|
|
Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85084, 2023
Submissão: 02/10/2023 • Aprovação: 01/02/2024 • Publicação: 29/03/2024
Dossiê
A queda pandêmica do céu:
Contágios entre o Palácio e a floresta
The Pandemic Fall of the Sky:
Contagions between the Palace and the forest
IUniversidade Estadual de Londrina , Londrina, PR, Brasil
RESUMO
O que significa dizer, como fez o coletivo Indigenous Action em meio à pandemia de covid-19, que “o capitalismo é pandêmico” e que “nós [indígenas] somos os anticorpos”? Quais os vínculos entre crises pandêmicas, o capitalismo em seu estágio globalizado e a emergência climática que ficou conhecida como “Antropoceno”? De que modo esse vínculo é visto por aqueles, como os povos indígenas, que, não obstante à margem do processo, são os mais diretamente afetados por seus efeitos deletérios? Com base nessa provocação e nas diversas articulações feitas por Davi Kopenawa, em diálogo com Bruce Albert, entre mercadoria, epidemia (xawara) e fim do mundo (“queda do céu”), buscamos, neste ensaio, pensar a relação entre capitalismo e catástrofe a partir da noção-chave de “contágio”. Nossa suspeita é de que, com a repetição deliberada do termo “xawara” ao longo de A queda do céu, Kopenawa não está apenas utilizando um termo técnico para doenças epidêmicas em geral, mas caracterizando conceitualmente o tipo de relação “imunológica” que os brancos (napë pë), “povo da mercadoria”, estabelecem com a alteridade em geral.
Palavras-chave: covid-19; floresta de cristal; Palácio de Cristal; perspectivismo; xawara; Yanomami
ABSTRACT
What it means to say, as did the group Indigenous Action among the covid-19 pandemics, that “capitalism is pandemic” and that “we [indigenous peoples] are the antibodies”? What are the ties between pandemic crisis, the capitalism in its global phase and the climate emergency known as “the Anthropocene”? How is this nexus seen by those, such as indigenous peoples, that, albeit at the peripheries of this process, are the most affected by its harmful effects? With this provocation and the many articulations between merchandise, epidemics (xawara) and the end of the world (“the falling sky”) made by Davi Kopenawa in his dialogue with Bruce Albert, we aim to think in this essay on the relationship between capitalism and catastrophe with the key notion of “contagion”. We suspect that, in its intentional repetition of the word “xawara” all over The Falling Sky, Kopenawa is not just utilizing a technical word to epidemical diseases in general, but conceptually marking the kind of “immunological” relation white people (napë pë), also known as “people of merchandise” among the Yanomami, forge with otherness in general.
Keywords: covid-19; crystal forest; Crystal Palace; perspectivism; xawara; Yanomami
nec iam religio divom nec numina magni
pendebantur enim: praesens dolor exsuperabat.
— Lucrécio, De rerum natura.
En Tucídides y Lucrecio […] no hay metalenguaje jurídico que tome en sus manos la excepción soberana puesto que toda soberanía — humana y divina — se corroe hasta desaparecer por completo. No se trata, entonces, de un estado de la ley (como la excepción de su permanencia en suspenso) sino de un estado actual del mundo.
— F. Ludueña, La peste y el fin de los tiempos.
Colonialism is a plague, capitalism is pandemic.
These systems are anti-life, they will not be compelled to cure themselves.
We will not allow these corrupted sickened systems to recuperate.
We will spread.
We are the antibodies.
— Indigenous Action, Rethinking the Apocalypse: An Indigenous Anti-Futurist Manifesto.
Marcel Detienne cataloga Dioniso como um “deus epidêmico” (Detienne, 2003, p. 15). A noção grega de epidemia não tinha “necessidade alguma da teoria do contágio, da qual a medicina grega nada pensou antes que Tucídides se esforçasse em descrever a peste de Atenas” (ibid. p. 17). Antes de Tucídides, epidemias eram sacrifícios oferecidos às divindades quando elas advinham em meio (epi) ao povo (demos), opondo-se às “apodemias [apo, ‘separado’], sacrifícios de partida” (ibid. p. 19). Dioniso, “o deus mais epidêmico do panteão” (ibid. p. 21), incorpora, para Detienne, uma tal condição porque se trata de um dos “deuses migratórios” (ibid. p. 20), mas não recebe essa denominação apenas por isso; afinal, também Apolo e Artêmis são deuses migratórios.
Embora imortal como os demais deuses, Dioniso é, paradoxalmente, mortal, morto e canibalizado duas vezes, além de nascido da união aórgica de Zeus com uma mortal — ou da união incestuosa do rei do Olimpo (Zeus) com a rainha do submundo (Perséfone), segundo versões órficas do mito de Zagreu-Dioniso. Assim, enquanto, de acordo com Detienne, “o poder divino esperado ao dia sete do mês de Bysios no santuário de Delfos é sempre de Apolo, fundador do oráculo” (2003, p. 21), Dioniso, “divindade em movimento incessante, forma em mutação perpétua, jamais é seguramente reconhecido ao passar sua estranha máscara, de uma potência que não parece nenhuma outra, por entre cidades e aldeias”, correndo sempre o “risco de ver negada sua pertença à raça dos deuses” (ibid.) — ao menos, aos olhos dos próprios deuses, pois é somente “no mundo dos homens” e, em especial, entre suas bacantes, que Dioniso pode quiçá ter sua “potência divina” reconhecida (ibid.). É por esse duplo caráter de pertença e não-pertença e por sua dupla pregnância que Dioniso é o deus mais epidêmico do panteão olímpico, sendo aquele que melhor passeia sem ser visto por entre deuses e mortais.
Em suma, epidemias, entre os gregos, eram fenômenos profundamente sociocósmicos e envolviam agentes epidêmicos no sentido literal dos termos. Se a epidemia adquiriu um caráter secular entre os modernos, tornando-se objeto de estudo privilegiado da epidemiologia, preocupada com estatísticas, agentes microscópicos com nomes impessoais e gerenciamento de fluxos, reações e demandas de contingentes populacionais, o inverso parece acontecer com outros povos, outrora denominados “canibais” (Montaigne, 2016, p. 234), para quem, nota-se, a morte é uma espécie de metamorfose, devir-outro, e a doença, um indício de que esse devir está prestes a acontecer:
Se começarmos a ver, por exemplo, os vermes que infestam um cadáver como peixes grelhados, ao modo dos urubus, só poderemos concluir que algo anda muito errado conosco. Pois isso significa que estamos virando urubu, o que não consta normalmente nos planos de ninguém: é sinal de doença, ou pior. (Viveiros de Castro, 2002, p. 378, grifos nossos).
Se doença significa indício de que alguma pessoa está passando para o outro lado — tornando-se membro de outro povo —, ela não acontece sem motivo: são provavelmente os outros que agem sobre a pessoa, como os porcos da caça para os Yudjá, que, segundo Tânia S. Lima, “parecem[-se] com os mortos” (1996, p. 25), capturando as almas dos caçadores mal-aventurados; ou como os mortos para os Yanomami, que retornam à casa onde viviam para levar os vivos consigo (cf. Wilbert; Simoneau, 1990, M36).
Para os Huni Kuin, epidemias, fenômenos causadores de muitas mortes, não passam de vinganças de povos outros. Sobre a pandemia de covid-19, Sales Huni Kuin declarou: “vamos nos retirar na floresta, vamos ficar quietos e não vamos deixar mais ninguém entrar, porque tudo isso é nisun” (apud Lagrou, 2020). Nisun é, segundo Els Lagrou, uma espécie de “dor de cabeça e tonteira que pode resultar em doença e morte” (ibid.). Mais especificamente, trata-se
[…] [d]o efeito da vingança dos seres que foram assassinados, da caça [game] cujo couro foi queimado; os caçadores devem evitar seu odor. O perigo da vingança é significativo especialmente para jovens caçadores que se envolvem na morte de animais machos. Os animais se vingam através de seus duplos, seus yuxin. Diferentes tipos de caça produzem nisun. [...] Sentir nisun quando se está sob efeito de nixi pae [popularmente conhecida como ayahuasca] e de dume [pó de tabaco] é o primeiro passo para descobrir aquilo que o yuda baka yuxin, o corpo-espírito de um animal, pode causar ao olho da alma de alguém. (Lagrou, 2018, p. 40).
Morcegos (Chiroptera sp.) estão entre os mamíferos que mais carregam vírus da família Coronaviridae sp. — e, atualmente, a teoria mais aceita, reforçada por um relatório de 2021 da OMS em conjunto com o governo chinês (OMS, 2021), é de que a transferência zoonótica do SARS-CoV-2 em particular, agente etiológico do covid-19, ocorreu através de contato indireto com morcegos, por intermédio de algum outro hospedeiro silvestre. Os Huni Kuin são chamados pelos seus inimigos de kaxinawá, “povo-morcego”, e, embora outrora antropófagos, os “Kaxinawá” não são em nada quiropterófagos: eles “não consomem estes animais porque os consideram seres que possuem yuxin, o poder de transformar a forma” (Lagrou, 2018, p. 40). Antes que efeito de um transbordamento genético, a pandemia foi, para os Huni Kuin, uma vingança do povo-morcego, mas de outro povo-morcego, povo outro que os assim chamados Kaxinawá — ou melhor, uma vingança de duplos dos duplos, ou duplos deste povo-morcego efetivo, isto é, seus yuxin, agentes de metamorfose. A epidemia, descida dos deuses sobre os povos ou intrusão de agentes sobrenaturais nas fissuras dos mundos cotidianos, é, assim, parte constitutiva da predação atuante no fundo da cosmologia de povos como os Huni Kuin; nada mais justo que Dioniso, o Omófago, seja, dentre os gregos, o mais epidêmico dos deuses.
Podemos vislumbrar aqui uma espécie de “Terceira Lei de Newton ameríndia”, que faz de povos outros, tais como o povo-morcego dos Huni Kuin, símiles das erínias, filhas vingativas e monstruosas de Hades e Perséfone: “tem-se [entre os Huni Kuin] a aguda (cons)ciência de que para viver é preciso matar e de que toda ação, toda predação, desencadeia uma contra-predação” (Lagrou, 2018, p. 40). O mesmo vale para os Yanomami, povo para quem “toda forma de agressão letal, humana ou não humana é concebida […] como uma forma de predação” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 616), ou para os Munduruku, para quem, como aponta Luísa Molina, a destruição da cachoeira Karobixexe para a construção da Usina Hidrelétrica de Teles Pires, queda d’água “considerada sagrada” por se tratar de “um lugar uel — que não se deve mexer” (Molina, 2020, p. 167), termina por resultar em uma vingança espectral, dado que “interferir em um lugar como esse (habitado não apenas pelos ancestrais tacaucu, mas também por espíritos outros, como a mãe da caça e a mãe dos peixes) é agir sobre a geração e a multiplicação mesma da vida”, dado que “as almas dos mortos ficam sem lugar e, descontentes, se vingam dos vivos” (ibid. p. 168).
Quando “a perturbação de habitats e a destruição causam estresse aos animais”, estes se tornam “vulneráveis a vírus e mais suscetíveis a produzir números altos de vírus” (Kingston, 2020). Diante do que Juliana Fausto chamou de “passe de mágica tétrica” do capitalismo, “que transforma toda a vida em mercadoria, transporta e mistura irresponsavelmente genoma pelo globo”, comprometido em “corrompe[r] a morte que sustenta e renova a vida em uma outra morte, que enfraquece a vida, impedindo-a de se reinventar e que tem como destino único a extinção” (Fausto, 2021, p. 254), nada mais justo que uma vingança canibal.
Mas vingança contra quem? Contra a humanidade — mas qual? Para Fausto, trata-se de uma vingança contra o “modo zumbificado” da humanidade, modo “morto-vivo” — tal como o próprio vírus, fronteiriço entre vida e não-vida — “que segue transformando tudo em si mesmo enquanto invoca toda sorte de negacionismo” (FAUSTO, 2021, p. 254). Trata-se de uma vingança tal que, no entanto, “como muitas vinganças sobrenaturais, isto é, em que naturezas diferentes se chocam” (ibid.), afeta todos (pan) os povos (démos), sem distinção — embora alguns sejam mais distintos que outros, com seus bunkers lotados de mercadorias em excesso.
O primeiro episódio de The Last of Us™ (2023), seriado produzido por Neil Druckmann e Craig Mazin que trata de uma pandemia fúngica que transformou grande parte da humanidade em seres com comportamento zumbi, abre com uma cena ausente no jogo eletrônico de mesmo nome, lançado pela produtora de videogames Naughty Dog e matéria-prima para o programa de televisão. Na cena, ambientada em 1968 (cinquenta e cinco anos antes dos principais eventos da série), dois epidemiólogos, Dr. Neuman e Dr. Schoenheiss, são questionados em um programa de auditório sobre a possibilidade de novas pandemias virais, como a de H1N1 de 1918-19. Em dado momento, os cientistas entram em desacordo: Neuman se mostra menos preocupado com pandemias virais ou bacterianas que — para espanto da audiência e de Schoenheiss — pandemias fúngicas; o epidemiologista afirma, na cena, que fungos apresentam um perigo muito mais insidioso para a humanidade porque, além de causadores de morte, podem incidir diretamente sobre a psique humana: “vírus podem nos deixar doentes”, afirma, “mas fungos podem alterar nossas próprias mentes.”
Neuman cita, entre outros, o exemplo de “fungos-zumbi” que parasitam insetos e artrópodes, capturando seus sistemas nervosos e modulando seus comportamentos para a melhor dispersar o fungo, devorando-os eventualmente por dentro. Trata-se provavelmente de uma menção ao Ophiocordyceps unilateralis sensu lato, um conjunto de espécies descritas pela primeira vez por Alfred R. Wallace em 1859 e encontradas predominantemente em ambientes tropicais (Mongkolsamrit et al., 2012). A associação dos O. unilateralis com zumbis é patente e muito conhecida (Zimmer, 2019), servindo de inspiração direta e declarada para a ideia que motivou o jogo que serviu de base para a série (cf. Takahashi, 2013). Schoenheiss, contudo, exibe desconfiança quanto ao prospecto de um salto zoonótico fungo-humano; para ele, a sobrevivência de fungos no interior de organismos com temperatura corporal média acima de 94ºF (ou 34ºC) é impossível. Neuman, porém, mais receoso, propõe que uma mutabilidade futura do fungo é possível e questiona: “e se, por exemplo, o mundo passasse a ficar um pouco mais quente?”
O jogo, de 2013, não tematizava as origens da pandemia, apenas indicando indiretamente, por meio de interações não obrigatórias com itens espalhados pelos cenários, que a mutação ocorreu em algum lugar da América do Sul; a série, contudo, torna a conexão explícita, ainda que mudando o ponto zero do surto. O segundo episódio, ambientado em Jacarta, Indonésia, dias antes do começo da pandemia de O. unilateralis, em 2003, inicia-se com a cena de uma professora de Micologia da Universidade da Indonésia, Dra. Ratna Pertiwi, sendo escoltada por dois policiais para examinar o corpo de uma mulher infectada pelo fungo. Ao questionar os policiais, Pertiwi fica sabendo que o salto possivelmente ocorreu em uma grande indústria de moagem de trigo — uma provável menção ao moinho de trigo da P.T. Bogasari, considerado a maior fábrica de moagem de trigo do mundo (Donley, 2019), responsável assim pela exportação global de uma enorme quantia de farinha, ingrediente que serve de matéria-prima para muitos dos alimentos processados consumidos mundialmente. Para a proliferação do fungo, tratava-se de “um substrato perfeito”, como afirma Pertiwi.
O que fica subentendido pela abertura do episódio é que a pandemia de O. unilateralis do mundo fictício de The Last of Us se espraiou em decorrência do estado globalizado da rede de transação de commodities, como o trigo, ilustrado pelas dimensões titânicas de um moinho cuja capacidade de produção é desmesuradamente internacional. Um surto epidêmico que, em outra época, teria ficado restrito a talvez uma cidade ou uma nação se espalha, hoje, como centelha pelo globo todo, facilitado pelas vias rápidas de produção e transporte que constituem os alicerces do capitalismo global contemporâneo — movimento ilustrado na dispersão fúngica de esporos e micélio que observamos nas vinhetas de abertura tanto da série quanto do jogo.
A pandemia fúngica de O. unilateralis de The Last of Us™ é apenas um em uma miríade de exemplos da ficção científica que, ano após ano, chocam por sua semelhança preditiva com o real. Às highways hiperconectadas da rede mundial de fluxos financeiros e mercantis, soma-se a transferência antrópica de espécies entre biomas não-nativos, o desmatamento e o aumento exponencial de produção agropecuária, a caça excessiva de espécies ameaçadas com fins de comercialização, o uso abundante de agrotóxicos, a transformação de ambientes biologicamente diversificados em monoculturas de pedra no formato de “metrópoles” — ambientes cujo rebanho ultraconcentrado, poluente e agente de consumo sem critérios, facilita sobremaneira a constituição de surtos epidêmicos (cf. Napier, 2020) —, “o impacto do turismo, a exploração de guano — as fezes de morcego, fertilizante rico em fosfato, nitrogênio, amônia e sais alcalinos — e outros” (Fausto, 2021, p. 253), bem como as mudanças climáticas, já entrando em um feedback loop sem retorno, a compressão exponencial das rotas pelas quais passam as mercadorias, causada pelo estágio derradeiro da globalização… Tudo isso tem o potencial de fazer com que uma epidemia dionisíaca, vingança de povos extra-humanos, tenha impacto global, pandêmico, no sentido primeiro da palavra, virtualidade só atualizada por conta da proliferação replicante do éthos financeiro-industrial do capitalismo tardio.
Nesse sentido, não se trata de coincidência que haja um vínculo entre catástrofe climática e pandemia, bem como entre ambas e o capitalismo, tanto por seu modo de operação quanto pela extensão, meios, táticas e estratégias demandados para que se possa combatê-lo. Do mesmo modo, em paralelo, nexos entre fim do mundo e doenças epidêmicas estiveram sempre presentes em cosmologias ameríndias — intensificados, contudo, pelo contato com o Ocidente que, à época da colonização, já iniciava sua fase de “acumulação primitiva”. A conexão, por exemplo, entre a escatologia araweté, com a ruptura do céu (iwã ihana) sob o peso dos mortos “restaurando a indiferenciação cósmica original” (Viveiros de castro, 2002, p. 196), e sua etiologia, com as Doenças (ha’iwã) sendo “efeito[s]-ha’iwã” causadores de morte (i.e. metamorfose), sempre “produzido[s] por alguma coisa ou ação”, como “o céu e os deuses-Maï” (Viveiros de Castro, 1986, p. 472), também não é arbitrária (e muito menos ilusória).
É curioso notar que se, assim como os deuses do Olimpo “renegam” Dioniso por seu caráter demasiadamente epidêmico, os deuses Maï dos Araweté evitam as doenças epidêmicas ao fechar o caminho principal que conecta a terra aos céus, por outro lado, eles também, como Dioniso, são uma das causas de efeitos-ha’iwã — “[…] os Araweté afirmam: ‘todo mundo fica doente, mas só morre quem for atingido pelo fogo divino (Maï datã)’” (Viveiros de Castro, 1986, p. 473). Agindo como um híbrido de Zeus e Dioniso, um “Zeus-Maï Senhor dos Raios fulminantes”, os Maï rompem o céu para fulminar a vítima, dado que “cobiçam os humanos” (ibid. p. 474). Embora a ação dos deuses seja a causa “transcendente” da Doença, sua cobiça é fruto de causas “imanentes” como o “incesto”, a “cópula contranatural com o Senhor da Água” e “o contato com a morte” (ibid. p. 473-474), como no caso do guerreiro homicida, cujo processo simbiótico com o inimigo se assemelha a um adoecimento — algo que, aliás, em muito lembra o parasitismo do O. unilateralis, com o inimigo postado como apêndice “às costas do matador” (ibid. p. 581), manipulando-o para produzir um comportamento que, não obstante, não leva à autoaniquilação do hospedeiro para “facilita[r] a dispersão do fungo” (Libersat et al., 2018, p. 2), mas à imortalidade conjunta de ambos em sua condição simbionte após a morte (Iraparadï), junto à dispersão das palavras do inimigo, em forma de canção e mito, nas cauinagens comunitárias (cf. Viveiros de Castro, 1986, p. 582).
Portanto, também a Doença é uma vingança, assim como o fim do mundo para os Araweté. Ao que tudo indica, a escatologia araweté, na qual as “epidemias aumentam o peso do céu e perigam fazê-lo cair” (Viveiros de Castro, 1986, p. 630), possui o mesmo feedback loop da “queda do céu Waiãpi”, povo que correlaciona o garimpo predatório branco e a perda de consistência da terra, que passa de um estado de terra “dura” para outro, de terra “lama”. A flexibilização da terra é paralela ao aumento de peso do céu, diretamente proporcional ao aumento de cadáveres kwaray’a pore, no plano terrestre, e seus “princípios vitais” (-ã), no celeste:
[…] na escatologia Waiãpi, a presença de lama é um sinal de cataclismo: refere-se à presença excessiva de sombras “podres” na terra e, paralelamente, ao peso excedente de mortos no céu. Peso que determinará a destruição do mundo, com o céu e seus ocupantes (aine raiwer) desabando sobre a terra, para substituir a atual humanidade.
Muita água, terra repleta de ouro. Muito ouro, terra “dura”. Garantias para a perenidade da atual humanidade, tal como é concebida no mito Waiãpi. Num jogo de conceitos que o líder Waiwai soube manipular para incentivar sua aldeia a um trabalho exclusivamente indígena no garimpo, alertando a comunidade sobre o perigo que representa a presença de garimpeiros invasores. (Gallois, 1989, p. 466).
Esse cataclisma em estado de feedback negativo é, ao que tudo indica, o resultado verdadeiramente pandêmico de surtos epidêmicos em retroatividade, e indica o destino ubíquo e premente de todos os povos, para além dos Waiãpi, responsáveis ou não pela catástrofe: “os líderes da aldeia do Aracá […] comentavam que a terra já estava totalmente ‘podre’, que o fogo iria queimá-la até São Paulo, que todos seríamos destruídos”, fazendo com que todos os humanos sejam transformados “em mucuras, enquanto ‘nossos mortos’ […] nos substituirão, vindos da aldeia celeste de Ianejar” (Gallois, 1989, p. 466).
Também para os Yanomami, a epidemia contamina e “come [os brancos] tanto quanto a nós, pois a epidemia xawara, em sua hostilidade, não tem nenhuma preferência!” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 365). Junto às epidemias, a “queda do céu”, origem e fim do “mundo” dos Yanomami enquanto transcurso entre a queda do antigo céu e a queda do atual, toma centralidade como evento pandêmico e tem lugar privilegiado na economia conceitual yanomami enquanto cataclisma final do mundo atual.
Como no caso Waiãpi, porém, a conexão entre escatologia e pandemia entre os Yanomami não é só pressuposta, mas explicitamente vinculada a uma causa etiológica externa para as doenças pandêmicas: são os “brancos”, napë pë ou “povo da mercadoria”, os responsáveis pela catástrofe, com sua fome canibal de ouro ou sua “patogenia antropofágica” (Albert, 1990, p. 159), no sentido “baixo” do termo. “Nós [os Yanomami] nunca morremos de fome na floresta. Só morremos da fumaça de suas epidemias [dos brancos]” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 186). É justamente na “crítica xamânica da economia política da natureza” (ALBERT, 2002) de Kopenawa que o vínculo capitalismo–clima–pandemia fica mais explícito.
Peter Sloterdijk (2005), autor da trilogia Esferas, na qual se investiga a produção de mundos humanos (“esferas”) a partir da noção biopolítica de “imunidade”, sugere uma metáfora para o período que costumamos chamar de “Era Global”, momento de capitalismo tardio em que o capital engloba o planeta e em que parece não apresentar alternativas que não sejam a de viver no interior desse englobamento ou perecer no frio impessoal do exterior hostil. Trata-se da metáfora do “Palácio de Cristal”, termo que remete ao Crystal Palace, alcunha de um enorme prédio de vidro e ferro fundido projetado por Joseph Paxton e construído no Hyde Park, em Londres, para a Grande Exposição de 1851.
À época, o Crystal Palace servia de monumento para o capitalismo especulativo-industrial global que se desenhava e que tinha, na Inglaterra e na França, seus carros-chefes. A sugestão de usar o Palácio como ícone da Era Global vem a Sloterdijk através de Fiódor Dostoiévski: tendo, em 1862, visitado um palácio ainda mais imponente, construído para a Exposição Universal de South Kensington, e, com isto, apreendido “intuitivamente as incomensuráveis dimensões simbólicas e programáticas desse edifício híbrido” (Sloterdijk, 2005, p. 265), Dostoiévski resgatou a figura do Crystal Palace para, em Memórias do subsolo (2000), tecer críticas à burguesia luxuriosa francesa. Esses eram habitantes da mesma Paris reformada do século XIX sobre a qual Walter Benjamin (1999) dedicaria anos depois algumas de suas reflexões acerca do tédio, do consumo e da flânerie. Como Benjamin, Dostoiévski também percebia a capital francesa da Belle Époque, contemporânea à Londres vitoriana, como um espaço de frivolidade e tédio, calculadamente ordenado de modo a “esconde[r] seus pobres, mostrando-se limpa e ordeira” (Silva; Félix, 2014, p. 334). O que ficava à mostra estava, por sua vez, assegurado, disponível, definido e meticulosamente ordenado como numa “gigantesca estufa de relaxamento […] dedicada a um culto jubiloso e frenético de Baal, para o qual o século XX propôs o nome de consumismo” (Sloterdijk, 2005, p. 268).
Esta sensação de consumo desmesurado pode ser sentida nas palavras do protagonista sem nome de Memórias do subsolo, um anônimo senhor aposentado de São Petersburgo, então capital do simultaneamente aristocrático e miserável Império Russo:
Então — sois vós que o dizeis ainda — surgirão novas relações econômicas, plenamente acabadas e também calculadas com precisão matemática, de modo que desaparecerá num ímpeto toda espécie de perguntas, precisamente porque haverá para elas toda espécie de respostas. Erguer-se-á então um palácio de cristal. Então… bem, em suma, há de chegar o Reino da Abundância. Naturalmente, não se pode, de modo algum, garantir (desta vez, sou eu que o digo) que então tudo não seja terrivelmente enfadonho (com efeito, que se há de fazer quando tudo estiver calculado numa tabela?), mas, em compensação, tudo será extremamente sensato. É verdade, porém: o que não se há de inventar por fastio! Realmente, os alfinetes de ouro são enfiados em seios também por fastio, mas tudo isso não teria importância. O ruim (ainda sou eu que o digo) é que as pessoas então talvez se sintam felizes com alfinetes de ouro. (Dostoiévski, 2000, p. 38, grifo nosso).
O palácio ao qual o amargurado protagonista de Memórias do subsolo alude é esse espaço que, ordenado, replicado, brando, amplo, vazio e entediante, produz “a equação pós-histórica da humanidade” (Sloterdijk, 2005, p. 265): ser-sujeito = poder-comprar[1] — ou, nos termos irônicos do próprio Dostoiévski, presentes em notas pessoais nas quais conta suas impressões de Paris: “estranho homem, este tal de burguês: proclama abertamente que a aquisição de dinheiro é a suprema virtude e o supremo dever humano, mas adora encenar sentimentos supremamente nobres” (1985, p. 56). Em contraponto ao otimismo iluminista e positivista da Razão, que “via luz, razão e progresso projetando-se através das paredes de vidro”, Dostoiévski enxergava, com seu realismo pessimista, “nada mais que o perfil de uma obscura e satânica prisão” (Carroll, 2010, p. 120).
O Palácio ilustra então o estado do capitalismo global tardio, quando o mundo se tornou um enorme shopping mall dentro do qual as pessoas, reduzidas a consumidores enfastiados, caminham livremente por vãos alargados, higienizados, claros, onde todas as coisas são abundantes e estão exageradamente expostas, evidentes, ordenadas e disponíveis — mas apenas àqueles com meios para acessá-las. Ao mesmo tempo, ele também serve de metáfora para o grande parque zoológico híbrido ao qual aludia Sloterdijk em Regras para o parque humano (2014), no interior do qual, animais humanos, não-humanos e outros seres, animados e inanimados, naturais ou digitais, se tornam pets indiferenciados, expostos em jaulas e disponíveis para o comércio, numa espécie de “pluralidade biotópica” (Sloterdijk, 2004, p. 667) arquitetonicamente projetada para abarcar uma diversidade de biomas e espécies domesticadas, dispostos à mais pura satisfação de desejos de consumo. Neste sentido, o Palácio equivale a uma “Grande Instalação”, um gigantesco interior do capital climatizado ao modo de “uma estufa que arrastou tudo o que antes era exterior para seu interior” (Sloterdijk, 2005, p. 308) através de uma fagocitose desenfreada que, tal qual uma célula imunológica diante de um agente patogênico, transforma tudo aquilo que fagocita em mercadoria domesticada e consumível, disposta junto a outras através de grandes prateleiras.
Sob a propulsão do petróleo, do gás e da energia atômica, o capitalismo tardio leva às últimas consequências o sentido da busca moderna por emancipação da natureza exterior, cuja “mansão” mesma, afirma Dipesh Chakrabarty, “repousa sobre uma base de uso de combustíveis fósseis em permanente expansão" (2013, p. 11). Nisto, os limites do globo são ignorados em virtude de sua captação como oportunidade de investimento e fundo de energia disponível, o que tem inevitavelmente levado à dissolução das bases materiais que sustentam a exploração do capital. O fim do Palácio do capital, tal como a icônica e tragicômica derrocada do verdadeiro Crystal Palace por um incêndio, em 1936, tenderá a decorrer de sua soberba: ao se esgotarem os patógenos externos passíveis de fagocitose, o fogo que consome tudo, produzido nos fornos da “Grande Instalação”, não tem caminho a seguir exceto para a própria fonte.
Contra o Palácio de Cristal, essa “esfera [imunológica] de sentido exclusivamente humana — a cidade cosmopolita” (Valentim, 2018, p. 236), a floresta de cristal, forma como Viveiros de Castro (2006) denomina a cosmologia yanomami, é uma verdadeira zona “de contágio entre humanos e extra-humanos” (Valentim, 2018, p. 236, grifo nosso), uma comunidade sobrenatural cuja imunidade contra a “epidemia xawara” se dá pela via paradoxal de um outro tipo de contágio. Os principais recipientes e administradores deste contágio são xamãs como Kopenawa.[2] Na cosmologia yanomami, os xamãs e a floresta possuem um vínculo privilegiado, visto que a destruição dos xamãs implica necessariamente a destruição da floresta e, portanto, a “queda do céu”.
Ambos se conectam pelo caráter eminentemente metamórfico e contagioso do plano mítico-espectral que caracteriza o pano de fundo predatório da cosmologia yanomami. O termo yanomami wai, que Albert traduz por “mal” ou “perigoso, poderoso” (Kopenawa; ALBERT, 2015, p. 626, 644), é fundamental aqui: designa tanto “o princípio patogênico de uma doença” (ibid. p. 613), estando “na composição de todos os nomes de epidemia” (ibid. p. 644), quanto “o princípio ativo de uma substância (tabaco, pimenta, alucinógeno, planta de feitiçaria, veneno)” (ibid. p. 613). É um termo estreitamente relacionado à ação de “devir-outro” (xi wãri-) — termo que compõe o nome de, por exemplo, Xiwãripo, ser ctônico do caos responsável por metamorfoses cosmológicas de alta magnitude e, por isso, “agente principal da ecologia da floresta” (Valentim, 2018, p. 285). Como tal, este termo se relaciona estritamente à prática xamânica, visto que o xamanismo possui um papel fundamental na gestão destes princípios metamórficos wai, seja a fim de extraí-los de uma pessoa doente, seja a fim de operar suas próprias metamorfoses, com o intuito de tratar de política com os demais agentes do cosmos e mesmo conduzir contra-ataques contra outros povos, quando os xamãs agenciam “xapiri agressivos [que] são imagens de seres maléficos në wãri, que fazemos descer só para nos vingar”, dado que “possuem várias coisas de doença” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 189).
Se, lido sob a guisa do multinaturalismo perspectivista (cf. Viveiros de Castro, 2002), o cosmos yanomami se divide ao menos em dois planos distintos, um, atual-cotidiano, e outro, virtual-mítico, seu equilíbrio e distinção se deve à mediação do xamã, que, pelo uso cosmopolítico da palavra (lógos), que separa e distingue diferentes mundos, e pela lida atenta com as dinâmicas de contágio do pano de fundo predatório (phágos), consegue operar a separação dos planos sem, contudo, denegar um em detrimento do outro, como ocorre com a cosmologia (mono)naturalista da modernidade, que suprime qualquer forma de sobrenatureza para salvaguardar a fatualidade diretamente empírica e habitual do (mono)naturalismo. Há todo um cuidado xamânico para que se evite a subsunção do lógos pelo phágos — o que engendraria uma espécie de “crise autoimune” por excesso de imunidade (ou seja, por falta de contato-contágio ou metamorfose entre os diversos mundos e povos) —, mas também para que o plano do lógos, com suas diferenças e separações, não seja engolfado pelo phágos mítico — o que, por sua vez, levaria ao mesmo estado de “irresistível propensão ao ‘devir animal’ (yaroprai)” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 189) dos ancestrais animais míticos, engendrando sua transformação em caça (yaro), ou seja, morte e queda do céu, cataclisma final que subverte a ordem do cosmos ao impedir qualquer forma de estabilidade, mesmo que provisória, de mundos.
O xamã, administrando os wai espectrais através de relações cuidadosas com distintas perspectivas sobrenaturais, evita o contágio espectral indiscriminado sem, contudo, denegá-lo e relegá-lo ao plano patogênico: o espectro, em vez de suprimido, mantém-se à espreita, pois é “objeto que transmite o laço e […] causa de sua sempre ameaçadora ruptura” (Ludueña, 2018, p. 40). Sem esse “objeto”, a esfera humana terminaria por se autofagocitar, pois fagocitaria todo o seu exterior e acabaria sem elementos para devorar; com seu excesso, ela fraturar-se-ia em linhas e superfícies aberrantes e metamórficas sem fechamento ou qualquer forma de estabilidade.
Por via do próprio contágio espectral xamânico, tipo sobrenatural de vacinologia, pode-se impedir o contágio indiscriminado que ocasiona o colapso, pois “só os espíritos sabem arrancar o mal [wai] do mais profundo de nós e jogá-lo para longe. São imortais e muito hábeis em nos curar. É por isso que os apreciamos tanto e os fazemos dançar até hoje” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 175). Como ocorre com os Huni Kuin, essa ação espectral de combate a doenças é, também, uma ação de contrapredação — uma ação de contraguerra, pois guerra e caça são indiscerníveis, sendo a caça “um modo da guerra” (Viveiros de Castro, 2013, p. 103) e o xamanismo, “a continuação da guerra por outros meios” (ibid. p. 106): “[os xamãs] bebiam pó de yãkoana, faziam descer seus espíritos, armavam tocaia com eles para atacar o mal [wai nëhë rëmãi] e afugentá-lo” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 175). Como explica Albert, “diz-se wai xëi ou wai xurukuu, ‘golpear, atacar o mal’, wai nëhë rëmäi, ‘ficar de tocaia contra o mal’ […]. Nota-se que o plural de wai (wai pë) designa os guerreiros numa reide” (ibid. p. 627). Assim, “a cura xamânica é […] concebida na forma de uma ação vingativa contra os agentes patogênicos predadores da imagem corpórea/essência vital (utupë) do doente” (ibid. p. 615).
Seriam estas metáforas biopolíticas de guerra como aquelas utilizadas para transpor — ou, segundo Roberto Espósito (2017), repor — conceitos imunitários na esfera da política (ou, ao contrário, conceber o sistema imunitário como um campo de extermínio)? Não exatamente, pois aqui não se trata de metáfora; enquanto a cosmologia moderna lida com o outro em geral como um patógeno com agência apenas mecânica desde o início, tratando-o metaforicamente como inimigo — um hostis destituído de qualquer proteção jurídica [justus], como aquele mencionado por Carl Schmitt (1974, p. 22) — , o xamanismo pressupõe que se está lidando com inimigos propriamente ditos desde o início — o que torna tudo diferente, considerando que “inimigo”, no perspectivismo indígena, é virtualmente um apex prædator, um agente por excelência (cf. Viveiros de Castro, 2011). Nesse sentido, a etiologia xamânica é uma “guerra” no sentido yanomami do termo: “as atividades guerreiras são designadas em Yanomami por um verbo, niyayuu, que pode ser traduzido por ‘guerrear’, mas que significa literalmente ‘flechar-se reciprocamente’” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 672); não há mero patógeno, pois todo inimigo é alguém capaz de ataque e contra-ataque.
A imunologia do naturalismo moderno, por sua vez, descarta a possibilidade de que seus agentes patogênicos possam inverter o jogo. É o que nota Kopenawa ao analisar o uso que os napë pë fazem do termo “guerra”: “[a guerra] não é [feita] para vingar seus mortos […]. Movem suas guerras só por terem ouvido palavras de afronta, por terras que cobiçam ou das quais querem arrancar minério e petróleo” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 442). Menos que inimigos, seus outros são vistos como obstáculos e caças indefesas que podem e devem ser exterminados, da mesma forma que suas guerras são motivadas “por mercadorias, por terra ou petróleo”, e não “por seres humanos” (ibid. p. 445); não há trégua, alianças estratégicas, negociação, e, com tal subestimação da alteridade, os povos imunológicos podem ser pegos de surpresa, despreparados para lidar com uma pandemia (biológica ou climática). “Os brancos, com suas mentes fincadas nas mercadorias”, argumenta Davi Kopenawa,
não querem saber de nada. Continuam a estragar a terra em todos os lugares onde vivem, mesmo debaixo das cidades onde moram! Nunca passa pela cabeça deles que se a maltratarem demais, ela vai acabar revertendo ao caos. Seu pensamento está cheio de esquecimento e vertigem. Por isso eles não têm medo de nada e acham que estão a salvo de tudo. (Kopenawa; Albert, 2015, p. 435-436, grifos nossos).
Por outro lado, num cenário de guerra em que, a todo momento, corre-se o risco de ser visto como caça, objeto de ação predatória sobrenatural, todo o cuidado é pouco, todo outro tem valor e todo aliado é importante, até mesmo aquele que consideramos abissalmente distintos de nós mesmos, como as imagens de espíritos maléficos de epidemia — ou vírus nanométricos como o SARS-CoV-2 e espécies fúngicas como o O. unilateralis.
A poluição, a doença (waiwai a) e a epidemia xawara, ligadas a toda sorte de destruições envolvidas da extração de matéria-prima até o consumo final das mercadorias e seu descarte residual, são equivalentes em seu efeito de fazer a floresta “virar outra”: “quando a doença se alastra em nossa floresta, dizemos que está tomada por fumaças de epidemia e que entrou em estado de fantasma” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 478). A destruição da terra-floresta (urihi a), evento pandêmico que, para além de sua literalidade do termo, indica o limite da tanto da cosmologia yanomami, quanto do próprio pensamento ecológico moderno, corresponde necessariamente à própria queda do céu, metamorfose literal do céu, da floresta e de todo o cosmos.
Para os Yanomami, o céu atual nada mais é que a segunda camada da abóbada celeste, acima das costas do céu, que havia caído anteriormente por conta do “comportamento desregrado” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 614), descuidadamente metamórfico, dos ancestrais animais — ocasionando consigo a queda do antigo céu Hutukara, atual terra-floresta, e da antiga floresta, atual submundo onde habita Xiwãripo e os seres ctônicos.[3] O centro deste novo céu, por sua vez, “ainda está firme, mas as beiradas já estão bastante gastas, ficaram frágeis” (ibid. p. 196), sempre ameaçando cair. A própria fumaça epidêmica, “levada pelo vento bem alto, até seu peito”, derrete diretamente o céu com seu calor “como um saco plástico jogado na fogueira” (ibid. p. 371), mas não é causa única de sua provável queda; outra causa fundamental é a morte violenta de xamãs jovens, seja por motivo de ataque inimigo, seja por conta de epidemias, o que ocasiona uma violenta contrapredação de seus xapiri pë órfãos contra o próprio “peito do céu”:
Quando um xamã muito velho fica doente por um longo período e acaba se extinguindo por si só, seus xapiri, em silêncio, vão aos poucos deixando sua casa de espíritos. Abandonada, ela começa a desabar. Não acontece nada além disso. Por outro lado, se um xamã ainda jovem tiver uma morte violenta, flechado por guerreiros ou comido por feiticeiros inimigos, seus espíritos ficam enfurecidos. O céu escurece e chove sem parar […]. Tudo isso acontece quando morre um xamã que tinha uma casa de espíritos muito alta. Então seus xapiri ficam furiosos por terem ficado órfãos, e querem quebrar o céu por vingança. (Kopenawa; Albert, 2015, p. 196).
Muitas vezes, esses xapiri pë que “se recusam a ir embora até mesmo após a partida do fantasma de seu pai para o peito do céu” são “espíritos maléficos muito poderosos”, como “o do tempo seco, Omoari”, “os xapiri dos gaviões Koimari, dos fantasmas poreporeri, dos seres sol Mothokari, dos seres da noite Tiriri e ainda muitos outros” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 489). Desse modo, a casa e os pertences do xamã morto têm de ser queimados, “postos em esquecimento”[4], a fim de evitar os ataques dos xapiri pë órfãos. A morte de um xamã, exceto por velhice, é sempre perigosa, pois pode desencadear um efeito em cadeia similar ao previsto pelos Waiãpi: com xamãs mortos e o céu despencando, mais xamãs podem morrer, e mais cai o céu etc. “Pedaços inteiros da abóbada celeste começam a quebrar, com estrondos tão fortes que até os xamãs sobreviventes ficam apavorados!” (ibid. p. 196).
Diante disso, os xamãs agenciam uma multidão de xapiri pë auxiliares e delegam a eles a tarefa de consertar o céu e consolar os espíritos órfãos, convencendo-os a “impedir que o céu danificado desabe” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 197). Isso também passa pela necessidade de manter as comunidades yanomami saudáveis, alimentadas e vivas, o que requer um contínuo trabalho xamânico para evitar secas ou cheias prolongadas, falta de animais de presa e mortes violentas, negociando tanto com xapiri pë e outros seres da floresta quanto com povos inimigos ou estrangeiros. “Os xamãs yanomami não trabalham por dinheiro, como os médicos dos brancos. Trabalham unicamente para o céu ficar no lugar, para poder caçar, plantar nossas roças e viver com saúde” (ibid. p. 216). Dessa forma, havendo xamãs vivos e experientes, junto à possibilidade de transmissão do conhecimento xamânico a outras gerações e de espaço e condições para sua atuação, sempre haverá xapiri pë dispostos a impedir o cataclisma. A preservação dos xamãs é peça central para a economia ecológica da floresta e, também, do “mundo inteiro” (urihi a pree).
Se há xamãs que impedem a colisão peremptória dos planos, por que a preocupação com a queda do céu? A preocupação decorre da agência estrangeira dos napë pë, que, com suas ações epidêmicas, termina por eliminar os xamãs ainda vivos — humanos e extra-humanos. Afinal, “antes de os brancos chegarem à nossa floresta, morria-se pouco […]. Morriam como deve ser, em idade muito avançada. […] não existiam todas as epidemias gulosas de carne humana que chegaram acompanhando os brancos” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 175-176). Antigamente as doenças eram normalmente causadas por ações vingativas de xamãs de terras distantes, por feitiçarias ou flechadas distantes sobre o “duplo animal rixi” (ibid. p. 224) de alguém, mas sempre tinham por causa efetiva a ação de seres maléficos në wãri, cujas casas sempre estão “abarrotadas de mercadorias ardentes e impregnadas de vertigem, depositadas ou penduradas de todos os lados” (ibid. p. 178), e cuja ação patogênica se dá por meio de um canibalismo imagético facilmente administrável pelo trabalho xamânico: “quando nos encontram na floresta, os seres maléficos në wãri nos consideram como suas presas. […] não é o corpo que ele dilacera com suas garras, e sim a imagem [utupë], que mantém presa, escondida em seu antro distante” (ibid. p. 177-178).
Este canibalismo imagético é o modo de ação padrão de todos os agentes maléficos në wãri em sua dinâmica predatória — poder-se-ia até dizer que se trata da forma prototípica da predação em geral. Contudo, ele se manifesta de maneira especificamente “baixa” com os napëri pë (ou “nabëribë”), por um lado, enquanto “duplos sobrenaturais maléficos” dos napë pë, “ligados às casas e coisas dos brancos”, ao contrário dos në wãri pë, “associados a sítios naturais inóspitos” (ALBERT, 1992, p. 179), e, por outro, com os xawarari pë, que são os në wãri diretamente responsáveis pela epidemia xawara, parte essencial “do triângulo epidemias/brancos/objetos manufaturados” (ibid. p. 170). A implicação disso é clara: se antes, os Yanomami “não adoeciam tanto quanto nós” e se, “quando morriam, as fumaças de epidemia não sujavam seus fantasmas”, hoje, “quando alguém morre de doença de branco, até seu espectro é infestado, e volta para as costas do céu com febre. Seu sopro de vida e sua carne ficam contaminados até lá!” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 224).
Com a chegada dos napë pë a partir de 1910, doenças mais perigosas, cuja imunidade biológica estava ausente entre os Yanomami, como malária, sarampo, pneumonia e gripe, passaram a avançar sobre esses últimos. “Os xapiri só sabem combater as doenças da floresta, que conhecem desde sempre. Quando tentam atacar os espíritos da epidemia xawara, que chamamos de xawarari, eles acabam por devorá-los também, como aos humanos” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 176). No fim, apesar dos esforços xamânicos, a epidemia xawara, como a imunologia biopolítica dos modernos e seu capitalismo, sempre adaptável a crises e revoltas, consegue reforçar imunitariamente a si própria, tal qual bactérias tornadas super-resistentes a partir do uso prolongado de antibióticos: “por mais que [os xapiri pë] a façam recuar com suas investidas, ela sempre volta ao ataque, cada vez mais forte e resistente” (ibid. p. 369).
A explicação de Kopenawa para essa espécie de “resistência a antibióticos” dos xawarari se deve ao fato de que “a xawara […] é rastro de outras gentes” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 369). Se a predação cotidiana dos në wãri não se dá “à toa”, sendo parte integrante da dinâmica infinita de predação e contrapredação da terra-floresta — razão pela qual é facilmente controlável pelos espíritos xamânicos, que fazem parte da mesma dinâmica —, a predação canibal dos xawarari se dá pelo simples desejo de mercadoria, numa gula devoratória pelo minério e pelo ouro como objetos de valor de troca desligados totalmente de qualquer relação significativa e da própria lógica da floresta: “os brancos espalham suas fumaças de epidemia por toda a floresta à toa, sem se dar conta de nada, só arrancando o ouro e outros minérios da terra” (ibid. p. 365, grifo nosso).
Nesse contexto, a locução adverbial “à toa” designa a estranheza da agência napë às dinâmicas indígenas à floresta; ou seja, a ação dos brancos é caracterizada como uma intervenção de caráter eminentemente alienígena à economia cosmológica da terra-floresta, uma agência que ocorre “à toa” porque não motivada pelas relações cosmopolíticas que permeiam a rede de actantes da floresta, mas arbitrária, mobilizada por uma ilusão (o capital, ou o brilho metálico das mercadorias). Os metais de Omama não seriam extraídos das profundezas da terra pelos Yanomami e pelos demais seres da floresta pela simples razão de que sua manutenção em tais abismos é condição sine qua non do equilíbrio homeostático dos planos cosmológicos, dado que foram postos ali para impedir o colapso do céu, servindo de seu alicerce estrutural. Se os xawarari pë são causas eficientes da epidemia xawara, que dizima os xamãs e contribui para o colapso cosmológico, sua causa indireta, mas não menos necessária, é a intervenção dos napë pë — uma intervenção verdadeiramente monstruosa porque “à toa”, desligada de qualquer agência imanente à dinâmica da floresta, pretendendo-se totalmente imune a suas dinâmicas cosmológicas próprias. A ação dos napë pë é monstruosamente outra, monstruosamente exterior, extemporânea e heterotópica, intervindo na cosmologia da floresta a partir de uma cosmologia completamente alheia e, pior, eminentemente anticósmica, porque tende a anular o frágil equilíbrio em “desequilíbrio perpétuo” (Lévi-Strauss, 1993, p. 212) do cosmos.
Isto quer dizer que, embora a queda do céu, da mesma forma que hiperfenômenos como outras grandes extinções e mudanças climáticas globais, não tenha a princípio vínculo necessário com a autoimunidade dos modernos, por, nesse caso, se tratar de um acontecimento virtual interno à cosmologia yanomami, sua atualização mais provável ocorre com essa intervenção cosmológica. Pode-se dizer que o nome yanomami para essa exportação literalmente contagiosa da “doença autoimune” da modernidade naturalista para a economia cosmológica da floresta é não outro que xawara. Mais que mera designação de uma doença epidêmica entre outras, a xawara indica não menos que a própria intervenção napë sobre os destinos alheios, com a perversão de sua autoimunidade em cataclisma pandêmico exportado.
“Quando os brancos arrancam minérios perigosos do fundo da terra”, diz Kopenawa,
nosso sopro torna-se curto demais e morremos muito depressa. Não ficamos somente doentes, como antes, quando estávamos sozinhos na floresta. Agora, toda a nossa carne e até o nosso fantasma estão contaminados pela fumaça de epidemia xawara que nos consome. Por isso nossos xamãs mortos estão furiosos e querem nos proteger. Nossos fantasmas então irão juntar-se aos muitos outros que já vivem nas costas do céu. Então, o céu, tão doente quanto nós por causa da fumaça dos brancos, vai começar a gemer e se rasgar. Todos os espíritos órfãos dos antigos xamãs vão cortá-lo a machadadas. Vão retalhá-lo por inteiro, com muita raiva, e vão jogar os pedaços na terra, para vingar seus pais falecidos. Aos poucos cortarão todas as amarras do céu e ele vai despencar totalmente; e dessa vez não vai haver nenhum xamã para segurá-lo. (Kopenawa; Albert, 2015, p. 493).
A queda do céu é o fim do “mundo” todo — não apenas do mundo Yanomami (ou Araweté, ou Waiãpi etc.). Se não do cosmos como um todo, é, ao menos, fim da terra-floresta enquanto articulação entre o plano cotidiano atual e o plano mítico-espectral dos xapiri pë. Por isso, Kopenawa prevê que “desta vez creio que nem mesmo os brancos vão sobreviver” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 372), já que, “se todos os que fazem dançar os xapiri morrerem, os brancos vão ficar sós e desamparados em sua terra, devastada e invadida por multidões de seres maléficos que os devorarão sem trégua” (ibid. p. 492). Mais do que epidêmica, a queda do céu é pandêmica: afeta tanto os povos indígenas quanto os ocidentais, tanto humanos quanto extra-humanos, e até mesmo “os xapiri e a imagem de Omama serão atingidos!” (ibid.).
Assim como falamos em Antropoceno ou Capitaloceno para lidarmos com a intervenção capital-antrópica sobre o clima global, deveríamos falar em uma espécie de “Napëceno” ou “Xawaraceno” para explicitar a aceleração da queda do céu em curso, hiperfenômeno pandêmico coincidente com o Antropoceno em seus efeitos deletérios. Se tomarmos em conta as implicações desse Xawaraceno para os napë pë, veremos que a exportação de destruição imunitária termina em uma torção não apenas como resultado limite da imunologia como tal (a autoimunidade), mas também (e implicado a isso) como efeito da morte dos xamãs e dos agentes espectrais pertencentes aos biomas ameaçados através do extermínio eco-etno-genocida promovido pelos brancos e por suas epidemias. Não fosse assim, poder-se-ia argumentar que melhor seria deixar os napë pë à própria sorte, fagocitando a si mesmos em sua gana ensandecida por mercadoria — algo que, aliás, ignora as assimetrias e opressões internas ao Palácio de Cristal. Se o xamanismo implica manter os planos do phágos e do lógos separados, a denegação total do phágos, que culmina necessariamente na destruição de outros povos, humanos ou não, e, com isso, dos xamãs, além de enclausurar os brancos em seu monólogo fatalmente autofágico, termina por fazer desabar o plano mítico — denegado, mas residual — sobre o plano cotidiano.
Sozinhos em sua esfera narcísica, os brancos imunológicos terão seus mundos individualizados também dilacerados e retorcidos em linhas incessantemente aberrantes, como os aõpatari do submundo yanomami, “ancestrais vorazes de dentes afiados que devoram todos os restos de doença que os xamãs jogam para eles, embaixo da terra” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 195) e que, vítimas da antiga queda de Hutukara e praticantes de um canibalismo desregrado semelhante ao dos ancestrais humanimais yarori, estão em contínuo estado de metamorfose. “Sejam sensatos! […] quando suas fumaças de epidemia tiverem matado a todos nós e vocês construírem cidades sobre nossas pegadas esquecidas na floresta, vão destruir a si mesmos” (ibid. p. 495): eis o verdadeiro final autoimunitário dos povos imunológicos. Se sobrar alguém após o autoflagelo dos brancos, não sobrará ninguém após a queda pandêmica do céu — nem mesmo os últimos dos napë pë, escondidos em seus bunkers imunitários.
Mas o fim desse mundo não é o fim de tudo, pois não resulta no fim da possibilidade de haver espíritos e, muito menos, no fim de todo mundo possível. “[…] nosso pensamento se acalma quando pensamos que os xapiri são inúmeros e não vão morrer muito” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 496). Assim como a denegação não causa desaparecimento total, mas dependência velada, a queda do céu não implica extinção absoluta. Com todo e qualquer perspectiva desfeita, a dinâmica cósmica de predação ainda perdura, produzindo outras pessoas, palavras e dobras. “Mais tarde,” — conta Kopenawa citando a fala da utupë do céu — “se não houver mais xamãs na floresta […], vou cair de novo na terra, como no primeiro tempo! Mas dessa vez vou fazer viver em minhas costas gentes diferentes desses brancos comedores de terra tão hostis a vocês!” (ibid. p. 497).
A motivação xamânica em evitar a queda do céu não consiste, assim, na crença denegatória e narcísica de que este mundo, o “nosso”, é o único possível e que, portanto, deve ser salvo a todo custo — o que acarretaria mais autoimunidade. Ela é uma motivação de tipo “anarquista”, nada teleológica, de que outros mundos não apenas são possíveis, como reais e atuantes, aqui e agora, antes da queda do céu. Afinal, como afirma Vinciane Despret a respeito do problema da extinção: “quando um ser deixa de ser, o mundo de repente se estreita e uma parte da realidade colapsa; cada vez que uma existência desaparece, é um pedaço do universo das sensações que se esvai” (2017, p. 220). Se “o Mundo” não desaparece com o fim do Mundo, é parte da consciência xamânica que, pelo menos, cada fim de um mundo ou perspectiva particular contribui para sua falência, tornando-o mais pobre, frio e desértico — invivível.
ALBERT, B. A fumaça do metal. História e representações do contato entre Os Yanomami. Anuário Antropológico, Brasília, v.14, n.1, p. 151-189, 1990. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/view/6434. Acesso em: 12 set. 2023.
ALBERT, B. O ouro canibal e a queda do céu: uma crítica xamânica da economia política da natureza (Yanomami). In: ALBERT, B; RAMOS, A.R. Pacificando o branco. Cosmologias do contato no Norte-Amazônico. São Paulo: Ed. Unesp; IRD Éditions, 2002, p. 239-270.
ALBERT, B. Yanomami. Os mortos “desaparecidos” da pandemia. In: PELBART, P.P.;
FERNANDES, R.M. [org.]. Pandemia Crítica outono 2020, v.1. São Paulo: n-1 edições; edições SESC, 2021, p. 168-172.
ALBERT, B.; KOPENAWA, D. O espírito da floresta. Trad. de R.F. d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.
BENJAMIN, W. The Arcades Project. Trad. de H. Eiland e K. McLaughlin. Cambridge (Inglaterra): Harvard University Press, 1999.
CARROLL, J. Break-out from the Crystal Palace – the Anarcho-Psychological Critique. Stirner, Nietzsche, Dostoevsky. London (Inglaterra); New York (EUA): Routledge, 2010.
CHAKRABARTY, D. O Clima da História. Quatro teses. Sopro, Florianópolis, n.91, p. 2-22, jul. 2013. Disponível em http://www.culturaebarbarie.org/sopro/n91s.pdf. Acesso em: 12 set. 2023.
DESPRET, V. Afterword. It Is an Entire World That Has Disappeared. In: BIRD ROSE, D. et al. Extinction Studies. Stories of Time, Death, and Generations. New York (EUA): Columbia University Press, 2017, p. 217-222.
DETIENNE, M. Dioniso a cielo abierto. Los mitos del dios griego del desenfreno. Trad. de M. Mizraji. Barcelona (Espanha): Gedisa, 2003.
DONLEY, A. World’s largest mil gets even bigger. World-Grain, Kansas City (EUA), 2 nov. 2019. Disponível em: https://www.world-grain.com/articles/11620-worlds-largest-mill-gets-even-bigger. Acesso em: 12 set. 2023.
DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do subsolo. Trad. de B. Schnaiderman. São Paulo: Ed. 34, 2000.
DOSTOIÉVSKI, F. Winter notes on summer impressions. Trad. de K. FitzLyon. London (Inglaterra); New York (EUA): Quartet Books, 1985.
ESPÓSITO, R. Bios. Biopolítica e filosofia. Trad. de W.M. Miranda. Belo Horizonte: UFMG, 2017.
FAUSTO, J. Contra quem se vingam os animais?. In: PELBART, P.P.; FERNANDES, R.M. [org.]. Pandemia Crítica outono 2020, v.1. São Paulo: n-1 edições; edições SESC, 2021, p. 249-254.
GALLOIS, D.T. O discurso Waiãpi sobre o ouro. Um profetismo moderno. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 31-33, p. 457-467, 1989. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/41825764. Acesso em: 12 set. 2023.
KINGSTON, Tigga. Roosting with Bats, Globe. Lines of Thought Across Southeast Asia, Phnom Penh (Camboja), 17 abr. 2020. Disponível em: https://southeastasiaglobe.com/bats-among-natures-most-misunderstood-animals/. Acesso em: 12 set. 2023.
KOPENAWA, D; ALBERT, B. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. Trad. de B. Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
LAGROU, E. Anaconda-becoming. Huni Kuin image-songs, an Amerindian relational aesthetics. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v.24, n.51, p. 17-49, mai./ago. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/5tvJ8jZ36BwB6b4CZ6PNy4B/abstract/?lang=en. Acesso em: 12 set. 2023. DOI 10.1590/S0104-71832018000200002
LAGROU, E. Nisun: A vingança do povo morcego e o que ele pode nos ensinar sobre o novo coronavírus. Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social, Rio de Janeiro, 13 abr. 2020. Disponível em https://blogbvps.wordpress.com/2020/04/13/nisun-a-vinganca-do-povo-morcego-e-o-que-ele-pode-nos-ensinar-sobre-o-novo-corona-virus-por-els-lagrou/, acesso em 12 set. 2023.
LÉVI-STRAUSS, C. História de Lince. Trad. de B. Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
LIBERSAT, F. et al. Mind Control. How Parasites Manipulate Cognitive Functions in Their Insect Hosts. Frontiers in Psychology, Lausanne (Suíça), v.9, 1 mai. 2018, e572, p. 1-6. Disponível em: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fpsyg.2018.00572/full. Acesso em: 13 set. 2023. DOI 10.3389/fpsyg.2018.00572
LIMA, T.S. O dois e seu múltiplo. Reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi.
Mana. Estudos de Antropologia Social, Rio de Janeiro, v.2, n.2, p. 21-47, 1996. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mana/a/fDCDWH4MXjq7QVntQRfLv5N/. Acesso em: 12 set. 2023. DOI 10.1590/S0104-93131996000200002
LIMULJA, H. O desejo dos outros. Uma etnografia dos sonhos yanomami. São Paulo: Ubu Editora, 2022.
LUDUEÑA, F. Princípios de espectrologia. A comunidade dos espectros II. Trad. de L. D’Avila e M.A. Valentim. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018.
MOLINA, L.P. A subversão como método. Repensando o genocídio a partir das terras e das lutas indígenas. In: VILLELA, J.M.; VIEIRA, S.A. [org.]. Insurgências, ecologias dissidentes e antropologia modal. Goiânia: Editora da Imprensa Universitária, 2020, p. 160-183.
MONGKOLSAMRIT, S. et al. Life cycle, host range and temporal variation of Ophiocordyceps unilateralis/Hirsutella formicarum on Formicine ants. Journal of Invertebrate Pathology, Byron (EUA), v.111, n.3, p. 217-224, nov. 2012. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0022201112002194?via%3Dihub. Acesso em: 12 set. 2023. DOI 10.1016/j.jip.2012.08.007
MONTAIGNE, M. Dos canibais. Ensaios. Trad. de S. Millet. São Paulo: Ed. 34, 2016, p. 234-245.
NAPIER, D.I. I heard it through the grapevine. On herd immunity and why it is importante. Royal Anthropological Institute, London (Inglaterra), 4. Jun. 2020. Disponível em https://rai.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/1467-8322.12572. Acesso em: 13 set. 2023. DOI 10.1111/1467-8322.12572
OMS. WHO-convened Global Study of Origins of SARS-CoV-2. China Part. Genève (Suíça): OMS, jan./fev. 2021. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/who-convened-global-study-of-origins-of-sars-cov-2-china-part. Acesso em 13 set. 2023.
SCHMITT, C. Der Nomos der Erde im Völkerrecht des Jus Publicum Europaeum. 2.ed. Berlin (Alemanha): Duncker & Humblot, 1974.
SILVA, D.L.; FELIX, Y. O Palácio de Cristal e a razão ressentida. Dostoiévski e a crítica do mimo. Anais do II CIDIL, Passo Fundo, v.2, n.1, p. 332-352, jul. 2014. Disponível em: https://periodicos.rdl.org.br/anacidil/article/view/189. Acesso em: 12 set. 2023.
SLOTERDIJK, P. Im Weltinnenraum des Kapitals. Für eine philosophische Theorie der Globalisierung. Frankfurt am Main (Alemanha): Suhrkamp, 2005.
SLOTERDIJK, P. Regeln für den Menschenpark. Ein Antwortschreiben zu Heideggers Brief über den Humanismus. Frankfurt am Main (Alemanha): Suhrkamp, 2014.
SLOTERDIJK, P. Sphären III (Plurale Sphärologie). Schäume. Frankfurt am Main (Alemanha): Suhrkamp, 2004.
TAKAHASHI, D. What inspired The Last of Us (interview). VentureBeat, San Francisco (EUA), 6 ago. 2013. Disponível em https://venturebeat.com/games/the-last-of-us-creators-inspirations/. Acesso em 13 set. 2023.
THE LAST of Us [Seriado]. Direção: N. Druckmann et al. Produção: N. Druckmann; C. Mazin. Los Angeles (EUA): HBO, 2023. Streaming, 9 epi. (aprox. 50 min.), son., color.
VALENTIM, M.A. Extramundanidade e sobrenatureza. Ensaios de ontologia infundamental. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018.
VIVEIROS DE CASTRO, E. A floresta de cristal. Notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos. Cadernos de campo, São Paulo, v.15, n. 14/15, p. 319-338, 2006. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/50120. Acesso em: 12 set. 2023. DOI 10.11606/issn.2316-9133.v15i14-15p319-338
VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
VIVEIROS DE CASTRO, E. Araweté. Os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; ANPOCS, 1986.
VIVEIROS DE CASTRO, E. O medo dos outros. Revista de Antropologia, São Paulo, v.54, n.2, p. 885-917, 2011. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/39650. Acesso em: 12 set. 2023. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2011.39650
VIVEIROS DE CASTRO, E. Xamanismo transversal. Lévi-Strauss e a cosmopolítica amazônica. In: QUEIROZ, R.C.; NOBRE, R.F. [org.]. Lévi-Strauss Leituras brasileiras. 2.ed. Belo Horizonte: UFMG, 2013, p. 87-135.
WILBERT, J.; SIMONEAU, K. [ed.]. Folk Literature of the Yanomami Indians. Los Angeles (EUA): University of California, 1990.
ZIMMER, C. After This Fungus Turns Ants Into Zombies, Their Bodies Explode. The New York Times, New York (EUA), 24 out. 2019. Disponível em: https://www.nytimes.com/2019/10/24/science/ant-zombies-fungus.html. Acesso em: 12 set. 2023.
Contribuição de autoria
1 – Mauricio Fernando Pitta
Doutor em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação strictu sensu em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (2018)
https://orcid.org/0000-0002-9642-4072 • mauriciopitta@hotmail.com
Contribuição: Primeira escrita - Redação
Como citar este artigo
PITTA, F. M. A queda pandêmica do céu: Contágios entre o Palácio e a floresta. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85093, p. 1-30, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378685093. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
[1] Nas palavras de Sloterdijk: “a forma determinada da subjetividade no seio da Grande Instalação” é “definida pelo poder de compra” (2005, p. 309).
[2] Kopenawa também recebeu treinamento no campo paramédico como agente de saúde na Funai durante um breve período, por volta de novembro de 1975 (Cf. Kopenawa; ALBERT, 2015, p. 652-3). Isto não interfere em seu estatuto de xamã, dado que, como afirma Albert, “a ação conjunta dos espíritos xamânicos e a dos medicamentos industrializados são perfeitamente compatíveis na lógica terapêutica yanomami: a primeira remete à etiologia das doenças, a segunda ao tratamento dos sintomas” (ibid. p. 645).
[3] Para uma descrição pormenorizada dos planos cosmológicos yanomami, cf. Albert; Kopenawa, 2023, cap. 2. Sobre o cosmos yanomami em sua relação com os sonhos e traslados xamânicos, cf. Limulja, 2022, p. 64-65.
[4] Sobre a necessidade de se queimar os pertences do morto (não apenas xamãs) para colocá-lo em esquecimento e os problemas do sepultamento de pessoas yanomami em meio à pandemia de covid-19, cf. Albert, 2021.