Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85093, 2023
Submissão: 02/10/2023 • Aprovação: 01/02/2024 • Publicação: 29/03/202
2 NATUREZA, CONTINGÊNCIA E TECHNĒ
3 DO CONTINGENTE AO AUTOMÁTICO
5 CATÁSTROFE E ESTÉTICA ESPECULATIVA
Dossiê
Catástrofe algorítmica – A vingança da contingência,
de Yuk Hui [1]
IUniversidade Estadual de Londrina, Departamento de Filosofia, Londrina, PR, Brasil
A magia da automação […] será também […] apegada à letra, cega. […] Um mecanismo capaz de buscar objetivos não se dirigiria necessàriamente para nossos objetivos, a menos que o projetássemos com aquêle propósito e, ao projetá-lo, deveríamos antecipar tôdas as fases do processo em vista […]. As conseqüências dos erros de antecipação, grandes, atualmente, cresceriam de maneira considerável se a automatização atingisse amplo grau de utilização.
— Norbert Wiener (1971, p. 64-67).
RESUMO
O presente texto é a tradução para o português brasileiro do artigo “Algorithmic Catastrophe — The Revengence of Contingency”, do filósofo chinês Yuk Hui (2015), professor na City University of Hong Kong, criador dos conceitos de “tecnodiversidade” e “cosmotécnica” e autor de livros como The Question Concerning Technology in China (2016) e Recursivity and Contingency (2019). O presente artigo, cedido generosamente pelo autor para tradução sob licença CC BY-NC-ND 4.0, originalmente fazia parte de uma edição especial da revista Parrhesia dedicada ao filósofo francês Bernard Stiegler (in memoriam), antigo orientador de doutorado do autor e uma das peças centrais na composição deste texto.
Palavras-chave: Algoritmo; Bernard Stiegler; Filosofia da Tecnologia; Quentin Meillassoux; Recursão; Yuk Hui
ABSTRACT
The following text consists in a Brazilian Portuguese translation of the article “Algorithmic Catastrophe — The Revengence of Contingency”, written by the Chinese philosopher Yuk Hui (2015), professor in the City University of Hong Kong, responsible for such concepts as “technodiversity” and “cosmotechnics” and author of such books as The Question Concerning Technology in China (2016) andRecursivity and Contingency (2019). This translation was generously authorized by the author under CC BY-NC-ND 4.0 license, and it was originally a part of Parrhesia special edition on the French philosopher Bernard Stiegler (in memoriam), ex-advisor for the author's PhD and a key figure in the composition of this text.
Keywords: Algorithm; Bernard Stiegler; Quentin Meillassoux; Philosophy of Technology; Recursion; Yuk Hui
Todas as catástrofes são algorítmicas, mesmo as naturais, considerando-se o universo como governado por princípios de emergência e leis de movimento regulares e automáticas. À primeira vista, catástrofes assumem a forma de perturbações naturais, produzidas através das dinâmicas internas do universo. O termo “acidente”, por sua vez, pode ser entendido de duas maneiras. Na primeira, delineada por Aristóteles nas Categorias, o acidente equivale a uma propriedade não essencial da substância, como, por exemplo, a cor vermelha predicada de uma maçã. Nessa acepção, sua emergência e desaparecimento não levam à destruição da substância; a maçã do exemplo continua sendo uma maçã, mesmo que ainda não tenha ficado vermelha. Em uma segunda acepção, que também é a forma mais comum pela qual se compreende o termo (Nalanda, 1956, p. 13), o acidente pode ser entendido como algo que ocorre de maneira contingente. Posteriormente, pretendo mostrar que a catástrofe algorítmica — definida como toda catástrofe produzida por intermédio de algoritmos automatizados — resulta da convergência desses dois tipos ou sentidos de acidente. Nós já testemunhamos muitos tipos de catástrofe tecnológica além daquelas causadas por falha humana ou imaturidade técnica, tais como a fadiga mecânica ou a fratura por fragilização. Esse tipo de catástrofe material ou tecnológica não serve de exemplo para o que aqui proponho ser uma “catástrofe algorítmica”. Catástrofes algorítmicas não remetem a um tipo de falha material, mas a uma falha da razão.
Em novembro de 2002, na Foundation Cartier, em Paris, o filósofo francês Paul Virílio fez a curadoria de uma exibição intitulada Ce qui arrive (“O que ocorre”). Nessa exibição, Virílio tentou analisar a ocorrência [arrival][2], nas últimas décadas, de um novo tipo de catástrofe produzido pelo desenvolvimento tecnológico — também influenciado, segundo ele, por uma espécie de reversão da distinção aristotélica entre substância e acidente. Em antecipação da forma como as catástrofes passaram a ser normalizadas no século XXI, o filósofo francês buscou retomar a questão da responsabilidade e refletir acerca do problema da industrialização, tornada destrutiva tanto para entes corporais, quanto para espirituais.
Virílio salienta que, para Aristóteles, os acidentes servem para revelar a substância; para o próprio pensador parisiense, contudo, a substância é sempre já acidental. O que se segue dos acidentes são novas invenções que os superam. Nesse sentido, as catástrofes são necessárias a nível estrutural, dado que, sem elas, não haveria motivo efetivo para o desenvolvimento tecnológico. “Consequentemente”, escreve ele, “o naufrágio é a invenção ‘futurista’ do navio e o acidente aéreo, a invenção do avião supersônico, assim como o derretimento da caldeira de Chernobyl é a invenção da usina nuclear” (Virílio, 2007, p. 5). Virílio nota ainda que os acidentes já não mais passam pela relação com a substância. Se antes, argumenta, podíamos falar de “acidentes na substância”, hoje falamos de “acidentes no conhecimento”, dos quais “a ciência da computação bem poderia ser sinal, em virtude da natureza mesma de seus indiscutíveis ‘avanços’, mas também, pelo mesmo motivo, dos danos incomensuráveis que ela produz” (ibid. p. 6).
A nova forma de acidente mencionada por Virílio — os “acidentes no conhecimento” — está tomada pelo segundo sentido do termo “acidente”, o que significa que a constante ocorrência de catástrofes vem sempre acompanhada do “progresso” da civilização. Pode-se compreender, ademais, que o acidente do conhecimento equivale a um acidente da razão, ou, mais precisamente, da razão exteriorizada que nós chamamos de “algoritmo”. A dialética do acidente e da invenção leva a uma sistematização da razão exteriorizada, que adquire o seu próprio modo de contingência.
Por um lado, a emergência da catástrofe algorítmica marca, como defenderá este artigo, a presença de um sistema tecnológico global, aberto a repetidas ocorrências de catástrofes ausentes de apocalipse. Nesse sentido, o tipo de catástrofe que busco descrever não deverá ser entendido do mesmo modo que se entende “catástrofe” na tragédia e no apocalipse. Primeiramente, não se trata mais aqui de falar em leis da natureza, mas em um sistema tecnológico global, mudança que desloca a catástrofe de sua origem trágica. É preciso recordar que a palavra grega κατάστρέφω é composta de duas partes, κατά (“para baixo”) e στρέφω (“virar”), cada qual designando um movimento em um coro. Além disso, o apocalipse, da forma como é concebido pela cultura cristã, é incapaz de explicar completamente a situação global. O sentido de apocalipse como espera por um novo começo parece cada vez mais enganoso. Por esses motivos, a catástrofe apocalíptica tem de ser articulada e compreendida para além da associação com a tragédia antiga ou com a escatologia pós-industrial.
Por outro lado, a emergência da catástrofe algorítmica marca o acabamento do percurso da razão especulativa em sua relação com a manifestação do conceito de contingência na filosofia ocidental, explorada de maneira sistemática pela primeira vez por Platão e Aristóteles, depois, pela teologia e pela filosofia medievais, em relação à criação de Deus, então, pelo trabalho de Émile Boutroux (1845-1921), e enfim, mais recentemente, exposta em sua inteireza na obra do filósofo francês Quentin Meillassoux.
Em um conciso verbete, o filósofo alemão Hans Blumenberg salienta que a contingência é um dos poucos conceitos com origem especificamente cristã. Na filosofia aristotélica, só há oposição entre possibilidade e atualidade, e não entre possibilidade e necessidade. É apenas quando a possibilidade é vinculada à lógica que essa oposição é estabelecida. A ontologização da “contingência possível” se completa no século XIII: “o mundo é contingente enquanto uma atualidade que, indiferente à sua existência, não carrega em si a razão e a lei de seu próprio ser” (Blumenberg, 1959, p. 1793-1794)[3]. Através do voluntarismo da escolástica franciscana, a necessidade deixa de justificar a contingência, que agora se torna um acidente (Zufälligkeit) (ibid. p. 1794).[4] Enquanto o sentido de acidente como predicado predominava entre os antigos na investigação sobre o ser, hoje começamos a testemunhar a primazia de outro sentido de acidente: contingência.
A contingência sempre esteve inserida nas leis naturais, desafiando todas as formas de necessidade, como Émily Boutroux nos mostrou em De la contingence des lois de la nature (1921). A contingência da catástrofe algorítmica já não é a mesma que a contingência natural, mas opera no interior da técnica, entendida como a “segunda natureza”.[5] Este é o pano de fundo do que chamo de “catástrofe algorítmica”, termo que descreve a nossa situação tecnológica. Uma objeção poderia ser feita aqui, dado que estamos indiretamente afirmando a distinção entre natureza e cultura (se também contarmos a tecnologia como pertencendo à última). De fato, tal categorização é ela mesma, em certa medida, cultural. Contudo, não afirmamos que natureza e técnica são realidades distintas e isoladas, mas sim que o conceito tradicional de natureza, que ignora e subjuga [undermines] o conceito de técnica, deveria ser questionado.[6] É necessário, portanto, propor uma segunda natureza que contenha tal distinção mas que, ao mesmo tempo, a subsuma [sublates it].
O algoritmo que hoje conhecemos, a cada dia mais significativo em nosso cotidiano em virtude dos rápidos avanços pelos quais têm passado a inteligência artificial (IA), representa o mais recente desdobramento da razão, que, agora, se vê completamente destacada do cérebro pensante. A catástrofe algorítmica se expressa no modo como percebemos o desenvolvimento técnico — entre 2010 e 2015,[7] testemunhamos duas vezes como a chamada “quebra súbita” [flash crash] paralisou o mercado financeiro em questão de segundos por conta do uso de especulação algorítmica [algorithmic trading]. Esse tipo de antecipação da catástrofe, por outro lado, tem se tornado um princípio de design: “Design for failure, since everything fails” [“projete para falhar, já que tudo falha”], diz o famoso slogan dos serviços de computação em nuvem da Amazon.
Não se deve perder de vista a dialética entre acidentes como predicados e como contingência, como sorte (τύχη) e como automaticidade (αυτοματον), bem como as mudanças de sentido que esses termos sofrem na passagem das leis da natureza às leis da técnica — essa segunda natureza. Adentramos a era global da catástrofe, e fazer como faz Virílio ao propor uma escatologia global pós-industrial parece ser um intento vão, pois ignora o sistema técnico global que, no fundo, nada mais é que a convergência entre diferentes subsistemas e diferentes culturas. A fim de desdobrar o conceito de catástrofe algorítmica, precisamos reconsiderar a relação histórica entre técnica e contingência na cultura ocidental. Desde os final do século XX até o momento, essa história, enquanto trajetória do desenvolvimento da razão e de sua exteriorização nas máquinas, tem significativamente conduzido a própria cultura ocidental a uma autonegação.[8]
2 Natureza, contingência e technĒ
Seria de valia observar que, quando ocorriam catástrofes, tais como secas ou inundações, os antigos depositavam sua esperança na restauração da ordem cósmica, uma ordem que triunfaria sobre todas as contingências. Em face da falta de conhecimento técnico e científico, restava à contingência constituir o momento mítico e catastrófico do tempo trágico, tal como apresentavam as tragédias da cultura helênica. Em si mesma, essa contingência não é apenas acidental, mas é também necessária para se compreender a relação entre o ser humano e o cosmos. Édipo, o homem sagaz que resolveu o enigma da Esfinge, fracassou em fugir do destino que se revelava ao mesmo tempo contingente e necessário. O surgimento da ciência ou da razão é uma via de superação da natureza imprevisível e incontrolável da contingência. Por isso, Platão, biógrafo de Sócrates, nos legou um teatro de tipo antitrágico, no qual Sócrates usa de sua razão para perscrutar, com “medição apolínea”, no âmago das coisas.
No Protágoras, Sócrates se propõe a desenvolver uma technē que sirva de medição definitiva do bem e do mal, em resposta à proposta do sofista de que haveriam múltiplos fins. Em seu livro A fragilidade da bondade: Fortuna e ética na tragédia e na filosofia grega, Martha Nussbaum (2001) demonstrou que o objetivo último de Platão era lidar com a fragilidade da fortuna ou sorte [luck] (τυχή). A sorte é contingente, pois se ela estivesse sempre disponível, perderia seu sentido semântico, o que não faria dela algo tão desejável assim. Recorrer à ciência é um jeito de superar a fragilidade da τυχή. Nesse contexto, a ciência, também designando a τέχνη ou seu plural, τέχναι, fornece um método de medição e de cálculo que traduz todos os fins em termos comensuráveis.
Nussbaum também se volta à definição de técnica em Aristóteles e sublinha quatro elementos: (1) universalidade; (2) ensinabilidade; (3) precisão; (4) interesse pela explicação (Nussbaum, 2001, p. 95). Nesse período da cultura helênica, segundo ela, a technē não possuía um sentido especialmente diverso da epistēmē, que remete às objetividades da technē passíveis de superar a contingência e a ακρασία, a incontinência. O que Nussbaum não nota é a tensão entre os dois objetos que se busca superar: a τυχή como contingência e a ακρασία como incontinência ou fraqueza da vontade. A técnica não se limita a uma superação da τυχή, mas é também superação da ακρασία, superação que, consequentemente, evidencia uma nova situação em contraste com o habitus.
Essa técnica não equivale a uma habilidade específica entre outras. Trata-se da técnica de todas as technai: o pensamento racional. Sendo tanto technē, quanto epistēmē, o pensamento racional tem um comportamento antitrágico, visto que a tragédia sempre foi o sofrimento da τυχή, algo que excede o domínio das regras. Florescendo na cultura helênica do séc. VII a.C., o espírito trágico foi condenado pela sabedoria de Sócrates, de acordo com Platão. O pensamento racional, que Sócrates descreveu a Protágoras como uma medida absoluta com base no prazer, terminou por derrotar a proposta de técnica do sofista, que consistia no ensino da justiça. Não foi por conta de sua técnica que o grande sofista havia sido desafiado, mas por sua inabilidade em apreender a técnica que governa todas as technai. Não se deve confundir tal ciência baseada no prazer com a busca de desejo e inspiração dionisíacos, mas antes, de ordem e medida apolíneas.
Esse ceticismo do pensamento racional quanto ao desejo corporal já havia sido anunciado desde o início do diálogo platônico. Lembremos: um amigo anônimo havia feito galhofa da perseguição de Sócrates a Alcibíades, insinuando sua similaridade com um cão que caça sua presa (Nussbaum, 2001, p. 92). Sócrates, no entanto, admite seu desejo por Alcibíades e, ao mesmo tempo, demonstra que havia algo mais importante que tal sedução: “Mas vou contar-te um fato singular; é que, estando ele presente, não lhe prestei a mínima atenção; por vezes, cheguei mesmo a esquecer-me dele” (Platão, 2002, 309b[9]). Em favor de Protágoras e seu saber, Sócrates conseguiu manter Alcibíades longe de seus pensamentos.
A ciência do prazer é uma ciência do planejamento e da previsão. Ela recusa o prazer imediato, tendo em vista o sofrimento a longo prazo; e ela aceita a dor imediata visando consequências benéficas futuras. O bem é o prazer a longo prazo; o mal é o sofrimento a longo prazo. A ciência da medição permitirá evitar o erro causado pela fraqueza da vontade e pela ignorância. Como escreve Nussbaum:
O autor de Sobre a medicina antiga reconhecia […] que a ausência de medida quantitativa condenava sua arte à falta de precisão e, portanto, ao erro. Ele ainda podia reivindicar o estatuto de technē à sua arte. Alguns anos depois, contudo, passou-se a se exigir que toda technē, para ser considerada technē, deva lidar com numeração e mensuração. A meta comum de toda technē e de toda epistēmē, na medida em que é technē, é a de “distinguir o um, o dois e o três… Em suma, a ciência do número e do cálculo. Ou não acontece que toda arte [technē] e ciência [epistēmē] forçosamente fazem uso deles?”[10] É Platão, claro, o autor dessas palavras; o texto é o livro VII de A república. (Nussbaum, 2001, p. 107-108).
A medição que traz consigo a tendência ao absoluto constitui uma nova forma de τυχή, conceito que a razão buscava rejeitar. Eis o conflito entre técnica e natureza: controlar a fim de se tornar melhor, como se faz na ciência da medicina. Howard Caygill evidenciou como os artistas não foram os únicos a serem expulsos da cidade; também os médicos o foram, já que possuíam a technē da trapaça, como nos mitos de Asclépio. O deus da cura havia sido atingido por um raio quando estava para romper a necessidade natural com o intuito de curar um homem morto (Caygill, 1996). Só se permitia retorno dos médicos à cidade, contudo, na condição de guardiões, e isso precisamente por sua capacidade de intervir na necessidade e na contingência, ou, nas palavras de Caygill, por sua “tarefa de legislar” (ibid.). Isso fica mais claro em Leis, diálogo no qual Platão justapõe a technē, a contingência e a necessidade: “Alguns afirmam que todas as coisas que estão vindo à existência, que vieram ou que virão à existência o fazem em parte graças à natureza [phusei], em parte graças à arte [technē ] e em partes graças ao acaso [tuchē]” (Platão, 2010a, 888e),
Tal separação entre as leis naturais, a contingência que delas escapa e a técnica que sobre elas legisla explicita uma distinção entre o contingente e o acidental na natureza e na técnica. A técnica, visando superar a contingência, também produz acidentes. O progresso da contingência técnica é impulsionado por seus próprios avanços. O fogo, na história contada por Protágoras no diálogo, é o que melhor demonstra isso. Entregue à humanidade por Prometeu, o fogo logo desdobra a natureza dual da técnica em sua relação com a contingência. Fornecendo calor e servindo de elemento culinário essencial, o fogo estabiliza o lar ao permitir que se resista às mudanças súbitas de clima e aos ataques dos animais. Dessa forma, ele compensa o acidente causado por Epimeteu quando o gigante, famoso por suas previsões, distribuíra habilidades para todos os animais, menos para os humanos, que se viram “nu[s], sem calçados, nem coberturas, nem armas” (Platão, 2002, 321c). Como consequência do que Bernard Stiegler denominou um “defeito” [default], o “défaut qu’il faut”[11] ou o defeito de origem (Stiegler, 2004), o fogo se torna uma necessidade do ser. Transformado e estabilizado pela cultura, o acidente é a origem — assim como a possibilidade das necessidades.
Contudo, o fogo também é causa de acidentes, podendo com facilidade fazer de uma construção firme, um monte de cinzas. Isso não fica evidente nesse diálogo de Platão, pois ele tem como objetivo último exibir a superioridade de Sócrates sobre Protágoras, pondo à prova a confusa interpretação que o sofista dá aos ensinamentos do filósofo sobre justiça, bem como desafiando a própria convicção de Sócrates sobre os meios de valorar e mensurar a finalidade da justiça. Quanto a isso, Sócrates é fiel a Prometeu, tendo em vista suas habilidades de previsão e planejamento:
Naquela fábula [é evidente que] agrado-me muito mais de Prometeu do que de Epimeteu. E porque decidi tomá-lo como modelo e prometer seguir a vida inteira a sua previsão [com uma presciência prometeica], é que me dedico a essas indagações; se for do teu agrado, conforme declarei no começo, com muito gosto voltarei a examinar contigo essas questões. (Platão, 2002, 361c-d).
A resistência à contingência marca o início da história da filosofia ocidental. É aqui também que a interpretação que Bernard Stiegler (2009, p. 97-110) faz da filosofia europeia como tendo seu início por acidente, e não por essência, faz sentido. “Para os europeus”, escreve ele, “a necessidade da filosofia é tecno-lógica [techno-logical]. Isto quer dizer: hipomnésica. E é acidental precisamente nesse sentido” (ibid. p. 99). Desdobremos essa colocação, explicitando sua relevância para a investigação presente. O termo “acidental” possui aqui muitos sentidos. Primeiramente, esse início é acidental porque Epimeteu esqueceu dos seres humanos; é um acidente que constitui a origem, uma falta. Em segundo lugar, Stiegler não considera a technē uma parte da filosofia europeia, mas sim sua questão fundante. Eis o ambicioso projeto de Stiegler: reformular a história da filosofia europeia com base no conceito de “hipomnese” — insuficiência de memória, ou seja, esquecimento.
Se a anamnese é central na filosofia da verdade de Platão, é porque necessita de um suporte material que, como tal, é também uma técnica de hipomnese, como quando, no Mênon, Platão mostra a maneira pela qual Sócrates instrui um garoto escravizado a resolver problemas geométricos através de desenhos na areia e o traçado de linhas. Visto que a technē é um meio de exteriorização de memórias, nota-se que, quando se exterioriza a forma de um objeto técnico (a geometria, no caso de Mênon como no de Husserl), a anamnese passa a estar liberada da dependência completa que antes possuía com a mente humana, tornando-se também uma fonte de hipomnese.
Ao seguirmos essa leitura de Bernard Stiegler, percebemos que a história da filosofia europeia faz do acidente tecno-lógico, uma necessidade. Isso ecoa os dois sentidos de acidente que explicamos anteriormente: por um lado, da revelação da substância através dos acidentes, quando os acidentes se tornam necessários; por outro lado, da superação do irracional através da razão.
É preciso estabelecer um nexo entre os tratamentos do conceito de acidente por parte de Nussbaum e Stiegler. Ainda que eles pertençam a diferentes tradições, é evidente que eles se referem a algo em comum.
Para Nussbaum, a razão tem a função de eliminar a fragilidade causada por acontecimentos contingentes, o que não é possível sem a técnica, que também é razão — técnica essa que também não é possível sem um suporte material, como no exemplo do Mênon supracitado, no qual se introduz uma conexão entre razão e geometria através de seu objeto comum, a geometria. Já para Stiegler, a geometria é uma ciência apodítica (ou uma idealização) e é por conta de sua natureza apodítica que a razão alcança nela sua realização absoluta [absoluteness].
Stiegler também põe em questão a globalização tecnológica da filosofia europeia, que, para ele, é o único futuro possível: “A Europa é convocada a um devir global (a existir em escala global) com sua filosofia — caso contrário, morrerá —, e ela só pode conseguir isso se ela se ‘deseuropeizar’” (Stiegler, 2009, p. 99). Stiegler soa aqui algo similar a Heidegger, visto que aquele concebe um “sistema” que está prestes a se encerrar, assim como este concebia o acabamento da metafísica ocidental com a época da cibernética. No entanto, é preciso notar que, enquanto Heidegger propunha um retorno à origem, o que Stiegler sugere é uma “deseuropeização”.
3 Do contingente ao automático
Ao aprofundar sua investigação sobre a natureza da contingência, Aristóteles lança mão da distinção entre dois tipos de acaso [chance] ou de causa: τύχη (tuché) e τὸ αὐτόματον (to automaton).[12] Τύχη, como sabemos, designa tanto “contingência” quanto “sorte”; já τὸ αὐτόματον é normalmente traduzido por “espontaneidade”. No entanto, τὸ αὐτόματον não remete apenas à espontaneidade, mas também ao automático, no sentido de uma possibilidade já inerente ao próprio ser [it is already within the possibility of being itself]; por exemplo, quando se lança um dado, o lançamento inclui desde sempre seis possibilidades.
O τὸ αὐτόματον equivale a algo que pode ser pensado — mais precisamente, algo que pode ser determinado pelo pensamento. Por outro lado, a τύχη não pode ser determinada; ela é necessariamente indeterminada. Aristóteles fornece o exemplo de um homem que, em dado local, acaba por encontrar seu devedor coletando dinheiro de outras pessoas, conseguindo, por isso, o pagamento da dívida, ainda que ele não tenha ido ao local com o propósito de efetuá-la. Esse com-o-propósito-disso [for-something] ou com-o-propósito-daquilo [for-something-else] é sempre algo já do domínio do automático. Por isso, Aristóteles diz que “tudo o que resulta da sorte, resulta automaticamente [an automatic outcome], mas nem tudo o que equivale a esse último modo resulta da sorte” (Aristóteles, 1992, 197b[13]).
Sorte, aqui, requer escolha; ela é subjetiva e tem a ver com a razão. Em Física, Livro II, cap. 6, Aristóteles afirma que “nada feito por um objeto inanimado, besta ou criança resulta de sorte, já que tais coisas não são capazes de escolher” (1992, 197b[14]), e prossegue: “o automático, por outro lado, estende-se aos animais e a outros homens e a muitos objetos inanimados” (ibid.[15]). Aristóteles fornece outro exemplo, no qual um cavalo se salva ao escapar por sorte [luckily] do perigo. Mas não foi realmente sorte o tipo de acaso que acometeu o cavalo para que sua vida fosse salva; foi um acaso de tipo automático.[16] O acidente tem, pois, mais relação com a razão que com a natureza. Há uma causalidade automática que resulta dos casos possíveis, como, por exemplo, na definição de cavalo e de tripé.[17] A sorte nunca é o desenlace de um caso ao invés de outro, como no lançar de dados. Este não tem relação com a sorte; trata-se de algo da ordem do espontâneo e do automático.
Hoje em dia, o contingente e o automático convergiram, pois o automático produz acidentes que tomamos por contingência. Aliás, poderíamos dizer que a sorte se encaminha na direção do automático. Graças ao efeito da automação, o automático é, ao mesmo tempo, espontâneo, ou seja, em tempo real. O automático da segunda natureza produz uma nova forma de contingência que não se opõe à contingência natural, mas que, antes, a contém, como se pode observar no exemplo de Fukushima, de 2011. O maremoto não é de fato a causa da catástrofe, mas sim parte da causa. Isso quer dizer que a contingência da lei natural (que inclui tanto o desastre natural quanto a avaria material) não consegue explicar sozinho a catástrofe, já que a natureza (o mar) está integrada ao sistema tecnológico como um agente de resfriamento para a usina nuclear.[18]
Isso pode ser mais bem apreendido na forma de uma história tecno-lógica da metafísica. O acabamento da metafísica, de acordo com Heidegger, implica que não há mais um além; na verdade, tudo está presente. O que está presente é visto como passível de análise e controle, e é aí que se pode encontrar o início da cibernética. Será preciso voltar a isso mais tarde para explicar que, na cibernética, a contingência não mais equivale nem à definição de Aristóteles, nem ao sentido de contingência da metafísica tradicional. A premissa cibernética do “controle” encontra sua expressão plena no título do livro de Norbert Wiener — Cybernetics: Or Control and Communication in the Animal and the Machine [“Cibernética: ou Controle e comunicação no animal e na máquina”] —, bem como em outros autores que com ele escreviam. O paradigma do controle dos primórdios da cibernética se caracterizava pela matematização de diferentes mecanismos: mecânicos, biológicos, sociais, econômicos e organizacionais. Podemos datar este mesmo esforço entre a characteristica universalis de Leibniz e o engenho analítico de Charles Babbage, chegando à máquina de Turing, história que já nos é familiar. A matematização atingiu sua forma mais materializada com os algoritmos. Compreendido enquanto processo ou operação, o algoritmo se resume a expressar o pensamento abstrato, adquirindo autonomia quase plena [quasi-autonomy] quando concretizado nas máquinas. Esse é um dos modos de existência do algoritmo em sua forma mais “objetificada”. Um algoritmo se expressa completamente em suas funcionalidades quando se põe em operação. Como, então, a contingência algorítmica se difere da contingência das leis naturais?
Sobre isso, podemos observar dois aspectos. Primeiramente, a contingência das leis da natureza sempre provém de fora, o que significa que o sistema não pode ser totalizado. Em seu livro, De la contingence des lois de la nature, Émile Boutroux expôs os limites do conceito de necessidade. O autor rejeita as duas necessidades de direito (analítica e sintética) e a necessidade de fato, evidenciando que, na verdade, elas são abertas à contingência. A necessidade analítica precisa sempre reinventar um novo postulado. Boutroux mostra, por exemplo, que quando se passa da lógica à matemática, das noções de classe e gênero às de quantidade e espaço, é preciso um novo postulado de continuidade a fim de ser possível vincular o que não é contínuo. Por outro lado, a necessidade sintética finge ser a priori, ainda que sempre requeira a experiência empírica. Já a necessidade de fato, como Hume já havia demonstrado, só se mantém através do hábito.
Esse ceticismo pode ser estendido às sólidas leis da física. Através da lei de Mariotte, por exemplo, quando consideramos um recipiente de gás, percebemos que o produto da pressão com seu volume é uma constante: PV=C. Porém, só podemos derivar essa constante da experiência, o que faz da constante, algo de contingente. Boutroux (1921) buscou mostrar que toda necessidade sempre terá de abrir espaço a, ou mesmo exigir, algo externo para que se firme como lei [for its law to be completed]. Já para um sistema técnico, certa quantia de contingência é sempre presumida e entendida como necessária. Como na hipótese do melhor-dos-mundos de Leibniz — o mundo criado por Deus compreendido como um sistema técnico desenvolvido por um designer —, os sistemas técnicos são implementados de modo a antecipar a contingência, o que significa que eles são só relativamente contingentes.
Espera-se que haja acidentes, sendo até mesmo integrados na evolução do sistema técnico. Em outras palavras, não há uma lei que governe a necessidade da causação entre o pensamento algorítmico e sua atualização nas operações da máquina; não há uma causação necessária entre o arbítrio humano, enquanto intervenção, e a automação das máquinas. Falhas e erros não são apenas aceitos como uma necessidade para o progresso tecnológico, mas passam a ser imanentes à sua operação e à sua manutenção. A catástrofe algorítmica se torna cotidiana. Temos um exemplo disso no design da computação em nuvens da Amazon, conhecido como “design for failure”. Como explica um engenheiro da Amazon em um artigo:
Em especial, presuma que seu hardware falhará. Presuma que apagões irão ocorrer. Presuma que algum desastre atingirá seu aplicativo. Presuma que, algum dia, você será esmagado pelo peso de mais do que o número esperado de solicitações por segundo. Presuma que, com o tempo, o software de seu aplicativo também irá falhar. Sendo pessimista, você acaba imaginando estratégias de recuperação durante o processo de design, o que ajuda a projetar um sistema, no geral, melhor. (Varia, 2011).
Uma realização técnica como tal envolve a redefinição da responsabilidade pelo componente e pela estrutura de dado aplicativo (que se permite menos confiável do que no modelo tradicional), junto ao uso de [bancos de dados não relacionais] NoSQL e ferramentas de gerenciamento de nuvem (Reese, 2011) — não é, contudo, nossa intenção examinar esse tipo de detalhes técnicos aqui. Sob essa percepção, o que é contingente não é contingente do mesmo modo que nos desastres naturais, como são tradicionalmente concebidos, mas agora ele é necessário na segunda natureza constituída por “acidentes”. Engenheiros e designers têm de pressupor que é normal haver uma catástrofe. Se a catástrofe é assim antecipada e se transforma em princípio operatório, ela não mais desempenha o papel que possuía com relação às leis da natureza.
No entanto, um tal uso da antecipação para superar catástrofes nunca tem termo, e, de fato, os acidentes se expressam em um segundo nível de contingência produzido pelas próprias operações das máquinas. Aqui também jaz a segunda diferença entre a contingência algorítmica e a contingência das leis naturais, algo que gostaríamos de abordar na próxima seção. Isso não significa que o próprio algoritmo não seja perfeito, mas que a complexidade que ele produz sobrecarrega a simplicidade e a clareza do pensamento algorítmico. Essa necessidade da contingência assume um aspecto diverso da necessidade da tragédia na natureza, a qual pressupõe deuses supremos ou uma exterioridade ao domínio empírico.
Se nos atentarmos aos primórdios da história matemática do algoritmo, veremos que, em geral, ela se refere ao problema de como desenvolver provas matemáticas de modo sistemático e lógico. Sob um ponto de vista puramente matemático, um algoritmo sempre enfrenta a questão da incomputabilidade; de fato, é assim que ele se manifesta na maior parte das vezes, como propõe o matemático Gregory Chaitin (1999). O exterior, ou o complemento [supplement], partilha de uma lógica similar à da desconstrução. Porém, quando, na passagem de Gödel a Turing, o algoritmo se destaca da mente do matemático, nota-se que a questão da incomputabilidade deixa de ser a questão principal relativa ao algoritmo, cedendo espaço à questão da eficiência ou da confiabilidade.[19] É preciso distinguir entre a máquina de Turing, o conceito de recursividade geral de Gödel e o cálculo lambda de Church, ainda que, ao cabo, eles desempenhem matematicamente a mesma função. A máquina de Turing ultrapassou a recursividade conceitual através da exteriorização da razão em termos concretos e materiais. Depois da máquina de Turing e da proliferação dos computadores pessoais, as provas matemáticas continuam sendo um importante ramo da ciência da computação, mas os estudos aplicados em ciência da computação não prestam a elas muita atenção, concentrando-se mais na funcionalidade e na performance dos algoritmos. A partir daí, algoritmos passam a estar abertos à contingência, que ocupa outra ordem de magnitude.
Se formos continuar falando de algoritmos em termos de automação, poderíamos talvez distinguir entre dois tipos de automatização: a automatização de instruções (ou por repetição pura) e a automatização por recursões. O que é recursividade? De forma simplificada, trata-se de uma função que chama a si mesma e se interrompe no momento em que encontra uma restrição [constraint]. Esse tipo de pensamento abstrato deve, contudo, ser compreendido matematicamente. Podemos traduzir isso nos seguintes termos: recursão é como um número pode ser computado em uma função que chama a si mesma até o momento em que atinge um estado de parada. Consideremos como exemplo a computação do número de Fibonacci (1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21…): em um passo recursivo, a função chama a si mesma e entra em uma operação em “espiral” até que atinge um estado de parada quando, por exemplo, o valor da variável se torna 0.
long fibonacci(long number) {
if ((number == 0) || (number == 1))
return number;
else
// recursion step
return fibonacci(number - 1) + fibonacci(number - 2);
}
A comparação usual entre um algoritmo e uma receita é quase incorreta, pois ignora a distinção entre instruções e recursões. Sem dúvidas, um conjunto de instruções é um tipo de algoritmo com o mais baixo grau de perfeição, isto é, com a mais baixa inteligência. Instruções tais como uma receita são fundamentalmente instrumentais e não reflexivas; elas permitem fazer automações simples por repetição. Se definirmos instruções como esquematizações sequenciais passo-a-passo e as compreendermos como um polo do espectro algorítmico, teremos no outro polo operações recursivas e não lineares. Esse espectro contém diferentes noções de algoritmo, de acordo com diferentes funcionalidades específicas. Vista a partir de sua fundação matemática, a evolução da máquina inteligente pode ser considerada um progresso da funcionalidade linear para a funcionalidade recursiva.
Podemos ir além e dizer que mesmo um procedimento sequencial é também recursivo, dado que a máquina de Turing é ela própria recursiva. Há, contudo, um outro tipo de recursão, baseada agora na programabilidade da máquina de Turing. Se a recursividade do computador (p.ex. de baixo nível) guarda correlação com a incomputabilidade ou com a contingência da primeira natureza, a recursividade de programas de nível mais alto remete, então, à contingência da segunda natureza. No nosso contexto, tomamos algoritmo como automação por recursão. Aqui, recursão implica que o objeto a ser computado pode ser compreendido em termos de repetições de uma função condicionada por um valor de parada. Por exemplo, um número natural pode ser entendido enquanto a operação de uma função.[20] Para superar a τύχη na natureza, a technē produz uma contingência da segunda natureza. A cultura algorítmica é a culminação dessa contingência através da padronização e da globalização das razões exteriorizadas.
Para elucidar este argumento, apresentarei dois casos, buscando analisar as catástrofes algorítmicas em três dimensões temporais: 1) aceleração; 2) atraso (delay); e 3) imanência. Pode-se recordar o famoso artigo de jornal que a Financial Times publicou após a crise financeira[21], intitulado “Markets: Rage Against the Machine” (Mackenzie; Massoudi; Foley, 2012), culpabilizando as máquinas pela crise. Essa culpabilização das máquinas permanece na indústria financeira após as “flash crashes” da Bolsa de Ações de Nova Iorque, em 2010, e da Bolsa de Ações de Singapura, em 2013, ambas causadas por especulação algorítmica. A especulação algorítmica pode ser definida simplesmente como o uso de algoritmos para executar automaticamente comandos de compra. Ao lucrar com compra e venda de ações a curto prazo, prática também conhecida como negociação de alta frequência [high-frequency trading], o mercado pode explodir em virtude do efeito “caixa preta” — nos casos mencionados há pouco, isso representa a evaporação de entre US$4,1 bilhões e US$6,9 bilhões em questão de segundos.
A rapidez da automação algorítmica também cria um retardamento que acaba por limitar a intervenção de agentes humanos. Em 2012, uma companhia financeira de tamanho médio, a Knight Capital, demorou 45 minutos para descobrir que um de seus programas estava rodando quando deveria estar desligado. Isso custou, a cada minuto, quase US$10 milhões. O mercado opera com base em velocidade, algo que depende do raciocínio especulativo automático do software. Quando as entradas (input) no software se tornam aleatórias, e quando muitos softwares diferentes participam da especulação, obtém-se resultados inesperados. A operação de um algoritmo, estruturada temporariamente de acordo com expressões lógicas, pode 1) falhar em processar a entrada ou 2) falhar em garantir a saída [output]; por isso, vemos um livro de 10 euros custar de repente milhares de euros na Amazon, momento em que o algoritmo busca o maior preço possível em vez de considerá-lo absurdo. Como observou o jornalista financeiro Nick Baumann (2013), as ações da firma de consultoria Accenture foram cotadas tanto em US$0,01 quanto em US$30 em um mesmo segundo durante a flash crash de 2010. As especulações mútuas das máquinas, que se valoram entre si de acordo com os limites de seus próprios dados, não conseguiram reconhecer seus próprios desvarios.
Em sua fase madura, Norbert Wiener já havia antecipado esse cenário. Em um artigo de título “Some Moral and Technical Consequences of Automation”, publicado em maio de 1960, Wiener criticou a compreensão leiga da automação, e em particular, “a pressuposição de que máquinas não podem possuir qualquer grau de originalidade” e a crença de que “sua operação está sempre aberta à intervenção humana e à mudança de diretrizes” (1960, p. 1355). A automação das máquinas será muito mais veloz que a inteligência humana, o que levará, em termos de operação, a uma defasagem temporal. Tal defasagem pode ter efeitos desastrosos, dado que o ser humano chega sempre muito tarde e as máquinas não pararão por si próprias. Em vista de nossa própria inabilidade em compreender a causalidade completamente, Wiener alerta que mesmo
se nós simplesmente aderirmos ao credo dos cientistas de que ter um conhecimento incompleto do mundo e de nós mesmos é melhor que não ter conhecimento nenhum, de forma alguma poderemos sempre justificar nossa pressuposição inocente de que quanto mais rápido nós nos adiantarmos no emprego das novas formas de ação [powers for action] disponíveis, melhor será. (Wiener, 1960, p. 1358).
5 Catástrofe e estética especulativa
Heidegger (1972) estava sendo bem claro quando afirmou que a cibernética significava o fim da metafísica ocidental. Esse término implica que a habilidade da razão para superar a contingência criou uma transformação completa na qual o pensar não pode mais estar desatrelado dos acidentes (predicados) do techno-logos. O techno-logos se ocupa com os entes, não mais com a questão do Ser. Por isso, o techno-logos define o fim da metafísica, já que ele não consegue ultrapassar os entes em direção ao Ser. Se o Ser está presente no pensamento trágico, tal como Nietzsche afirma, segundo a leitura proposta por Heidegger, então esse Ser não passa de uma totalidade mantida coesa pela contingência.
A contingência delimita o conhecimento dos entes e revela a profundidade daquilo que ainda não está presente e que não pode estar presente. Esse “fora” serve como uma nova estratégia de reorientação; como afirma Blumenberg, “com o início do período moderno [Neuzeit], o ser humano busca uma fuga da conquista através de uma consciência do mundo e de uma autoconsciência da contingência” (1959, p. 1794). A razão socrática, projetada no teatro antitrágico de Platão, é o início do fim da antiga tragédia grega. Na era da matematização, a contingência equivale à causalidade, lógica e tecnicamente deduzível. A introdução da contingência algorítmica através de uma releitura de Platão, Aristóteles, Leibniz, Boutroux, Blumenberg, que evidencia a existência de uma ordem superior através da causa finalis, não pode ser completamente capturada pela lei da natureza. Como escreve Jean de La Harpe:
Ela [a contingência] marca os limites de nossos conhecimentos, a necessidade na qual somos capazes de demonstrar o real através de um exame de suas peças [rouages]. Provavelmente — e aqui, a probabilidade equivale praticamente à certeza — nós nunca seremos capazes de reconstruir este relógio composto de infinitas engrenagens, de superpor ao mundo do senso comum, repleto de contradições, um universo científico ao mesmo tempo real e inteligível. Além disso, a contingência durará muito mais que a própria ciência e que a humanidade, dependendo da realidade para que seja assimilada e compreendida; mas este é um limite que recua indefinidamente e tende à forma ideal do determinismo necessário. (La Harpe, 1922, p. 121).[22]
Em contraste com a fala de Jean de La Harpe, Quentin Meillassoux esboça com elegância um término ao papel da contingência na metafísica tradicional. Gostaria de lidar com a obra de Meillassoux aqui porque, primeiramente, sua especulação sobre a contingência absoluta caracteriza a estética da catástrofe algorítmica, o que significa que a contingência não pode ser tomada como excepcional, mas como inevitável, o que fornece a ela certa normatividade; mas, em segundo lugar, porque sua análise da contingência através da matemática acaba com qualquer justificativa racionalista pela necessidade das leis naturais. Por conta de sua relação com a natureza ao invés da relação com sistemas técnicos, a contingência de Meillassoux não pode ser enquadrada na categoria de contingência algorítmica com a qual lidamos aqui. No entanto, certas questões e formulações das discussões de Meillassoux ressoam com e fornecem a oportunidade de refletir melhor sobre a contingência algorítmica. Nas passagens seguintes, abordarei vários conceitos centrais da discussão de Meillassoux, ao mesmo tempo em que os situarei em nossa própria investigação.
Meillassoux começa com uma crítica ao correlacionismo, que, para ele, produz a desabsolutização da metafísica. O projeto de retornar à questão do absoluto ou do infinito busca libertar a razão das estruturas às quais ela se acorrentou, deslocando-se a um novo campo que não mais submeta as causalidades aos mitos e à superstição, mas que forneça uma nova fundação para a ciência. Até onde vai o alcance da razão? Ela consegue chegar a uma temporalidade na qual ela mesma cesse de existir, como por exemplo na ancestralidade, em que a humanidade ainda está por aparecer? Meillassoux busca compreender a ancestralidade enquanto limite do correlacionismo e de seu produto — a ciência moderna. Ou seja: como é possível pensar a ancestralidade na qual ainda não havia qualquer ser humano? Em outros termos, se não houvesse nenhum humano, poderíamos concluir a inexistência da experiência de objetos; contudo, de acordo com o correlacionismo, os objetos não fariam assim qualquer sentido para nós. Um argumento similar pode ser aplicado aos algoritmos — razões exteriorizadas a partir das quais descobrimos cada vez mais que a razão humana se torna cada vez menos capaz de compreender o sistema que ela própria terminou por construir.
A desabsolutização da metafísica tem de conceder que há algo (por exemplo, o desconhecido) que a razão não consegue apreender [include], mas que, apesar disso, se torna a proteção da própria razão. É exatamente em torno da questão do arqui-fato [archi-fact] (por exemplo, a facticidade da correlação) que Meillassoux distingue diferentes variantes do correlacionismo, como os de Fichte, Schelling, Hegel, até mesmo Husserl. Os subjetivistas (Meillassoux prefere “subjetivista” à “idealista”) tentam abordar o arqui-fato pela imposição do poder do pensamento; é desse modo que o pensamento pode penetrar no domínio do desconhecido. Para Meillassoux, o absoluto tem de ser postulado fora dos pensamentos, fora do alcance da mente, fora de toda causalidade. Em contraste com o que ele denomina a “facticidade de correlação” da tradição correlacionista, Meillassoux pretende propor o que ele chama de “princípio da factualidade”, ou seja, a identificação de uma realidade ou material independente do pensamento. Por exemplo, não podemos dizer se Deus existe ou não, pois ele pode ou não existir; Ele poderia aparecer na sua frente amanhã de manhã, quando você acordasse; ou pode ser que, ao longo de toda a finitude de sua vida, você nunca O veja. Cito Meillassoux:
Chamaremos de “contingente” toda entidade, coisa ou evento que sei que poderia ser ou ter sido de outra forma da qual é. Eu sei que esse vaso poderia não ter existido, ou ter existido de outra forma — eu sei que a queda do vaso poderia não ter acontecido. (Meillassoux, 2010).[23]
Tomar distância do correlacionismo é uma forma de abrir via para um novo tipo de investigação acerca da existência do possível.
Poder-se-ia compreender a missão da razão especulativa através do novo tratamento que Meillassoux dá à facticidade ao propor “fazer da facticidade não mais o índice de um limite do pensamento — de sua incapacidade em descobrir a razão última das coisas —, mas índice de uma capacidade do pensamento em descobrir a absoluta irrazão de todas as coisas” (2010).[24] Meillassoux pretende produzir uma nova ontologia, na qual se encontra uma nova categoria ou entidade chamada de “sobrecaos” (surchaos), que ele busca distinguir da teoria do caos na matemática. O sobrecaos é “um absoluto” que “escapa à desabsolutização do correlacionismo”. Esse sobrecaos não é simplesmente um caos sem qualquer possibilidade de produzir ordem ou lei. Sendo interior a um ser inconsistente absoluto, ele quase não possui qualquer contingência, pois, como ele anota,
Um ser inconsistente — universalmente contraditório — é impossível porque tal ser não mais poderia ser contingente. Pois a única coisa que um ser inconsistente não pode fazer é mudar, tornar-se outro, dado que ser contraditório já é ser aquilo que ele não é. (Meillassoux, 2010)[25].
A necessidade da contingência não equivale a uma proposta de retorno ao caos (como ocorre em algumas interpretações equivocadas do pós-moderno), mas à afirmação do caráter absoluto da contingência [absoluteness of contingency].
Em After Finitude, Meillassoux (2008, p. 89) se volta ao questionamento de Hume quanto à necessidade da causalidade e o contrapõe à tentativa de Kant de resolver o problema humeano, já que Kant utiliza a faculdade da representação em contraposição à contingência das leis naturais. Em sua Crítica da razão pura, Kant não abordou de fato a razão pura especulativa; ao invés disso, ele só pôde estabelecer a razão pura porque passou ao largo do Schwärmerei [fanatismo] da especulação. O retorno à questão de Hume sobre a necessidade da causalidade ser apenas habitual e, por isso, vulnerável à contingência, equivale também a um retorno à razão especulativa.
Contudo, a introdução da contingência absoluta também precisa lidar com a questão: por que há estabilidade ao invés de caos total? Meillassoux tenta encontrar a resposta no conceito de transfinito de Cantor, conceito que, para o filósofo, permite distinguir a contingência e o acaso. O conceito de transfinito serve de mediação entre o infinito e seu além (que também é ele próprio infinito), pois ele é maior que qualquer número finito, mas menor que um número absolutamente infinito. Expresso em linguagem filosófica, poderíamos compreender o transfinito de Cantor como: “a totalidade (quantificável) do pensável no impensável” (ibid. p. 104). De acordo com Meillassoux, isso não significa nem que a axiomática não totalizável seja a única possível, nem que o possível seja sempre não totalizável; há, no entanto, sempre mais que uma axiomática (ibid. p. 105). De forma retrospectiva, o transfinito só é apreensível quando designado por símbolos como o omega ou o aleph, ou seja, é preciso assumir certa tecnicidade e sistematicidade, distanciando-se daquilo que diz respeito tão só a leis naturais e se direcionando ao âmbito dos sistemas técnicos. A partir daí, a questão da contingência algorítmica entra em jogo.
Se seguirmos a compreensão heideggeriana de metafísica, bem como o anúncio feito por Heidegger de Nietzsche como o último metafísico, concluímos que a metafísica atingiu sua completude, tendo em vista que o Ser não pode mais ser compreendido na totalidade. Na era digital, os acidentes, nos dois sentidos do termo, vêm à tona e, para além, o desconhecido, como indicado pela contingência, também vem à superfície. A necessidade da contingência no pensamento de Meillassoux ultrapassa os esforços de Boutroux, rebaixando a contingência a um significante de suprema ordem (portando o nome de Ser ou Deus) da imanência. Essa referência a Heidegger não aponta para uma ânsia em construir uma nova metafísica, mas, em vista da superação do fundamento e da forma, equivale, como diz Meillassoux, ao “levantar [de] questões sobre ou em torno da metafísica” (2008, p. 109).[26] O limite do conhecimento ou da razão humana não mais pode ser aperfeiçoado através de pesquisa científica baseada em causalidade; é preciso aceitar que exista, ou que seja possível, algum conhecimento fora do correlacionismo. Se me for permitido seguir a Heidegger em seu diagnóstico de Nietzsche como o último dos metafísicos e a cibernética como causa do fim da metafísica ocidental, também se poderia concluir que Meillassoux deu acabamento à razão especulativa, dado que a ocorrência de catástrofes se tornou um moto perpétuo: o que ocorre não mais é um “acidente”, mas algo que apenas acontece; as catástrofes são acompanhadas e normalizadas pela estética especulativa.
Para sintetizar sem, contudo, concluir, este artigo teve como objetivo introduzir a noção de catástrofe algorítmica como relativa à história do conceito metafísico de contingência. Como Nussbaum evidenciou, a τέχνη é a tentativa da razão de superar a contingência. No entanto, ela acaba por criar contingência da segunda natureza. Em conjunto com a exteriorização da razão, passando pelas eras mecânica e termodinâmica, e agora, digital, testemunhamos a emergência da catástrofe algorítmica, que deve ser distinguida dos acidentes industriais e militares. A causalidade de um acidente industrial pode ser traçada e evitada, mas o controle da catástrofe algorítmica se coloca cada vez mais para além da capacidade humana. Contudo, também é autoevidente que a industrialização tende em grande medida à implementação da automatização algorítmica. Por conta da automatização da razão, a distinção entre tuché e automaton levantada por Aristóteles se transformou. Em sua relação com a contingência, a dupla natureza da técnica (tanto de superar quanto de gerar contingência) pode ser compreendida como um phármakon, remédio e veneno ao mesmo tempo (cf. Derrida, 1993; Stiegler, 2011).
Poder-se-ia levar a catástrofe algorítmica para além dos algoritmos computacionais, como, por exemplo, na pesquisa em engenharia genética, no desenvolvimento militar, nas nanotecnologias etc. Contudo, este artigo só pode se concentrar na matematização e atualização dos algoritmos em máquinas. A catástrofe algorítmica também tem ressonâncias na pesquisa recente sobre a razão especulativa, especialmente no que Meillassoux propõe como a absolutização da contingência, proposta que reinventa o conceito metafísico de contingência como necessidade ao mesmo tempo em que renuncia a abordagem subjetivista do conhecimento. A celebração da razão especulativa parece equivaler a uma apropriação da estética catastrófica de nosso tempo, no qual o desconhecido e a caixa preta se tornaram as únicas explicações possíveis.
Em maio de 2014, após o lançamento do filme Transcendence, Stephen Hawking, renomado professor de Física, e três outros professores universitários — Stuart Russell, Max Tegmark e Frank Wilczek — publicaram um artigo no jornal britânico The Independent no qual questionavam o sucesso da IA e problemas de longo prazo a ela associados. Os professores confirmaram o benefício da IA em diferentes domínios, mas também alertaram que “esse poderia ser um erro e, potencialmente, o pior erro da história”. O amadurecimento da teoria da IA e os velozes desenvolvimentos impulsionados por investimentos industriais e militares deixaram qualquer reflexão para trás — e essa sempre chega muito tarde. O futuro do desenvolvimento da IA é desconhecido, mas agora tem de ser posto em questão:
É possível imaginar essa tecnologia sendo mais esperta [outsmarting] que os mercados financeiros, mais inovadora [out-inventing] que pesquisadores humanos, mais manipuladora [out-manipulating] que líderes humanos e desenvolvendo armamento que nós não podemos sequer compreender. Se o impacto da IA depende, a curto prazo, de quem a controla, o impacto a longo prazo depende da questão de se é sequer possível controlá-la. (Hawking et al., 2014).
Essa advertência ecoa aquilo que o ensaio de Wiener dos anos 60 já discutia: seria ignorância julgar a catástrofe algorítmica como sendo apenas uma questão de ficção científica. As palavras dos físicos também nos remetem ao Livro III de A república de Platão, com os físicos retornando como guardiões da polis. Se esses guardiões devessem ser filósofos treinados de forma científica ou físicos treinados de forma filosófica não é uma questão de pouca monta, visto que aponta para um novo programa pedagógico e para uma nova concepção de responsabilidade. Para além do alcance deste artigo, repensar a responsabilidade, como propôs Virílio, é uma tarefa que, em larga medida, ainda falta ser discutida. Se esse artigo serve como uma crítica da catástrofe algorítmica e da razão especulativa, tal crítica só pode ser tomada em um sentido kantiano.[27]
Gostaria de agradecer a Katian Witchger e aos revisores [do periódico Parrhesia] por seus valiosos comentários.
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Contribuição de autoria
1 – Maurício Fernando Pitta
Pós-doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Londrina (PPGFIL/UEL), com financiamento CAPES/PDPG-POSDOC,
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR)
https://orcid.org/0000-0002-9642-4072 • mauriciopitta@hotmail.com
Contribuição: Tradutor
2 – José Fernandes Weber
Professor associado C no Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina (UEL)
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Doutorando em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste)
https://orcid.org/0000-0001-8402-7224 • jweber@uel.br
Contribuição: Revisor técnico
Como citar este artigo
PITTA, M. F; WEBER, J. F. Catástrofe algorítmica – A vingança da contingência, de Yuk Hui.. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 14, 2023. DOI 10.5902/2179378685093. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378685093. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
[1] N.T.: Tradução do texto “Algorithmic Catastrophe — The Revengence of Contingency”, do filósofo chinês Yuk Hui (2015), professor na City University of Hong Kong, criador dos conceitos de “tecnodiversidade” e “cosmotécnica” e autor de livros como The Question Concerning Technology in China (2016) e Recursivity and Contingency (2019). Recentemente foi publicada uma coletânea de textos seus traduzidos em português por Humberto do Amaral, Tecnodiversidade (2020), pela Ubu Editora. O presente artigo, cedido generosamente pelo autor para tradução sob licença CC BY-NC-ND 4.0, originalmente fazia parte de uma edição especial da revista Parrhesia dedicada ao filósofo francês Bernard Stiegler (in memoriam), antigo orientador de doutorado do autor e uma das peças centrais na composição deste texto.
[2] N.T.: O termo utilizado por Hui é “arrival”, que pode ser traduzido por “chegada”. Contudo, o autor parece jogar com o nome da exibição, “ce qui arrive”, expressão idiomática que se traduz como “o que acontece”, “o que ocorre” (por exemplo, “voilà ce qui arrive quand on vit dangereusement”, “eis o que acontece quando se vive perigosamente”). O termo “ocorrência” serve bem ao propósito de conectar, na tradução, os verbos “arriver” (fr.), no contexto da expressão idiomática, e “to arrive” (in.), visto que remete tanto ao acontecer de algo, quanto à sua emergência, como na expressão “ocorreu-me que […]”, enquanto advento de uma ideia ou memória.
[3] “Die Ontologisierung des » possible contingens« ist erst im 13.Jh. abgeschlossen: die Welt ist Kontingent als eine Wirklichkeit, die, weil sie indifferent zu ihrem Dasein ist, Grund und Recht zu ihrem Sein nicht in sich selbst trägt.”
[4] “Das Notwendige enthält keine Rechtfertigung der K[ontingenz]. mehr; K. wird jetzt Zufälligkeit.” Ainda há certa gradação [nuance] entre contingência e acidente em, por exemplo, Emil Angehrn (1992), que propõe ser provavelmente possível dizer que todos os acidentes são contingentes, mas não que todas as contingências são acidentais. No entanto, como mostrarei mais à frente, essa gradação, que Aristóteles, na Física, exemplifica através das categorias de contingente e automático, derivou aos poucos em uma convergência entre contingência e acidente ao longo do desenvolvimento da technē.
[5] Empresto este termo de Bernard Stiegler (cf. Stiegler; During, 2004).
[6] A distinção entre natureza e técnica não é simplesmente uma distinção ocidental. Creio que, em outras culturas, pelo menos em culturas da Ásia oriental, a técnica nunca foi levada ao reino da natureza, ainda que a técnica possa se comportar de acordo com o princípio da natureza. Neste caso, ela não mais diz respeito a objetos técnicos, mas a técnicas corporais. Um exemplo significativo é o do carniceiro PaoDing no clássico taoísta Zhuangzi: no momento em que PaoDing adquire o Tao (a natureza) da vaca, seu facão deixa de ter importância, já que agora ele sabe como adentrar o vazio e não precisa mais enfrentar ossos e tendões (cf. Zhuangzi, 2012, p. 19-20).
[7] N.T.: A frase original, alterada em virtude da datação do texto original (2015), diz: “from 2010 on”, “a partir de 2010”.
[8] Essa afirmação segue a conceituação feita por Lyotard do pós-moderno como a negação criada pelas tecnologias — que, por sua vez, são um produto dos modernos (cf. Lyotard, 1984).
[9] N.T.: À versão utilizada por Hui (Platão, 2010b), o autor introduz trechos que omitimos aqui porque servem tão somente para suprir lacunas em sua tradução de Platão: “I wish, however, to tell you something that is [strangely] out of place: you see, though he was presente, I didn’t have my mind [on him], and I forgot him quickly” (Hui, 2015, p. 127).
[10] N.T.: A citação de Platão foi extraída da tradução de Anna de Almeida Prado (PLATÃO, 2014, 522c). No original, não constam as traduções para “technē” (arte) e “epistēmē” (ciência).
[11] N.T.: Literalmente, “o defeito que falta”.
[12] N.T.: A colocação parece à primeira vista estranha porque usualmente toma-se “acaso” e “causa” por opostos, mas a discussão aristotélica parte da própria atribuição a causas que se costuma fazer da tuché e do to automaton, ambos relativos à própria casualidade: “também o acaso [luck] e o espontâneo [automatic] se contam entre as causas, e se diz que muitas coisas são e vêm a ser por acaso e pelo espontâneo” (Aristóteles, 2009 [1992], 195b31). Nota-se também a distinção entre as traduções, outro fator complicador: Lucas Angioni, na tradução brasileira que utilizamos aqui, opta por traduzir tuché por “acaso” e to automaton por “espontâneo”, enquanto William Charlton, na versão inglesa de Hui, prefere “luck” (“sorte”) e “automatic” (“automático”). Aqui, preferimos seguir a segunda versão dado que é a edição utilizada pelo autor deste artigo, trazendo opções mais relevantes à sua própria discussão (como a recusa, a seguir, da interpretação “espontaneísta” do to automaton, contemplada por Angioni). Contudo, citaremos em nota a edição brasileira a fim de comparação.
[13] N.T.: Na edição brasileira: “tudo o que é por acaso é pelo espontâneo, mas nem tudo que é espontâneo é por acaso” (Aristóteles, 2009, 197a36)
[14] N.T.: Na edição brasileira: “Por isso, nenhum inanimado, tampouco besta alguma ou criança alguma, fazem algo por acaso, porque não são capazes de escolher” (Aristóteles, 2009, 197b6).
[15] N.T.: Na edição brasileira: “Já o espontâneo se atribui também aos outros animais e mesmo a muitos inanimados” (Aristóteles, 2009, 197b13).
[16] N.T.: Foi preciso parafrasear o original para que a frase fizesse sentido em português: “The chance that the horse had for saving its life was not really luck, but automatic” (Hui, 2015, p. 130). A fim de comparação e clarificação, veja as duas traduções de Aristóteles — a de Angioni e a de Charlton, utilizada por Hui. Angioni: “[…] por exemplo, o cavalo, dizemos, veio espontaneamente, porque se salvou ao vir, mas não veio em vista do ser salvo” (Aristóteles, 2009, 197b13); Charlton: “Logo, dizemos que o cavalo chegou automaticamente [came automatically], já que foi salvo por ter chegado, mas ele não chegou com o propósito de ser salvo [for the purpose of being saved]” (Aristóteles, 1992, 197b15). Ou seja, para Aristóteles, seria preciso que o cavalo tivesse como meta ser salvo (e, pois, que tivesse a capacidade racional de deliberar sobre metas) para que sua salvação fosse resultado de sorte, e não da automaticidade (ou espontaneidade) do acaso.
[17] N.T.: O tripé é o exemplo que Aristóteles lança logo após o do cavalo, seguindo a mesma lógica: “também o tripé caiu espontaneamente [automatically], pois ficou de modo a servir de assento, mas não caiu em vista do servir de assento” (Aristóteles, 2009 [1992], 197b13).
[18] Gilbert Simondon (1958) explorou o conceito de “meio geo-tecnológico” em Du mode d’existence des objets techniques (2012), quando ele fala sobre o meio associado da turbina de Guimbal; este ponto foi mais bem explicitado por Bernard Stiegler (2016). [N.T.: no original, Simondon fala em “meio tecnogeográfico [milieu techno-géographique]” (2012, p. 55).]
[19] Esse também é o limite da desconstrução. Kojin Karatani (2000) traçou uma analogia entre a desconstrução e a questão do exterior na prova matemática de Gödel e na crítica de Wittgenstein a Russell.
[20] É preciso considerar que isso não se limita apenas a números naturais; pode-se também compreendê-lo em termos políticos, como, por exemplo, na quantificação de um objeto ou de um indivíduo em termos de função recursiva.
[21] N.T.: Hui não deixa muito claro a que crise ele se refere aqui, mas, considerando o artigo citado a seguir e os parágrafos que se seguem, o autor parece se referir ao “flash crash” de maio de 2010 referente a ações do Facebook: “[…] investidores do varejo também observavam enquanto uma falha tecnológica de sistema [technological glitch] travou a flutuação [das ações] do Facebook, e um ‘flash crash’ varreu inexplicável e brevemente US$860 bilhões do valor do mercado” (Mackenzie; Massoudi; Foley, 2012).
[22] “Elle [a contingência] marque les limites de nos connaissances, la necessite où nous sommes de démonter le réel pour em examiner les rouages; nous ne serons problablement — e ici la probabilité équivaut pratiquemant à la certitude — jamais capables de la remonter cetter horloge aux rouages infinis, de superposer au monde du sens-commun plein de contradictions um univers scientifique à la fois réel et intelligible; aussi la contingence durera aussi longtemps que la science elle-même et que l’humanité, penchée sur la réalité pour se l’assimiler et la comprendre; mais c’est une limite qui recule indéfiniment et tend vers la forme idéale du déterminisme nécessitaire”.
[23] Essa citação se baseia no manuscrito, e não no livro. Gostaria de agradecer a Robin Mackay por garantir a tradução [para o inglês]. “On dira ‘contingente’ toute entité, chose ou événement, dont je sais qu’elle peut ou qu’elle aurait pu effectivement ne pas être, ou être autre. Je sais que ce vase aurait pu ne pas exister, ou exister autrement — je sais que cette chute du vase aurait pu ne pas se produire”.
[24] “Nous proposons de faire de la facticité non plus l’indice d’une limitation de la pensée — de son incapacité à découvrir la raison ultime des choses — mais l’indice d’une incapacité de la pensée à découvrir l’absolue irraison de toute chose”.
[25] “Un être inconsistente — universellement contradictoire — est impossible, parce que cet être cesserait de pouvoir être contingente. Em effet, ce qu’un être inconsistant ne pourrait faire, c’est se modifier, devenir autre, puisque ce qu’il n’est pas, étant contradictoire il l’est déjà”.
[26] “O fim da metafísica ainda é identificado em larga medida com esse tipo de abordagem dissolvente — não se trata mais de fazer a si mesmo questões metafísicas, pois essas são apenas simulacros [semblances] de questões ou questões que agora estão irremediavelmente obsoletas, mas se trata de levantar questões sobre ou em torno da [on, or about] metafísica” (Meillassoux, 2008, p. 109).
[27] Jean-François Lyotard tentou iniciar uma reflexão como esta durante o período em que desenvolveu seu conceito de pós-moderno (em vista do poder computacional do Minitel). [N.T.: Minitel foi um terminal de consulta de banco de dados via telefone, lançado em 1982, na França, sendo um dos precursores da Internet. Durou até 2012, chegando a ter 10 milhões de conexões mensais.]