Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 2, e84889, 2023
Submissão: 02/10/2023 • Aprovação: 02/01/2024 • Publicação: 05/04/2024
1 APOKÁLYPSIS E KATASTROPHÉ NO FIM DA METAFÍSICA
2 A SEINSGESCHICHTE DE HEIDEGGER E A CRISE DO REGIME MODERNO DE HISTORICIDADE
3 DA CATÁSTROFE AO APOCALIPSE ENQUANTO PORVIR: UM OUTRO PENSAR E UM OUTRO AGIR
Dossiê
O apocalipse filosófico: considerações onto-historiais sobre o problema do limiar catastrófico entre a era final da técnica e um outro pensar a partir de Heidegger
The philosophical apocalypse: onto-historical considerations on the problem of the catastrophic threshold between the final age of technology and another way of thinking from Heidegger
IUniversidade Federal de Santa Catarina , Florianópolis, SC, Brasil
RESUMO
O objetivo deste trabalho é entender, por algumas vias escolhidas, o que significa pensar o limiar final da história, enquanto história da metafísica. Trata-se de partir da conferência de Derrida sobre um tom apocalíptico da filosofia contemporânea a respeito dos múltiplos fins que a filosofia do século XIX ao século XX proclamou, para evocar como Heidegger, o autor guia dessas considerações, pensa o fim da história da metafísica enquanto era da técnica e o desdobramento de suas consequências enquanto possibilidade de catástrofe civilizacional ou transformação do modo ocidental de pensar e agir. Em primeiro lugar, procura-se pensar esse fim da metafísica enquanto crise do regime metafísico e moderno de historicidade. Em segundo lugar, é preciso entender de que maneira a filosofia de Heidegger nos auxilia a pensar o limiar dessa história enquanto discordância temporal, isto é, prolongamento catastrófico do ser enquanto técnica, ou a possibilidade de um outro acontecimento. Em terceiro lugar, gostaríamos de pensar as consequências filosóficas que o pensar nesse limiar acarreta para a possibilidade do agir humano numa situação que, como podemos encontrar em Agamben, constitui o irreparável e possibilita a transparência ética da práxis no “tempo depois do último dia”.
Palavras-chave: Heidegger; Apocalipse; História
ABSTRACT
The objective of this work is to understand, through some chosen ways, what it means to think of the final threshold of history, as the history of metaphysics. It is a matter of starting from Derrida's conference on an apocalyptic tone of contemporary philosophy regarding the multiple ends that philosophy from the 19th to the 20th century proclaimed, to evoke how Heidegger, the guiding author of these considerations, thinks the end of the history of metaphysics as the age of technology and the unfolding of its consequences as a possibility of civilizational catastrophe or transformation of the western way of thinking and acting. First, we try to think about this end of metaphysics as a crisis of the metaphysical and modern regimes of historicity. Secondly, it is necessary to understand how Heidegger's philosophy helps us to think of the threshold of this history as a temporal discordance, that is, a catastrophic prolongation of being as technology, or the possibility of another event. Thirdly, we would like to think about the philosophical consequences that thinking on this threshold entails for the possibility of human action in a situation that, in Agamben’s terms, constitutes the irreparable and enables the ethical transparency of praxis in the “time after the last day.”
Keywords: Heidegger; Apocalypsis; History
1 APOKÁLYPSIS E KATASTROPHÉ NO FIM DA METAFÍSICA
Jacques Derrida, em uma conferência datada de 1980, versa sobre a tendência filosófica do século XX de adoção de um tom apocalíptico para falar do fim, seja ele o fim da história, o fim do homem, o fim da arte, entre outros fins. Em suma, esses fins referem-se ao fim de uma era e a transição, ou não, para algo outro, anunciado em um tom quase sacerdotal adotado pela filosofia a partir de uma palavra que, de maneira comum, indica o fim do mundo. Trata-se na conferência, para Derrida, de retomar o sentido grego da palavra apokálypsis, que significa desvelar, abrir, revelar, pôr a nu, e que, portanto, só adquire o sentido de catástrofe tardiamente. Essa tendência apocalíptica da filosofia pode ser vista na modernidade pelo menos a partir de Hegel, que com uma visão teleológica do desenvolvimento da metafísica pôde conceber o fim da história, no sentido de finalidade e no sentido de completude, como um pôr a nu a estrutura dessa história e de suas transformações. Além disso, as subsequentes radicalizações filosóficas de Nietzsche, com a inversão do platonismo e o revelar da proveniência mundana e pudenda da metafísica, atestam bem uma tendência filosófica que proclama um ou múltiplos fins e exige um passo a mais para uma direção que pode ser variável, mas, no caso de Nietzsche, indica a ponte para o além-do-homem. Com Heidegger, herdeiro da filosofia alemã no século XX, as coisas não se passam de forma tão diferente. No entanto, o espaço a partir do qual Heidegger tem de pensar esse limiar entre o fim de algo, como proclama Hegel, e o advento de algo outro, como indicou Nietzsche, adquire tons catastróficos.
Isso ocorre porque o fim, enquanto fim da metafísica ocidental, é entendido por Heidegger não só como a completude da metafísica, da forma como pensa Hegel, mas como a sua exaustão, tanto de suas possibilidades historiais, quanto da nossa relação com os entes determinada sob a figura historial da técnica moderna, ou Gestell. Como um herdeiro de Hegel e de Nietzsche, é ainda apropriando-se de uma interpretação particular da filosofia deste último que Heidegger expõe os fundamentos filosóficos desta última transformação da metafísica: Nietzsche, com o tornar manifesto a vontade de poder como condição incondicionada da vida, justifica filosoficamente a autonomização e a absolutização das estruturas de poder na figura da técnica moderna. Um prolongamento incondicionado da técnica significa, para Heidegger, um presente perpétuo entendido como o eterno retorno do mesmo que alimenta as estruturas de poder da maquinação, ou da Gestell, como foi denominada a essência da técnica em 1953, levando o ser humano a uma zona de perigo nunca antes vista.
Apesar de não estar em jogo, para Heidegger, uma condenação deste último momento da metafísica, a saber, a era da técnica, como possuindo algo de demoníaco ou de salvífico, mas de entender a técnica enquanto o limiar do pensamento metafísico que exauriu suas possibilidades, a dimensão catastrófica da essência da técnica, enquanto dispor para a exploração e eventual destruição dos entes - e suas consequências ônticas, como um colapso sócio-ambiental -, pode ser deduzida no horizonte heideggeriano. Assim, pensamos que a particularidade da concepção heideggeriana de uma época de transição, ou transformação, dentro do discurso apocalíptico, no sentido grego, que revela uma estrutura, a saber, a da história, e põe-se num limiar em que algo outro se mostra, consiste em seu entendimento de que o prolongamento do modo de ser e pensar herdado pela tradição ocidental é capaz de levar tanto ao esquecimento completo do ser e, com isso, da possibilidade de um outro modo de ser e de uma outra história que não a metafísica, quanto, no domínio ôntico, à aniquilação dos entes, incluindo aí os entes naturais e os seres humanos.
Desse modo, pensamos que no limiar da história da metafísica, do modo como Heidegger a entende, cabe muito bem a frase expressa por Heikkurinen: “esperar pelo inesperado e, então, preparar-se para o esperado, o colapso da civilização” (Heikkurinen, 2019, p. 1). Isso ocorre porque o perigo da época final da metafísica, para Heidegger, é uma herança já esperada do pensamento metafísico, e o seu prolongamento ilimitado é o que constitui a possibilidade de uma catástrofe sem precedentes. No entanto, o inesperado é que o pensamento sobre a essência da técnica, enquanto possibilidade final do esquecimento do ser, revele também a sua dimensão velada, que copertence à dinâmica da a-létheia, ou verdade do ser. Cabe aqui somente sublinhar que a noção de verdade do ser enquanto alétheia, ou desvelamento a partir do velamento, provém de uma reinterpretação dos pré-socráticos, de uma filosofia ambígua do claro e escuro, do que aparece e do que se vela - como o fragmento 123 de Heráclito (2000) atesta bem: physis kryptesthai philei -, a partir da qual Heidegger busca entender o ser como acontecimento temporal e, com isso, pensar uma outra relação entre homem e ser não mais focada no predomínio antropocêntrico e violento do impulso desvelador do homem, mas na doação, ou favor, do ser.
Entre uma última experiência pré-metafísica do ser com os pré-socráticos e a era da técnica desenvolveu-se mais de dois milênios de pensamento metafísico, isto é, de esquecimento do ser e sua substituição por um ente supremo. Não é possível, desse modo, para Heidegger, pensar o perigo da era da técnica desatrelado de sua filosofia da história. Nesse sentido, Heidegger fala em uma “catastrófica” essência do ser humano, do grego katastrophe, que significa uma virada de expectativas, uma reversão: “os seres humanos em sua essência são uma katastrophe - uma reversão que os afasta de sua própria essência. Entre os entes, os seres humanos são a única catástrofe.”(Heidegger, 1996, p. 77)[1]. Afastar-se de sua essência é afastar-se do ser em direção ao domínio sobre os entes, se isso pode ou não ser catastrófico em termos historiais, a catástrofe que advém da hybris de ter violentamente, a partir da techné, posto em marcha o caminho para o domínio e posterior aniquilação dos entes, com o problema da técnica e o esquecimento do ser, em breve veremos. O que Heidegger enfatiza é que o errar catastrófico do ser humano pelos entes, e o domínio total de todos os caminhos, leva à aporia, ou ao nada:
No alcançar dos seres humanos por todos os lugares, no entanto, e em cada caso chegando a "algo", eles ainda chegam a nada, porque permanecem presos com entes particulares em cada caso e falham em apreender seu ser ou sua essência em tais seres. (Heidegger, 1996, p. 76)[2].
Se ao fim o ser-humano encontra o nada é porque tanto a metafísica resulta no niilismo, ou na ausência de sentido do ser, quanto a própria questão do ser deve ser tomada em seu caráter negativo, em seu velamento, a partir do qual a ambiguidade da verdade do ser enquanto alétheia (velamento-desvelamento) pode ser pensada e a questão do ser recolocada para uma nova possibilidade de acontecimento. Dessa forma, o fim da metafísica em Heidegger constitui-se por uma ambiguidade entre o esperado e o inesperado, entre o domínio exaustivo sobre os entes e a possibilidade de um outro acontecimento do ser, de modo que a sua filosofia da história igualmente será uma via de mão dupla. É por isso que Heidegger não fala somente sobre uma superação da época final do ser, no sentido de uma Aufhebung dialética, ou uma transformação linear progressiva da história; a superação, para o filósofo alemão, só pode ocorrer a partir de um passo de volta e de uma rememoração e reapropriação de um início pré-metafísico, bem como a rememoração só pode ocorrer se há uma prospecção em direção a um outro acontecimento na história. Nesse sentido, início e fim são contemporâneos, na medida em que uma volta ao início, a partir da lembrança do acontecimento do ser, gradativamente obscurecido na história da metafísica, é pressuposta numa possível superação do fim.
2 A SEINSGESCHICHTE DE HEIDEGGER E A CRISE DO REGIME MODERNO DE HISTORICIDADE
Em termos de narrativa, pensamos que Heidegger entende a via de mão dupla da história, a partir da ontologia, como a diferença entre história da metafísica e história do ser. Isto é, se por um lado as sucessivas transformações na história da metafísica são conduzidas por um aprofundamento do esquecimento do ser e sua substituição pela entidade e pelo domínio dos entes, que se desdobra de forma cada vez mais ampla na era da técnica como um presente ultra-tético[3] caracterizado pela violência e exploração sobre os entes e pela impossibilidade da alteridade por conter tudo sob o seu domínio; por outro lado, a rememoração da história da metafísica enquanto história do ser (Seynsgeschichte) permite que a história seja desconstruída, liberada e pensada a partir do ser enquanto acontecimento, ou enquanto transformação, nos termos de Malabou (2011). O pensamento do ser, enquanto uma potência não-tética, seria capaz de romper, a partir do âmbito da possibilidade de um outro acontecimento, com os fundamentos atemporais da metafísica e com o prolongamento, no sentido de um presente constante, da técnica.
Concordamos, assim, com Schürmann (2003) quando este diz que Heidegger concebe uma discordância temporal no limiar da metafísica fundamental para pensar o conflito entre uma época que se prolonga indeterminadamente na figura catastrófica da técnica moderna e o pensamento do ser enquanto possibilidade de um outro acontecimento. Pensamos que essa ambiguidade, ou discordância temporal que expressa o limiar da metafísica em Heidegger, cabe ainda no sentido da palavra apokalypsis, analisada por Derrida:
O evento deste ‘por vir’ precede e chama o evento (...). O porvir parece-me apelar para o “lugar” (mas aqui a palavra lugar torna-se muito enigmática), digamos o lugar, o tempo, o advento do que no apocalíptico em geral não se deixa mais conter simplesmente pela filosofia, metafísica, onto-escatoteologia, e em todas as leituras que foram propostas do apocalíptico (Derrida, 1984, p. 33).
Um pensamento sobre o fim, um pensamento apocalíptico no sentido grego retomado por Derrida, contém tanto um pôr a nu, uma revelação contida em um pensamento escatológico da história, quanto um porvir que não cabe mais em uma metafísica ou em uma escatologia. Tanto Hegel, quanto Nietzsche e Heidegger, possuem, de acordo com Derrida, uma escatologia da história marcada por diferentes tonalidades, mas é nosso intuito entender, nesse primeiro momento, de que forma a filosofia da história de Heidegger se aproxima ou se diferencia do pensamento teleológico e unidimensional da história de Hegel. Em segundo lugar, é preciso entender de que maneira a filosofia da história de Heidegger nos auxilia a pensar o limiar dessa história enquanto discordância temporal, isto é, prolongamento catastrófico da manifestação do ser enquanto técnica, ou a possibilidade de um outro acontecimento. Em terceiro lugar, gostaríamos de pensar as consequências filosóficas que o pensar nesse limiar acarreta.
Em nosso entender, a teleologia histórico-filosófica de Hegel e seu desenvolvimento enquanto completude da metafísica é característica daquilo que François Hartog (1996) chama de regime moderno de historicidade, marcado pelo privilégio do futuro no desenvolvimento da história e o direcionamento a um fim enquanto progresso que, no caso de Hegel, se dá enquanto progresso do espírito que se reencontra a si mesmo nas figuras da história. Se em Hegel há uma teleologia que culmina numa meta e num fim e mesmo uma escatologia enquanto doutrina do fim - na medida em que o espírito absoluto atinge sua completude na modernidade - em Heidegger, no que concerne ao fim da história, as coisas se complexificam um pouco mais. Apesar de na filosofia da história de Heidegger, concebida na chamada Kehre, após 1930, haver uma escatologia da história, como o próprio afirma no texto A sentença de Anaximandro[4], isto é, um pensamento sobre o fim da história, este fim é marcado por uma dupla face, uma “cabeça de Janus”, ou discordância temporal, conforme indicamos acima; por um lado, conforme afirma Haar, “prolonga o projeto hegeliano de totalização que é aquele da metafísica como um todo: a vontade de apropriar, de possuir, é aplicada aqui à história do Ocidente” (Haar, 1999, p. 54), por outro lado há uma fratura no fim da metafísica, ou melhor, uma diferença compreendida a partir do ser, do impensado dessa história, enquanto aquilo que não cabe, nas palavras de Derrida, em uma onto-escatologia, e que a partir de uma destruição/rememoração de sua história cesura o presente com a possibilidade de um outro acontecimento (Ereignis).
Essa diferença, ou dupla face do fim, reflete, ao nosso ver, a crise da modernidade e suas concepções progressivas, teleológicas e racionalistas da história. Apesar de que no regime da modernidade descrito por Hartog a dimensão do tempo predominante seja a do futuro, tanto Hegel quanto Heidegger, após Ser e tempo, compartilham, em suas concepções da história, de um primado do passado em relação ao presente e ao futuro; entretanto, o olhar para esse passado possui orientações distintas. Desse modo, é possível dizer que a rememoração hegeliana do passado possui um caráter de progressivo esclarecimento, tendo o futuro como meta e compactuando com o regime moderno de historicidade de que fala Hartog, enquanto em Heidegger, nas palavras de Haar, “contrariamente a Hegel, o passado não é o produto ou resultado da história, mas uma anterioridade absolutamente inaugural” (Haar, 1999, p. 48). O futuro, por sua vez, advém do ainda não deste passado inaugural e não realizado, ou melhor, impensado, na possibilidade de um outro acontecimento; e o presente, enquanto fim da metafísica, constitui o ápice do esquecimento do ser, estabelecendo, assim, na história da metafísica uma lógica não do esclarecimento, mas do obscurecimento, ou melhor, uma “ficção crepuscular” (Haar, 1999, p. 52). Conforme afirma Haar:
O que impulsiona a história, o que permite levar em conta as mutações da essência da verdade, é o crescente esquecimento do início, da inaugural essência da verdade enquanto alétheia. É nesse sentido que se pode falar de uma inversão do hegelianismo: o devir hegeliano da verdade torna-se o progressivo estabelecimento do reino da errância, o desenvolvimento do niilismo. O encobrimento do ser esconde-se ao ponto de não deixar nada; mesmo o esquecimento se apaga. A história não é progresso da consciência em direção à auto-transparência, ou o movimento absoluto, mas é a gradual perda do senso da presença como clareira e encobrimento. O “telos maligno” que orienta a história é o completo obscurecimento do sentido do ser. (Haar, 1999, p. 51).
A despeito de ser possível dizer que há uma lógica do esquecimento na filosofia da história de Heidegger que, por assim dizer, constitui uma concepção destinal que vai de um começo (Beginn) a um fim, essa história não é conduzida pela razão e não há uma continuidade conservativa em suas etapas, mas uma descontinuidade, ou uma sucessão livre (Cf. Haar,1999, p. 51), que Heidegger chama de errância, proveniente da liberdade que subjaz o aparecer, ou a abertura, do ser ao Dasein que responde, que interpreta o modo como o ser se mostra a partir dos entes em uma época. Essa interpretação é, na perspectiva heideggeriana, sempre herdeira da metafísica, isto é, de um regime de pensamento que toma o ser pelos entes e esquece a diferença entre aquilo que aparece e a possibilidade de todo aparecer.
Embora Haar fale, no mesmo texto, que a lógica heideggeriana da história se dê entre uma dupla série de relações, a saber, as relações com o começo, que compreendem as mutações metafísicas da essência da verdade, e as relações com o fim, que abarcam a noção de preparação e a explicação das passagens de uma época para outra (Cf. Haar, 1999, p. 53), pensamos que a distinção que é necessária pensar na filosofia heideggeriana da história, pelo menos aquela que se constitui de 1930 até meados dos anos 40 e que trabalha com uma tríade axial da história, a saber, início, fim, outro início, é, como já apontamos anteriormente, entre a história da metafísica e a história do ser. Importante sublinhar que a história do ser, concebida por Heidegger, contém a história da metafísica ocidental e, até hoje, não foi nada além disso. No entanto, a história da metafísica, como progressivo esquecimento do ser, não compreende sua própria lógica e constitui-se da efetivação de uma primeira destinação do ser, isto é, da compreensão do ser enquanto entidade e da verdade enquanto adequação a partir de Platão. Já a história do ser, formulada por Heidegger, é a apropriação da história da metafísica a partir do pensamento do ser e, por isso, a tentativa de explicação das transformações epocais a partir do pensamento do ser, que só é possível através de uma volta rememorativa a um início (Anfang), que não é o começo (Beginn) da metafísica em Platão, mas um início experienciado pelos gregos e, no entanto, impensado.
Sem entrar em muitas comparações, mas é interessante notar que a dinâmica do tempo histórico em Heidegger possui algumas similaridades, guardando-se as devidas diferenças, ao pensamento da história que Benjamin formula em suas teses recolhidas em Sobre o conceito de história (2020), quando este ressalta aquilo que Hartog chama de crise do regime moderno de historicidade. Isto é, uma quebra que traz “o passado à atualidade do presente e o guarda, (...), lidando com o que ele denomina rememoração” (Hartog, 1996, p. 8), tornando, assim, o passado como algo em aberto enquanto possibilidade de futuro. Importante sublinhar que tanto Heidegger quanto Benjamin, ainda que este último de forma muito mais acentuada, compartilham da noção de kairós, ou tempo propício, utilizada por Aristóteles em Ética a Nicômano e também recorrida por Paulo na famosa carta aos Tessalonicenses que trata de responder à pergunta sobre o quando da vinda do messias. O kairós em Heidegger é traduzido por Augenblick, termo retirado também do diálogo com Kierkegaard, que pode ser entendido, em Ser e tempo, como:
a coincidência, o encontro, a identidade de futuro (como porvir, poder-ser, lance de abertura) e passado (como facticidade, ter-sido, ser-lançado). (...) Instante é o momento azado, o kairós, da libertação, da abertura e da temporalização do próprio ser (...). (Fernandes, 2015, p. 55).
A ideia de instante continua a existir na filosofia da história de Heidegger após os anos 1930 enquanto interpenetração do tempo, em que passado e futuro se iluminam, efetuando a cisão do presente, na de-cisão de homem e ser no acontecimento apropriador, termo de que falaremos um pouco adiante e que possibilita pensar a transformação na história. É uma dinâmica temporal parecida com essa de Heidegger que Hartog aponta em Benjamin como a expressão de uma crise do regime moderno de historicidade, ou seja, de uma crise da linearidade do tempo que corre em direção ao futuro:
A imagem que melhor expressa esta operação é o raio de um relâmpago: uma iluminação recíproca do passado e do presente, de um momento do presente e um do passado, apenas por um segundo. Isto significa que se olha no passado pelo futuro, de modo bem Bíblico, reconhecendo os aspectos que advirão (Hartog, 1996, p. 8).
Para Heidegger, pensar o passado, enquanto início, só é possível no fim, isto é, no máximo esquecimento do ser na técnica que é passível de revelar, outra vez no sentido apocalíptico de que fala Derrida, o ser enquanto velamento-desvelamento (alétheia). É na máxima planificação e domínio sobre os entes no fim da metafísica, na exaustão das possibilidades abertas no começo, já que no fim há uma espécie clarificação das estruturas metafísicas com a inversão do platonismo proposta por Nietzsche, que o resto dessa história, que permaneceu velado e esquecido, aparece enquanto possibilidade. O fim da metafísica, em Heidegger, de certo modo indica uma crise das transformações do ser dentro da história da metafísica, que resulta em um predomínio do presente sem intermediações e sem objetivos se retroalimentando. É por isso que a volta a um início (Anfang) da história, um início pré-metafísico como um passado não efetivado, isto é, a volta a um passado que nunca foi, permanece enquanto possibilidade de um futuro outro; um futuro que precisa ser preparado para além do perigo que o prolongamento indeterminado do fim da metafísica carrega, entendido, sob a figura da técnica, como a total efetividade das estruturas de poder e a ausência de objetivos e orientações que caracterizam o niilismo e o fim da modernidade. De fato, o início (Anfang) a qual se refere Heidegger é enigmático, mas trata-se, na crise da modernidade, de romper com as perspectivas progressivas e lineares do tempo - já que o futuro que a tradição da metafísica ocidental lega é aquele da continuidade do fim e do perigo da aniquilação -, de modo que o primeiro início retido no passado possa iluminar um outro início porvindouro.
Poder-se-ia argumentar, todavia, que Heidegger mantém-se em parte no modelo hegeliano de história, ou nos termos de Hartog, no regime moderno de historicidade, na medida em que entre início e fim se mantém a univocidade da narrativa da história ocidental, com seu início nos gregos e seu fim na Europa. Entretanto, para além das divergências apontadas mais acima, a ideia de uma rememoração que é também destrutiva da história da metafísica e uma crítica da técnica que a entende como herança e destino da tradição ocidental de pensamento parece, a todo momento, requisitar uma outra possibilidade e um outro modo de pensar nossa relação com o ser que não o ocidental até agora realizado. Não há dúvidas de que Heidegger, ao requisitar um outro início, estava pensando no destino da Europa, mas trata-se da abertura para uma outra história que não é propriamente ocidental, pelo menos no sentido metafísico, isto é, aos moldes da tradição. Sobre a possibilidade de um outro pensar e de uma outra história tal como Heidegger a entende, Haar afirma:
Apesar da precariedade dessa “outra história”, não se pode sustentar que ela entra no modelo hegeliano. Pode-se dizer que a possibilidade que é aberta pelo pensamento da escatologia é uma possibilidade vazia, uma pura ficção, um non-sense. Pode-se perguntar: pode haver um pensamento que prepara esse nada que é o totalmente outro? Que espera sem saber o que está esperando? que tem em vista a sua própria impossibilidade? Por que não? Se é verdade que o ser-aí pode antecipar sua própria morte como a possibilidade de sua impossibilidade, por que o Ocidente não poderia antecipar o seu limite? (Haar, 1999, p. 56).
Assim, pensamos que o pensamento historial de Heidegger, com a discordância temporal entre o fim e um outro início, é um pensamento que expressa bem a crise do regime moderno de historicidade e a transição para algo outro. De todo modo, Heidegger proclama o fim desse modo particular de história que tende a abarcar em si, numa única linha, todas as outras histórias em uma unidade de pensamento predominante, até mesmo pelo seu próprio modo de se relacionar com os entes, isto é, pelo domínio da physis a partir da techné, desde os gregos, tornando tudo familiar.
O fim da metafísica em Heidegger está, ao nosso ver, profundamente ligado ao fim da metafísica em Hegel na realização racional da subjetividade absoluta, embora seja a diferença que apontamos entre história da metafísica e história do ser que impeça Heidegger de pensar o fim da metafísica como uma síntese ou identidade final, ou melhor, como uma meta atingida - é por isso que podemos dizer que Heidegger não pensa em termos teleológicos, já que o fim da história da metafísica apenas abre caminho para o pensamento do ser. É a concepção heideggeriana de história do ser, enquanto desconstrução rememorativa da história a partir da diferença e sua peculiar temporalidade, que impede que o fim da metafísica seja a clausura da filosofia e a impossibilidade de uma outra história. Conforme Malabou afirma:
Hegel e Heidegger não são estranhos um para o outro. Nós dizemos isto: o ponto de ruptura é também o de sutura. Essa sutura, simplesmente colocada, não é feita por contato, mas por articulação (...) separando-os enquanto os traz para perto, e distanciando-os enquanto os une (Malabou, 2011, p. 283).
A ideia de fim da história em Hegel, conforme Kolb (1999), compreende a concepção de uma unidade forte o bastante para evitar a repulsão de múltiplas unidades e múltiplas histórias competindo entre si. As categorias a partir das quais a razão na história se desenvolve devem, por isso, ser “rigorosamente essencialistas” (Kolb, 1999, p. 65) para poder internalizar essas outras histórias e conter a possibilidade de repulsão. Entretanto, Heidegger, conforme mencionamos, dá um passo a mais: não se trata de conceber, quando Heidegger pensa a era da técnica como etapa final da metafísica, uma unidade no sentido hegeliano. Pelo contrário, a técnica é uma figura que exerce domínio sem mediação, no sentido de figura (Gestalt) e cunhagem (Prägung) elaborado por Jünger no anos 1920, enquanto um domínio não dialético que se exerce a partir do particular e, no caso de Heidegger, a partir dos entes, já que nenhuma concepção metafísica do ser, com a inversão do platonismo, se sustenta mais - marcando a ausência de orientação no niilismo e a vontade de vontade sem objetivos. Conforme coloca Kolb, para Hegel:
A alcançada necessidade de transparência das estruturas intermediárias [do espírito] marca o fim da história. Contudo, em Heidegger e seus sucessores é precisamente a falta de estruturas intermediárias que marca o fim da história. Uma vez que descobrimos que todas essas estruturas são apenas lugares de parada no fluxo de uso e vontade da Gestell (ou do capital, ou do poder, ou dos significantes), então nós alcançamos o estágio final. (...) Ao invés de ser mediada por articulações intermediárias necessárias, essa circulação universal sem objetivos está diretamente em contato com as possibilidades particulares e com as realidades (Kolb, 1999, p. 74).
Desse modo, para Heidegger, a transição para uma outra história não pode ocorrer sem que a figura da técnica seja transformada, ou, como Heidegger coloca a partir dos anos 1955, em seu texto Serenidade, sem que a nossa relação com a técnica seja transformada. História e técnica, enquanto o fim dessa história, encontram-se aqui intrinsecamente ligadas, de modo que Heidegger não pode, como sugere Kolb, “renunciar à tentativa de anunciar uma descrição privilegiada de nossa situação ou contar uma única e abrangente história sobre isso” (1999, p. 76), assumindo, para evitar a totalização em uma essência no sentido hegeliano, a repulsão historial para fora de uma unidade em direção a múltiplas histórias. Ou melhor, não se trata, para Heidegger, ao contrário do que sugere Kolb como saída, de assumir uma posição não final, ou não escatológica sobre a modernidade, de modo a evitar a totalização da história, pois a técnica, para o filósofo alemão, apesar de não ser uma unidade, ou essência, no sentido hegeliano tal como mencionamos acima, mas uma figura que se exerce sem mediações, abrange tudo e recusa-se a assumir uma identidade final, criando, assim, multiplicidades que retroalimentam um mesmo fluxo de circulação. As múltiplas histórias paralelas são, assim, incorporadas pelo limiar final da técnica, que tudo regula, e que representa também um perigo em escala planetária. Nesse sentido, Haar coloca que o perigo da técnica, para Heidegger, consiste “precisamente nessa convergência da história em uma unidade (into the One)” (Haar, 1993, p. 86), ou melhor, na Gestell como “o presumido único modo de desvelamento” (Heidegger, 2000, p. 40). Se existe uma outra história para o Ocidente, ou outras histórias, elas só podem ser pensadas, para Heidegger, ontologicamente a partir de uma outra manifestação do ser. A técnica é, portanto, o paradigma final a ser pensado se pretende-se preparar uma transformação da história.
Aplicando a terminologia de Hartog (1996), conforme apontamos, o limiar da metafísica para Heidegger, enquanto técnica, que, ao mesmo tempo em que se mostra como o ápice do esquecimento do ser, expõe, como prelúdio do Ereignis, a necessidade de uma transformação ontológica, é a expressão da crise da história. A crise da história que o Ocidente enfrenta, dentro da filosofia da história de Heidegger, seria, assim, a discordância temporal entre o primado do presente na técnica moderna enquanto a primazia da efetividade e a ausência de futuro - ou melhor, a perspectiva de um futuro apocalíptico -, e um passado em aberto que carrega a possibilidade de um futuro outro a partir de uma outra manifestação do ser. Para Ireland (2020) a proposta de Heidegger ao pensar o limiar da metafísica enquanto era da técnica é, ante o fim da linha (dead end) de um “destino derivado de uma concepção teleológica de tempo” (Ireland, 2020, p. 204), manter em aberto como força crítica “o espaço de uma alternativa ainda radicalmente impensável” (Ireland, 2020, p. 205).
A crise ontológica que Heidegger pensa como uma necessidade de transformação do ser e do ser humano, e a crise da história, trabalhada aqui enquanto discordância temporal, em termos ônticos vem acompanhada de diversas outras crises, como a crise da razão, a crise da cultura e a crise ecológica. Nada disso é estranho para Heidegger quando ele formula o problema da técnica e a desconstrução da tradição metafísica; poderia-se dizer que talvez a mais catastrófica consequência da era da técnica seja a destruição que ela implica à natureza, tal é a influência de Heidegger nas posições filosóficas eco-centradas, e que Heidegger diagnosticou antes como um problema metafísico.
Em Introdução à metafísica, de 1935, e também na conferência A questão da técnica, de 1955, Heidegger entende que a techné antiga era algo bastante diferente da técnica moderna. Se na antiguidade a techné era um saber fazer a partir do qual o ser humano irrompe na physis, isto é, um modo poiético de desvelamento, na modernidade a técnica é o próprio modo de manifestação do ser que torna o ser humano e a natureza, entendida a partir do cálculo, um fundo de reserva (Bestand) e um dispor para a exploração. Entretanto, mesmo na antiguidade, como fica claro em Introdução à metafísica, a techné grega, embora exaltada em suas múltiplas relações, pertence ao impulso humano de dominação dos entes que se converterá na linha principal que conduz as transformações metafísicas da história do ser.
Quando Heidegger, no mencionado texto de 1935, interpreta a tragédia de Édipo e a estranheza (deinon) do ser humano cantada no primeiro estásimo Antígona, o que está em jogo é justamente a denominação de um impulso desvelador do ser humano ante todas as coisas. Esse impulso e essa estranheza do ser humano (deinon), interpretada por Heidegger no mencionado primeiro estásimo de Antígona, também chamado de Ode ao homem[5], indicam, como bem afirma Hodge, a “capacidade humana para a autodestruição e para a violência” (Hodge, 1995, p. 240). Interpretando historialmente a Ode, Heidegger a entende como a indicação de um afastamento da ambiguidade, ou verdade do ser (aletheia), em uma errância por sobre o domínio dos entes, que ao final de todos os caminhos resulta em um limite, ou uma aporia, como bem mostra a expressão grega, pantoporos aporos, utilizada no estásimo de Antígona. Em termos de história da metafísica, trata-se, na expressão de Malabou (2011), de um regime de substituição do ser, entendido por Heidegger como acontecimento, transformação e temporalidade, por fundamentos ônticos, presenças, em diferentes épocas que, ao final, revelam o nada por sobre o qual estavam ancorados. Esse nada, para Heidegger, é o próprio ser enquanto não-efetividade, ou melhor, enquanto possibilidade de algo outro.
3 DA CATÁSTROFE AO APOCALIPSE ENQUANTO PORVIR: UM OUTRO PENSAR E UM OUTRO AGIR
O limite do pensamento metafísico é também o limite de uma história que, ao ver de Heidegger, se afastou, no sentido catastrófico, cada vez mais da multiplicidade do saber poiético da techné em direção a um fazer efetivo; incluindo aí o predomínio da causa eficiente aristotélica ao longo da tradição sobre as outras causas, conforme Heidegger trata em A questão da técnica, transformada na idéia de um Deus criador no cristianismo, no predomínio do ens creatum produtor de conhecimento na modernidade e, por fim, na era da maquinação e da técnica como a totalização da vontade enquanto poder e domínio sobre os entes. Assim, o fim da metafísica na era da técnica abate-se sobre o Ocidente como um destino, tal como Heidegger interpreta os envios e transformações da história, que, do mesmo modo que inescapável, engloba o mundo como um todo.
No que diz respeito a uma concepção destinal do Ocidente e do mundo, Ireland afirma que: “toda concepção de destino requer uma confrontação - e um conhecimento - da morte” (Ireland, 2020, p. 205); a morte é aqui a antecipação do limite do modo de pensar metafísico do Ocidente, a crise do futuro e a possibilidade do colapso. Trata-se de pensar o fim da metafísica, em termos de destino, conforme Ireland, a partir de uma “impotência criativa (e isso alinha o destino com o trágico)” (Ireland, 2020, p. 205). É por isso que Heidegger, para além de sua análise sobre a vontade de poder como estrutura filosófica da maquinação e da técnica moderna, insiste em um afastamento de noções como vontade, razão, e da centralidade do homem ante a possibilidade de transformação de seu destino historial, o que se torna um problema para pensar como devemos agir ante o prolongamento da metafísica enquanto um destino apocalíptico.
Apesar do campo da ética e, desse modo, da ação humana, ser uma ilustre ausência do pensamento heideggeriano, isso não significa que ela não foi ontologicamente possibilitada. Pensamos que o ético em Heidegger, em termos de resposta à questão “o que fazer em tempos de indigência?”, vem justamente do ethos, no sentido de hábito ou habitação, isto é, da necessidade de concepção de um habitar poeticamente, ou responsavelmente, sobre a terra. Heidegger desenvolve essa noção de habitar em seus diálogos com Hölderlin e em alguns textos dos anos 1950, como Construir, Habitar, Pensar (1951) e Poeticamente o homem habita (1951), no entanto, em termos de uma ontologia da história, é a ideia de ser enquanto acontecimento apropriador (Ereignis), o principal conceito heideggeriano após a viragem, que possibilita uma outra manifestação do ser e o pensamento de uma outra relação com o mundo, que não a partir do modo de ser da técnica. Nesse sentido, Malabou afirma:
Minha proposta é que o Ereignis, quando lançado e clarificado pela luz da interpretação do Heidegger tardio sobre si mesmo, deve ser encarado como um intercâmbio (interchange) no qual os elementos que circulam, ou “jogam” (play), param de procurar exercer o domínio um sobre o outro (...). No fundo, Ereignis é apenas o nome dado à possibilidade de uma troca (exchange) sem violência entre os elementos que são apropriados (...). A possibilidade dessa troca constitui para mim a dimensão ética do pensamento de Heidegger (Malabou, 2011, p. 127).
A ideia de um acontecimento apropriador, em Heidegger, é a ideia da troca de um regime metafísico que pensa a partir de fundamentos perenes, pela ideia de ser como doação, acontecimento, transformação, sem que nada de ôntico seja o causador, produtor, dessa mudança, nem que nenhum fundamento permaneça sob a transformação. O acontecimento apropriador (Ereignis) é o acontecimento do ser em sua verdade (alétheia) que, ao contrário de pertencer à ordem dos entes, corresponde à espontaneidade ontológica do ser, em sua doação. Do mesmo modo, o ser enquanto acontecimento é uma expropriação dos fundamentos ônticos, normativos e atemporais da metafísica, que revela o nada que permite que os entes possam ser desvelados. O ser enquanto acontecimento apropriador é, portanto, essa a abertura temporal de um espaço de co-pertença do conflito e da diferença entre ser e entes, mortais e deuses, terra e mundo no qual cada um, a partir de uma relação diferencial com o outro, pode ser propriamente, sem que haja o domínio de um sobre o outro, ou o predomínio da identidade em detrimento da diferença.
Desse modo, não se trata, no Ereignis, de mais uma reforma, ou reformulação do idêntico, ou do fundamento, dentro das épocas da metafísicas - conforme os termos de Malabou, que enfatizou o caráter de pura transformação do ser sem depender de algo ôntico que transforma -, mas, de uma cesura na metafísica e um desvio de rota que introduz a alteridade do ser enquanto temporalidade no domínio presentista dos entes. Entretanto, com a noção de cesura, ou ruptura, Heidegger não pretende um mero deixar para trás a metafísica; pelo contrário, o filósofo alemão sempre enfatiza que a superação (Überwindung) da metafísica é uma superação-aprofundamento (Verwindung), ou uma convalescença da mesma.
É por isso que a ideia de fim da história, ou fim da história da metafísica, torna-se importante também enquanto uma apropriação desse espaço crítico do entre dois tempos, entre a efetividade da metafísica e a possibilidade do acontecimento. Dessa forma, deve-se enfatizar que, para Heidegger, esse conflito entre dois tempos, que abarca também de alguma forma o seu conflito com a filosofia da história de Hegel, não pode ser mediado dialeticamente, mas de-cidido (Ent-scheiden) a partir de um salto entre um e outro para que esse outro espaço de habitação, ao menos do pensamento, possa ser aberto e as coisas possam adquirir uma outra visibilidade. O acontecimento apropriador é também a temporalização de um espaço de ambiguidade entre um não mais de um primeiro início, e um ainda não de um outro início, isto é, um espaço de indeterminação e ambiguidade próprio do que Heidegger quer dizer quando retoma a ideia de verdade enquanto aletheia: “a indeterminação não salva somente o enigma; ela defende a pura doação” (Malabou, 2011, p. 143)
Com a noção de ser enquanto acontecimento fica claro que Heidegger, no fim da metafísica, não está pensando em uma transformação que ocorra a partir da ação humana, mas numa transformação do ser, haja vista que, para o filósofo, a metafísica é baseada na transformação dos entes (techné), ou mesmo na transformação da entidade enquanto centralidade de um fundamento, de uma causa eficiente que produz todas as outra, por diversas que sejam as suas formas - Ideia, Energeia, Actualitas, Deus, ens creatum, técnica. Trata-se de um ponto polêmico, mas consistente na filosofia de Heidegger já que é paradoxal, nos termos de Heikkurinen (2019), que a necessidade de uma transformação no mundo tenha que advir da raíz daquilo que levou o Ocidente ao colapso, isto é, a própria ação humana. Apesar da necessidade de transformação, de modo a evitar o colapso sócio-ambiental da civilização, ser discutido na atualidade amplamente em termos ônticos, isto é, em termos de ação política e popular, o que Heidegger propõe é que a transformação que esperamos não é produto da ação humana. Além disso, para Heidegger não se trata principalmente de uma transformação no nosso modo de agir, mas antes na transformação do modo de pensar ocidental, oriundo de uma tradição de mais de dois mil anos e que tornou-se universalizado, exercendo-se hoje globalmente, pela técnica, seja como padrão de pensamento e ação, seja como ameaça global de colapso.
Sendo assim, o grande problema de uma abdicação da vontade humana e da ação ôntica numa filosofia do ser enquanto acontecimento e transformação é que não há muito o que fazer a não ser preparar um pensamento responsivo que aguarde o acontecimento, ou o chamado do ser. Em defesa de Heidegger, pode-se dizer, como ele mesmo diz, que todo pensar é um agir: “O pensar age enquanto exerce como pensar. Esse agir é provavelmente o mais singelo e, ao mesmo tempo, o mais elevado, porque interessa à relação do ser com o homem” (Heidegger, 2005, p. 8). Um outro modo de ação é pretendido por Heidegger a partir do pensar meditativo, pois “estamos ainda longe de pensar, com suficiente radicalidade, a essência do agir. Conhecemos o agir apenas como o produzir de um efeito” (Heidegger, 2005, p. 7), de modo que o pensamento é colocado, desde as Contribuições à filosofia, de 1936-38, como a ação que prepara e abre caminho para a transformação na história a partir de todo um exercício filosófico e de uma Stimmung - incluindo-se aí também a postura do deixar-ser (Gelassenheit) de 1955, como uma postura contrária à hybris da vontade e do domínio destrutivo sobre o entes - mas também de um colocar-se responsivamente ao chamado do ser.
Todavia, uma espera responsiva por um acontecimento não parece ser suficiente se formos pensar em termos da possibilidade de um arrastar-se irreparável de um modo destrutivo de ser e de uma iminente catástrofe em todos os âmbitos contemplados pela vida. Nesse sentido, penso ser interessante trazer para o encerramento desta discussão a postura de Agamben que, em algumas de suas reflexões, procura, após a revelação da violência como fundamento (da metafísica) e do fundamento enquanto violência, tal como fez Heidegger através da destruição/rememoração da metafísica, e Hegel por sua completude[6], pensar o ethos humano e sua práxis, ausente de fundamentos, tornados transparentes. Sobre essa situação final, que não espera um acontecimento, mas que é de transparência e irreparabilidade, Agamben comenta: “Irreparável é o fato de que as coisas sejam assim como são, deste ou daquele modo, entregues sem remédio a sua maneira de ser” (Agamben, 2013, p. 83). O ser, para o filósofo italiano, não funda, não destina, não nadifica e nem acontece, ele é o existente enquanto é apenas o seu ser exposto, “o seu nimbo, o seu limite. O existente não remete mais ao ser: é no meio do ser e o ser é inteiramente abandonado no existente. Sem abrigo e, todavia, salvo - salvo no seu ser irreparável” (Agamben, 2013, p. 93). O problema do como agir é ainda, segundo Agamben, o mais difícil. Para o filósofo italiano, pelo menos no texto A comunidade que vem, grosso modo, trata-se de pensar a inoperosidade de um “agir sem fazer” ou de um “desfazer e salvar o todo” (Agamben, 2013, p. 101), assim como para Zizek (2012) é tempo de pensar, não agir.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em suma, o mais difícil é pensar o porvir, a discordância temporal entre o fim e a possibilidade de algo outro, ou, conforme coloca Agamben, “o tempo depois do último dia (...) em que nada pode ocorrer porque o novíssimo ainda está em curso” (Agamben, 2013, p. 102), no sentido apocalíptico a partir do qual estamos aqui pensando. Derrida coloca o falar apocalíptico sobre o porvir, o porvir que não cabe em nenhuma onto-escatologia, como um apocalipse sem apocalipse; um porvir “sem mensagem e sem destino (...) sem nenhuma outra escatologia a não ser o tom do porvir ele mesmo; a sua própria diferença” (Derrida, 1984, p. 94). Para Heidegger, pensar a partir do acontecimento do ser é também pensar não mais a partir de um destino, como aquele que consistiu no pensamento da história da metafísica: “o Ereignis é ele mesmo a-histórico” (Malabou, 2011, p. 141), isto é, doação. Portanto, o problema final para Heidegger é pensar ser e ser-aí como exposição à temporalidade a partir de um habitar que começa pela preparação do pensamento a uma nova visibilidade e transformabilidade dos entes a partir do ser.
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Contribuição de autoria
1 – Marina Coelho
Doutoranda do programa de pós-graduação em filosofia da UFSC na área de ontologia, amparada com bolsa CAPES.
https://orcid.org/0000-0002-2918-9025 • marinacoelho95@gmail.com
Contribuição: Escrita e primeira redação
Como citar este artigo
COELHO, M. O apocalipse filosófico: considerações onto-historiais sobre o problema do limiar catastrófico entre a era final da técnica e um outro pensar a partir de Heidegger. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 14, n. 2, e84889, p. 1-24, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378684889. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
[1] [Tradução nossa]: “human beings themselves in their essence are a katastrophe - a reversal that turns them away from their own essence. Among beings, the human being is the sole catastrophe”.
[2][Tradução nossa]: “In human beings reaching everywhere, however. and in each case coming to ''something," they still come to nothing, because they remain stuck with particular beings in each case. and fail to grasp their being or essence in such beings.”
[3] O termo é de Reiner Schürmann em Broken Hegemonies (2003).
[4] Vale a pena, no contexto deste trabalho, conferir a citação de Heidegger, apesar de longa, em A sentença de Anaximandro (1998, p. 378-79) sobre a questão da escatologia do ser: “A reunião neste adeus, enquanto reunião (Logos) do mais extremo (Eskhaton) daquilo que tem sido, até aqui, o seu estar-a-ser [Wesen], é a escatologia do ser. O ser ele próprio, enquanto ser que tem um destino, é, em si próprio, escatológico. Porém, na expressão "escatologia do ser", não compreendemos a palavra "escatologia" corno título de uma disciplina teológica ou filosófica. Pensamos a escatologia do ser no sentido correspondente àquele em que há que pensar, tendo em vista a história do ser, a fenomenologia do espírito. Esta mesma constitui uma fase da escatologia do ser na medida em que o ser, como subjectidade [Subjektität] absoluta da incondicional vontade de vontade, se colige no extremo daquele que, até agora, tem sido o seu estar-a-ser [Wesen], cunhado pela metafisica. Se pensarmos a partir da escatologia do ser, então temos de esperar um dia primevo da madrugada no primevo do que há-de vir e temos de aprender hoje a pensar o primevo a partir daí”.
[5] Parte do primeiro estásimo (332-375) da Antígona de Sófocles denominado Ode ao homem, traduzido por JAA. Torrano (2018, p. 328-29): “Muitos os terrores e nenhum {EST. 1}/ mais terrível do que o homem./ Ele além do mar grisalho/ vai ao vento tempestuoso/através dos vagalhões/ fragorosos e extenua/ a suprema dos Deuses/ Terra imortal infatigável/ volvendo ano após ano/ o arado com o equino./ Ele circunda e captura {ANT. 1}/o bando de aves leves,/ a grei de feras agrestes/ e a salina fauna marinha/ nas dobras urdidas da rede,/ prudente varão: domina/ com perícia a selvagem/ fera montesa, mantém/ crinudo equino sob jugo/ e indômito touro montês./ Aprendeu a palavra, {EST. 2}/ a inteligência volátil,/ as urbanas maneiras/ a fuga/ da geada inóspita/ do céu e das intempéries,/ multívio, ínvio a nenhum/ porvir./ Somente de Hades/ não saberá fugir,/ dos males impossíveis/ descobriu a fuga (332-360)”.
[6] “O fundamento da violência é a violência do fundamento. (No capítulo cujo título é A relação absoluta da Ciência da lógica, Hegel pensou esta implicação da violência no próprio mecanismo de todo agir humano enquanto agir causal” (Agamben, 2006, p. 143).
[A1]Verificar se é volume ou número