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Descrição gerada automaticamente

Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 1, e85191, 2023

DOI: 10.5902/2179378685191

ISSN 2179-3786

Submissão: 29/09/2023 Aprovação: 08/02/2024 Publicação: 22/03/2024

1 INTRODUÇÃO.. 2

2 CÁRATER E INDIVÍDUO.. 4

3 LIBERDADE. 9

4 ASSEIDADE DA VONTADE. 13

5 ARREPENDIMENTO E PESO NA CONSCIÊNCIA. 19

6 AFIRMAÇÃO E NEGAÇÃO DA VONTADE. 21

7 NEGAÇÃO DA VONTADE: SCHOPENHAUER E O CRISTIANISMO.. 25

REFERÊNCIAS. 30

 

Artigos

A compreensão schopenhaueriana do caráter de indivíduo

Schopenhauer's understanding of the character of the individual

Camila Gomes WeberIÍcone

Descrição gerada automaticamente

IUniversidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil

RESUMO

O objetivo do artigo é apresentar a compreensão schopenhaueriana do caráter de indivíduo a partir da tese metafísica do monismo da vontade. Num primeiro momento, explora as implicações da afirmação de Schopenhauer de que somente no ser humano o caráter de espécie e o caráter de indivíduo se separam; na sequência, aborda o problema da asseidade da vontade tendo em vista seus desdobramentos na formulação do caráter de indivíduo; e, por fim, aborda o tema da negação da vontade e sua relação com o problema da individualidade do ser humano, tanto no locus pontual da argumentação apresentada por Schopenhauer, quanto nos desdobramentos implícitos na apropriação interpretativa do Cristianismo entendido como uma teoria pessimista

Palavras-chave: Schopenhauer; Caráter de indivíduo; Asseidade; Negação da vontade

ABSTRACT

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Keywords: Schopenhauer; Character of the individual; Haecceity; Negation of the will

1 INTRODUÇÃO

A caracteriologia[1] presente em O Mundo como vontade e representação[2] constitui um notável esforço por parte de Schopenhauer para pensar o problema da individuação a partir da tese metafísica do monismo da vontade. O caráter de Ideia, sendo a objetivação da vontade, é eterno; já o caráter de espécie, na medida em que corresponde à Ideia no plano empírico, está sujeito ao tempo, espaço e causalidade, e enquanto tal, é infinito, pois mesmo que desapareça, outras inúmeras formas surgirão. Dessas formas que surgem, o ser humano é o único no qual, dentro do caráter de Ideia, o caráter da espécie e o caráter individual se separam (Cf. W I, § 45, p. 295)[3], e por não estar contido totalmente na espécie, pode ser visto como uma Ideia particular, um “ato próprio de objetivação da Vontade” (W I, § 28, p. 224).

Tendo isso em vista, buscaremos evidenciar o sentido da afirmação de Schopenhauer de acordo com a qual, para entendermos a indestrutibilidade da nossa verdadeira essência na morte, é preciso pensar na asseidade dessa verdadeira essência, bem como a distinção entre vontade e intelecto (Cf. N, Cap. 8, p. 211). Se a filosofia schopenhaueriana sustenta a tese de que a vontade é a causa e princípio de si mesma, isto é, de que a vontade possui asseidade, neste artigo apresentaremos o que corresponde à ação do querer e do agir através do conhecimento, atributo que pertence apenas ao humano, pois, segundo Schopenhauer, o intelecto do humano é único e superior ao das demais espécies, visto que, apoiado pela razão, é o único capaz de pensar.  Esta singularidade do intelecto humano cria uma situação peculiar: embora sejamos determinados quanto à nossa essência metafísica individual, nossas ações, iluminadas pelo intelecto, na confrontação com os motivos, não estão determinadas de um modo absoluto, sendo possível agir distintamente em circunstâncias distintas.

Portanto, no caráter de indivíduo também se concentra nossa identidade, sendo ela ligada a uma natureza moral. Porém, essa liberdade moral do humano é limitada, pois o filósofo entende que nossos desejos e motivações estão enraizados na nossa natureza humana, e eles não podem ser controlados ou alterados. Conjuntamente ao ato do “querer” é possível observar o ato de “não querer”, de negar a vontade e de abdicar da própria vontade individual. Indicaremos as conexões entre esses problemas a partir do problema do caráter de indivíduo. As referências textuais mais importantes serão: Sobre a Liberdade da Vontade, o § 55 do Tomo I de O Mundo e o § 10 de Sobre o fundamento da moral para as questões que dizem respeito à liberdade das ações humanas e à liberdade transcendental; e como referências ao problema da negação da vontade (ato de não querer), utilizaremos o capítulo 48 do tomo II de O mundo, o § 68 do tomo I e o capítulo 14 do Tomo II dos Parerga.

2 CÁRATER E INDIVÍDUO

No parágrafo 45 do tomo I d’O Mundo, Schopenhauer afirma que somente no ser humano o caráter de espécie e o caráter de indivíduo se separam (Cf. W I, § 45, p. 295), e a este caráter de indivíduo o filósofo atribui o nome de “CARÁTER por excelência” (W I, § 45, p. 300. Grifo do autor). Sendo a acentuação de uma parte específica e especial da Ideia de humanidade, esse CARÁTER evidencia, tanto por meio da “fisionomia habitual e a corporização” quanto pelo “afeto e paixão passageiros” (W I, § 45, p. 300), a alternação entre o querer e o conhecimento que se expressa nos movimentos e gestos do indivíduo.  

Cada ser humano possui um caráter próprio, visto que “no homem, a individualidade irrompe poderosamente” (W I, § 23, p. 178), e por consequência, um único motivo não tem o mesmo efeito sobre todas as pessoas, fazendo com que suas ações sejam diferentes. Dessa maneira, o caráter individual ou caráter de indivíduo pode ser entendido como a soma de inúmeras particularidades e peculiaridades presentes em um único ente, além de, por meio da razão, dispor da “possibilidade da dissimulação” (W I, § 23, p. 193). Tal diferenciação do humano se comparado aos demais seres concerne ao seu funcionamento cerebral avançado, motivo pelo qual “cada homem deve ser visto como um fenômeno particularmente determinado e característico da Vontade” (W I, § 23, p. 193).  

O caráter individual, como sendo parte da nossa identidade, também está, como entende Schopenhauer, ligado a uma natureza moral, isto é, as nossas ações seguem a partir daquilo que essencialmente somos. Para entendermos o que isso significa, é preciso recorrermos às explicações de Schopenhauer na sua defesa de que a vontade é aquilo que impulsiona o modo de se comportar do humano, isto é, que o que está por trás das nossas ações individuais é a Vontade, e consequentemente, o resultado é que o livre-arbítrio é ilusório, já que nossas escolhas são um reflexo do nosso ser em si, a Vontade própria, e esta é livre.

Em Sobre a liberdade da vontade e em Sobre o fundamento da moral, textos que compõem a obra Os dois problemas da Ética, o filósofo discorre sobre questões que tocam no problema do caráter individual do ser humano. Nesse momento, nossa atenção incidirá somente nas questões acerca da manifestação da Vontade sobre a individualidade de cada humano e suas ações, dando destaque ao problema da morte, visto ela ser “a grande oportunidade de não ser mais eu”, já que é no morrer que se vê a verdadeira e originária liberdade, pois “a morte é o momento de libertação da unilateralidade de uma individualidade” (W II, Cap. 41, p. 606).

Na natureza, desde os corpos inorgânicos, até as plantas e animais, a lei da causalidade é manifestada através de três formas, a saber: pela causa, estímulo ou motivação. No humano se observa uma motivação que, pela consciência (razão), é distinta da motivação de qualquer animal, pois o ser humano, diferente do animal, “tem a capacidade de abstrair conceitos gerais” (E I, III, p. 61), como por exemplo, “linguagem, discernimento, olhar dirigido àquilo que já passou, preocupação em relação ao que está por vir, intenção, premeditação, ação planejada em comunidade com muitos indivíduos” (E I, III, p. 61). Ou seja, o humano tem a capacidade de PENSAR e REFLETIR, ampliando seu raciocínio de forma tão significativa a ponto de conseguir assimilar racionalmente “aquilo que está ausente, aquilo que já passou, e aquilo que ainda virá” (E I, III, p. 63).

Mesmo que o intelecto seja destinado aos serviços da vontade (Cf. N, Cap. 2, p. 100), somente no humano “o motivo e ação, representação e vontade se separam com total nitidez” (N, Cap. 3, p. 130), dessa forma, a vontade existe sem o arbítrio, mas o arbítrio é a vontade “iluminada pela cognição” (N, Cap. 1, p. 68). Assim, na medida em que existem por meio da cognição, a decisão e o arbítrio estão inscritos somente no caráter individual, na espécie humana.

No movimento provocado pelo motivo, mesmo nos animais mais inteligentes, sua ação é intuitiva, “onde uma escolha já é possível, ela só pode ocorrer entre as opções presentes intuitivamente [...] o motivo mais forte determinará seu movimento” (E I, III, p. 69). Entretanto, naquele indivíduo onde o pensar é feito de forma racional, não intuitivo, pela elaboração de conceitos, os motivos passam a se tornar independentes do que acontece ao seu redor, fazendo com que se tornem “ocultos para o espectador”. Porém, por ser sempre real e objetivo, “muitos enganos, e, consequentemente, muitas tolices, se encontram entre os motivos” (E I, III, p. 70 e 71). O que permite que ação e efeito se distingam no indivíduo é justamente o seu caráter individual. É essa constituição já determinada o que leva cada indivíduo a reagir de um modo distinto frente aos mesmos motivos, e assim, o caráter individual determina “o tipo de efeito dos variados motivos sobre uma pessoa específica” (E I, III, p. 81). Porém, assim como veremos a seguir, o caráter individual constitui apenas uma parte do ente. 

Como esclarece Schopenhauer no parágrafo 55 do primeiro tomo de O Mundo (Cf. W I, § 55, p. 375 e 376), bem como no parágrafo 10 do texto Sobre os fundamentos da moral (Cf. E II, § 10, p. 94), no homem se observa o caráter empírico e o caráter inteligível, distinção já estabelecida por Kant e que Schopenhauer alude conservar por inteira, já que considera ser este o grande mérito de Kant. Todavia, é em Sobre a liberdade da vontade que, aos nossos olhos, Schopenhauer apresenta as caracterizações mais detalhada acerca do caráter do indivíduo, quais sejam: A) Individual: como já pontuado, em cada pessoa ele é diferente, sendo o que permite observar “uma tão significativa variação do grau, uma tal variedade da combinação e modificação das propriedades entre si, que se poderia assumir que a diferença moral dos caracteres seria equivalente à das capacidades intelectuais” (E I, III, p. 81 e 82). Indivíduos distintos frente aos mesmos motivos agem de forma diferente; isso se deve à dimensão individual do caráter; B) Empírico: tendo em vista que “somente através da experiência é que ele é conhecido” (E I, III, p. 82), por isso que “ninguém pode saber como outra pessoa e tampouco como ele mesmo irá agir em uma situação determinada qualquer antes de ter passado por ela”. (E I, III, p. 82 e 83).  Por consequência, é somente depois de já conhecer o seu respectivo caráter empírico – que outorga ao humano o caráter adquirido, já que nele se reconhece, pelas suas ações, as suas verdadeiras qualidades, sejam elas boas ou más – que pode ter a certeza daquilo “que pode confiar a si e o que esperar de si, e também o que não pode” (E I, III, p. 84); C) Constante: inalterável, pois conserva-se da mesma forma por toda a sua vida, ou seja, “a maneira como ele agiu em um caso será a maneira como ele, em circunstâncias completamente iguais [...] sempre novamente agirá” (E I, III, p. 84). Ou seja, diante de uma mesma situação, danosa a alguém, por exemplo, um determinado indivíduo repetirá os mesmos atos e assim seguirá. Porém, se essa pessoa “perceber” que suas condutas fazem mais mal do que bem, ela terá a oportunidade de não cometer de novo o mesmo erro, porém, alterando apenas “os meios, não os fins” (E I, III, p. 86). Isso significa que, ainda que o caráter seja imutável, toda a possibilidade de mudança se encontra apenas no conhecimento, já que “somente seu CONHECIMENTO pode ser corrigido” (E I, III, p. 86. Grifos do autor). D) Inato: sendo ele “produto da natureza mesma”, até mesmo suas “virtudes e vícios são inatos” (E I, III, p. 88). Isto é, toda a ação humana é o resultado crucial da atuação de seu caráter e dos motivos dados, e para que um outro comportamento fosse possível, seria necessário se ter outro caráter ou outro motivo, razão pela qual, “por meio do caráter inato do ser humano, os fins em geral que ele invariavelmente persegue já estão, no essencial, determinados” (E I, III, p. 93). É como se não fosse possível fugir: a partir de uma causa determinada, reagiremos e agiremos de acordo com a nossa natureza, “pois este não pode reagir diferente daquilo que se conforma àquilo que ele é” (E I, III, p. 94).

No entanto, se por um lado, o caráter inato conduz ao reconhecimento de que as possibilidades das ações humanas estão determinadas no essencial, como visto na citação acima – “pois este não pode reagir diferente daquilo que se conforma àquilo que ele é” (E I, III, p. 94) –, também é possível sustentar, com base na noção schopenhaueriana de caráter adquirido, que nossa identidade é construída a partir de nossas próprias experiências, sendo possível adquirir um caráter, senão distinto essencialmente do inato, ao menos, com graus de distinção, cujo efeito seria o enfraquecimento dos efeitos dos motivos sobre nossas escolhas. Isso, porém, sem deixar de considerar que nossa consciência está sujeita ao intelecto, e este, como sendo “um mero acidente do nosso ser” (W II, Cap. 19, p. 243), refere-se a uma incumbência do cérebro, já que é a vontade o agente fundamental no nosso ser em si, cabendo ao intelecto apenas a função de “clarear a natureza dos motivos [...] porém sem ter condições de ele mesmo determinar a vontade, pois esta lhe é completamente inacessível” (W I, § 55, p. 377).

3 LIBERDADE

O movimento impetuoso e livre da vontade consiste, como exemplifica Alain Roger, na “suspensão do Princípio de Razão do ponto de vista da causalidade” (p. XLVIII). No entendimento de Oswaldo Giacóia (2021, p. 8), por efeito dessa suspensão, a liberdade não está contida no fazer, mas antes disso, está no querer. A esta questão daremos atenção abordando as três definições de liberdade apresentadas por Schopenhauer, a saber: liberdade física, intelectual e moral.

Acerca da liberdade física, o filósofo alude se tratar de uma concepção popular, já que seu significado diz respeito à simples “ausência de empecilhos MATERIAIS de qualquer tipo” (E I, Cap. 1, p. 21. Grifo do autor), ou seja, acredita-se que, em especial os seres animados são livres quando os movimentos que partem da sua vontade não são impedidos, acreditando-se que seus movimentos ou ações derivam da sua própria vontade.

Nas considerações sobre a liberdade intelectual e moral, o filósofo entende que alçamos ao nível das conceituações com sentido filosófico. Schopenhauer, utilizando as palavras de Aristóteles, sustenta que a liberdade intelectual, é “o voluntário e o involuntário segundo o pensamento” (E I, I, p. 23); já a liberdade moral, deve ser pensada conjuntamente com a liberdade física, já que, ainda que uma ação não seja impedida por obstáculos “materiais”, um contramotivo mais forte poderia da mesma forma impedir seu agir, ou seja, o que impediria a ação de alguém não seria algo físico, mas tão-somente motivos, como por exemplo, uma ameaça, estar diante de um perigo, ou uma promessa, bastando apenas que o motivo estivesse “disponível, e a pessoa, dada num caso individual, fosse determinável por ele” (E I, I, p. 24).

Ou seja, a questão que Schopenhauer propõe a partir de tais definições é se a vontade é livre: não apenas o “ser capaz de”, mas se seu “querer” também é livre, já que na acepção da liberdade física acredita-se ser possível fazer o que se quer, enquanto, a partir de agora, a pergunta que evidencia o problema da liberdade em seu sentido filosófico pleno passa a ser: “podes também QUERER aquilo que queres?” (E I, I, p. 25. Grifo do autor). O ato é a marca da volição e quando essa volição passa a ser apreendida pelo movimento do “vir a ser”, é chamada de desejo, e após concluída, chama-se decisão, por isso o desejar pode ser confundido com querer. O humano pode desejar coisas distintas, porém só pode querer aquela única coisa revelada pelo ato. (Cf. E I, II, p. 39).

O sentimento de “eu posso fazer aquilo que quero”, que se situa na autoconsciência, nos acompanha constantemente, mas significa apenas que as decisões, ou nossas volições bem definidas, apesar de surgirem na profundeza obscura de nosso interior, sempre passarão imediatamente ao mundo intuitivo, posto que nosso corpo, como tudo o mais, pertence a ele. (E I, II, p. 40 e 41)

Se o ser humano se torna consciente pelo seu próprio querer, no entanto, as decisões e ações são “afecções determinadas da própria vontade” (E I, I, p. 32). Isso significa que quando a autoconsciência afirma que se pode fazer aquilo que se quer, essa não se refere à liberdade da vontade, pois o que se expressa na autoconsciência é apenas a vontade “a parte post”, em contrapartida, a liberdade mesma está “a parte ante” (Cf. E I, II, p. 47). Ora, ainda que Schopenhauer partilhe da ideia de que nós tivemos um “poder de escolha” (Cf. E II, § 10, p. 96), essa se encontra somente no plano metafísico, o que faz com que todos as ações (como procedi e como procederei) no plano empírico – ainda que ponderadas pela importância de valores morais, religiosos, da experiência ou do aprendizado para a expansão do horizonte existencial e individual a partir do qual se dá a escolha – serão determinados por uma força maior, não sendo possível sustentar, então, que somos capazes de escolha. Como corolário necessário a esse argumento, Giacoia afirma que “em todo tempo, o homem só faz aquilo que ele quer; isso, porém, ele o faz necessariamente. A razão para isso é que ele já é aquilo que ele quer: pois daquilo que ele é, segue-se necessariamente tudo aquilo que ele, a cada vez, faz.” (2016, p. 15. Grifos do autor). Viveremos com a doce ilusão de que uma decisão tomada no tempo, um comportamento, nossas atitudes, foram, em algum momento, feitas livremente.

Se para Schopenhauer o querer é a substância, a essência do ser, fatalmente todo o humano será o que é, e ele é sua própria obra mediante sua vontade, visto que no transcendental “a vontade livre e todo-poderosa tem aseidade” (Pernin, 1995, p. 152-153). Por consequência, não se pode “decidir ser isto ou aquilo, // nem tornar-se outrem, mas É de uma vez por todas” (W I, § 55, p. 379. Grifos do autor). Dessa forma, se a vontade só pode ser afetada por motivos, entretanto, sem mudar o que é em si mesma (Cf. W I, § 55, p. 381), o humano, segundo exemplifica Pernin, torna-se menos responsável por suas ações do que pela própria essência, assim “as ações valem pois moralmente como sinais, como traduções fenomenais de uma decisão da vontade” e dessa forma paradoxal, a ética schopenhaueriana passa a ser o contrário do que se entende por “ética de responsabilidade”.

A obra não tem em si mesma valor moral, porque ela é apenas uma cópia longínqua do ser que é, ele sim, a obra verdadeira. Seu valor é apenas expressivo. É por isso que o filósofo fala sempre de um significado moral das ações [...] O significado moral da existência tem, pois, um fundamento metafísico. Mas, inversamente, ele comporta um prêmio metafisico próprio. A hora da morte será o momento de contemplar no espelho da representação enfim esclarecido o que nós somos. Isso nos será dito por nossas ações sucessivas, que assim nos revelarão a nós mesmos. (Pernin, 1995, p. 153)

Por sermos parte fundamental de algo, isto é, da vontade, as nossas escolhas, nossas ações, seguirão, de modo fatal, de acordo com a nossa substância, nossa natureza em si. A essência em si, que é a vontade, possui asseidade, na medida em que a vontade, como já afirmado, é a força primordial inteligível, única e mesma, que que cria e sustenta o fenômeno, e age sobre suas funções, tanto conscientes quanto inconscientes. (Cf. W II, Cap. 23, p. 353). Isto é, a realidade como vemos é regida por essa força cega que “governa” o universo sem um fim único, mas de “forma absolutamente NECESSÁRIA” (W II, Cap. 25, p. 384). No entanto, se queremos o que queremos porque antes já somos o que queremos, é que se faz necessário entender o sentido da asseidade como característica também do humano, que é ambivalente no sentido de ser essencialmente vontade e consequentemente aparência. (Cf. W II, Cap. 25, p. 385).

4 Asseidade da vontade

Embora pouco utilizado por Schopenhauer, o termo asseidade aparece na medida em que o filósofo discorre sobre os “problemas da origem do mal, da imputação pelo sofrimento e da relação entre essência e agir, caráter e ação” (Rodrigues, 2021, p. 269), ou seja, quando “Schopenhauer precisa indicar soluções para o problema da imputação humana” (Rodrigues, 2021, p. 266). Isto é, na busca por encontrar coerência para a sua tese do “ordenamento moral do mundo, [...] de uma significação moral para além da significação física do mundo”, Schopenhauer nos coloca, segundo Rodrigues, diante de várias tentativas de empregar uma terminologia que evite, porém “os dogmatismos cometidos pelos teólogos”. Eis que, então, na tentativa de compreender o significado dessa ordenação moral, o termo asseidade surge para Schopenhauer com um significado diferente daquele empregado no “universo dogmático escolástico”, do ser que é a causa de si mesmo.

No Dicionário de Filosofia, Abbagnano pontua brevemente que a asseidade é um termo usado na Escolástica com a finalidade de definir Deus, tendo sido compreendida como “Qualidade ou caráter do ser que tem em si mesmo a causa e o princípio do próprio ser” (Abbagnano, 2007, p. 94). Apresentando uma definição mais detalhada, Rodrigues explicita que percorrendo o caminho da teologia, asseidade pode ser compreendido de duas formas, a) a se, por si. como “atributo divino essencial e fundamental [...] de existir em virtude de sua própria essência e não de qualquer outro ser externo a si mesmo como causa” isto é “a divindade existe por si próprio [...] Deus existe sem que nenhum nexo de causalidade efetiva seja ligado à sua existência” (Rodrigues, 2021, p. 265) e b) ab alio, que é o oposto do anterior, pois é o “atributo pelo qual um ser recebe sua existência de outro. [...] é causado ou contingente. Deus seria, portanto, distinto dos seres que foram criados, pois não dependeria e não dependeu de uma causa para sua existência” (Rodrigues, 2021, p. 265). Ou seja, na teologia cristã, asseidade seria “uma das marcas principais que distinguem Deus das criaturas” (Rodrigues, 2021, p. 266).

Assim, como explicita Rodrigues, o conceito de asseidade aparece poucas vezes e em momentos bem específicos nos escritos de Schopenhauer. Em Sobre a Vontade na Natureza, por exemplo, o termo surge vinculado ao questionamento a respeito da imputabilidade moral depender da liberdade, que é o núcleo fundamental do problema ético, que por sua vez, tem como imperativo a originariedade, pois é através da originariedade que se determina que eu sou de acordo com a minha essência, e quero de acordo com o que sou. (Cf. Rodrigues, 2021, p. 271). Desse modo, “a resolução passa por saber se o que somos é de responsabilidade de um criador ou de nós mesmos” (Rodrigues, 2021, p. 272). Como na concepção de Schopenhauer não somos criados por uma divindade e tampouco possuímos um livre arbítrio na ação, em um primeiro momento, a imputação é atribuída ao que se encontra além do fenômeno, ao esse, e a responsabilidade pelo mal do mundo não pode ser atribuída totalmente do humano, mas à liberdade do esse. Assim, o mundo é entendido como seu próprio tribunal porque a figura de Deus não está implicada. As dificuldades geradas por este problema foram expressas exemplarmente por Rodrigues da seguinte forma: se os males emergem do esse (liberdade da vontade) através das ações humanas (operari), “o esse se constitui como impulso ao mal, mas a acusação central [...] só pode ser dirigida ao homem, manifestação perfeita desse esse.” (Rodrigues, 2021, p. 273).

Seguindo sua argumentação, Rodrigues esclarece que Schopenhauer não atribui ao humano a caracterização do ente que é causa de si mesmo no mesmo sentido da compreensão escolástica da atribuição de causa de si da asseidade, mas sim de um ser que “afirma a Vontade livre através de sua existência e de seus atos” (Rodrigues, 2021, p. 284), também esclarecendo que sem a utilização de uma conotação dogmática da asseidade, “não se pode sustentar um sentido moral para o mundo” (Rodrigues, 2021, p. 285) na medida em que “sem asseidade não poderia haver imputação ao homem e sem imputação pelo sofrimento não poderia haver um sentido moral para o mundo” (Rodrigues, 2021, p. 268), pois, como afirma Schopenhauer, “eu quero de acordo com o que sou: por isso devo de acordo com o que eu quero” (N, Cap. 8, p. 211).

Na perspectiva de Orrutea Filho, Schopenhauer atribui à asseidade um caráter analítico na identidade do “querer” e “ser”, visto que “se o meu ser já é o meu querer, disso se segue que o meu próprio ser é voluntário, como um ser que se faz a si mesmo, e se pensarmos que um fazer é um ato volitivo, então isso nos conduz à  ideia  de  um ser que quer a si  mesmo” (Orrutea Filho, 2021, p. 14-15). Para melhor esclarecer sua argumentação, Orrutea Filho utiliza uma citação dos manuscritos de 1832, no qual Schopenhauer define asseidade da seguinte forma: “o que os escolásticos chamavam de asseidade de Deus, é, em essência, aquilo que atribuo à vontade, e que chamei de sua ausência de fundamento [Grundlosigkeit]” (HN, Cholerabuch, §48, p.  102 apud Orrutea Filho, 2021, p. 15). 

Isto é, ainda que Schopenhauer tenha vinculado o termo asseidade a partir da originalidade na obra Sobre a Vontade na Natureza, como também explicita Rodrigues (2021), a distinção, segundo Orrutea Filho, é feita apenas de forma aparente, tendo em vista que, nas suas palavras: ““Originalidade” significa “ausência de fundamento”. Um “original” é, por definição, o primeiro de uma sequência. Logo, é aquilo antes do qual não há um anterior para qualificá-lo como seu fundamento” (Orrutea Filho, 2021, p. 15). Por conseguinte, é no reconhecimento entre “Ser e Querer” que é possível encontrar uma argumentação contundente de Schopenhauer “em favor da liberdade e responsabilidade por nossas ações”, sendo possível afirmar que “sua maneira de ser é idêntica ao seu modo de querer” (Orrutea Filho, 2021, p. 15). Assim, o atributo da asseidade está em “se aquilo que se é identifica-se com aquilo se quer” (Orrutea Filho, 2021, p. 25),

Pois se a liberdade consiste na identidade entre Ser e Querer, àqueles que se contrapõem à teoria de Schopenhauer alegando que não se lembram de ter decidido tornar-se aquilo que eles são, pode-se responder: “e quando foi que você realmente quis ser outra coisa?”. Uma vez que Querer e Ser identificam-se, a resposta terá de ser “nunca quis realmente ser outra coisa”, do que se seguiria a conclusão: “precisamente; e é por isso que seu caráter é sua obra” (Orrutea Filho, 2021, p. 27-28).

Tais considerações podem ser encontradas, em sua forma ampliada e aprofundada, na tese Liberdade, Responsabilidade e Individualidade em Schopenhauer[4], onde o autor propõe uma investigação rigorosa do problema da liberdade moral humana tendo em consideração a metafísica schopenhaueriana da vontade. A vista disso, o autor pontua que cada capítulo de seu trabalho corresponde a uma das discordâncias que ele observa em relação ao “tradicional”, e para o que interessa, nos atentaremos às questões propostas no terceiro capítulo de sua tese, já que, segundo o autor, nesse momento é que se buscará uma maior compreensão de que “a individualidade não pode ser reduzida à condição de um simples fenômeno” (Orrutea Filho, 2022, p. 17), mas sim que o caráter inteligível é complexo e não se encerra em apenas um fim, mas em vários fins. (Cf. Orrutea Filho, 2022, p. 325).

Segundo Orrutea Filho, Schopenhauer elabora a questão da simplicidade do caráter a partir da sua constância, isto é, que se conserva por toda vida de forma inalterável, imutável, sendo, portanto “apenas um desdobramento temporal de um caráter inteligível que não está no tempo” (Orrutea Filho, 2022, p. 325). A partir dessa premissa, seria incompatível pensar em um caráter que se encerra em vários fins e não apenas em um único fim (Cf. Orrutea Filho, 2022, p. 326). A solução proposta pelo autor seria, portanto, não a de abandonar a imutabilidade do caráter, mas de pensá-lo simultaneamente como algo complexo, isto é,

Com o ingresso de novos conhecimentos, novas descobertas sobre o próprio caráter podem ser feitas [...] de modo que, no mesmo caráter, concorram qualidades morais diversas, e que uma delas pode ser descoberta somente após certo período da vida, permanecendo oculta durante a maior parte dela. (Orrutea Filho, 2022, p. 326 e 327)

Assim dizendo, pensar em um caráter que é multifacetado e complexo é também pensar na noção de asseidade que, nas palavras de Orrutea Filho “consiste na circularidade entre Ser e Querer” (Orrutea Filho, 2022, p. 313), ou seja, tem qualidade circular pois, diferente de quando se pensa na explicação contínua do ser para o querer (“primeiro sou, e depois quero” ou “primeiro quero, depois sou”), a circularidade está em dizer que  “intuo minha própria existência moral em termos de um ser que já é querido por mim, e por isso mesmo me sinto responsável por aquilo que sou” (Orrutea Filho, 2022, p. 313). O caráter inteligível de cada ser humano individual, segundo o autor, se assume nas infinitas possibilidades oferecidas pela Ideia de Homem, de maneira que “eu poderia ter outro caráter se quisesse e, consequentemente, há circularidade entre aquilo que sou e aquilo que quero” (Orrutea Filho, 2022, p. 317)  

A asseidade diz respeito, não somente à noção da criação de si próprio, mas também que, dentro do princípio de Razão, o ente é a objetivação da vontade manifestado no espaço, tempo e causalidade, portanto, de um ente objetivado, criado, que em sua essência, é indestrutível, mas cuja substância permanece efêmera, de modo que, “a necessidade da morte pode antes de tudo ser deduzida do fato de que o homem é um mero fenômeno, nenhuma coisa-em-si, portanto não é ontos on (o verdadeiro ser). Se ele o fosse, não pereceria.” (P II, § 147, p. 143). Nesse sentido, a metafísica schopenhaueriana subverte o dogma da imortalidade da alma na medida em que atribui à morte a “libertação da unilateralidade de uma individualidade que não constitui o núcleo mais íntimo de nosso ser”, a Vontade, que em si é livre, mas que na morte se torna livre novamente, pois “a liberdade reside no esse, não no operari” (W II, Cap 41, p. 607).

A morte, entendida como o fenômeno que possibilitará o movimento livre da vontade, assim como veremos na sequência, passa a ter uma significação moral uma vez que, como assevera Schopenhauer no final do capítulo 41 do tomo II de O Mundo, é pela morte que se desata o nó que liga a vontade e o intelecto, já que esse mesmo indivíduo passa sua vida toda à mercê, aos caprichos da vontade, isto é, sem liberdade alguma, pois “sobre a base de seu caráter imutável, o seu agir se dá com necessidade ao longo da cadeia dos motivos” (W II, Cap. 41, p. 606). A morte surge, então, como “a soma final que expressa de uma vez toda à instrução que a vida dera parcial e fragmentariamente, vale dizer, que toda aspiração, cuja aparência é a vida, foi algo vão, fútil, contraditório consigo mesmo” (W II, Cap. 49, p. 758), sendo o desejo desenfreado pela imortalidade um modo de perpetuar um erro ao infinito, posto que as ações seriam sucessivamente as mesmas.

5 Arrependimento e peso na consciência

Apesar de reconhecer a imutabilidade da vontade, Schopenhauer também argumenta que através do influxo do conhecimento sobre uma ação, seja pelo passar do tempo ou pelas experiências, é possível que o humano perceba que uma ação foi errada “nos meios”, visto que, ainda que seu querer seja inalterável, se tem a oportunidade de fazer com que seu querer seja “diferente do que quis até então” (W I, § 55, p. 381), por essa razão que o filósofo aborda o problema do arrependimento e do peso na consciência

No entendimento de Salviano, a distinção entre arrependimento e peso na consciência é essencial para apreender a compreensão schopenhaueriana do caráter adquirido bem como do papel da razão na ética. Salviano (2018, p. 98), de forma direta, afirma: “O primeiro é a angústia pelo que se fez; o segundo, pelo que se quis”. Tendo em vista que o arrependimento é o sentimento que se origina, não da vontade ter mudado, já que isto seria impossível, mas sim da possibilidade de mudança do conhecimento, pois eu só posso me lamentar e me arrepender da minha ação (que já foi feita) e não de ter querido fazer o que foi feito, pois “o essencial e próprio daquilo que eu sempre quis, tenho de ainda continuar a querê-lo, pois eu mesmo sou esta Vontade a residir fora do tempo e da mudança” (W I, § 55, p. 383). Ou seja, o sentimento do arrependimento surge da percepção de que cometi um erro ou uma ação que não deveria ter feito, um desapontamento de si com a própria conduta.

Porém, quando Schopenhauer sustenta que não é somente o querer e o decidir que se expõem como atos da vontade, mas também todas as nossas sensações e afecções, como o desejo, temor, ódio, amor (Cf. W II, Cap. 19, p. 244 e 245), isso direciona a pensar nas considerações do filósofo sobre o peso na consciência. A esse respeito, Barboza sustenta que o remorso – “a mordida em nosso íntimo” (W I, § 55, p. 384. Nota de Rodapé) – expressaria uma espécie de “sensação moral”, pois é pelo peso de consciência que se sentiria a “dor sobre o conhecimento de nosso si mesmo” (W I, § 55, p. 384), dor por ser o que se é, por saber que a vontade é imutável, de que o que quero e o que sinto não mudará, já que o caráter será sempre o mesmo, e, ainda que o tempo passe, o peso na consciência persistirá.

Na impossibilidade da mudança do que o indivíduo verdadeiramente É em seu íntimo, pois como ele é assim também ele tem de QUERER, “aquilo que dá à consciência moral o seu espinho é o autoconhecimento da própria vontade e seus degraus” (W I, § 64, p. 467), e no espinho que incomoda, que atrapalha, na vida que se enche de abrolhos, cogitar o suicídio parece ser, no momento de angústia, a melhor saída. Contudo, de acordo com Schopenhauer, essa opção não fornece salvação nenhuma, pois ainda que a maior angústia nos cegue a tal ponto de pensarmos que somente pelo suicídio encontraríamos paz, – já que a morte do corpo seria vista como a cessação de todo o sofrimento –, esse ato “se opõe à obtenção do maior objetivo moral, pois substitui a efetiva redenção deste mundo de lástima por uma meramente aparente” (P II, § 157, p. 169). Somente o conhecimento é o caminho para a redenção, a vontade quando nega a si mesma se encontra desamarrada de todo o sofrimento.[5]

6 Afirmação e negação da vontade

O querer é empírico, mas o que está “por trás” desse querer pertence ao metafísico. Por sua vez, através desse “querer”, poder de decisão, somos conduzidos inevitavelmente ao problema da Negação da Vontade de Viver, já que, como pretendia Schopenhauer, essa negação “de modo algum significa a aniquilação de uma substância, mas o mero ato do não querer” (P II, § 161, p. 173) e, nesse ato de negar a vontade é que se exprime, como forma de sofrimento e morte, uma negação do mundo “em que a morte e o demônio dominam; donec voluntas fiat noluntas <Até que a vontade se torne não-vontade>” (P II, § 162, p. 175). Ou seja, para Schopenhauer, tanto na afirmação da vontade de vida (que tem seu ápice na procriação, pois nela “a vida certamente persistirá por todos os tempos” (P II, § 162, p. 175), quanto na negação da vontade de vida, em ambos os casos, ainda que de modo contrário, manifesta-se um consolo frente a morte.

            Maurice Rollinat (1883), no poema Les ténébres, afirma que a morte “é um grande poço sempre aberto” em que não há beiras e nem cordas, lugar onde tudo o que é ilusório colide com a realidade, e nós, reles mortais, viemos de algum lugar para cair de novo nele, sendo o vivente fadado a desaparecer. Na morte, segundo suas palavras “o infinito nos cobiça com uma risada amarga, pensando no finito que devora constantemente”, é o cair na escuridão enquanto segura as mãos invisíveis da morte que em nenhum momento se soltou da nossa. Somente a Negação da Vontade pode, enfim, encerrar o ciclo ininterrupto da Afirmação da Vontade considerando a afirmação de Schopenhauer, de que “A negação da Vontade de vida é o retorno permanente” (W II, Cap. 48, p. 727), tendo em vista que “Na hora da morte decide-se se a pessoa retorna ao seio da natureza ou não mais pertence a esta” (W II, Cap. 48, p. 727), sendo essa a única forma de manifestação livre da vontade no mundo fenomênico, uma “liberdade no místico” (Barboza, 2005, p. 12). Negar a si mesmo é o mesmo que afirmar: “Basta desse jogo” (W II, Cap. 41, p. 574).

            O “negar a si mesmo” no plano empírico, como nos lembra Giacóia (Cf. 2021, p. 12), é uma ação paradoxal, já que quando a Vontade nega a si mesma, ela “nega o que o fenômeno expressa” (W I, § 70, p. 509), nega sua afirmação, as motivações, realizações e desejos. Dessa forma, Schopenhauer chama a negação da Vontade de “viragem diante da vida” (W I, § 68, p. 482) no indivíduo, ou como descrito por Barboza, a contradição do fenômeno, como se o indivíduo “quisesse um não-querer” uma vez que “seu corpo ainda afirma aquilo que intimamente ele já negou.”  (Barboza, 2005, p. 13) e através do conhecimento (o abrir dos olhos), o indivíduo que não mais quer, deseja o findar. (Cf. W I, § 54, p. 369), pois ele

Conhece o todo, apreende o seu ser e encontra o mundo entregue a um perecer constante, em esforço vão, em conflito íntimo e sofrimento contínuo. Vê, para onde olha, a humanidade os animais sofredores. Vê um mundo que desaparece. E tudo isso lhe é agora tão próximo quanto para o egoísta a própria pessoa. Como poderia, mediante um tal conhecimento do mundo, afirmar precisamente esta vida por constantes atos da Vontade, exatamente dessa forma atar-se cada vez mais fixamente a ela e abraçá-la cada vez mais vigorosamente? (W I, § 68, p. 481)

O indivíduo identifica esse mundo como um lugar de completa dor, se espanta com todo o sofrimento e se compadece com a humanidade, neste momento em que a Vontade perfaz a viragem, ele entra em “estado de voluntária renúncia, resignação, verdadeira serenidade e completa destituição de Vontade” (W I, § 68, p. 482), ou seja, “estado de santidade e auto-abnegação” (W I, § 55, p. 373) e para atingir a negação da vontade, Schopenhauer descreve duas possibilidades, isto é, dois caminhos. O primeiro, é o caminho do conhecimento que o indivíduo obtém de forma livre a partir da assimilação do sofrimento do todo; enquanto o segundo, o caminho da dor, enraíza-se em si próprio. (Cf. W I, § 68, p. 498).

No primeiro caminho se observa o que Schopenhauer chama de “transição da virtude à ASCESE.” (W I, § 68, p. 482), visto que, nas suas palavras “o homem que vê através do principium individuationis e reconhece a essência em si das coisas, portanto do todo, não é mais suscetível a semelhante consolo. Vê a si em todos os lugares ao mesmo tempo, e se retira.” (W I, § 68, p. 482). Pavão (2018, p. 126) se utiliza da argumentação de que o primeiro caminho é mais raro e diz respeito a “uma certa compreensão do mundo”. Isso porque, na prática ascética, do seu ponto de vista, "um novo horizonte desponta, uma verdade profunda é captada, a verdade de que há uma identidade metafísica entre os seres, sendo todos fenômenos da vontade, vontade essa que é o “em-si” de todas as coisas.” (Pavão, 2018, p. 126). No conhecimento do todo, na verdade que passou a ser assimilada, o humano que percebeu e reconheceu “a contradição íntima do querer viver [...] que a violência dilacera o mundo de alto a baixo [...] a superficialidade do princípio de individuação” ele se desprende da Vontade e “não persegue mais a sua busca ávida.” (Pernin, 1995, p. 172). Assim sendo, a ascese, no sentido estrito, é o que o filósofo entende como sendo esse rompimento que a vontade faz repudiando o “agradável” enquanto busca pelo “desagradável”, e, através da prática de disciplina e abstinência, “mediante o modo de vida penitente voluntariamente escolhido e a autocastidade” (W I, § 68, p. 496), visa, de tal forma, à cessão dos desejos, da Vontade.[6]

            Já o segundo caminho, dá-se pela dor geral trazida pelo destino, ou seja, é o sofrimento exorbitante que o indivíduo sente no fundo de si, – com maior frequência quando a morte se aproxima –, de tal forma que se produza o que Schopenhauer chama de “completa resignação” (W I, § 68, p. 497). Essa dor, segundo Pavão, “é a dor sentida de modo exaltado, os padecimentos dos maiores sofrimentos” (Pavão, 2018, p. 126) e, mesmo que o segundo caminho tenha sido aberto por uma vivência pessoal, “requer, ou melhor produz, um modo diferente de ver as coisas” (Pavão, 2018, p. 127). Após ser assolados pela perda de esperança, muitas pessoas podem demonstrar bondade e pureza, de modo que “seu sofrer e morrer se tornam agradáveis para si, pois a negação da Vontade de vida entrou em cena. [...] morrem de bom grado, tranquilos, bem-aventurados” (W I, § 68, p. 498). Dessa forma, no entendimento de Pernin, o sofrimento frente às circunstâncias fatídicas “solicita a renúncia se estiver acompanhado da idéia de que o sofrimento que se suporta é apenas um exemplo do sofrimento universal, que é o quinhão da humanidade e até da vida.”, enquanto com o sofrimento sentido com a aproximação impiedosa da morte “opera-se no espírito do homem uma totalização, um quadro que lhe oferece uma recapitulação do que ele viveu.” (Pernin, 1995, p. 173).

Contudo, Schopenhauer sustenta que a remissão do indivíduo através do sofrimento não acontece somente pela aproximação da morte ou da perda de esperança, mas também com a visão da nulidade dos seus esforços diante de tanta dor, e então, pelo conhecimento que permite ver as contradições que a Vontade de vida nos impõe[7] (Cf. W I, § 68, p. 499), a partir do que, e de modo consequente, “infelizes e culpados percebem afinal que sua vontade dirigia em segredo a sua vida” (Pernin, 1995, p. 173).

7 Negação da vontade: Schopenhauer e o cristianismo

Apesar da indicação dos dois caminhos para a negação da vontade – conhecimento e dor – a “virada” da vontade não pode ser alcançada apenas pelos próprios esforços, restando aos indivíduos “esperar por uma ajuda sobrenatural” (Picoli, 2010, p. 32), chamado por Schopenhauer de graça. Aqui é pertinente pontuar o fato de que a doutrina da negação da Vontade está muito próxima do dogma cristão da necessidade de renúncia para se alcançar a vida eterna. Schopenhauer reconhece que a doutrina cristã “coincide inteiramente com o resultado” das suas considerações, pois o filósofo percebe que “a genuína virtude e a santidade de disposição têm sua primeira origem não no arbítrio ponderado (obras), mas no conhecimento (fé)” (W I, § 70, p. 513)

Schopenhauer também ressalta que sua ética vai ao encontro da ideia, expressa na doutrina cristã pautada no novo testamento, de acordo com a qual somente mediante a fé, o amor ao próximo e a renúncia de si é possível alcançar o reino da graça (Cf. P II, § 163, p. 175), já que sua ética aponta para “o fundamento metafísico da justiça e do amor à humanidade”, além de reconhecer o “caráter reprovável do mundo, e aponta para a negação da vontade de viver como o caminho para a sua redenção” (P II, § 163, p. 176)[8]

O novo testamento dá ênfase à vida de Jesus, seus valores e ensinamentos até sua morte na Cruz, morte esta que constitui o símbolo mais significativo da fé cristã, já que a morte de Jesus Cristo representa justamente a aproximação de Deus à humanidade, a possibilidade de redenção que nos foi dada. O sangue que foi derramado por aquele que se fez homem lavou todo o pecado e nos ofereceu a salvação de tal forma que “a agonia e a morte do Cristo significam que o sofrimento e a proximidade da morte são caminhos possíveis da renúncia salvadora para o homem” (Pernin, 1995, p. 31-32), motivo pelo qual a Cruz é vista pelos cristãos como um símbolo da reconciliação, da esperança, da fé e da graça.

Por sua vez, no Velho Testamento se prega a Lei e as promessas de Deus para com seu povo, onde o homem é submetido às exigências da Lei e à necessidade de obediência desses mandamentos que foram criados para servirem de guia do povo de Israel, enquanto Deus é visto como aquele que exige obediência e castiga os que não seguem a Lei. Ou seja, a figura de Deus se torna muito diversificada no decorrer da Bíblia, já que no Antigo Testamento Ele é visto como juiz impiedoso, rígido, que não admite rebeldias e descumprimento das suas Leis, e pune com castigos diversos[9]; ao passo que no Novo testamento é mostrado um Deus misericordioso, que, pela figura de Jesus, ensinou ao seu povo o que é compaixão, tolerância e o perdão, que são o cerne da mensagem do evangelho: perdoar os pecados e demonstrar compaixão pelos pecadores.[10]  

Assim, “o espírito ascético é bem propriamente a alma do Novo Testamento” (P II, § 163, p. 176), ou seja, metaforicamente, o caminho para baixo (negar a si mesmo) é o caminho para cima (vida eterna), que, ao ser guiado pelo Espírito Santo, o velho homem (natureza pecaminosa) é redimido, – ele não se redime, é redimido –, e assim o novo homem (regeneração) vive de acordo com a vontade de Deus. Em vista disso, Schopenhauer afirma “Nesse sentido, poder-se-ia denominar minha filosofia a própria filosofia cristã” (P II, § 163, p. 176)[11].

Em suma, a regeneração não pode ser obtida através de suas próprias obras, isto é, o indivíduo não alcança a salvação por si próprio, “porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus” (Efésios 2:8), sendo que a graça da revelação é concedida por Cristo, de forma misteriosa, ou, pela ótica de Schopenhauer “chega, em consequência, subitamente e como de fora voando” (W I, § 70, p. 511), já que não se sabe a forma como Deus age, por esta maneira que é chamada de Efeito da graça, pois é um atributo divino. Inclusive, como exemplifica Max Horkheimer, em Schopenhauer, a negação da vontade, junto com os preceitos religiosos, “exige do homem a liberdade em relação ao egoísmo, a entrega, a confiança em algo não passível de comprovação no mundo, em algo não mais ou ainda não existente” (Horkheimer, 2008, p. 123). Diante da regeneração, não foi o caráter do indivíduo que mudou, pois este não pode ser mudado, mas o seu caráter “pode ser completamente suprimido pela antes mencionada modificação do conhecimento” (W I, § 70, p. 509). Isso é chamado pelos cristãos de novo nascimento, enquanto para Schopenhauer se trata da “imediata exteriorização da Liberdade da vontade” (W I, § 70, p. 510).

O sofrimento e a morte são atributos essenciais da negação da vontade de vida, bem como da redenção, na medida em que é preciso remir-se “de um mundo em que a morte e o demônio dominam” (P II, § 162, p. 175), sendo esse meio a “única redenção possível para o mundo e seus tormentos” (W I, § 65, p. 467),  pois diante dessa renúncia como sendo a única forma de libertação da iminência da vontade, e, consequentemente, libertação de toda penúria e toda dor, ao renunciar às tentações do mundo, se vê “uma esperança conservada na redenção” (Horkheimer, 2008, p. 122), em que o indivíduo pode, enfim, alcançar o nada. (Cf. P II, § 161, p. 174 e W I, § 71, p. 518 e 519). Dito de outro modo, o ato de renúncia, segundo Pernin, “será a resposta da vontade a um conhecimento de conjunto, que intervém sempre a título de solicitação”, de forma que “como no teatro de marionetes, pode-se romper os fios que os ligam às mãos que os manobram, o caráter é suprimido porque as representações não desempenham mais o seu papel de motivos.” (Pernin, 1995, p. 171-172).

REFERÊNCIAS

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Contribuição de autoria

1 – Camila Gomes Weber

Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual de Londrina

https://orcid.org/0000-0002-1130-8794• camilagweber@gmail.com

Contribuição: Escrita – Primeira RedaçãO

Como citar este artigo

WEBER, C. G. A compreensão schopenhaueriana do caráter de indivíduo. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 14, e85191, n. 1, p. 01-28, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378685191. Acesso em: dia mês abreviado. ano.

 



[1] Expressa no seu conjunto pela divisão em caráter de Ideia, caráter de Species/Espécie e caráter de Indivíduo.

[2] Doravante, O Mundo.

[3] As abreviaturas das obras de Schopenhauer foram definidas pela Schopenhauer-Gesellschaft (Alemanha) em seu periódico Schopenhauer-Jahrbuch, por sua vez, as passagens do filósofo serão referidas pelos seguintes itens e nesta ordem: Abreviatura da obra, sendo W I para Tomo I de O Mundo como vontade e representação, W II para Tomo II de O Mundo como vontade e representação, P I para Tomo I de Parerga e Paralipomena, P II para Tomo II de Parerga e Paralipomena, N para Sobre a vontade na natureza, E I para Sobre a liberdade da vontade, E II para Sobre os fundamentos da moral, G para Sobre a quadrúplice raiz do princípio de razão suficiente, após, o número do parágrafo ou do capítulo, e, por fim, a paginação em número arábico da versão da obra utilizada, devidamente indicada na bibliografia. Para as demais passagens, serão utilizadas as regras prescritas pela ABNT de autor/data.

[4] A tese foi defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Londrina em 03/03/2023.

[5] “A Vontade não pode ser suprimida por nada senão o CONHECIMENTO. Por isso o único caminho de salvação é este: que a Vontade apareça livremente, a fim de, neste fenômeno, CONHECER a sua essência. Só em consequência deste conhecimento pode suprimir a si mesma e, assim, também pôr fim ao sofrimento inseparável de seu fenômeno. Isso, entretanto, não é possível por violência, como a destruição do embrião, a morte do recém-nascido, o suicídio. A natureza conduz a Vontade à luz, porque só na luz a Vontade pode encontrar a sua redenção” (W I, § 69, p. 506).

[6] Schopenhauer pontua que há dois passos na ascese, o primeiro como sendo a castidade exercida de forma voluntária e completa e o segundo, pela pobreza voluntária. A castidade é vista como o domínio dos próprios instintos, isto é, pela repulsa que o indivíduo sente pela sua própria essência, abdica justamente dessa essência que é a expressão de seu próprio corpo, isso significa que “Seu corpo saudável e forte exprime o impulso sexual pelo genitais; porém agora nega a vontade e desmente o corpo: não quer satisfação sexual alguma, sob nenhuma condição.” (W I, § 68, p. 482 e 483). Já na pobreza voluntária, o filósofo aduz que não é simplesmente uma doação que irá diminuir o sofrimento de outrem, mas sim no cessamento de estímulo da Vontade, fazer tudo o que for contrário do que se queria até ter a certeza de que a Vontade não mais se afirma, assim “de modo algum permite ao fogo da cólera e da cobiça se acenderem novamente em si” (W I, § 68, p. 485).

[7] “Que todo sofrer, na medida em que é uma mortificação em um chamado à resignação, possuem potência uma força santificadora, leva a explicar o fato de grandes desgraças e dores profundas já em si mesma inspirarem um certo respeito. Porém, o sofredor se torna por inteiro digno de reverência quando, ao mirar o decurso de sua vida como uma cadeia de sofrimentos, ou como uma dor intensa e incurável, não se detém propriamente no encadeamento das circunstâncias que justamente envolveram a sua vida no luto, nem na grande desgraça particular que o atingiu – pois até então seu conhecimento ainda seguia o princípio de razão e aderia ao fenômeno individual; ele ainda sempre quer a vida, apenas não nas condições que lhe foram oferecidas – porém efetivamente só se torna digno de reverência quando o seu olhar se eleva do particular ao universal, quando considera o próprio sofrimento apenas como exemplo do todo e, assim, para ele, na medida em que, em sentido ético se tornou genial, UM caso vale por mil; por conseguinte, o todo da vida apreendido como sofrimento essencial o conduz à resignação” (W I, § 68, p. 501)

[8] Paul Deussen considera Schopenhauer o philosophus christianissimus, isto é, “o mais cristão de todos os filósofos” (2013, p. 132), mas não segundo o cristianismo histórico, mas sim o que constitui o pensamento cristão, do mundo que “jaz em desordem (im Argen), e que necessita de uma salvação (Erlösung)” (2013, p. 133), e essa aproximação da ética schopenhaueriana com o que Deussen chama de “verdadeiro espírito do cristianismo” se comprova, de acordo com o autor, em quatro ensinamentos, quais sejam: a) “A não liberdade empírica da Vontade” (2013, p. 136); b) a qualificação das “ações da negação, diante das da afirmação, como as mais elevadas (Höhere), louváveis (Erstrebenswertere)” (2013, p. 136); c) a similaridade entre o ‘renascimento dos velhos homens como novos”, presentes no dogma cristão, e a tese schopenhaueriana da “viragem da Vontade de vida da afirmação à negação” (2013, p. 136); d) E, por fim, o monergismo, que somente por Deus é que o humano terá salvação, bem como as “ações morais de autoabnegação”, já que ao homem só lhe cabe as “ações pecadoras, isto é, egoístas” (2013, p. 137).

[9] A depender da interpretação que se faz do Antigo Testamento, como por exemplo no texto de Jeremias, fica a impressão de que os castigos impostos por Deus eram uma prova de amor, e a dor tinha como propósito fazer com que o povo parasse de pecar: “2 Assim diz o Senhor: O povo dos que escaparam da espada achou graça no deserto. Israel mesmo, quando eu o fizer descansar. 3 Há muito que o Senhor me apareceu, dizendo: Porquanto com amor eterno te amei, por isso com benignidade te atraí. (Jeremias 31:2,3)”. No entanto, ainda que se tente apontar todo o amor imensurável do Deus do Antigo Testamento pela sua criação (o humano), é inegável que o compadecimento tinha como troca a obediência, como apontam os seguintes textos: “13 Agora, pois, se tenho achado graça aos teus olhos, rogo-te que me faças saber o teu caminho, e conhecer-te-ei, para que ache graça aos teus olhos; e considera que esta nação é o teu povo. 14 Disse pois: Irá a minha presença contigo para te fazer descansar. 15 Então lhe disse: Se tu mesmo não fores conosco, não nos faças subir daqui. 16 Como, pois, se saberá agora que tenho achado graça aos teus olhos, eu e o teu povo? Acaso não é por andares tu conosco, de modo a sermos separados, eu e o teu povo, de todos os povos que há sobre a face da terra? 17 Então disse o Senhor a Moisés: Farei também isto, que tens dito; porquanto achaste graça aos meus olhos, e te conheço por nome. 18 Então ele disse: Rogo-te que me mostres a tua glória. 19 Porém ele disse: Eu farei passar toda a minha bondade por diante de ti, e proclamarei o nome do Senhor diante de ti; e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem eu me compadecer”.  (Êxodo 33:13-19); “Saberás, pois, que o Senhor teu Deus, ele é Deus, o Deus fiel, que guarda a aliança e a misericórdia até mil gerações aos que o amam e guardam os seus mandamentos”. (Deuteronômio 7:9); “Todas as veredas do Senhor são misericórdia e verdade para aqueles que guardam a sua aliança e os seus testemunhos”. (Salmos 25:10);

[10] Citaremos como exemplo as seguintes passagens bíblicas que atestam esse posicionamento: “E Jesus, saindo, viu uma grande multidão, e teve compaixão deles, porque eram como ovelhas que não têm pastor; e começou a ensinar-lhes muitas coisas”. (Marcos 6:34); “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. (João 3:16); “1 E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados, 2 Em que noutro tempo andastes segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe das potestades do ar, do espírito que agora opera nos filhos da desobediência; 3 Entre os quais todos nós também antes andávamos nos desejos da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira, como os outros também. 4 Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou, 5 Estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça sois salvos), 6 E nos ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus; 7 Para mostrar nos séculos vindouros as abundantes riquezas da sua graça pela sua benignidade para conosco em Cristo Jesus”. (Efésios 2:1-7).  Entretanto, apesar de toda benignidade, complacência e magnanimidade de Cristo, o Novo Testamento não está isento da ira de Deus com os que não o seguem, assim como se observa nos seguintes textos: “Aquele que crê no Filho tem a vida eterna; mas aquele que não crê no Filho não verá a vida, mas a ira de Deus sobre ele permanece”. (João 3:36); “Porque do céu se manifesta a ira de Deus sobre toda a impiedade e injustiça dos homens, que detêm a verdade em injustiça”. (Romanos 1:18); “Ninguém vos engane com palavras vãs; porque por estas coisas vem a ira de Deus sobre os filhos da desobediência”. (Efésios 5:6); “3 Porque já estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. 4 Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então também vós vos manifestareis com ele em glória. 5 Mortificai, pois, os vossos membros, que estão sobre a terra: a fornicação, a impureza, a afeição desordenada, a vil concupiscência, e a avareza, que é idolatria; 6 Pelas quais coisas vem a ira de Deus sobre os filhos da desobediência”. (Colossenses 3:3-6); “Também este beberá do vinho da ira de Deus, que se deitou, não misturado, no cálice da sua ira; e será atormentado com fogo e enxofre diante dos santos anjos e diante do Cordeiro”. (Apocalipse 14:10)

[11] Conforme Picoli, a teoria schopenhaueriana da negação da vontade se apoia nas considerações de Agostinho acerca da teoria da graça e da redenção, considerações que Schopenhauer não faz questão de esconder, pelo contrário, compreende de forma exímia o que significa graça e redenção na filosofia agostiniana, bem como acata: “Se com Adão toda humanidade pecou e, por conseguinte, os homens não têm mais o poder de seguir a lei de Deus, com exceção daqueles que recebem a graça, como defende Agostinho, o próprio Adão se torna, para Schopenhauer, o representante da Ideia de homem, isto é, simboliza a ausência de liberdade, deficiente em todos os homens.” (Picoli, 2010, p. 33).