Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85259, 2023
Submissão: 02/10/2023 • Aprovação: 01/02/2024 • Publicação: 05/05/2024
2 DO NEOLIBERALISMO AO RESSENTIMENTO
Dossiê
Niilismo, neoliberalismo e catástrofe
Nihilism, neoliberalism and catastrophe
Ádamo Bouças Escosssia da VeigaII
I I Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro , Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
RESUMO
A subjetividade neoliberal, como estudada por Foucault, Laval e Dardot, acaba por reforçar o niilismo, que já tinha sido tão bem interpretado e conjurado por Nietzsche, ainda no século XIX. Esse aprofundamento acontece principalmente pelo viés do ressentimento, um dos afetos que está presente tanto na leitura neoliberal como nos estudos sobre o niilismo. No século XXI, a cientista política Wendy Brown atualizou essa correlação do niilismo e do ressentimento com o neoliberalismo, demonstrando que os atuais grupos de extrema-direita, com receio de perderem suas posições de privilégio, decidem por, de forma ressentida, atacar segmentos da sociedade que foram historicamente ostracizados. Por sua vez, Nietzsche ainda se mantém uma boa ferramenta para estudar as agremiações extremistas ao demonstrar que o problema não é a liberação da vontade de poder desses grupos extremistas, mas que tal vontade de poder é reativa, age em chave negativa, nunca de maneira a criar novos valores afirmativos. O resultado dessa mistura de neoliberalismo e niilismo ressentido é o agravamento da catástrofe climática. Como Latour explica, a destruição do mundo, esse niilismo elevado à máxima potência, foi uma decisão deliberada de parte da elite neoliberal exatamente quando tal formato político-econômico se tornou hegemônico no Ocidente.
Palavras-chave: Neoliberalismo; Niilismo; Ressentimento; Mudança climática
ABSTRACT
Neoliberal subjectivity, as studied by Foucault, Laval and Dardot, ends up reinforcing nihilism, which had already been so well interpreted and conjured up by Nietzsche, back in the 19th century. This process happens mainly through resentment, one of the affections that is present both in the neoliberal subjectivity and in nihilism. In the 21st century, political scientist Wendy Brown has updated this correlation of nihilism and resentment with neoliberalism, showing that today's far-right groups, fearful of losing their positions of privilege, decide to resentfully attack segments of society that have historically been ostracised. Besides Brown, Nietzsche is still a good tool for studying these extremist organisations, showing that the problem is not the release of the will to power from these organisations, but that this will to power is reactive, acting in a negative key, never in a way that creates new affirmative values. The result of this mixture of neoliberalism and resentful nihilism is a worsening climate catastrophe. As Latour explains, the destruction of the world, this maximum nihilism, was a deliberate decision by part of the neoliberal elite precisely when this political-economic format became hegemonic in the West.
Keywords: Neoliberalism; Nihilism; Ressentiment; Climate change
Neoliberalismo, niilismo, ressentimento e catástrofe. Procuramos no presente texto articular estes quatro elementos a partir da seguinte hipótese: a constituição da subjetivação neoliberal radicaliza o niilismo ao produzir ressentimento em direção a uma dissolução do mundo comum que, por sua vez, culmina no agravamento da crise climática em que vivemos. Pretendemos desenvolver esta hipótese a partir do trabalho de Dardot, Laval e Wendy Brown – autores que mobilizaram o referencial foucaultiano na analítica do modo neoliberal de produção de subjetividade –, além do próprio Nietzsche, que ainda fornece boas ferramenta teóricas para se pensar tanto o niilismo atual como o ressentimento.
A produção do ressentimento é um fator central na constituição da extrema-direita contemporânea – e, neste sentido, tem efeitos catastróficos, tanto para a manutenção das democracias ocidentais, quanto diante do mais grave problema do nosso tempo: a mudança climática. Como explica Latour na conclusão, o neoliberalismo pode ser compreendido como um desfazimento de mundo, esse niilismo in extremis, que está sendo levado a termo pelas elites a partir da percepção, diante da emergência climática, de que não há mundo para todos.
1.1 De que niilismo estamos falando?
Apesar de haver menções anteriores (Volpi: 1999), constitui um certo consenso (Toribio Vazquez: 2021) que a primeira aparição do termo niilismo, como o conceito que visa expressar a perda de uma determinada garantia de mundo, de um caução para os valores que permeiam certo grupo social, apareceu em uma carta de Friedrich Heinrich Jacobi para Johann Gottlieb Fichte, em 1799, quando aquele acusa este de ter descartado o Deus cristão, salvaguarda dos preceitos morais que regiam a Europa nos estertores do século XVIII, para substituí-lo pela noção de sujeito. Essa é uma discussão que vai perpassar, direta ou indiretamente, todo o século XIX europeu, dos escritores russos como Ivan Turguêniev e Fiódor Dostoiévski, até outros grandes nomes do idealismo alemão, como George W. F. Hegel e Max Stirner. Todos debatendo a transformação existencial – que tinha impactos diretos nos campos políticos e sociais, para citar apenas dois âmbitos – pelo qual passavam os europeus com o aparecimento de outros modos de criação de princípios para reger a sociedade que não dependiam da tradição cristã, como a ciência ou a democracia. Foi, contudo, com outro alemão, Friedrich Nietzsche, que o conceito ganhou maior envergadura.
Não apenas pelo lado da sua vulgarização, com a associação do pensador alemão à frase “Deus está morto”, mas principalmente com a preocupação de Nietzsche de demonstrar que havia traços niilistas desde a gênese do pensamento europeu que construiu os valores morais então em voga, isto é, desde Sócrates e Platão, e depois com o cristianismo. Nietzsche acreditava, entretanto, que esses princípios fundamentais compartilhados, que foram consolidados no monoteísmo cristão, já não apresentavam a mesma estabilidade no período em que vivia, segunda metade do século XIX. Com a saída de cena do Deus cristão como garantidor das certezas compartilhadas, não houve, entretanto, uma liberação das possibilidades de existência. Ao contrário: a sensação generalizada era de ausência de critérios, como se o horizonte fosse apagado, imagem que ele usa no famoso §125 de A gaia ciência, momento mais famoso entre aqueles em que Nietzsche “anuncia” a morte de Deus. Ou seja, com a ausência de um parâmetro fixo, interpretado apenas por um punhado de sacerdotes, um objetivo que determinava os caminhos a serem seguidos pela vida afora, os homens se sentiam perdidos. Não se sabia mais o que era o certo e o errado, o que se podia ou não fazer, o que era proibido e o que era autorizado. Em vez de uma libertação, a morte de Deus para esses homens era vista como uma nova prisão, uma prisão dentro do relativismo em que todas as coisas têm o mesmo valor: nenhum.
Nesta posição, Gilles Deleuze (2018), em sua principal obra dedicada a Nietzsche diz que ocorre uma bifurcação. O niilista pode optar por se aprofundar nessa falta generalizada de sentido, transformando sua postura numa passividade extrema, numa inação, numa depressão profunda. Ou, tentar se agarrar a um novo deus a quem ele vai obedecer, um deus que determine novamente sua própria forma de ser.
Assim, o niilista nega Deus, o bem e até mesmo o verdadeiro: todas as formas do suprassensível. Nada é verdadeiro, nada é bem, Deus está morto. Nada de vontade não é mais apenas um sintoma para uma vontade de nada, mas, em última instância, uma negação de toda vontade, um taedium vitae. (Deleuze: 2018, p. 189)
2 DO NEOLIBERALISMO AO RESSENTIMENTO
Cunhado por intelectuais latino-americanos, o termo “neoliberalismo” expressa até hoje o regime político-subjetivo dominante – mesmo com suas sucessivas crises. Pode-se traçar sua origem nos anos 1930, a partir do colóquio Walter Lippman e, posteriormente, da formação da Sociedade de Mont Pélerin (HARVEY, 2005). Tratava-se de pensar o lugar do liberalismo perante sua aguda crise em um cenário no qual o keynesianismo e o comunismo disputavam a hegemonia global. O projeto ali gestado, de forma multifacetada e variada, acabaria por se tornar hegemônico na maior parte do globo a partir dos anos 1980. Desde a sua implantação, como argumenta Wolfgang Streeck (2013), temos uma crescente concentração de riqueza e uma precarização crescente da reprodução da vida laboral. De forma próxima, David Harvey (2005) defende que o neoliberalismo consistiu e consiste em uma bem-sucedida contraofensiva da classe burguesa contra os ganhos dos trabalhadores do pós-guerra. Lutava contra as vitórias da classe trabalhadora do Norte Global que havia logrado o estabelecimento de um pacto com as classes dominantes, no qual estas se comprometiam a uma lucratividade menor, porém constante, em prol do bem-estar social. O neoliberalismo conseguiu, assim, a partir de uma campanha bem-sucedida e da ausência de resposta no modelo keynesiano à crise dos anos 1970, reverter estes ganhos em um ataque exitoso das elites globais.
Se seguirmos o diagnóstico de Mark Fisher (2009), em consonância com Harvey e Streeck, podemos ainda afirmar que, no século XXI, o neoliberalismo se tornou hegemônico. O termo “capitalismo realista”, cunhado por Fisher (2009), expressa justamente a colonização do imaginário pelo capitalismo neoliberal que, deste modo, conseguiu se firmar como a própria realidade acerca do humano, da economia, e da sociedade. O realismo capitalista consiste nesta atmosfera pervasiva no qual torna-se impossível imaginar como viável, plausível ou possível, qualquer alternativa ao capitalismo em sua atual configuração, sendo mais fácil imaginar o fim do mundo do que imaginar o fim do capitalismo.
2.1 A subjetividade neoliberal
Para além da sua feição econômica, da suposta diminuição do Estado, da liberdade de empreendimento, etc., o neoliberalismo consiste em um modo de subjetivação. Não apenas ele governa a economia e a política, mas consiste em um regime no qual nossa subjetividade se constitui. E é nela que encontramos os elementos mais significativos na produção de ressentimento.
Para Foucault (2011), o sujeito não preexiste às relações de poder. O poder não se aplica a um sujeito em sua interioridade já constituída; ele não apenas a reprime, mas se constitui. Enquanto tal, opera em uma rede variada e difusa, perpassando instituições, práticas e discursos. O conjunto destas práticas materiais e discursivas que operam na construção de determinada sociabilidade e é temporalmente localizada é o que Foucault chama de modo de subjetivação. No lugar de invariantes ensimesmadas que responderiam acerca do que é o sujeito, o sujeito é produzido nas relações de poder e saber e estas se estruturam em uma rede que apresenta algumas características analisáveis em seu contexto histórico (Neto, 2017).
Em Nascimento da biopolítica (2008), Foucault se debruça sobre a análise do neoliberalismo em um contexto em que ele ainda começava a se firmar. A análise ali desenvolvida servirá de base para uma série de reflexões posteriores, dadas em um outro momento, em que o neoliberalismo já se revela em sua dominância. Os principais elementos identificados na subjetivação neoliberal por Foucault e posteriormente desenvolvidos por Dardot e Laval (2016) são: 1) a competitividade como princípio de inteligibilidade social; 2) o empresário de si mesmo; 3) a tese do capital humano. Diferentemente do liberalismo clássico, orientado às questões acerca da limitação dos poderes do Estado e a uma concepção econômica baseada na troca de agentes livres, o neoliberalismo introduz uma novidade que o põe em uma relação de descontinuidade para com o liberalismo: a competitividade, e não a troca, se torna o princípio de inteligibilidade social (Foucault, 2008). Nas doutrinas neoliberais, como a de Hayek e de Mises, não se trata apenas de limitar os poderes do Estado a fim de permitir a troca livre. Antes trata-se da assunção de que a sociedade e o ser humano são competitivos antes de qualquer outra coisa.
Inicialmente, a competição é pensada em termos de eficácia de alocação de recursos no mercado – o núcleo duro do pensamento de Hayek (1990) se dá precisamente nestes termos. No entanto, o neoliberalismo, como identificado por Foucault, desdobra a lógica econômica em um princípio de inteligibilidade social generalizada. Temos, aqui, a economização das formas de vida, a transformação de um paradigma econômico em uma estrutura de orientação social, pessoal, biográfica, familiar. Se a dimensão econômica é da ordem da competição, a economização das formas de vida se desdobra na competição como injunção normativa privilegiada no mundo neoliberal. A competição é, deste modo, o horizonte normativo de inscrição do sujeito, do mercado, do Estado e da vida social; é através da competição que devemos, nesta injunção normativa, nos reconhecer e agir. É na competição que a economia funciona de modo adequado e é através dela que as sociedades humanas evoluem. Não apenas um modo eficaz de alocação de recurso, mas o meio a partir do qual as interações humanas tornam-se inteligíveis e assinaláveis. Esta chave de inteligibilidade, esta compreensão acerca da natureza humana, se traduz em práticas reais de subjetivação que se produzem tal qual estes discursos mesmos, culminando – em uma série complexa de processos – na produção do sujeito neoliberal (Dardot, Laval, 2016).
Neste sentido, não se trata apenas de uma lógica discursiva, dada na obra de autores célebres associados ao neoliberalismo, mas de um princípio que se materializa através de uma série de mecanismos que passam pelo discurso empresarial e midiático, pela educação para a competição no mercado, entre diversos outros mecanismos. É, assim, um regime bem distinto do liberalismo clássico:
O neoliberalismo, portanto, não é o herdeiro natural do primeiro liberalismo, assim como não é seu extravio nem sua traição. Não retoma a questão dos limites do governo do ponto em que ficou. O neoliberalismo não se pergunta mais sobre que tipo de limite dar ao governo político, ao mercado (Adam Smith), aos direitos (John Locke) ou ao cálculo da utilidade (Jeremy Bentham), mas, sim, sobre como fazer do mercado tanto o princípio do governo dos homens como o do governo de si. Considerado uma racionalidade governamental, e não uma doutrina mais ou menos heteróclita, o neoliberalismo é precisamente o desenvolvimento da lógica do mercado como lógica normativa generalizada, desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade. (Dardot; Laval, 2016, p. 31).
Temos, neste sentido, uma inflexão em relação ao homo economicus do liberalismo clássico. Foucault (2008) afirma que, neste caso, trata-se antes de um sujeito de trocas consensuais em um mercado livre que, no mesmo movimento em que a competitividade se torna generalizada como princípio de inteligibilidade, o homo economicus muda de figura. Torna-se o empresário de si mesmo. A forma-empresa coloniza o espaço vivente, penetrando na pele e formando subjetividades que nela se constituem. O indivíduo é interpelado a se tomar tal como uma empresa. Seu objetivo passa a ser maximização de capital e o cálculo, sua orientação privilegiada para a ação. Desta forma, a teoria do capital humano, como coloca Foucault, conforme desenvolvida pelo neoliberalismo norte-americano, pensa o próprio indivíduo enquanto um capital: o salário passa a ser visto como uma renda sobre este capital e o indivíduo como nada além deste capital em si mesmo. As habilidades individuais – mesmo as “competências atitudinais” – passam ser tomadas como capital. O empresário de si, dispondo de certo capital, deve trabalhar sobre si e sobre o mundo de modo a maximizá-lo na competição. Escreve Foucault:
O homo economicus é um empresário, é um empresário de si mesmo. Essa coisa é tão verdadeira que, praticamente, o objeto de todas as análises que fazem os neoliberais será substituir, a cada instante, o homo economicus parceiro da troca por um homo economicus empresário de si mesmo, sendo ele próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de [sua] renda. (Foucault, 2008, p. 311, com acréscimos)
Esta maximização do próprio capital humano enquanto interpelação normativa no mundo neoliberal se estrutura no que Dardot e Laval chamam de subjetivação pelo excesso de si ou ultrassubjetivação
cujo objetivo não é um estado último e estável de ‘posse de si’, mas um além de si sempre repelido e, além do mais, constitucionalmente ordenado, em seu próprio regime, segundo a lógica da empresa e, para além, segundo o ‘cosmo’ do mercado mundial. (Dardot; Laval, 2016, p. 348).
Ora, tal como uma empresa não apresenta limites internos à sua expansão, ao seu acúmulo de capital, o indivíduo concebido como empresa também deverá procurar a sua própria maximização em todos os aspectos. Uma empresa não se orienta a um estado de equilíbrio, a um ponto terminal no qual poderia se ver como realizada; antes, a sua lógica constitutiva é a do crescimento indefinido, maximamente distendido em direção ao futuro. Mais ainda: ela não existe senão em razão desta maximização. Sua razão de ser é a própria maximização em uma lógica que, ao ser interiorizada pelo indivíduo, o faz tomar como objetivo – e como inteligibilidade mesma de si – o excesso.
2.3 Desempenho-gozo
Este princípio normativo se articula ao que Dardot e Laval chamam de “dispositivo de desempenho/gozo” (2016, p. 346). Trata-se do imperativo de maximização do desempenho e do prazer articulados sob o princípio da expansão indefinida. Trata-se, neste excesso de si como injunção normativa, da procura pelo máximo de gozo e, simultaneamente, do melhor desempenho na aventura empresarial. Por um lado, o discurso midiático interpela o indivíduo em direção à maximização, através do consumo, dos seus prazeres; por outro, trata-se da convocação de todas as dinâmicas da sua própria subjetividade para a competição laboral em uma forma de ascese. O gozo é um imperativo a ser obrigatoriamente buscado; seja o gozo através da aquisição de produtos ou “experiências” (como viagens, cursos de sommeliers, aprendizado de hobbies etc.), seja o gozo sexual propriamente dito. O dispositivo possui uma articulação imanente entre um campo e outro: em ambos os casos, exige-se uma ascese, seja na técnica de si para a fruição do gozo ou para a performance laboral, sendo que uma coisa se articula necessariamente a outra. Por exemplo: o imperativo ascético da cultura fitness para aumentar os parceiros sexuais através da construção do corpo e as técnicas de produtividade para aumentar os prospectos na carreira (com as perspectivas de aumento de renda e consumo) exigem igualmente uma forma de ascese individual, técnicas de construção de si voltadas à expansão do gozo e do desempenho.
Ao lado do gozo como imperativo, há o imperativo de uma ascese do indivíduo sobre si mesmo de modo a torná-lo cada vez mais apto à competição. Weber, como notam Dardot e Laval, já havia identificado a relação entre ascese individual e ordem capitalista; no neoliberalismo, no entanto, a justificativa extramundana passa a se referir ao próprio mundo. Trata-se de uma ascese que “encontra sua justificação última numa ordem econômica que ultrapassa o indivíduo, uma vez que é expressamente concebida para conformar a conduta do indivíduo à ‘ordem cosmológica’ da competição mundial que o envolve” (Dardot; Laval, 2016, 336). Podemos identificar esta ascese em todos os discursos e práticas que conclamam o sujeito a transformar-se a fim de se tornar mais apto à competição (e à fruição de prazeres) e, assim, à maximização do seu capital humano. Os livros de autoajuda são um bom exemplo: as suas técnicas visam ensinar ao indivíduo um trabalho sobre si mesmo capaz de torná-lo mais competitivo. O coach expressa, igualmente, esta dimensão. O termo, retirado do campo do esporte, se refere ao indivíduo que visa ensinar técnicas de transformação de si para a competição empresarial – ou mesmo sexual (Dardot; Laval, 2016, p. 346). Trata-se, assim, de uma série de procedimentos de intervenção do sujeito sobre si mesmo orientados a sua produção enquanto um competidor cada vez mais apto.
Temos, então, seguindo Dardot e Laval, um regime de produção de subjetividade articulada à competição generalizada e a um perpétuo desequilíbrio. O sujeito assim constituído se vê convocado à inflação do seu desejo e a sua alocação nos círculos de valorização do capital[1]. Enquanto empresário de si, tendo a missão constante de aumento do seu capital humano, é convocado a pôr todas as suas dimensões afetivas, o seu desejo, a serviço da competição. E, esta competição, não tem horizonte limitado, mas se dá em uma convocação sempre renovada que tem como horizonte o excesso de si e o desequilíbrio - o que é uma forma de ressentimento, como veremos a seguir.
2.4 Neoliberalismo e niilismo
Podemos entender, neste sentido, um ponto relevante trazido por Wendy Brown (2019): o neoliberalismo, na medida em que produz a competição como modo de inteligibilidade social, desenraiza todos os valores fazendo com que eles passem a ser nada além de uma ferramenta ou arma na competição. Este desraizamento produz o que Brown (2023) chama de “tempos niilistas”. Niilista justamente na medida em que a instrumentalidade generalizada na competição social faz com que todo valor esteja já imediatamente inscrito nesta competição. A religião, a família, o antirracismo (mesmo ele), tudo se torna apenas um recurso para ampliação do capital humano neste perpétuo agon de todos contra todos de modo que “o niilismo se manifesta hoje como um caos moral ubíquo ou dissimulação, e também como asserções de poder e desejo despojados de preocupação com a responsabilidade com a verdade, justiça, consequências, futuro [...]” (Brown, 2023, p. 11). Os valores não limitam a competição, não produzem uma esfera à parte – antes, figuram apenas como um elemento entre outros na competição.
Brown (2019) identifica este niilismo na extrema-direita estadunidense na medida em que seus fervorosos apoiadores se comportam como se não acreditassem nos valores que eles mesmo pregam. Se mesmo Trump, um notório adúltero, figura como defensor da “família tradicional”, então esta “família tradicional” perde qualquer conteúdo e torna-se apenas uma arma na competição política (Brown, 2019). E se, todos os valores se tornam armas em uma competição, isso só é possível na medida em que a competição torna-se em si mesma o valor privilegiado capaz de orientar, subjetiva e globalmente, as formações sociais contemporâneas: a competição como valor desenraiza todos os valores.
Outro elemento importante trazido por Brown é o que ela chama, a partir de Marcuse (1973), de “dessublimação repressiva”: uma falsa liberação dos instintos, reduzindo as demandas por necessidade e transformando o desejo em um commodity dentro da cultura de consumo. Neste âmbito, haveria a possibilidade de aparecer o que Marcuse chamou de “consciência feliz” – que de feliz só teria mesmo o nome. Mas, ao relaxar em relação às próprias restrições de liberdade, tal personagem acaba por também ter uma cada vez menor preocupação com o seu entorno, com as necessidades sociais da comunidade em que ele vive e está inserido. “[N]esse contexto, menos repressão leva a um supereu menos exigente, ou seja, menos consciência, o que em uma sociedade individualista e não emancipada significa menos consideração ética e política em geral” (Brown: 2019, p. 203). O que a pensadora estadunidense defende é que, com a sublimação da vontade de poder, com a interiorização dessa força que é naturalmente de expansão, teria sido criado o que chamamos de “consciência”. E foi com essa consciência que se construiu algum tipo de parâmetro para evitar que toda e qualquer vontade de poder pudesse ser extrapolada com fins de subjugar aqueles historicamente subalternizados: “A consciência é, assim, imediatamente um elemento no arsenal do supereu para a inibição interna e uma fonte de julgamento moral sobre a sociedade” (Brown: 2019, p. 203).
Para Brown, a extrema-direita atual, forjada sob a subjetivação neoliberal, apresenta-se como uma oportunidade para dar vazão a uma vontade de poder irresponsável e desenfreada, a liberdade infantil de não querer se importar com qualquer dimensão coletiva. O que a extrema-direita oferece, de forma sistemática, é a possibilidade de significação da existência, um novo “deus” nos termos nietzschianos, a partir do seguinte quadro: diante da percepção pervasiva e difusa de que não há mundo para todos, de que as oportunidades de realização pessoal e econômica se escasseiam e que a competividade é o sentido e a chave de compreensão de si, a extrema-direita oferece, ao menos, uma descrição do mundo tal como é.
Analisando o bolsonarismo, Rodrigo Nunes (2022) está correto em identificar esta dimensão: quando a extrema-direita afirma que o mundo é uma competição de todos contra todos por cada vez menos recursos, as pessoas se identificam com tal discurso uma vez que ele descreve a sua realidade vivida. A explosão das desigualdades no mundo neoliberal dá concretude a percepção de um mundo cada vez mais competitivo e com cada vez menos oportunidades (ponto que coaduna o diagnóstico de Latour, como veremos). E, neste movimento, a extrema-direita promete que, nesta competição, nenhuma consideração coletiva, vinda do Estado ou alhures, irá atrapalhar os esforços individuais. Livrar-se de toda responsabilidade coletiva, ser deixado livre para competir – é esta promessa que é vendida por Trump e Bolsonaro. Os melhores, se deixados livres, irão triunfar – e triunfando, não devem carregar nenhum peso em relação àqueles que fracassaram. Para que isto tudo germinasse, foram necessárias quatro décadas de neoliberalismo, de erosão do coletivo, desfazimento do demos (Brown, 2015) e de produção do sujeito neoliberal que se vê a si mesmo como um competidor em primeiro lugar. Como coloca Brown sobre a extrema-direita:
[..] a ascensão das formações políticas nacionalistas autoritárias brancas se deve à raiva instrumentalizada dos indivíduos abandonados economicamente e ressentidos racialmente, mas também delineada por mais de três décadas de assaltos neoliberais à democracia, à igualdade e à sociedade. O sofrimento econômico e o rancor racial das classes trabalhadora e média brancas, longe de se distinguir desses assaltos, adquire voz e forma a partir deles. Esses ataques também abastecem (mesmo que por si mesmos não sejam sua causa) a ambição nacionalista cristã de (re)conquistar o Ocidente. Eles também se misturam com um niilismo intenso que se manifesta como perda da fé na verdade, na facticidade e em valores fundamentais. (Brown, 2019, p. 17.)
2.5 A revolta submissa
Como vimos com Brown, a extrema-direita é gestada pelo neoliberalismo. Na medida em que, no regime neoliberal, toma-se tudo como meio para um fim, como recurso na competição generalizada, acaba-se produzindo o desenraizamento de todos os valores que passam a ser instrumentos na competição: neste sentido, nos vemos habitando uma era niilista. E, como sabemos, uma das principais formas do niilismo se mostrar é o ressentimento (Deleuze, 2018, p. 49). Isto porque o ressentimento se apresenta como um esforço de negar as potencialidades de outrem, que é considerado o culpado por algum tipo de agressão que o “eu” considera ter sido alvo – mesmo que esse outrem nem saiba dessa violência, mesmo que nem haja concretamente tal ataque.
Não é uma coincidência, portanto, que nos dias de hoje tanto se fale deste afeto humano, demasiadamente humano. Diversos textos associando a eleição de Bolsonaro com o ressentimento foram publicados nos últimos anos[2]. Além disso, foram lançados ou relançados livros tendo o afeto como o tema principal[3].
Na sua obra, Maria Rita Kehl (2020) defende que o ressentimento é da ordem de uma revolta submissa. O ressentido se ressente do seu lugar no mundo, mas não dos valores que guiam este mundo. Por isso a sua revolta é submissa: em vez de combatê-los, o ressentido continua referenciando os valores que o oprimem. Fixa-se os valores do mundo já existentes e, incapaz de transvalorá-los, se ressente. Os fracassados só podem culpar no mundo a sua imperfeição, a distância entres os valores e a realidade. No caso do neoliberalismo, aqueles que não triunfaram na competição geral, veem-se inclinados à percepção de que a causa do seu próprio fracasso é não ter havido livre mercado o suficiente ou do Estado, seja com seus impostos ou corrupção – sempre um procedimento em que tal sujeito se sente a vítima de uma agressão. Neste mesmo sentido, o ressentido precisa inventar um culpado vicário dado que os verdadeiros culpados – as elites – são objeto da sua admiração. Mas, como se verá no próximo item, mesmo as elites, mesmo aqueles que, em tese, são considerados “casos de sucessos”, não escapam do formato do ressentimento. Como salientou Foucault em História da sexualidade I (1988), os modos de subjetivação produzem subjetividade em todas as classes.
O ressentimento é um afeto mencionado desde, ao menos, a Ilíada (Homero, canto i). Mas, apesar de ser considerado um afeto bastante conhecido entre os homens, foi Nietzsche quem o encarou do ponto-de-vista filosófico (Scheler: 2007, 25) e tentou explicar o problema que acontece quando o “ressentimento se torna criador e gera valores”, iniciando, deste modo, a “rebelião escrava na moral” (GM1§10)[4]. Como se sabe, “escravo”, aqui, não descreve um personagem que vive em cativeiro, transformado em mercadoria e com um dono, mas, como o próprio Nietzsche explica nesse mesmo GM1§10, é aquele que só consegue reagir diante de uma ação que ele enxerga como uma agressão a si, nunca tomando a iniciativa da própria vida, se baseando totalmente naqueles que são chamados no vocabulário nietzschiano de “senhores” para poder saber o que é o certo ou errado, o bom ou mau – como uma negação dos valores desses senhores. O que nos leva a perceber, e enfatizar, que não é possível fazer uma leitura exclusivamente econômico-social da interpretação de Nietzsche sob o risco de excluir parte considerável do que o pensador alemão estava defendendo: o “escravo” é, em resumo, o homem do ressentimento, o ressentido, aquele, enfim, que se sente sempre a vítima – mesmo imaginada – de um agressor. E contra esse agressor, ele se autoriza a usar toda sua força.
Por isso que há uma confusão entre perda de privilégios e perda de direitos que alguns autores (Brown, 2019; Nunes, 2022, entre outros) mostram como um traço desde ao menos a crise econômica mundial de 2008, principalmente na extrema-direita. Grupos que historicamente têm certas vantagens por conta da cor da pele, da orientação sexual, do gênero, de onde nasceu, da conta bancária etc., se portam como injustiçados e culpabilizam os demais por, da sua perspectiva, atacarem-nos. Essa postura vitimizada acontece exatamente quando tal grupo privilegiado é confrontado por outros segmentos da sociedade que não compartilham dessas mesmas distinções: os subalternizados que nos últimos anos obtiveram ganhos relativos em termos de reconhecimento de suas demandas de igualdade, por exemplo. Este tipo de “confronto” pode ser representado por situações como o lançamento de uma ação afirmativa, como reserva de vagas de trabalho, ou oferecimento de direitos a grupos minoritários, como aconteceu com o casamento gay. O simples fato de se exigir uma igualdade de condições parece, da perspectiva desses grupos privilegiados, uma violência que seria direcionada especialmente contra eles. Diante de uma perda material em decorrência das políticas neoliberais, estabelece-se imaginariamente as reivindicações (com seus sucessos relativos) de grupos minoritários como os responsáveis por estas mesmas perdas. Inventa-se um culpado expiatório cuja função subjetiva é permitir a manutenção na crença dos valores deste mundo.
Esses que se valiam das distinções de classe, gênero e raça enquanto uma espécie de “salário psicológico”, como escreveu o pensador negro norte-americano W.E.B. Du Bois (1998) em relação ao racismo na sociedade estadunidense, se ressentem da despossessão material e, presos aos valores neoliberais, se voltam aos culpados imaginários. O personagem de tais grupos “frequentemente encontra compensação na possibilidade de sentir-se superior ao garçom, à empregada doméstica, ao negro (no caso do branco), à mulher (no caso do homem), ao gay ou trans (no caso do cis-hetero)”, explica Rodrigo Nunes (2022, p. 88-9), de modo que se ressentem da relativa perda destes privilégios – ressentimento esse catalizado pela degradação das condições econômicas no capitalismo neoliberal.
2.7 O ressentimento e o neoliberalismo
Pode parecer à primeira vista que o neoliberalismo não teria uma relação direta com o crescimento desse ressentimento – posto que, dentro de uma certa imagem idealizada, o neoliberalismo atuaria de forma técnica, privilegiando apenas o mérito, o desempenho, a capacidade individual, resultado da competição, sem desmerecer ou privilegiar qualquer indivíduo ou grupo social. Mas, apesar de toda a proposta de “neutralidade”, haveria por trás do funcionamento neoliberal uma agenda bem solidificada, com um propósito escondido, mesmo que de forma indireta: cristalizar as estruturas sociais como “sempre” foram.
Isso aparece com mais clareza nas chamadas guerras cultural, as Cultural Wars, no período dos governos neoliberais de Ronald Reagan (1981-1989), nos EUA. Em 1991, o sociólogo James Davison Hunter pegou emprestado o termo Kulturkampf do século XIX, período de unificação alemã e de disputa sobre o futuro da nação germânica que se constituía a partir do embate entre católicos e protestantes sobre a educação do novo país, para falar sobre as disputas que aconteciam nos EUA de cem anos depois entre republicanos e democratas, conservadores e liberais. No fim do século XX, as disputas não aconteciam apenas no terreno da educação, mas igualmente nos de raça, gênero, sexualidade, arte, imigração, multiculturalismo, entre outros. Todos os esforços dos grupos que não pertencem à “maioria”, ou seja, não fossem compostos por homens, brancos, heterossexuais, cisgêneros, de origem anglo-saxão e protestante, eram vistos, pelos historicamente privilegiados, como uma ameaça à própria noção de identidade nacional (Singh, 1998).
Após o período Reagan, a queda do muro de Berlim e da experiência soviética de planificação da economia, só houve espaço no Ocidente para o neoliberalismo, mesmo que ele fosse “progressivo”, como o chamou Nancy Fraser (2019) para categorizar os regimes de governo que apostavam numa agenda econômica liberal, mas tentavam dar espaço para o liberalismo também nos costumes. Com a constituição dessa versão progressista, que polariza com o neoliberalismo conservador ao estilo de Reagan, o neoliberalismo se torna hegemônico. Não há espaço além do neoliberalismo. No máximo, uma disputa entre os dois modos, por meio das guerras culturais. E, sob o ponto de vista do neoliberalismo conservador (que culmina na extrema-direita do século XXI), quem ameaçar aqueles que se sentem como detentores eternos da posição de superioridade, mesmo que ameacem indiretamente, exigindo simplesmente igualdade de condições, vão ser tratados como ameaças e como agressores.
Sofrimento, humilhação e ressentimento não sublimados tornam-se uma política permanente da vingança, do ataque àqueles culpados por destronar a masculinidade branca – feministas, multiculturalistas, globalistas, que tanto os destituem quando desdenham deles. (Brown: 2019, p. 217)
Por isso que é possível dizer que o neoliberalismo, mesmo que tenha em tese proposto uma forma de equalizar todos os diferentes grupos da sociedade na prática, aprofundou o ressentimento de grupos que até então usufruíam de regalias e distinções meramente por se verem como superiores aos demais, praticando aquilo que Freud (2011 e 2012) caracterizou de “Narcisismo das pequenas diferenças” – quando um grupo econômica e socialmente muito próximo a outro precisa encontrar formas de se diferenciar para que possam continuar a se sentir por cima, sobrepujando os demais.
2.8 O otimismo cruel e a indústria da felicidade
Em seu livro Cruel optimism (2011), Lauren Berlant chama de otimismo cruel a crença compartilhada por uma certa subjetividade neoliberal, na mistura do individualismo com meritocracia, que se expressa na fórmula de que, para se realizar projetos pessoais, bastaria que houvesse um esforço individual correspondente ao objetivo. Dito de outra forma: na equação para a realização dos desejos, seria apenas necessária a dedicação pessoal a tal desejo, sem qualquer outro tipo de força externa (como sorte, histórico, aleatoriedade, colaboração com outras forças, contexto econômico-social, inserção na comunidade em questão etc.) envolvida no resultado. O neoliberalismo forma sujeitos enquanto competidores e, sob a figura do empresário de si, é o sujeito que é responsável pelos seus fracassos e vitórias. Tal como uma empresa, ele tem unicamente sobre si toda a culpa por suas derrotas.
Essa parece ser a receita perfeita para a amplificação do ressentimento. O indivíduo se vê responsabilizado e culpabilizado pelos seus próprios fracassos – uma vez que é instado a tomar suas vitórias ou derrotas como sua própria culpa – em uma situação intolerável: é, assim, necessário inventar um culpado para retirar de si o peso das suas derrotas. E, como vimos com Kehl, a sua revolta submissa irá levá-lo a inventar um culpado dado que continua investido nos valores do mundo em que fracassou, voltando-se, deste modo, à confusão entre perda de direitos e perda de privilégios. Há, assim, uma interpelação para que se encontre um fator externo impeditivo e o sujeito neoliberal se verá como uma vítima dessa agressão e, dentro desse esquema, se autoriza a se vingar, a responder a essa agressão como se fosse uma forma de fazer justiça. Tentando explicar esse processo, Nietzsche, na 2ª dissertação da Genealogia da Moral, aborda a confusão entre ambos os formatos (agir pela vingança como se fosse a justiça) quando diz que “não surpreende” surgir entre os ressentidos a necessidade “de sacralizar a vingança sob o nome de justiça – como se no fundo a justiça fosse apenas uma evolução do sentimento de estar-ferido – e depois promover, com a vingança, todos os afetos reativos” (GM2§11).
O mesmo tipo de crueldade relacionado com o otimismo também aparece quando o tema é a indústria da felicidade, como chamou William Davies em livro lançado em 2015 (The Happiness Industry - How the Government and Big Business Sold Us Well-Being), ou numa espécie de “felicicracia” (“Happycracia”), nos termos de Edgar Cabanas e Eva Illouz. No livro de Cabana e Illouz, os autores usam o protagonista do filme Em busca da felicidade (The Pursuit of Happyness) para exemplificar o “tipo particular e ideal de sujeito político”: “individualista, sincero consigo mesmo, determinado, resiliente, automotivado, otimista e muito inteligente emocionalmente” (Cabanas; Illouz: 2019, p. 13-14). Esse é o “mindset”, para usar um termo caro aos indivíduos que participam dessa indústria da felicidade, ou o tipo de subjetividade projetado pela happycracia para os seus súditos. Nesse mundo, êxito ou fracasso dependem unicamente do desse personagem: “a riqueza e a pobreza, o êxito e o fracasso, a felicidade e a infelicidade são, em realidade, opções de cada um” (Cabanas; Illouz: 2019, p. 14). Em uma palavra: meritocracia. E longe de ser uma prática exótica, Cabanas e Illouz lembram que a psicologia positiva, uma espécie de ciência da felicidade fundada em 1998, que tenta dar um ar de isenção científica para a meritocracia, é adotada por empresas multinacionais, como a Coca-Cola, e mecanismos internacionais de cooperação, como a OCDE ou mesmo a ONU.
No mesmo movimento de convocação do desejo e de todas as esferas da vida para a competição, temos um outro fenômeno que radicaliza esta produção de ressentimento: o capitalismo contemporâneo faz proliferar símbolos de distinção como forma de capturar o desejo para o circuito de acumulação, como as áreas VIP, onde se paga apenas para se distinguir daqueles que não podem pagar. Com ainda um agravante: se aceitarmos a tese de Brown no Nihilist Times (2023), veremos como as próprias distinções perdem seu solo. Elas se tornam precárias tal como os valores; se tornam precárias porque flexíveis e intercambiáveis. Elas se dão sob um solo movente em que nada opera como uma distinção de uma vez por todas. E isso em um regime em que as distinções de valor devem operar em todas as esferas; é necessário reconhecimento como um bom competidor, da cama ao trabalho, e os símbolos deste reconhecimento são eles mesmos instrumentalizados pelo capital. Instrumentalizados, acabam por requerer uma negociação constante e pervasiva, sem horizonte certo e tendencialmente absoluta.
Isso pode ser mais bem visto ao se pensar que mesmo personagens que são considerados bem-sucedidos dentro da mitologia neoliberal, como bilionários e políticos de destaque, também não escapam do ressentimento, como se nunca pudessem chegar “lá”, como se não houvesse fim nesse processo de busca otimista pela felicidade baseada no individualismo meritocrático. Sempre há algo além, sempre há uma falta que precisa compulsivamente ser preenchida, sempre há novas metas inalcançáveis a serem atingidas. Há sempre uma razão além de si, algo que os impede de alcançar o topo por completo, uma violência que os bloqueia do seu objetivo, um outro que é eternamente o culpado. É nessa ausência-falta que mora o ressentimento, quando não se consegue alcançar o que algum outro – mesmo imaginado – conseguiu. Há uma volição vazia, um desejo compulsivo que nunca poderá ser realizado. Em vez de uma vontade de poder afirmativa, como defendida por Nietzsche, ou seja a capacidade de aumentar a autonomia sobre a própria vida, de estender o horizonte de atuação da própria existência, de se tornar independente de valores opressivos que regem o mundo (no caso, o neoliberalismo) – uma “vontade de vontade”, como escreveu Heidegger em um texto sobre niilismo na obra de Nietzsche, para falar de uma vontade que só tinha uma única vontade: continuar a vontade, como um cachorro em eterna perseguição da própria cauda, sem nunca alcançá-la. Se “[a] vontade de poder é a essência do poder, ela indica a essência incondicional da vontade, que quer a si mesma enquanto mera vontade” (HEIDEGGER, 2003, p. 496, com pequenas alterações), explica Heidegger sobre a forma degenerada da vontade de poder, que se mostra apenas como vontade de vontade.
Ou seja, esta vontade de poder identificada por Brown na extrema-direita, esta vontade desinibida que é gestada na subjetividade neoliberal, não é produtiva nem ativa, mas reativa e passiva, isto é, age de segunda mão. O que não deixa de ser a exata definição do homem do ressentimento. “Os sacerdotes”, escreve Nietzsche na Genealogia da moral para falar sobre aqueles que impunham moral ascética sobre o seu rebanho, que os catequizavam para seguirem a uma certa racionalidade, controlar os impulsos instintivos com o fim de se alcançar o paraíso, “são, como sabemos, os mais terríveis inimigos – por quê? Porque são os mais impotentes. Na sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa” (GM1§7).
2.9 A vontade de poder desinibida
O fim do último subcapítulo nos leva para uma questão que corre em paralelo, uma outra forma de interpretar a vontade de poder feita por Wendy Brown em sua obra Nas ruínas do neoliberalismo (2019). Nietzsche diz em diversos momentos que vontade de poder é vida (ABM §13 e §259, para ficar em apenas duas das várias citações sobre essa relação), e que o niilismo é a negação da vida (como em AC§7). Se essa fórmula simples for colocada em prática para combater o niilismo, em todos os seus formatos e aparências, seria urgente libertar a vontade de poder, fazer com que ela se tornasse soberana, sem qualquer tipo de mecanismo de diminuição de sua potência – porque é contra esse mecanismo, de diminuição desses impulsos que Nietzsche se insurgiu em sua obra. Mas, como se vê, o niilismo, e o ressentimento como um dos seus principais avatares, não se explica diretamente por meio da vontade de poder, posto que até mesmo os ressentidos têm vontade de poder - mas uma vontade de poder específica, ressentida, reativa. Ou seja, o problema não é a vontade de poder, mas o tipo de vontade de poder liberada.
De qualquer forma, Brown identifica nessa vontade de poder desenfreada dos grupos ressentidos, sem qualquer tipo de trava social ou moral, um elemento central da extrema-direita contemporânea. É esta potência que recusa todo compromisso social, toda solidariedade coletiva em sua violenta desinibição, uma das suas principais características. A leitura da cientista política estadunidense, em sua associação da vontade de poder de Nietzsche com a violência desinibida da nova direita, não é descabida: estudiosos de grupos de supremacistas misóginos mostram que Nietzsche é uma das figuras mais seguidas por seus integrantes. Nagle, por exemplo, diz que o filósofo que cunhou o termo Übermensch é “de longe uma das figuras mais cultuadas em todas as camadas que compõem a alt-right” (2017, e-book). Além disso, há toda uma relação de apropriação de Nietzsche pelo nazismo, como a ligação entre sua irmã e o próprio Adolf Hitler[5]. Ademais, Brown se apoia diretamente no texto nietzschiano: o filósofo alemão diz que a moral do ressentimento começa com uma “revolta dos escravos” historicamente situada, quando os judeus, “um povo de sacerdotes” “soube desforrar-se de seus inimigos e conquistadores apenas através de uma radical transvaloração dos valores deles, ou seja, por um ato da mais espiritual vingança” (GM1§7). Depois, os cristãos aprofundaram essa revolta dos escravos fazendo com que o “próprio Deus” se sacrificasse “pela culpa dos homens, o próprio Deus pagando a si mesmo, Deus como o único que pode redimir o homem daquilo que para o próprio homem se tornou irredimível – o credor se sacrificando por seu devedor, por amor” (GM2§21) – o que teria criado um sentimento de dívida e culpa[6] eterno.
Mas o que Brown identifica aqui é apenas vontade de poder a partir do ressentimento: uma vontade de poder reativa que produz valores. Seu raciocínio, assim, faz sentido: ela propõe, no fundo, estabelecer, ou restabelecer uma consciência que respeitasse uma nova moral ou uma nova tábua de valores capaz de, contra o neoliberalismo, reinscrever o coletivo após o seu desfazimento pelo individualismo. Trata-se de refazer o demos contra a desinibida vontade de poder ressentida produzida pelo neoliberalismo. Mas, se essa é uma leitura possível, ela não é única do fenômeno da relação entre vontade de poder e ressentimento. Não precisamos nos afastar do próprio Nietzsche para enxergar um caminho que também sugere modificar essa estrutura neoliberal em que, para ficar no léxico nietzschiano, os fracos (ou ressentidos) continuam a diminuir as potências dos fortes (aqueles que agem para mudar a estrutura social de opressão), sem correr o risco de diminuir o teto de atuação dos fortes, o que nos levaria a outra forma de niilismo.
Para uma tentativa de entender como Nietzsche pode nos ajudar a resolver o problema da vontade de poder desinibida da extrema-direita, deve-se reforçar que a vontade de poder não é uma exclusividade dos grupos ativos: mesmo grupos reativos têm vontade de poder, mas uma vontade de poder reativa, que só busca subjugar aqueles outros que querem afirmar sua própria existência. Nietzsche chega a afirmar que, entre os tipos que se impõem ideais ascéticos, “domina um ressentimento ímpar, aquele de um insaciado instinto e vontade de poder que deseja senhorear-se, não de algo da vida, mas da vida mesma, de suas condições maiores, mais profundas e fundamentais”, e que, nessas condições, usa-se a própria “força para estancar a fonte da força”, enquanto “o olhar se volta, rancoroso e pérfido, contra o florescimento fisiológico mesmo, em especial contra a sua expressão, a beleza, a alegria” e “se experimenta e se busca satisfação no malogro, na desventura, no fenecimento, no feio, na perda voluntária, na negação de si, autoflagelação e autossacrifício” (GM3§11). Ora, só com esse trecho já se pode perceber o quanto tais direitistas extremados seriam encaixados dentro do tipo “fraco” e “ressentido” por Nietzsche, o quanto tais personagens só conseguem reagir contra os grupos subalternizados ao invés de se voltarem contra os valores que, regendo o mundo, os oprimem efetivamente. São esses personagens que possuem um “ressentimento ímpar”, por se sentirem atacados por esses grupos que começam a aparecer no tabuleiro político. São eles que querem estancar essa força de subida, controlar a vida dos outros, que observam esse florescer de novos modos de viver com um “olhar rancoroso e pérfido”, e que querem unicamente se negar, se autoflagelar, praticar sacrifícios. Neste sentido, a associação entre os supremacistas estudados por Brown e os ascetas nietzschianos pode ser identificada igualmente em obras que abordam os grupos que se juntaram na chamada alt-right. Dona Zuckerberg, para ficar em apenas um exemplo, diz que esses grupos, além de se inspirarem em Nietzsche, também optam por fazer uma interpretação controversa e simplificada da filosofia estoica “para celebrar o que eles percebem como traços estereotípicos masculinos, incluindo a suposta capacidade superior e inerente dos homens de usar a razão para controlar as emoções” (2018, p. 47). Poderíamos traduzir para as palavras de Nietzsche: para praticarem um ideal ascético. Mas, claro: esse controle das emoções não os impede de serem cruéis contra os grupos que, em seus delírios, os estão atacando. Esse controle não se aplica na realidade, é só uma forma de distinção social contra aqueles grupos que eles não enxergam como tão racionais – estrangeiros, não-brancos, população LGBTQI+, mulheres…
Ou seja, se seguirmos Nietzsche de perto, vamos ver que os fortes são aqueles que querem simplesmente se apoderar do destino, moldar o devir, não dominar a vida como um todo, a vida de todos, de todas. Nesse sentido, o forte seria mais próximo exatamente daqueles grupos continuamente violentados (mulheres, não-brancos, membros da comunidade LGBTQIA+ etc.)[7], que, quando lutam por igualdades de condições, buscam viver suas vidas no máximo de potência, com o máximo de poder possível, colocando suas vontades em ação e, assim, se colocando em direção à criação de novos valores. Por outro lado, os fracos são aqueles que, com receio de perderem suas posições historicamente privilegiadas, liberam suas vontades de poder para atacar as minorias que começam a ganhar algum reconhecimento no mundo. Mesmo que os ressentidos “ataquem”, eles estão reagindo, estão, como vimos com Kehl, praticando uma revolta submissa. Ou, como escreve sucintamente Nietzsche: “sua ação é no fundo reação” (GM1§10).
Por isso que Nietzsche acredita que é necessário, sim, haver uma grande transformação, uma transformação que ele próprio chama de “transvaloração dos valores” – de uma troca de valores em que a tábua atual não seja simplesmente invertida, mas que outra tábua, totalmente nova, seja instituída. Uma tábua em que o valor esteja na afirmação da vida, em sua máxima pluralidade, não na tentativa de diminuir as formas de existência que sejam consideradas “diferentes”.
Em “Onde Aterrar” (2020), Bruno Latour traça uma correlação muito original entre a ascensão neoliberal, extrema-direita contemporânea e a catástrofe climática na qual nos encontramos. Para Latour, o neoliberalismo é uma resposta das elites globais à perda de mundo. Nos anos 1980, ficou claro que não há mundo para todos. A ciência do clima mostrou a impossibilidade de uma expansão econômica indefinida, capaz de oferecer a todos o progresso prometido desde a modernidade. Temos a perda do mundo propriamente moderno, com sua orientação teleológica a um progresso indefinido. Não cabe mais cantar a velha canção que pedia aos pobres para que aguardassem pois, um dia, lhes chegariam as benesses da sociedade industrial. O capitalismo se torna, a partir deste período, o único sistema possível – com o fim do bloco soviético, com o realismo capitalista de Fisher– e, simultaneamente, um sistema impossível, uma vez que não há planeta capaz de sustentar a sua necessidade crescente de recursos naturais. Diante deste cenário de perda de mundo, as elites
decidiram que seria preciso construir uma espécie de fortaleza dourada para os poucos que poderiam se safar – do que decorre a explosão das desigualdades. E resolveram que, para dissimular o egoísmo sórdido de tal fuga para fora do mundo comum, seria preciso rejeitar absolutamente a ameaça que motivou essa fuga desesperada – o que explica a negação da mutação climática. (Latour, 2020, p. 23.)
O neoliberalismo e a extrema-direita por ele gestada seriam efeitos desta orientação global das elites em se livrar dos fardos da solidariedade social. Diante da crise climática, ter-se-ia optado precisamente pela construção do neoliberalismo enquanto regime no qual o vínculo social comunitário deve ser dissolvido em prol da competitividade generalizada. Desfaz-se a esfera coletiva em um movimento que visa facultar às elites uma radicalização da apropriação do mundo que resta – na esperança de, no futuro catastrófico que nos aguarda, poderem fugir. O aumento substantivo das emissões de gases de efeito estufa, na esteira da descoberta da mudança climática antropogênica, indica para Latour esta opção das elites globais: apropriar-se o mais rápido e radicalmente possível do que resta do mundo natural enquanto se aumenta crescentemente a expropriação do trabalho através da desregulamentação.
Mobilizando o argumento de Latour ao lado do que vimos com Wendy Brown e Nietzsche, é possível entender melhor o vínculo entre neoliberalismo, niilismo e catástrofe. Independentemente de uma possível relação de causalidade direta entre neoliberalismo e mudança climática, como defendida por Latour, podemos ver uma isomorfia entre o desfazimento dos horizontes coletivos e a catástrofe climática. Tudo se passa como se o neoliberalismo expressasse o movimento de, diante da perda do mundo, desfazer-se do próprio mundo. Um niilismo in extremis.
Se a modernidade se pautou por uma projeção de um futuro de plena realização comunal, seja pela esquerda ou pela direita, o neoliberalismo é o fim do próprio futuro. Neste sentido, ele tem uma dupla relação com a mudança climática. Primeiramente, ele expressa o desfazimento do comum que, assim, como coloca Latour, permite às elites um horizonte inaudito de apropriação; por outro lado, ele próprio, através da produção de uma subjetividade empresarial, duplica esta opção das elites na própria experiência vivida de milhões. No neoliberalismo, as elites e os demais se vêem empurrados para a competição cada vez mais acirrada por cada vez menos, em um cenário de abandono dos compromissos coletivos – sendo que, naturalmente, para o benefício dos primeiros em detrimento dos últimos. A explosão de ressentimento produzido pela subjetivação neoliberal só catalisa este mesmo cenário. Como coloca Brown:
Talvez estejamos testemunhando também o que ocorre com o niilismo quando a própria futuridade é incerta. Talvez haja uma forma de niilismo moldada pela míngua de um tipo de dominância social ou pela dominância social minguante de um tipo histórico. Na medida em que este tipo se encontra num mundo esvaziado não apenas de significado, mas de seu próprio lugar, longe de ir gentilmente noite adentro, ele se volta na direção do apocalipse. Se os homens brancos não podem ser donos da democracia, então não haverá democracia nenhuma. Se os homens brancos não podem dominar o planeta, então não haverá planeta. (Brown, 2019, p. 220).
O neoliberalismo se desdobra em um movimento destrutivo propriamente suicida, que, segundo Brown, constitui um “niilismo além da imaginação mais alucinante de Nietzsche” (Brown, 2019, p. 222). Se o niilismo é a negação da vida, essa corrida para destruir o planeta enquanto se apropria dos últimos recursos em causa própria, é a aplicação prática, material e final desse projeto. A diminuição máxima das condições de vida em um niilismo máximo aportado por uma instrumentalidade cega às suas próprias consequências – trata-se de tudo destruir por meio da vontade de poder ressentida que rege o mundo neoliberal.
A subjetivação neoliberal se pauta, deste modo, por uma instrumentalidade generalizada; trata-se de tomar a relação consigo, com o trabalho, com o sexo, com o mundo, sob o ponto de vista de meios para fins – sendo este fim, um perpétuo desequilíbrio dado em uma maximização de direito ilimitada. Assim podemos entender a relação entre niilismo, ressentimento e vontade de poder. Por um lado, a instrumentalidade generalizada faz com que todos os valores, como coloca Brown, lhe sejam submetidos de forma a lhes arrancar do solo e a transformá-los em meros “porretes” nesta agonística generalizada. Neste movimento, temos precisamente o niilismo enquanto desraizamento de todos os valores, nesta subscrição à instrumentalidade que torna todo valor mero meio para um fim. Temos, subsequentemente, a produção de ressentimento e de sua vontade de poder. Ressentimento, na medida em que se faz necessário, nesta competitividade irrestrita, inventar um culpado vicário para os próprio fracassos; desinibição da vontade de poder ressentida na medida em que a destruição do comum, do coletivo com seus valores na sociedade neoliberal, produz uma “sociabilidade em estado de natureza” (Lessa, 2020), no qual tudo vale na competição. E, quando mais se faz necessário o comum, quando uma ameaça se abate sobre todos os habitantes humanos e não humanos do planeta, o que temos é uma corrida em direção à catástrofe: a destruição do comum no neoliberalismo e no seu ressentimento. A fixação ressentida nos valores do nosso tempo produz, assim, a destruição: reproduzir o mundo em seus valores é reproduzir o próprio suicídio do mundo. Diante destes tempos niilistas, a transvaloração de todos os valores é aquilo que pode ser posto contra a catástrofe que se desenha em ritmo crescente no horizonte. Valores novos, não ressentidos, mas que afirmem a vida, todas as vidas. Só assim sairemos dos tempos niilistas.
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Contribuição de autoria
1 – Ronaldo Pelli
Doutorando m Filosofia pela PUC-Rio
https://orcid.org/0000-0002-9405-774X•ronaldopelli@gmail.com
Contribuição: Escrita e primeira redação.
2 – Ádamo Bouças Escossia da Veiga
Doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Pós-doutorado pela UFRJ
https://orcid.org/0000-0002-5485-0073• adamo.veiga1@hotmail.com
Contribuição: Escrita – Primeira Redação
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PELLI, R; VEIGA, A. B. E. Niilismo, neoliberalismo e catástrofe. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85259, p. 01-32, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378685259. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
[1] A colonização do desejo pelo capital mundial integrado é objeto de uma análise contundente da parte de Lordon (2010) e Preciado (2016). Para ambos, em uma abordagem influenciada por Spinoza e também, em graus variados, por Foucault, a dinâmica societária neoliberal demanda uma apropriação crescente e instrumental do desejo nos círculos de acumulação.
[2] Como por exemplo esse da jornalista Eliane Brum, https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/06/opinion/1541508597_737258.html, este do filósofo Roberto Romano https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/roberto-romano/bolsonaro-e-o-ressentimento, ou este da antropóloga Lilia Schwarz: http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2022/10/lilia-schwarcz-o-bolsonarismo-e-um-fenomeno-social-de-ressentimento/.
[3] Exemplos: Ressentimento e vontade, do filósofo brasileiro Oswaldo Giacoia Junior, em 2021; Ci-gît l’amer - guérir du ressentiment, da psicanalista francesa Cynthia Fleury, em 2020; e Ressentimento, da também psicanalista, mas brasileira, Maria Rita Kehl, em 2020.
[4] As citações do corpus nietzschiano segue o padrão aceito internacionalmente de mencionar a sigla referente à obra em questão (GM para Genealogia da moral, GC para A gaia ciência, AC para O anticristo, ABM para Além de bem e mal etc.) e a especificação, com detalhes de parte da obra e aforismo ou parágrafo citado, quando necessário.
[5] Contra o equívoco dessa aproximação, Mazzino Montinari, um dos organizadores das obras completas de Nietzsche, escreveu um preciso artigo (1999).
[6] Schuld, a mesma palavra em alemão, serve para os dois significados.
[7] Não todos, naturalmente.