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Descrição gerada automaticamente

Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85049, 2023

DOI: 10.5902/2179378685049

ISSN 2179-3786

Submissão: 02/10/2023 Aprovação: 10/01/2024 Publicação: 12/04/2024

1 PREÂMBULO DE DUAS TRÁGICAS BIOGRAFIAS. 2

2 ITINERÁRIO PELO MAR DE ESPINHOS KAFKIANO.. 5

3 ENRAIZAMENTO DO INFORTÚNIO KAFKIANO NA FILOSOFIA DE NIETZSCHE. 13

REFERÊNCIAS. 23

 

Dossiê

Nietzsche, Kafka e a dor de existir

Nietzsche, Kafka and the pain of existing

Jarlee Oliveira Silva SalvianoIÍcone

Descrição gerada automaticamente

IUniversidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil

RESUMO

O artigo faz uma análise da importância para Nietzsche e Kafka do castigo, do infligir a dor, para a efetivação da autoridade dos códigos morais na história. Ademais, procura acrescentar a esta reflexão, a partir da filosofia do primeiro e da literatura do segundo, uma análise da espetacularização da dor na constituição histórica das culturas e lançar luzes à fundamentação de uma estética do fenômeno do sofrimento e da morte, a partir do ultrapassamento de suas tradicionais configurações éticas e religiosas.

Palavras-chave: Nietzsche; Kafka; Castigo

ABSTRACT

The article analyzes the importance for Nietzsche and Kafka of punishment, of inflicting pain, for the effectiveness of the authority of moral codes in history. Moreover, it seeks to add to this reflection, from the philosophy of the first and the literature of the second, an analysis of the spectacularization of pain in the historical constitution of cultures and shed light on the foundation of an aesthetic of the phenomenon of suffering and death, from the overcoming of their traditional ethical and religious configurations.

Keywords: Nietzsche; Kafka; Punishment

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se afastou numa representação.

Guy Debord (A sociedade do espetáculo)

1 Preâmbulo de duas trágicas biografias

Vivemos em terras tupiniquins a convalescença de quatro anos de catástrofes políticas e morais. Naquele tempo (da governança bolsonarista) uma parte considerável da sociedade brasileira considerou aceitável, e mesmo louvável, que a máxima autoridade governamental fosse a representação viva do autoritarismo, da violência travestida em defesa de valores religiosos conservadores, do escárnio e desprezo aos indivíduos em nome da valorização da abstrata noção de pátria. Uma tragicomédia encenada por uma patética autoridade.

Eis um cenário adequado para uma reflexão filosófica sobre a dor de existir, da banalidade do mal, da espetacularização do sofrimento e da morte. A Genealogia da Moral de Nietzsche (1844-1900) e alguns escritos de Kafka (1883-1924) podem vir ao apoio de tal reflexão.

Tomemos uma anotação de Kafka em seu diário em 1914 como a síntese da catastrófica tanatofilia da autoridade mencionada acima: “2 de agosto: a Alemanha declarou guerra à Rússia.  – Tarde: aula de natação”.

Fortemente influenciado pela iconoclastia nietzschiana, o escritor Franz Kafka traz às claras em seus contos e novelas um aspecto (não levado à sério pelos moralistas de todos os tempos) do que Nietzsche chamou de “moralidade dos costumes”: a importância do castigo e da dor para a implementação da normatividade moral nas sociedades. Tanto o filósofo alemão (em especial na segunda Dissertação de sua Genealogia da Moral) quanto o escritor tcheco (em obras como Na Colônia Penal, O Processo e O Artista da Fome) apontam para a origem humana, demasiado humana, dos códigos de conduta[1], negando toda fundamentação metafísica ou teológica da rigidez da “camisa de força” moral e jurídica (mesmo aquela pretensamente dessacralizada e racionalizada, como é o Imperativo Categórico de Kant), além de denunciarem a ausência de fundamento, o absurdo, dos meios corretivos sociais. Destaca-se ainda a aguda análise psicológica de ambos do caráter “festivo” das manifestações do sadismo congênito da natureza humana.

A dor de existir marcou profundamente tanto as obras quanto as vidas do filósofo alemão e do escritor tcheco: duas pessoas fisicamente fragilizadas pelas intempéries das doenças que tomaram seus corpos de assalto, que os destruíram precocemente após alguns anos de rápida e dolorosa degeneração. Sabe-se que Nietzsche (o qual, como Kafka, dava-se à frequência de bordéis) passou os últimos onze anos de vida vegetando em uma cama, depois de um colapso mental decorrente, provavelmente, de enfermidades de origem sifilítica. Foi levado a se aposentar logo cedo, sofrendo por muitos anos de intensas enxaquecas e problemas de visão. Por sua vez, Kafka foi diagnosticado com tuberculose em 1917, aposentou-se no ano seguinte, vivendo até 1924, ano de sua morte, entre um sanatório e outro. Trabalhou por algum tempo com um cunhado numa fábrica de amianto (material altamente cancerígeno), o que lhe ocasionou problemas respiratórios, atacando seriamente a laringe, que o impediu completamente de se nutrir de qualquer alimento sólido.

Espiritualmente, ademais, o destino lhes foi igualmente desfavorável. Na alma de escritores geniais, no entanto, tal calvário pavimenta uma resiliente via crucis literária. A desilusão amorosa de Nietzsche perante Lou Salomé irrompeu, segundo seus intérpretes, no fulgurante Assim falou Zaratustra. Quanto a Kafka, a torturante vivência de alguns de seus personagens, que soçobram sob a absurda onipotência de uma obscura instância judiciária (a surreal sina de Josef  K. em O processo, que é processado e morto pela autoridade do Estado, sem sequer conhecer o autor e o conteúdo da acusação; o agrimensor K. de O castelo, impedido de entrar na vila a que foi convocado, levado a aguardar indefinidamente, definhando do lado de fora, diante do portal rigidamente protegido pelo guarda, pelo qual é informado, já nos últimos suspiros, que aquela porta fora feita só para ele), é uma expressão estética de sua própria patografia – para utilizar um espirituoso neologismo de Arthur Schopenhauer (1788-1860)[2]. A angústia ocasionada por tais ficções o autor vivenciou traumaticamente na infância, como revela em sua Carta ao pai:

Uma noite eu choramingava sem parar pedindo água, com certeza não de sede, mas provavelmente em parte para aborrecer, em parte para me distrair. Depois que algumas ameaças severas não tinham adiantado, você me tirou da cama, me levou para a pawlatsche [termo tcheco para balcão ou varanda] e me deixou ali sozinho, por um momento, de camisola de dormir, diante da porta fechada (Kafka, 1997, p. 12).

Pode-se concluir com segurança o quanto tal experiência trágica de ser trancado do lado de fora de casa à noite, com a tenra idade de 5 anos, afetará o espírito do futuro brilhante escritor. O próprio Kafka dá seu diagnóstico:

Não quero dizer que isso não estava certo, talvez então não fosse realmente possível conseguir o sossego noturno de outra maneira; mas quero caracterizar com isso seus recursos educativos e os efeitos que eles tiveram sobre mim. Sem dúvida, a partir daquele momento eu me tornei obediente, mas fiquei internamente lesado. Segundo a minha índole, nunca pude relacionar direito a naturalidade daquele ato inconsequente de pedir água com o terror extraordinário de ser arrastado para fora. Anos depois eu ainda sofria com a torturante ideia de que o homem gigantesco, meu pai, a última instância, podia vir quase sem motivo me tirar da cama à noite para me levar à pawlatsche e de que eu era para ele, portanto, um nada dessa espécie (Kafka, 1997, p. 12-13).

2 Itinerário pelo mar de espinhos kafkiano

Nos escritos de Kafka, além dos conhecidos labirintos burocráticos e personagens com missões aterrorizantes, abundam as representações daquela brutalidade física e psicológica, do conflito entre pais e filhos, ou entre o Estado e o cidadão.

Seu conto Na colônia penal, de 1914, pode ser lido em diferentes registros. Desde a perspectiva psicanalítica, como reflexão acerca da experiência inconsciente da conversão e da aceitação (Barth, 2013), até a de uma crítica à burocracia jurídica e seus mecanismos de opressão e exclusão: a ênfase na escrita indecifrável dos manuais de funcionamento da surreal máquina de tortura e execução, bem como o fato de que o diálogo entre o Oficial e o Explorador visitante da ilha ocorra em francês, permanecendo o Soldado todo o tempo à margem da discussão (condenado, à espera de ser deitado e atado ao “aparelho singular”). Nem sequer conhecia exatamente qual o teor de sua sentença. Quanto ao seu aspecto filosófico, convém notar uma interessante aproximação com a segunda Dissertação da Genealogia da moral de Nietzsche, no que diz respeito às temáticas da culpa, do castigo, da consciência moral etc, bem como a crítica à interpretação pedagógico-utilitarista do fomento da má consciência.

No conto, o Explorador (Reisende – espécie de representação diplomática estrangeira em visita a esta pequena colônia numa ilha tropical qualquer) é levado ao local onde seria executado um soldado condenado por indisciplina e ofensas a um superior. Um outro soldado o retém, com pesadas correntes. O Soldado é descrito como “uma pessoa de ar estúpido, boca larga, cabelo e rosto em desalinho” (Kafka, 2011, p. 29), de uma “sujeição tão canina que a impressão que dava era de que se poderia deixá-lo vaguear livremente pelas encostas sendo preciso apenas que se assobiasse no começo da execução para que ele viesse” (Kafka, 2011, p. 29-30).

O instrumento de execução será uma máquina construída na regência do antigo comandante[3], composta de três partes: a cama, o desenhador e o rastelo. O condenado é preso à cama, de bruços, coberta por uma camada de algodão. É colocado nele um tampão de feltro, para impedir que grite ou morda a língua: “o homem é obrigado a admitir o feltro na boca, pois caso contrário as correias do pescoço quebram sua nuca” (Kafka, 2011, p. 33). A função do desenhador e do rastelo (um conjunto de agulhas a funcionar em sincronia com o desenhador) é escrever a sentença do condenado em suas costas (no caso em questão: “honra o teu superior!”), lentamente, camada por camada, incluindo os arabescos que enfeitam a inscrição, num processo que pode levar de 6 a 12 horas. Depois de 2 horas o tampão é retirado “pois o homem já não tem mais força para gritar” (Kafka, 2011, p. 44). Conclui-se com a morte do condenado que, transfigurado pela dor e misticamente invadido pela verdade da inscrição em suas costas, é levado a um estado de iluminação, remissão do pecado e redenção[4].

É importante lembrar que o prisioneiro está ali totalmente alheio ao teor de sua condenação. “Seria inútil anunciá-la”, diz o Oficial, “ele vai experimentá-la na própria carne” (Kafka, 2011, p. 36). O Explorador constata ainda que o prisioneiro não sabe sequer que foi condenado a uma pena, se sua defesa fora ou não bem-sucedida: não houve, aliás, ocasião para defesa! “As coisas se passam da seguinte maneira”, diz o Oficial:

[…] em todas as questões penais estive lado a lado com o comandante e sou também o que melhor conhece o aparelho. O princípio segundo o qual tomo decisões é: a culpa é sempre indubitável! Outros tribunais podem não seguir esse princípio, pois são compostos por muitas cabeças e além disso se subordinam a tribunais mais altos. Aqui não acontece isso, ou pelo menos não acontecia com o antigo comandante. O novo, entretanto, já mostrou vontade de se intrometer no meu tribunal, mas até agora consegui rechaçá-lo – e vou continuar conseguindo. O senhor queria que eu lhe esclarecesse este caso; é tão simples como todos os outros. Hoje de manhã um capitão apresentou a denúncia de que este homem, que foi designado sua ordenança e dorme diante da sua porta, dormiu durante o serviço. Na realidade ele tem o dever de se levantar a cada hora que soa e bater continência diante da porta do capitão. Dever sem dúvida nada difícil, mas necessário, pois ele precisa ficar desperto tanto para vigiar como para servir. Na noite de ontem o capitão quis verificar se a ordenança cumpria o seu dever. Abriu a porta às duas horas e o encontrou dormindo todo encolhido. Pegou o chicote de montaria e vergastou-o no rosto. Ao invés de se levantar e pedir perdão, o homem agarrou o superior pelas pernas, sacudiu-o e disse: “Atire fora o chicote ou eu o engulo [fresse] vivo!”. São estes os fatos. Faz uma hora o capitão se dirigiu a mim, tomei nota das suas declarações e em seguida lavrei a sentença (Kafka, 2011, p. 37-38).

Convém notar aí a insistência de Kafka na caracterização da animalidade deplorável de certos personagens (como se verifica também em A metamorfose e O artista da fome): Kafka não usa o verbo “comer” (essen), mas “devorar” (fressen – no alemão, verbo destinado exclusivamente à designação da alimentação animal) para expressar a ameaça do Soldado, agarrado às pernas do seu superior. O que nos remete à descrição inicial daquele, com sua sujeição canina.

De acordo com certa perspectiva especializada[5] haveria  nesta passagem a crítica implícita da condição social de Kafka (permeada por diversos espectros de exclusão e preconceito): o escritor cresceu no seio de família judia de um gueto na Praga austro-húngara, da qual se avizinhava um sempre crescente sentimento anti-semita, que levará suas irmãs posteriormente à morte em campo de concentração nazista – a propaganda do regime deu conta de associar os judeus às pragas de animais urbanos, a serem eliminados. Por outro lado, por uma leitura psicanalítica pode-se vislumbrar no alheamento do Soldado em relação à sua sentença o processo de recalque de uma culpabilidade originária ligada a certos afetos psíquicos. Em consequência, a dolorosa e trágica experiência da tortura daquele “aparelho singular” simbolizaria o afloramento, a iluminação deste recôndito de afetos inconscientes (o enigma da esfinge de Tebas reaparece no conto pela expressividade do verbo “devorar”): “O recalcamento é uma das maneiras de o sujeito lidar com a proibição expressa pelo pai. Assim, diante do 'Não' proferido pelo pai, o sujeito deverá recalcar o seu desejo e só poderá acessá-lo pela via da negação. [...] Aqui, poderemos ligar a figura de autoridade de um capitão do exército à figura de um pai imaginário extremamente potente e ameaçador. O pai temido do Complexo de Édipo funciona como um tribunal superior para o sujeito” (Barth, 2013, p. 99).

Pode-se observar ainda, como fizera Nietzsche na Genealogia da moral, que o termo alemão para “culpa” é Schuld, que também significa “dívida”: aspecto etimológico muito importante para sua argumentação na segunda Dissertação, como veremos adiante (ali ficará clara a aproximação entre Kafka e Nietzsche em relação a este aspecto do entranhamento entre o afeto da culpabilidade e a exigência social e psíquica da quitação de uma dívida). Ambiguidade semelhante encontramos no termo Strafe (do título de Kafka: In der Strafkolonie) que guarda na língua germânica um sentido ético ou religioso (castigo) e também um sentido social ou jurídico (multa, penalidade). Ambos os conceitos aparecem como elementos fundamentais na argumentação do autor de Zaratustra em sua iconoclasta genealogia dos valores morais.

Em Na colônia penal a culpa e o castigo conduzem à redenção pela dor. Assim o Oficial descreve a nirvânica tranquilidade da expiação que se manifesta no condenado após a sexta hora de suplício:

Começa em volta dos olhos. A partir daí se espalha. Uma visão que poderia seduzir alguém a se deitar junto embaixo do rastelo. Mais nada acontece, o homem simplesmente começa a decifrar a escrita, faz bico com a boca como se estivesse escutando. O senhor viu como não é fácil decifrar a escrita com os olhos; mas o nosso homem a decifra com os seus ferimentos. Seja como for exige muito trabalho; ele precisa de seis horas para completá-lo. Mas aí o rastelo o atravessa de lado a lado e o atira no fosso, onde cai de estalo sobre o sangue misturado à água e o algodão. A sentença está então cumprida e nós, eu e o soldado, o enterramos (Kafka, 2011, p. 44-45).

Mas nem tudo ia bem para o honroso trabalho do Oficial. São constantes suas queixas da diminuição da adesão ao método e o interesse pelo espetáculo destas execuções, o que está relacionado, segundo ele, aos novos tempos de gerência do Novo Comandante. A ausência de público naquele dia e o mal funcionamento da máquina, com peças rangendo e travando (não se encontrava mais facilmente peças de reposição), são um sintoma disso. “Como era diferente a execução nos velhos tempos!” lamenta o Oficial. E continua:

Já um dia antes o vale inteiro estava superlotado de gente; todos vinham só para ver; de manhã cedo o comandante aparecia com as suas damas; as fanfarras acordavam todo o acampamento; eu fazia o anúncio de que estava tudo pronto; a sociedade – nenhum alto funcionário podia faltar – se alinhava em volta da máquina; esta pilha de cadeiras de palha é um pobre resquício daqueles tempos. A máquina, polida pouco antes, resplendia; praticamente a cada execução eu dispunha de peças novas. Diate de centenas de olhos – todos os espectadores ficavam nas pontas dos pés até aquela elevação – o condenado era posto sob o rastelo pelo próprio comandante. O que hoje um soldado raso pode fazer era naquela época tarefa minha, presidente do tribunal, e ela me honrava. E então começava a execução! Nenhum som discrepante perturbava o trabalho da máquina. Muitos já nem olhavam mais, ficavam deitados na areia com os olhos cerrados; todos sabiam: agora se faz justiça. No silêncio só se ouviam os suspiros do condenado, abafados pelo feltro. Hoje a máquina já não consegue extrair do condenado um gemido mais forte que o feltro ainda não possa sufocar, mas antes as agulhas que escrevem borrifavam um líquido cáustico, cujo emprego não é mais permitido. Bem, então chegava a sexta hora! Era impossível atender a todos os pedidos para ficar olhando de perto. O comandante, com a visão que tinha das coisas, determinava que sobretudo as crianças deviam ser levadas em consideração; eu, no entanto podia permanecer lá graças à minha profissão; muitas vezes ficava agachado no lugar com duas crianças pequenas no colo, uma à esquerda e outra à direita. Como captávamos todos a expressão de transfiguração no rosto martirizado, como banhávamos as nossas faces no brilho dessa justiça finalmente alcançada e que logo se desvanecia! Que tempos aqueles, meu camarada! (Kafka, 2011, p. 49-50).

Longe de conquistar a adesão do Explorador e quiçá a sua intervenção junto ao Novo Comandante, ele, como se sabe, reprovou duramente o antigo método, o que levou o Oficial a soltar o condenado e colocar-se a si mesmo na máquina, que o executou brutalmente, grafando a inscrição “seja justo” em suas costas.

Outro aspecto importante a ser notado na citação acima, além da crueldade dos meios de correção, é o tema da espetacularização do castigo, o caráter festivo das aplicações de execuções, o inebriante prazer da contemplação do sofrimento alheio. O conto O artista da fome é a exposição kafkiana mais impressionante deste tenebroso recôndito da alma humana. O jejuador profissional deste pequeno escrito é um moderno faquir à busca de notoriedade do público. Tudo ali remete aos sofrimentos infligidos ao próprio autor pela tuberculose laríngia que o fazia definhar de fome neste último ano de vida, 1924, o mesmo em que foi composto o conto.

Lê-se aqui igualmente a queixa quanto ao declínio do interesse neste tipo de espetáculo e a nostalgia de outros tempos, gloriosos, em que era um grande feito “organizar como empreendimento particular grandes exibições e jejum” (Kafka, 1969, p. 105). Em sua pequena jaula, diuturnamente vigiado pela cidade, o campeão de jejum era o grande herói trágico da penúria; um deleite para toda a família (como nas execuções de Na colônia penal):

Mesmo durante a noite vinham visitantes munidos de archotes, cuja luz produzia maior efeito; quando o dia estava bonito, colocavam a jaula ao ar livre e, nessas ocasiões, eram principalmente as crianças que gostavam de ver o espetáculo; enquanto tal exibição não representava para os adultos mais que uma brincadeira, a qual se associavam simplesmente por estar em moda, as crianças, ao contrário, boca aberta, dando-se as mãos umas às outras a fim de se sentirem seguras, olhavam deslumbradas aquele homem pálido, de malha preta, as costelas como que a sair, que, desprezando qualquer cadeira, ficava sentado sobre um monte de palha, que também lhe servia de cama  (Kafka, 1969, p. 105).

O show contava com a grandiosa estrutura de um badalado espetáculo midiático, incluindo o empresário, fiscais e todo o trâmite contratual. Em vista de interesses comerciais o empresário fixava o tempo máximo do jejum em 40 dias (a despeito da resistência do jejuador em continuar), visando manter a audiência do público, que poderia escassear-se com um tempo demasiado longo. Em seguida o jejuador passava por um período de intervalo até reiniciar o processo em alguns dias.

Diante da incompreensão de alguns, que o admoestavam sobre a crescente melancolia que se apossava de seu humor a cada nova jornada, o jejuador saía de si e enfurecido “se punha, para escândalo do grande público, a sacudir como um animal as barras da jaula” (Kafka, 1969, p. 110).

Com a diminuição incontornável do interesse do público e a crescente aversão a este tipo de espetáculo, restou ao artista da fome a dispensa do empresário e o contrato com um grande circo. Passou seus últimos tempos ali entre as jaulas de outros animais na estrebaria, à espera do intervalo do palco principal, quando recebia alguns entediados olhares de visitantes. A discrepância entre o ambiente da jaula do jejuador e a concorrência no entorno, entre a atmosfera ascética de seu cubículo e a selvageria vivaz dos recintos circundantes, aumentava ainda mais o desinteresse naquele outrora reluzente personagem: “Talvez, pensava então o jejuador, tudo melhorasse um pouco se a jaula não estivesse tão perto das estrebarias”. De fato, cogita ele, “tal situação representava escolha fácil demais para o público; o cheiro das estrebarias, o transporte da carne crua para as feras, os gritos dos animais na hora das refeições feriam os sentidos e acabrunhavam a alma” (Kafka, 1969, p. 113).

Ao fim inevitável do jejuador seguiu-se a sua substituição na jaula por uma jovem pantera. Escreve Kafka, em meio à fome que o desintegrava, ao martírio de uma enfermidade que destruiu seu sistema laríngeo:

Para o animal nada faltava. A comida dava-lhe prazer e os guardas traziam-na sem regatear; ela nem precisava reclamar a liberdade. Aquele nobre corpo, farto de tudo, até ao ponto de estourar, parecia trazer consigo a próprio liberdade, oculta em qualquer canto de sua queixada; de sua goela irrompia uma tão flamejante alegria de viver que não era fácil aos espectadores olhá-la de frente. Mas eles se dominavam, apertavam-se em torno da jaula e não queriam arredar um passo (Kafka, 1969, p. 115).

3 Enraizamento do infortúnio kafkiano na filosofia de Nietzsche

Esta horripilante e ao mesmo tempo fascinante estética do infortúnio kafkiana tem suas raízes filosóficas. Sabemos, pelo epistolário de Kafka, que bem cedo o futuro advogado/escritor entrou em contato com Nietzsche: reunia-se com amigos do colégio em parques para leitura em voz alta de obras do autor do Zaratustra[6]. Nos dois autores se materializa a fulgurante e rígida derrocada de toda fundamentação metafísica dos valores morais da modernidade, que se torna derrisória diante da desesperança diante de todo porto seguro místico-religioso da tradição ocidental. Trata-se da mais irrestrita defesa da gratuidade da moral, da apresentação de suas raízes humanas, fenomenicamente humanas: “A inconsequência das 'ordens sem ordenante'”, diz Günther Anders, “foi visível com nitidez a apenas dois homens, com exceção dos niilistas russos: Nietzsche e Kafka” (Apud Burnett, 2016, p. 74).

Os dois temas que perpassam os contos de Kafka aqui analisados, o castigo e a espetacularização da dor, são investigados na segunda Dissertação da Genealogia da moral de Nietzsche. Esta segunda parte do ensaio de 1886 pretende percorrer as raízes históricas de conceitos morais como culpa, má consciência, dever e outros, considerados intocáveis pela tradição ética e religiosa e que servem de importantes mecanismos de contenção da natureza destruidora do ser humano e de moldagem do sujeito constante, confiável, responsável, por intermédio daquilo que Nietzsche chamou de moralidade do costume (Sittlichkeit der Sitten), a camisa de força social, religiosa e ética que com a pesada mão da lei e seus imperativos (aí incluídos os filosóficos, como o de Kant) pretendem domesticar o bicho homem, incutindo-lhe uma memória da vontade. Em termos éticos, pode-se falar da criação de uma “consciência moral” (Gewissen), da qual se desenvolverá uma “má consciência” (que o sacerdote asceta habilmente saberá transformar no pecado) – trata-se de manter o indivíduo em sua obediência canina, diria Kafka. Uma engenhosa mnemotécnica, dizia Nietzsche, movimenta suas engrenagens e inscreve nas camadas profundas da consciência um desejo de efetivar uma palavra antes empenhada, de cumprir uma promessa, um “não-mais-querer-livrar-se-de” (Nietzsche, 1998, p. 48).

E qual o método utilizado pela moralidade dos costumes para efetivar a inscrição desta consciência moral no indivíduo? Aqui Nietzsche fornece as peças do aparelho da colônia penal kafkiana:

Como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do esquecimento?” Esse antiquíssimo problema, pode-se imaginar, não foi resolvido exatamente com meios e respostas suaves; talvez nada exista de mais terrível e inquietante na pré-história do homem do que a sua mnemotécnica. “Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória” — eis um axioma da mais antiga (e infelizmente mais duradoura) psicologia da terra. Pode-se mesmo dizer que em toda parte onde, na vida de um homem e de um povo, existem ainda solenidade, gravidade, segredo, cores sombrias, persiste algo do terror com que outrora se prometia, se empenhava a palavra, se jurava: é o passado, o mais distante, duro, profundo passado, que nos alcança e que reflui dentro de nós, quando nos tornamos “sérios”. Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória; os mais horrendos sacrifícios e penhores (entre eles o sacrifício dos primogênitos), as mais repugnantes mutilações (as castrações, por exemplo), os mais cruéis rituais de todos os cultos religiosos (todas as religiões são, no seu nível mais profundo, sistemas de crueldades) — tudo isso tem origem naquele instinto que divisou na dor o mais poderoso auxiliar da mnemônica (Nietzsche, 1998, p. 50-51). Meu grifo.

Em consequência, a introjeção histórica na consciência deste “tu deves” (a ferro e fogo!), o aparecimento da consciência moral, exigiu como seu complemento o acréscimo da má consciência: a instância legisladora, diante da insubordinação do agente, aciona a instância punitiva. O rigoroso vigia incrustado na alma é amparado pelo policiamento interno deste implacável executor: julgamento e condenação funcionando em perfeita sincronia e celeridade – com a mesma rapidez com que o Oficial, personagem de Kafka, desdobrou todo o trâmite processual do condenado, do ato à execução.

Nietzsche faz notar aos genealogistas da moral (os utilitaristas, também chamados de psicólogos ingleses) que “o grande conceito moral de 'culpa' [Schuld] teve origem no conceito muito material de 'dívida' [Schulden]” (Nietzsche, 1998, p. 52). E também que “o castigo [Strafe], sendo reparação, desenvolveu-se completamente à margem de qualquer suposição acerca da liberdade ou não-liberdade da vontade” (Nietzsche, 1998, p. 52). Aqui Nietzsche (a exemplo de seu antecessor Schopenhauer) advoga pela rejeição da longeva ideia moral do livre-arbítrio. Este consistiu num mecanismo de eras pretéritas para justificar o castigo (divino ou humano), adocicá-lo, sacralizá-lo. Debalde, pois Nietzsche nos confronta com um doloroso diagnóstico a respeito da moralização através do infligir a dor. Não se castiga, na verdade, na justificativa de que o infrator poderia ter agido de outro modo, “e sim”, diz ele, “como ainda hoje os pais castigam seus filhos, por raiva devida a um dano sofrido, raiva que se desafoga em quem o causou; mas mantida em certos limites, e modificada pela ideia de que qualquer dano encontra seu equivalente e pode ser realmente compensado, mesmo que seja com a dor do seu causador” (Nietzsche, 1998, p. 53). Esta originalíssima genealogia, que coloca na equivalência e compensação contratual das relações entre credor e devedor, desloca então o fundamento da moral de qualquer instância metafísica para as primitivas relações comerciais de compra e venda, balizadas por instituições jurídicas. Invertendo, pois, a posição kantiana, Nietzsche fundará a moral no direito. É preciso ainda notar que entre a comunidade e os cidadãos vige a mesma relação credor/devedor. O criminoso é um infrator, é aquele que rompe o contrato social, cabendo-lhe inevitavelmente a reparação jurídica, com seus bens ou com seu corpo[7].

Contudo, pode-se indagar: quais exatamente são os elementos envolvidos neste comércio moral de compensações pecuniárias na execução do castigo? Troca-se o dano, sofrimento ou prejuízo por um extraordinário contraprazer: causar, em contrapartida, um sofrimento equivalente!

A equivalência está em substituir uma vantagem diretamente relacionada ao dano (uma compensação em dinheiro, terra, bens de algum tipo) por uma espécie de satisfação íntima, concedida ao credor como reparação e recompensa –  a satisfação de quem pode livremente descarregar seu poder sobre um impotente, a volúpia de “faire le mal pour le plaisir de le faire”, o prazer de ultrajar: tanto mais estimado quanto mais baixa for a posição do credor na ordem social, e que facilmente lhe parecerá um delicioso bocado, ou mesmo o antegozo de uma posição mais elevada. Através da “punição” ao devedor, o credor participa de um direito dos senhores; experimenta enfim ele mesmo a sensação exaltada de poder desprezar e maltratar alguém como “inferior” – ou então, no caso em que o poder de execução da pena já passou à “autoridade”, poder ao menos vê-lo desprezado e maltratado. A compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade (Nietzsche, 1998, p. 54). Meu grifo.

Eis pois o motivo pelo qual o castigo encontrou abrigo confortável em todas as culturas: o tanatófilo prazer em ver sofrer ou, o que é mais prazeroso ainda, fazer sofrer. Assim, é claramente equivocada a tese utilitarista (combatida aí por Nietzsche) do castigo como instrumento pedagógico que visa ao engrandecimento moral dos indivíduos e à constituição de uma sociedade justa, garantindo a proteção dos mais fracos. Nietzsche se opõe frontalmente a esta genealogia que privilegia o que ele chamou de moral do ressentimento. Sabemos que o filósofo filia-se a Trasímaco na concepção da origem aristocrática da justiça.

Pouco tempo depois de Nietzsche desferir este duro golpe no orgulho ético da humanidade, apontando-lhe esta terrível peculiaridade psicológica, Freud confirmará tal sadismo congênito através do conceito psicanalítico de Tânatos, o impulso de morte. Contudo, nos primórdios do pensamento filosófico ocidental, no Livro 4 da República de Platão, encontramos em germe o princípio de tal constatação. Na conclusão da discussão sobre a tríplice divisão da alma (já se notou alguma aproximação desta divisão com a tríade psicanalítica composta pelo Id, Ego e Superego)[8], especulando sobre a relação entre a apetição e a ira, o filósofo grego concluirá pela distinção entre a faculdade desejante e a irascível (a racionalidade será a terceira instância), oferecendo o seguinte exemplo:

[…] uma vez ouvi uma história a que dou fé. Ela diz que Leôncio, filho de Aglaion, ao voltar do Pireu, passando ao longo do muro norte pelo lado de fora, percebeu cadáveres jazendo perto do lugar das execuções. Ao mesmo tempo, queria vê-os e deles se afastava e, por certo tempo, relutava e velava o rosto, mas, por fim, vencido pelo desejo, arregalando os olhos, correu em direção aos cadáveres e disse: “Eis aí, infelizes! Saciai-vos com o belo espetáculo!” (Platão, 2006, p. 165).

Esta esquizofrênica cena do personagem que brada consigo mesmo, ou melhor, no qual a ira do peito repreende o a mórbida apetição dos olhos seria a demonstração de que há duas faculdades da alma distintas que às vezes operam em favor da boa condução do indivíduo justo, outras vezes lhe é desfavorável. A irascibilidade deve, pois, auxiliar a racionalidade no policiamento da concupiscência, caso contrário se instala a lascívia e, consequentemente, a injustiça.

Portanto, a despeito do distanciamento de Nietzsche em relação à conclusão ascética do platonismo, deve-se notar que aquele prazer da crueldade apresentado na Genealogia já fora vislumbrado pelo filósofo helênico.

Ainda num outro ponto a exemplificação platônica desperta interesse: de fato trata-se de um “belo espetáculo”. E Nietzsche empreendeu uma excelente arqueologia da história da sacralização do dever, que foi, em seus primórdios, largamente banhado de sangue, para deleite dos espectadores. E o odor de sangue ainda permanecerá mesmo em épocas posteriores de espiritualização e sublimação (o filósofo alemão utiliza o termo já no sentido psicanalítico, como observa o tradutor Paulo César de Souza) das práticas públicas de execução do castigo: “o imperativo categórico cheira a crueldade” (Nietzsche, 1998, p. 55). Pode-se dizer que o Imperativo de Kant nada mais é que o festival de tortura em praça pública internalizado pela consciência, racionalizado e tornado conceito. A seção 6 da segunda Dissertação enfatiza este aspecto da espetacularização do castigo: era “uma verdadeira festa”; um “grande prazer festivo da humanidade antiga”, a maldade desinteressada fruída sem entraves, “como algo a que a consciência diz sim de coração!” (Nietzsche, 1998, p. 55). “Ver-sofrer faz bem, fazer-sofrer mais bem ainda”, sentencia ele. E conclui: “conta-se que na invenção de crueldades bizarras eles já anunciam e como que 'preludiam' o homem. Sem crueldade não há festa: é o que ensina a mais antiga e mais longa história do homem – e no castigo também há muito de festivo!” (Nietzsche, 1998, p. 56).

Interessa a Nietzsche a partir desta constatação avaliar dois modos de lidar com a existência da dor e do sofrimento que deram o tom na história da civilização ocidental: a interpretação cristã e seus mecanismos morais de salvação religiosa; e a concepção estética grega. Se em ambos os casos se verifica o recurso místico-religioso de amparo na divindade, no entanto as duas culturas chegaram a conclusões diametralmente opostas. Na invenção dos deuses na poesia homérica há uma peculiar relação entre o humano e o divino impensável na doutrina cristã:

Os deuses como amigos de espetáculos cruéis – oh, até onde essa antiquíssima ideia ainda hoje não permeia a nossa humanização europeia! Consulte-se Calvino e Lutero, por exemplo. É certo, de todo modo, que tampouco os gregos sabiam de condimento mais agradável para juntar à felicidade dos deuses do que as alegrias da crueldade. Com que olhos pensam vocês que os deuses homéricos olhavam os destinos dos homens? Que sentido tinham no fundo as guerras de Troia e semelhantes trágicos horrores? Não há como duvidar: eram festivais para os deuses; e, na medida em que os poetas sejam nisso mais “divinos” que os outros homens, eram também festivais para os poetas […] Toda a humanidade antiga é plena de terna consideração pelo “espectador”, sendo um mundo essencialmente público, essencialmente visível, que não sabia imaginar a felicidade sem espetáculos e festas. – E, como já disse, também no grande castigo há muito de festivo!... (Nietzsche, 1998, p. 58-59).

A alternativa cristã em relação a este primitivo desaguar das potencialidades instintivas humanas (que na poesia e tragédia grega tinham livre curso para o exterior) foi a internalização dos instintos destrutivos, a invenção da má consciência e sua mistificação através do pecado: “Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem” (Nietzsche, 1998, p. 56).

Por outro lado, no representante da moral ativa, nestes voluntários e inconscientes artistas, a má consciência não medrou, o seu egoísmo de artista a atrofiou.

De um modo geral as duas tradições, a cristã e a grega, se consolidaram percorrendo o mesmo enraizamento genealógico: o medo, o sentimento de culpa, de estar em dívida, primeiro em relação ao outro indivíduo; em seguida, em relação ao Estado; amplia-se então esta conexão psíquica aos ascendentes; enfim, com o distanciamento e divinização dos antepassados chega-se aos deuses, os originários e mais inflexíveis credores. Aqui o caminho comum separa-se por uma bifurcação que constituirá a dialética própria da tábua de valores que polarizará o ocidente: a saída ética do refúgio cristão e a escapatória estética da cultura grega.

Esta descarga instintiva habilmente manipulada pelo sacerdote cristão conduz àquilo que Nietzsche denomina o golpe de gênio do cristianismo: Deus sacrificando-se pelos humanos, a remissão dos pecados pelo martírio e sacrifício do Cristo, “o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!...” (Nietzsche, 1998, p. 80).

Há, no entanto, um modo mais nobre, diz Nietzsche, de se valer da criação dos deuses. Entre os gregos esta invenção intentou justamente afastar a má consciência![9] Se na estratégia cristã cabe ao divino pagar a dívida, o castigo, mas sem assumir a culpa (neste sentido o livre-arbítrio é, de fato, um presente de grego), entre os helenos temos outra realidade, os deuses assumem também a culpabilidade. Citando a Odisseia de Homero (a passagem que trata da desventura de Egisto), o filósofo procura confirmar esta recusa helênica da má consciência: “Estranho, como se queixam dos deuses os mortais! Apenas de nós vêm seus males, acreditam; mas são eles Que por insensatez, e mesmo contra o destino, causam o infortúnio” (Apud Nietzsche, 1998, p. 82). Pode-se indagar, como faz André Luis Muniz Garcia em seu artigo Fascinação pela crueldade: Contribuições à Genealogia da moral de Nietzsche: “por que recorrer à arte poética grega, ao mito grego, a Homero, justamente para sugerir uma alternativa textual ao fenômeno da má consciência moral e do ressentimento, da culpa, retomando ali, com a poesia épica, um artifício declaradamente estético de compreensão de fenômenos como o do sofrimento e da crueldade humanas?” (Garcia, 2020, p. 64). Transgredindo a hegemônica interpretação psicológica, antropológica ou histórica do ensaio nietzschiano, Garcia defende que a conclusão da segunda Dissertação aponta para “uma estratégica ressignificação dos fenômenos da crueldade, maldade, castigo, sofrimento e afins do âmbito da linguagem ordinária (da qual parte a própria ciência!) para o âmbito da invenção artística, da imaginação e fantasia mitopoética” (Garcia, 2020, p. 64).

Numa conclusão que remete à ideia grega da possessão divina (tal como encontramos no Diálogo platônico Íon, por exemplo[10]), arremata Nietzsche:

Mas aí se pode ver e ouvir que também esse juiz e espectador olímpico está longe de se aborrecer com os homens ou deles pensar mal: “como são loucos!” é o que pensa, ao observar os malfeitos dos mortais – e “loucura”, “insensatez”, um pouco de “perturbação na cabeça”, tudo isso admitiam de si mesmos até os gregos da era mais forte e mais valente, como motivo de muita coisa ruim e funesta – loucura e não pecado! Vocês compreendem?... Mas mesmo essa perturbação era um problema — “como é possível? como pôde isto acontecer a cabeças como as nossas, nós, de ascendência aristocrática, homens afortunados, bem constituídos, da melhor sociedade, de nobreza e virtude?” — assim se perguntou durante séculos o grego nobre, em face das atrocidades e cruezas incompreensíveis com que um de seus iguais se havia maculado. “Um deus deve tê-lo enlouquecido”, dizia finalmente a si mesmo, balançando a cabeça... Esta saída é típica dos gregos... Dessa maneira os deuses serviam para, até certo ponto, justificar o homem também na ruindade; serviam como causas do mal — naquele tempo eles não tomavam a si o castigo, e sim, o que é mais nobre, a culpa... (Nietzsche, 1998, p. 83).

A partir disso, como diagnóstico de seu tempo, Nietzsche constata no final da modernidade o declínio da fé no Deus cristão. Com ele se segue o declínio do sentimento de culpa. Teremos em Kafka, no limiar da contemporaneidade, um rebento expressivo de tal declínio.

Tivesse lido Kafka, certamente Nietzsche veria ali um sintoma vigoroso desta fulgurante perspectiva estética pré-cristã que retorna nos tempos modernos. Franz Kafka escreveu, para usar as palavras de Nietzsche, regido “por aquele tremendo egoísmo de artista, que tem o olhar de bronze, e já se crê eternamente justificado na 'obra', como a mãe no filho” (Nietzsche, 1998, p. 80). A sua Carta ao pai, entregue à mãe (que não ousou repassá-la a Hermann Chaim Kafka), talvez tenha sido a liquidação da mais importante dívida/culpa do escritor tcheco, que o torturou dolorosamente durante toda a vida.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, R. R. Nietzsche, Kafka e o niilismo: entre Filosofia e Literatura. Belém: Universidade Federal do Pará, 2016. Dissertação (mestrado em Filosofia).

BARTH, L. F. B. “Na colônia penal” de Kafka como uma figuração psicanalítica da experiência [Erfahrung] de aceitação [Annahme]. In: Revista de Letras, São Paulo, UNESP, v. 53, n. 2, p. 87-103, jul./dez. 2013.

BURNETT, H. Kafka, Nietzsche e duas parábolas. In: Philósophos, Goiânia, v. 21, n. 2, p. 69-82, jul./dez. 2016.

DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Trad. Francisco Alves e Afonso Monteiro. Lisboa: Edições antipáticas, 2005.

GARCIA, A. L. M. Fascinação pela crueldade: Contribuições à Genealogia da moral de Nietzsche.  In: Philósophos, Goiânia, v. 25, n. 1, p. 57-99, jan./jun. 2020.

KAFKA, F. Carta ao pai. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997

KAFKA, F. Na colônia penal. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

KAFKA, F. O artista da fome. Trad. Eunice Duarte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.

NIETZSCHE, F. W. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia da Letras, 1998

PLATÃO. A República. Trad. Anna Lia A. Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

PLATÃO. Íon. Trad. Cláudio Oliveira. São Paulo: Autêntica, 2011.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. Trad. Jair Barboza. São Paulo, Editora da Unesp, 2005.

SANTOS, J. A. F. Niilismo e Carta ao pai: Apontamentos entre filosofia e literatura. In: Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, n. 1 pp. 21-43, 2021

SELIGMANN, M. Kafka: o mal-estar como cultura ontem e hoje. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=V97IBw1UwUQ&t=998s. Acesso em: 04 ago. 2023.

SILVA, J. W. A Tripartição da Alma na República de Platão. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011. Tese (doutorado em Filosofia).

Contribuição de autoria

1–Jarlee Oliveira Silva Salviano

Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo

https://orcid.org/0000-0002-3347-0784 • jarleesalviano@gmail.com

Contribuição: Escrita e Primeira redação

Como citar este artigo

SALVIANO, J. O. S. Nietzsche, Kafka e a dor de existir. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 14, n. 2, e85049, p. 1-20, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378685049. Acesso em: dia mês abreviado. ano.

 



[1].             Cf. Burnett, 2016.

[2].             Schopenhauer cunha o termo em sua obra principal O mundo como vontade e representação para defender que a vida é na essência dor e sofrimento. Toda biografia (Lebensgeschichte) consistiria, portanto, numa patografia (Leidensgeschichte): um arrazoado de nossas mazelas pessoais (W I, § 59, p. 417).

[3]              Poder-se-ia vislumbrar nesta discrepância entre o antigo comandante e o novo comandante (mais complacente, menos rígido em relação à austeridade da lei e do castigo) uma referência às duas partes da Bíblia cristã? De um lado o Deus raivoso e vingativo do velho Testamento; de outro o Deus de amor da nova lei, do novo Testamento.

[4]              “Em sua genialidade de escritor, Kafka concebe um aparelho o qual, mais do que de execução, serve como dispositivo que provoca a experiência [Erfahrung] de uma verdadeira aceitação [Annahme] incorporada que foge a qualquer processo de racionalização. Ao invés de o verbo se fazer carne, apontando para que o que está no início é o simbólico, Kafka pretende que a carne se faça verbo, e seja lida, decifrada, desde o real do corpo, substância gozante, entendido aqui como pura carne” (Barth, 2013, p. 96).

[5]              Cf. Seligmann, 2023.

[6]              (Burnett, 2016, p. 70). Modesto Carone, tradutor e divulgador de Kafka no Brasil, comentando o contexto em que Kafka escrevera, constata: “Foi esta a Europa cujos valores culturais sofreram um baque com os escritos de Nietzsche, Marx e Freud. As revoluções de pensamento desencadeadas por esse trio evidentemente deixaram marcas visíveis na obra de Kafka” (Apud Burnett, 2016, p. 69-70)

[7]             Nietzsche se serve aqui da filiação dos termos Verbrecher (criminoso) e Brecher (infrator), para salientar esta tese da quebra (brechen) de contrato.

[8]             Cf. Silva, 2011.

[9]             Com isso Nietzsche retoma o tema da criação poética dos deuses olímpicos tal como apresentada em sua primeira publicação, O nascimento da tragédia: “a épica é vista como antídoto poético ao esvaziamento de sentido pela morte/sofrimento sempre iminente” (Garcia, 2020, p. 64).

[10]            Platão afirma, através de Sócrates, que o ofício do rapsodo Íon, especialista em Homero, não se dá por ciência ou técnica, mas por “entusiasmo” (enthousiazdónton): ou seja, possuído pela divino, én-theos, (com o deus dentro) (Platão, 2011). Evidentemente em Platão, contrariamente a Nietzsche, há a rejeição racionalista do inebriante fazer poético, que consistiria no descaminho da via racional da filosofia.