) demonstra que o possível é provável. Para Dupuy, não por acaso, Hans Jonas está entre os autores que levou o assunto a sério. Para ele, Hans Jonas “contribuiu fortemente para difundir a ideia de precaução (Vorsorge) nos países do norte da Europa” (2002, p. 92) mas, mesmo assim, seus críticos passam a considerar o livro de 1979 como “o resumo de tudo o que há de excessivo e invalidante na postura catastrófica” (2002, p. 92). Dupuy, contudo, reconhece que “o filósofo alemão é e quer ser um profeta da desgraça” na medida em que “é sob a influência do medo que ele nos pede para interpretar a nossa situação e assumir a nossa extrema responsabilidade”. Reconhecendo a obra de Jonas como “um livro difícil”, denunciando algumas leituras apressadas de sua proposta e, ao mesmo tempo, citando as passagens nas quais Jonas apresenta a sua “heurística do medo” Dupuy afirma: “acredito que a validade desta posição é demonstrável, e isto, não com angústia e tremor, mas com todos os recursos de uma cabeça fria [tête froide]” (2002, p. 93).
Ora, para Dupuy é “racional ser, hoje, um catastrofista no sentido indicado pelo imperativo de Jonas”. Nesse ponto, o autor belga discorda da interpretação de Larrère, para quem a proposta de não passaria de uma “profecia de destruição” que exclui a possibilidade da escolha razoável e consciente do melhor caminho a tomar. Diante da catástrofe iminente, argumenta Larrère, o pensamento se atrofia e já não é mais possível qualquer deliberação. Em boa medida essa é a posição de Bernard Sève (2007, p. 167-186), para quem a estratégia proposta por Jonas não tem eficácia e não passaria de “um ponto obscuro da ética da responsabilidade”, na medida em que o medo é um sentimento irracional e antipolítico por excelência. Sève, contudo, parece ter compreendido mal a proposta de Jonas, o que se denota, por exemplo, em afirmações do tipo “o medo não pode substituir a responsabilidade” (2007, p. 185) – o que está absolutamente ausente da letra jonasiana. Para Jonas, longe de ser uma substituição da responsabilidade, mas como um dos seus complementos mais importantes. Como nos lembra Frogneux em seu artigo O medo como virtude de substituição (2007, p. 188), Jonas “não preconiza nem o medo por si só, nem um ‘princípio de temor’, mas lembra a dimensão heurística e prática do medo que permite mobilizar ‘o princípio responsabilidade’”. A resposta a Sève está bem dada: é preciso prestar atenção ao papel heurístico do medo na filosofia de Jonas, que é um móvel cuja utilidade é amparar o princípio responsabilidade na prática cotidiana. Leitor de Sève e de Jean-Pierre Séris[3], Lebrun classifica (equivocadamente[4]) Jonas como um tecnofóbico em seu texto de 1996, Sobre a tecnofobia[5], no qual o trabalho de Jonas é abordado “muito elipticamente (mas muito respeitosamente)” (2006, p. 483), Lebrun afirma que a atitude de Jonas em relação à tecnologia (a busca de um ‘poder sobre o poder’) seria um exemplo acabado de tecnofobia – e de catastrofismo fácil, poderíamos acrescentar.
Contra essas interpretações, Dupuy declara ver nela “um completo contrassenso”. Ele afirma: “o ponto de partida de Jonas é, pelo contrário, o mesmo que o meu, nomeadamente que a perspectiva da catástrofe não nos comove [no sentido de impedir o uso da racionalidade], ou melhor, deixa-nos perfeitamente indiferentes” (2002, p. 95). Para quebrar a barreira (muito mais metafísica do que psicológica), que Jonas “recomenda o que é antes de tudo um método” (Dupuy, 2002, p. 94). Com bastante clareza e assertividade, Dupuy compreende que “a heurística do medo não consiste em se deixar levar por uma torrente de sentimentos abandonando a razão; é fazer de um medo simulado, imaginado, o revelador daquilo que tem um valor incomparável para nós” (2002, p. 94). Respondendo aos críticos de Jonas, Dupuy destaca que a identificação de um viés muito teológico em seu pensamento não passa de uma “confusão entre teologia e metafísica”, duas formas de “pensamento especulativo”: “é uma ética secular que Jonas pretende construir” (2002, p. 95). Para o pensador, sendo metodológico, o catastrofismo de Jonas não leva a uma inação, como pretendem os seus críticos, mas precisamente ao contrário, à responsabilidade, compreendida como um engajamento com os problemas ambientais. Ao mesmo tempo em que reconhece Jonas como um “espírito livre” que não se deixou claudicar diante das correntes da filosofia contemporânea (dividida entre continentais e analíticos), Dupuy acaba confessando a íntima conexão de sua proposta de um “catastrofismo esclarecido” [catastrophisme éclairé]: “partilho com Jonas a convicção de que a nossa situação atual exige que demos prioridade à ética sobre a política, mas também à metafísica sobre a ética” (2002, p. 97). Não por acaso, ao defender o uso racional do catastrofismo, Dupuy acaba por reconhecer Jonas como um “profeta do século XX” que atualiza o antigo profeta bíblico que lhe empresta o nome: “Ele quer profetizar uma catástrofe que espera que não aconteça, para que não aconteça. Isso só pode ter sucesso no nível ético se falhar no nível metafísico” (2002, p. 180). O profeta não fabrica a ruína e sequer decide o conteúdo da sua profecia. O profeta “é apenas um porta-voz” (2002, p. 180).
5 CATASTROFISMO VERSUS IMOBILISMO
A posição de Dupuy e de Jonas são reconhecidas como semelhantes pelo casal Larrère, que também acentua a diferença dessa posição com os chamados colapsólogos: “Assim como Hans Jonas, Jean-Pierre Dupuy ‘profetiza’ a catástrofe com o fim de convencer as pessoas de que tudo deve ser feito para evitá-la, enquanto os colapsólogos [collapsologues] consideram que tal esperança é vã e preferem a ‘negação’” (2020, p. 73. Além disso, os Larrère reconhecem que “do catastrofismo esclarecido de Dupuy, pode-se dizer que é metodológico: é uma suposição que se deve fazer para construir um plano de ação que permita evitar a catástrofe” (2020, p. 73). Sendo metodológico, esse tipo de utilização da catástrofe se diferenciaria de um catastrofismo ontológico (como os de Yves Cochet e Pablo Servigne), na qual a catástrofe é descrita como “já inscrita na realidade” e, como tal, exigiria uma colapsologia, ou seja, uma ciência do colapso que já existe. Ao contrário, a catástrofe não é tratada por Jonas como alguma coisa que já existe (embora ela seja presente, em vários sentidos, em nossos dias), mas como um risco eminente. É como risco que a catástrofe ensina, como possibilidade premente, como ameaça e como perigo a ser evitado. É nesse sentido, precisamente, que ela se torna um móvel ético: a imaginação da catástrofe deve servir de orientação para que as ações se alterem, enquanto há tempo, de forma que, se isso não ocorrer, “a culpa moral será imensa”: “existe, portanto, um dever moral de evitar a catástrofe, devido ao excesso de riscos contidos nas suas consequências, mesmo que ela, em si mesma, não seja certa” (Larrère, 2020, p. 76). Nesses termos, o catastrofismo metodológico tem como objetivo o fracasso do próprio diagnóstico, ou seja, quanto melhor foi o exame realizado, mais chances haverá de que o previsto venha realmente a acontecer. Isso traz muitas dificuldades, inclusive do ponto de vista da metodologia científica, amplamente acostumada com o método de comprovação do diagnóstico a partir dos fatos. Aceitar a metodologia heurística exige, por isso, uma revisão na forma mesma de pensar a ciência a partir de certezas e nisso também Jonas se distanciaria dos colapsólogos, para quem “o colapso é inevitável e que tudo o que resta é preparar-se e adaptar-se a ele” (Larrère, 2020, p. 65), algo cuja consequência mais danosa seria o imobilismo de quem vê o real com certo contentamento sórdido de quem comprova o diagnóstico realizado: “Não há nada de incompatível em viver um apocalipse e um colapso feliz [happy colapse]” escreveram Servigne e Stevens (2018, p. 281). De qualquer forma, em ambos os casos, o catastrofismo é associado a uma crítica radical da ideia de progresso (e, nos termos jonasianos, à utopia do progresso tecnoóghico): “o que diferencia o futuro brilhante de uns e o colapso feliz de outros é que o discurso do Progresso está aberto para um futuro ilimitado, enquanto a narrativa colapsológica está fechada sob [a ideia de] um colapso inevitável” (Larrère; Larrère, 2020, p. 98).
A colapsologia, portanto, partiria não do objetivo de evitar o pior, mas de se preparar para a sua irrefutabilidade e indiscutível evidência: “a questão, dizem [os colapsistas], é como se preparar para os choques e privações que acompanharão a catástrofe, e como as pessoas aprenderão a ‘viver com isso’” (Larrère; Larrère, 2020, p. 99). É o que se lê, mesmo, no livro de Servigne, Stevens e Chapelle: o objetivo da obra é “preparar-se para viver com as consequências das catástrofes atuais e futuras, buscando como prioridade os vínculos entre humanos e os não-humanos” (2018, p. 24). Nesse caso, todo o esforço está inserido já na catástrofe e não há, como é o caso de Jonas, uma tentativa clara de evitá-la. É como se houvesse pouca margem de manobra e nenhuma esperança de que a gravidade da situação, tal como está, possa ser, de alguma forma, contornada. Os colapsistas – sugerem os Larrère – atualizam o lema de Margaret Thatcher: “There Is No Alternative” (TINA) para expressar uma “certeza de impotência” ou mesmo um “obscuro desejo de inércia” (Delfour, 2014, p. 204), o que explicaria o sucesso e a popularização da colapsologia: a “sua inocuidade política” (2020, p. 110). O que Jonas propõe, no fundo, segundo reconheceram Dupuy e mesmo, em seu último livro, os Larrère, é que “para escapar da estupefação que pode ser causada pelo pavor do colapso, precisamos recuperar a confiança em nossa capacidade de agir” (Larrère, 2020, p. 110). É esse, precisamente, o esforço de sua ética.
Segundo os Larrère, Jonas considera dois “elementos constitutivos do catastrofismo”: “a importância das consequências não intencionais da ação e a globalização dos riscos a nível planetário”. Esses dois aspectos dão expressão à gravidade do diagnóstico e à emergência de sua proposta ética, na medida em que elas estão atreladas ao aumento crescente dos poderes tecnológicos que são capazes de tirar a catástrofe do âmbito do imaginado e trazê-la para o real. A tecnologia, seja de na forma subida e radical de uma destruição atômica, por exemplo, seja na forma lenta, gradual e constante da destruição da vida sobre o planeta, deve submeter-se a um controle extra-tecnológico, a fim de garantir que a catástrofe não seja produzida como consequência das ações humanas. Ocorre – vale insistir – que tais ameaças não estão inseridas no fracasso da técnica, mas precisamente no seu sucesso, o que amplifica a magnitude do problema, dado que poucos estariam de acordo, por exemplo, em impor freios voluntários ao avanço das tecnologias.
Como vimos, a ética da responsabilidade proposta e desenvolvida por Hans Jonas alinha-se a um debate que se colocou como um dos mais centrais e urgentes a partir de meados do século XX e que envolve o diagnóstico da grande catástrofe que se desloca rapidamente para dentro das nossas agendas. Embora recuse a tecnofobia, Jonas não deixa de se juntar às vozes daqueles que denunciam que essa situação é provocada pela ascensão dos novos poderes tecnológicos, em geral orientados para a exploração e depredação da natureza, segundo o programa baconiano que marca a trajetória da chamada modernidade. Nesses termos, a sua ética parte das evidências para utilizar metodologicamente a imaginação da catástrofe como dispositivo capaz de mobilizar as pessoas comuns e os agentes públicos para que sejam tomadas as medidas necessárias para que o colapso seja afastado – partindo-se da perspectiva que a catástrofe não é um acontecimento, mas um processo lento e, como vimos, por isso mesmo muito perigoso.
Para o filósofo alemão, a utilização metodológica da catástrofe exige o estabelecimento de critérios baseados na responsabilidade das ações humanas – um sentimento que seria despertado pela preferência do prognóstico negativo quando se trata de imaginar o futuro. Longe de levar a um pessimismo de tipo imobilista, uma tal atitude não seria senão uma estratégia útil para que a previsão do pior seja usada, paradoxalmente, contra ela mesma, a fim de que se evite precisamente aquilo que se logrou prever. À tecnologia e à ciência – responsáveis por essa situação calamitosa - cabe, agora, contribuir tanto para a realização desse diagnóstico quanto para a superação da crise – embora não com mais tecnologia, propõe Jonas, mas com uma mudança radical no estilo de vida. Como aponta Kolbert (2021, p. 17), na era do homem, “aquecimento atmosférico, aquecimento dos oceanos, elevação do nível do mar, deglaciação, desertificação e eutrofização” devem ser contados entre “alguns dos subprodutos do sucesso de nossa espécie”, cuja força é equivalente ao impacto de um asteroide que levou à extinção de inúmeras formas de vida há 66 milhões de anos atrás. Esses elementos, somados aos seus epifenômenos cotidianos que invadem as nossas vidas de diferentes formas, são parte da história da catástrofe que nossa geração precisa enfrentar – para que seja possível, afinal, salvar o que ainda resta. É nessa perspectiva que a “ética de emergência” proposta por Hans Jonas tenta levar a sério e tirar as devidas lições do atual estágio das coisas. Essa é, afinal, a tarefa ética da humanidade: “torna-se uma obrigação transcendente do homem proteger o menos reconstruível, o mais insubstituível de todos os ‘recursos’: a incrivelmente rica dotação genética depositada pelas eras da evolução” (Jonas, 2013, p. 36).
Chakrabarty, D. O Clima da História: quatro teses. Sopro 91, 2013.
Delfour, J.-J. La Condition nucléaire. Réflexions sur la situation atomique de l’humanité. Paris: Éditions l’Échappée, 201
Frogneux, N. O medo como virtude de substituição. In: NOVAES, A. Ensaios sobre o medo. São Paulo: Editora Senac São Paulo; Edições Sesc SP, 2007, p. 187-207.
Greisch, J. « L’heuristique de la peur » ou qui a peur de Hans Jonas ? In: DILLENS, Anne-Marie (dir.). La peur. Émotion, passion, raison. Bruxelles: Presses de l’Université Saint-Louis, 2006, p. 115-141.
Jonas, H. Más cerca del perverso fin y otros diálogos y ensayos. Trad. Illana Giner Comín. Madrid: Catarata, 2001.
Jonas, H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Trad. Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUCRio, 2006.
Jonas, H. Técnica, medicina e ética. Sobre a prática do princípio responsabilidade. Tradução do Grupo de trabalho Hans Jonas da ANPOF. São Paulo: Paulus, 2013 (Col. Ethos).
Kolbert, E. A sexta extinção. Uma história não natural. Trad. de Mauro Pinheiro. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.
Kolbert, E. Sob um céu branco. A natureza no futuro. Trad. de Maria de Fátima Oliva do Coutto. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.
Larrère, C.; Larrère, R. Le pire n’est pas certain. Essai sur l’aveuglement catastrophiste. Paris: Premier Parallèle, 2020.
Latour, B. Onde aterrar? – Como se orientar politicamente no Antropoceno. Trad. Marcela Vieira. Posfácio e revisão técnica de Alyne Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
Lebrun, G. Sobre a tecnofobia. In: LEBRUN, G. A filosofia e sua história. Organização de Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Maria Lúcia M. O. Cacciola e Marta Kawano. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 481-508.
Oliveira, J. Negação e poder: do desafio do niilismo ao perigo da tecnologia. Caixas do Sul: EDUCS, 2018.
Oliveira, J. R. de. (2022). Para uma ethical turn da tecnologia: por que Hans Jonas não é um tecnofóbico. TRANS/FORM/AÇÃO: Revista De Filosofia Da Unesp, 45(2), 191–206.
Oliveira, J. R. Le statut heuristique de la crainte dans la réflexion éthique de Hans Jonas. Alter Revue de Phénomenologie, v. 22, p. 195-209, 2014.
Oliveira, J. Moeda sem efígie. A crítica de Hans Jonas à ilusão do progresso. Curitiba: Kotter editorial, 2023.
Rockström, Johan. Pontos de inflexão e processos realimentados. In: Thunberg, G. (org.). O livro do clima. Tradução de Claudio Alves Marcondes. São Paulo: Companhia das Letras, 2023, p. 32-40.
Rossi, P. Naufrágios sem espectador: A ideia do Progresso. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora Unesp, 2000.
Séris, J.-P. La Technique. Paris: Presses Universitaires de France, 1994.
Sève, B. Hans Jonas et l’ethique de la responsabilité. Revue Espri, Paris, n. 165, p. 72- 88, oct./1990.
Sève, B. O medo como procedimento heurístico e como instrumento de persuasão em Hans Jonas. Tradução de Marcelo Gomes. In: NOVAIS, Adauto (Org.). Ensaios sobre o medo. São Paulo: Editora Senac São Paulo; Editora Sesc, 2007.
Servigne P.; Steven, R. Comment tout peut s’effondrer, petit manuel de collapsologie à l’usage des générations presentes. Paris: Seuil, 2015.
Contribuição de autoria
1 – Jelson Roberto de Oliveira:
Doutor em Filosofia, professor na PUC Paraná
https://orcid.org/0000-0002-2362-0494 • jelsono@yahoo.com.br
Contribuição: Escrita e primeira redação.
Como citar este artigo
OLIVEIRA, J. R.. O catastrofismo metodológico de Hans Jonas. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85286, p. 1-21, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378685286. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
[1] “Graças à nossa numerosa população, à queima de combustíveis fósseis e a outras atividades afins – nos tornamos agentes geológicos no planeta, alguns cientistas propuseram que reconheçamos o início de uma era geológica, no qual os humanos agem como principal determinante do ambiente do planeta. O nome cunhado para esta nova era geológica é Antropoceno.” (Chakrabarty, 2013, p. 11).
[2] Sobre a crítica de Jonas à noção moderna de progresso, ver Oliveira, 2023.
[3] Séris trata da tecnofobia no prefácio de seu livro La Technique (Paris: PUF, 1994).
[4] Em trabalho anterior apresentamos os motivos desse equívoco segundo o nosso ponto de vista: Oliveira, 2022.
[5] O texto foi publicado no livro A crise da razão, organizado por Adauto Novaes (São Paulo: Companhia das Letras, 1996). Usamos aqui a edição das obras de Lebrun no volume A filosofia e sua história (2006).