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Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 2, e84836, 2023

DOI: 10.5902/2179378684836

ISSN 2179-3786

Submissão: 02/10/2023 Aprovação: 01/02/2024 Publicação: 05/04/2024

1 METABOLISMO E COMBUSTÃO.. 2

2 COZINHA E APOCALIPSE. 8

3 FOGO INDUSTRIAL. 14

4 “NÃO HÁ COMBUSTÃO REAL”. 17

5 IRREVERSIBILIDADE E ESPONTANEIDADE. 20

6 A ÚLTIMA PERGUNTA E O FIM DA MORTE. 25

REFERÊNCIAS. 32

 

Dossiê

Ignis mutat res

Ignis mutat res

Marco Antonio ValentimIÍcone

Descrição gerada automaticamente

I Universidade Federal do Paraná , Curitiba, PR, Brasil

RESUMO

O ensaio investiga a diferença qualitativa do fogo a partir de suas diversas configurações histórico-físicas. Com apoio em concepções de Schrödinger, Margulis & Sagan, Asimov e Prigogine & Stengers, desenvolve-se o problema da conexão entre matéria, vida e espírito por meio da comparação entre conceitos divergentes de entropia. Conclui-se com uma especulação cosmológica a respeito da historicidade da natureza.

Palavras-chave: Metabolismo; Combustão; Entropia

ABSTRACT

The essay investigates the qualitative difference of fire in view of its different historical-physical configurations. Based on conceptions by Schrödinger, Margulis & Sagan, Asimov, and Prigogine & Stengers, the problem of the connection between matter, life and spirit is developed through the comparison between divergent concepts of entropy. It concludes with a cosmological speculation about the historicity of nature

Keywords: Metabolism; Combustion; Entropy

A última mente de Homem fez uma pausa antes de se fundir, contemplando o espaço que, agora, não continha nada mais do que os resíduo da última estrela a se apagar e uma matéria incrivelmente tênue, agitada ao acaso pelas últimas ondas do calor que se dissipava assintoticamente, até o zero absoluto.

             — AC, isso é o fim? — perguntou Homem. — Este caos não pode ser revertido novamente em Universo? Isso não pode ser feito?

             AC disse:

             — OS DADOS AINDA SÃO INSUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA.

—Isaac Asimov, “A última pergunta”.

1 METABOLISMO E COMBUSTÃO

Em O que é vida?, Erwin Schrödinger afirma que, do ponto de vista físico, a vida se alimenta de “entropia negativa”, na medida em que o metabolismo vital opera como “mecanismo” capaz de produzir “ordem a partir da ordem”. Schrödinger parte da constatação histórico-científica do que enigmaticamente caracteriza os viventes:

É por evitar o rápido decaimento no estado inerte de “equilíbrio” que um organismo parece tão enigmático. Assim é que, desde os mais remotos tempos do pensamento humano, afirma-se que uma força especial não-física ou sobrenatural (vis viva, enteléquia) opera no organismo, e, em alguns recantos, ainda se afirma isso (1997, p. 83-84).

 

A vida seria “sobrenatural”, “não-física”, por violar a 2a. lei da termodinâmica: “sem essa violação, não existiria vida nem cultura” (Almeida 1999, p. 184). Mas como os seres vivos “evita[m] o decaimento”?

A resposta óbvia é: comendo, bebendo, respirando e (no caso das plantas) assimilando. O termo técnico é metabolismo. A palavra grega quer dizer troca ou câmbio. Câmbio do quê? Originariamente, a ideia básica era, sem dúvida, troca de material. (Por exemplo, a palavra alemã para metabolismo é Stoffwechsel.) É absurdo que a troca de material deva ser o essencial. Qualquer átomo de nitrogênio, oxigênio, enxofre etc. é tão bom quanto qualquer outro de seu tipo. O que se ganharia em trocá-los? Por algum tempo, no passado, nossa curiosidade foi silenciada por nos dizerem que nos alimentávamos de energia. Em algum país muito avançado (não me lembro se na Alemanha, nos EUA ou em ambos), pode-se encontrar nos cardápios de restaurantes, além do preço, o conteúdo energético de cada prato. Desnecessário dizer que, tomado ao pé da letra, isso é um absurdo. Para um organismo adulto, o conteúdo de energia é tão estacionário quanto o conteúdo material. Já que, por certo, uma caloria é tão boa quanto qualquer outra, não se consegue ver qual o interesse de uma troca pura e simples. O que é então esse algo tão precioso contido em nosso alimento, e que nos livra da morte? A isso responde-se facilmente. Todo processo, evento, ocorrência – chame-se-lhe como se quiser –, numa palavra, tudo o que acontece na Natureza significa um aumento da entropia da parte do mundo onde acontece. Assim, um organismo vivo aumenta continuamente sua entropia – ou, como se poderia dizer, produz entropia positiva – e, assim, tende a se aproximar do perigoso estado de entropia máxima, que é a morte. Só posso me manter distante disso, isto é, vivo, através de um processo contínuo de extrair entropia negativa do ambiente, o que é algo muito positivo, como já veremos. Um organismo se alimenta, na verdade, de entropia negativa. Ou, exprimindo o mesmo de modo menos paradoxal, o essencial no metabolismo é que o organismo tenha sucesso em se livrar de toda a entropia que ele não pode deixar de produzir por estar vivo (Schrödinger, 1997, p. 84-85).

 

            Segundo Schrödinger, nós não nos alimentamos, enquanto viventes, de matéria nem de energia, mas antes da “entropia negativa” que está “contida em nosso alimento”. Há modos distintos de entropia: ela pode ser positiva ou negativa, sendo que a modalidade negativa não é simplesmente privativa, pois comporta “algo muito positivo”. Qual é “positividade” da entropia negativa? Ela reside antes na forma processual da vida do que em seu conteúdo, material ou energético. Ora, se o metabolismo consiste em “‘absorver ordem’ de um ambiente conveniente” (Schrödinger, 1997, p. 88), aquele “algo tão precioso que está contido em nosso alimento” só pode ser a própria ordem, compreendida como condição físico-química resultante da capacidade de troca ambiental entre os seres físicos, tanto vivos quanto não-vivos.

            Exemplificadas respectivamente pela combustão e pelo metabolismo, entropia positiva e entropia negativa são “duas maneiras de produzir ordem” (Schrödinger, 1997: 91):

Não é preciso imaginação poética, mas apenas uma reflexão científica clara e sóbria, para reconhecer que estamos, no caso, frente a frente com eventos cujo desenvolvimento regular e ordenado é guiado por um “mecanismo” inteiramente diferente do “mecanismo probabilístico” da física. […] a situação não tem precedentes, sendo desconhecida em qualquer outro lugar além da matéria viva. O físico e o químico, investigando a matéria inanimada, nunca testemunharam fenômenos que precisassem ser interpretados dessa forma. O caso não se deu à vista e, assim, a nossa teoria não o recobre – a nossa bela teoria estatística, da qual tanto nos orgulhávamos por nos permitir olhar por trás da cortina, apreciar o emergir da magnífica ordem da lei física exata a partir da desordem atômica e molecular, por nos revelar que a mais importante, a mais geral, a totalmente abrangente lei, a do aumento da entropia, podia ser entendida sem qualquer suposição ad hoc, pois nada mais é que a própria desordem molecular (Schrödinger, 1997, p. 90).

 

A física não “recobriria a vida, porque, com a “lei exata” do aumento da entropia, ela pressupõe que desordem molecular seja o estado originário da matéria: mundo morto, feito objeto ideal de conhecimento. Afinal, como seria possível conceber a vida a partir da inércia da matéria, ou seja, a partir de sua própria negação, a morte?

A ordem encontrada no desenvolvimento da vida vem de uma fonte diversa. Parece que existem dois “mecanismos” diferentes pelos quais eventos ordenados podem ser produzidos: o “mecanismo estatístico”, que produz “ordem a partir da desordem” e um novo, que produz “ordem a partir da ordem”. Para a mente sem preconceitos, o segundo princípio parece muito mais simples, muito mais plausível. Sem dúvida o é. Eis o motivo pelo qual os físicos tanto se orgulhavam de ter encontrado o outro, o princípio da “ordem a partir da desordem”, que é realmente seguido pela Natureza e que sozinho permite entender a grande linha de eventos naturais, primeiramente, a sua irreversibilidade. Mas não podemos esperar que as “leis da física” dele derivadas bastem para explicar o comportamento da matéria viva, cujas características mais evidentes são visivelmente baseadas no princípio da “ordem a partir da ordem”. Não seria de esperar que dois mecanismos inteiramente diferentes resultassem no mesmo tipo de lei. Você não esperaria que a sua chave abrisse também a porta do vizinho. […] Precisamos estar preparados para encontrar nela um novo tipo de lei física. Ou devemos dizer uma lei não-física, para não dizer superfísica? (Schrödinger, 1997, p. 91).

            Todavia, se não é a desordem molecular, a fonte da qual cada organismo vivo absorve ordem deve ser, ao que parece, dotada ela mesma de ordem, ou seja, ser ela mesma um outro organismo vivo. O fato da exterioridade dinâmica da vida – toda ordem vem de fora, de uma ordem externa, ela mesma viva – basta a Schrödinger para qualificá-la de “sobrenatural”, isto é, “superfísica”. Não se trata, para ele, da vida enquanto processo metafísico, mas da vida enquanto processo hiperfísico: “o novo princípio físico envolvido é genuinamente físico”. Qual é o princípio da física da vida? Segundo Schrödinger, trata-se do “princípio da teoria quântica” (1997, p. 91), a que propõe, com base em evidência experimental, que o estado de entropia máxima é fisicamente inconcebível justamente por ultrapassar o domínio regido pelas leis da física: “À medida que a temperatura se aproxima do grau zero, a desordem molecular deixa de ter qualquer relação com os eventos físicos” (1997, p. 94). A exemplo da “guerra de todos contra todos” em teoria política, o ideal de entropia máxima seria um perigoso mito da teoria física: ali onde se pressupõe haver caos absoluto, acha-se a origem de toda ordem possível, nada menos que a potência hiperfísica da vida.

            É verdade que, a essa altura, Schröringer apela às “leis da mecânica quântica do Senhor” (1997, p. 95), introduzindo, para a representação teórico-científica da origem da vida, um desígnio de tipo teológico. Mas não precisamos segui-lo tão de perto. Por ora, guardemos o sentido mínimo do seu gesto “supernaturalista”: a tomada da vida como potência cósmica originariamente anti-entrópica. Com o conceito de entropia negativa, Schrödinger estabelece uma concepção físico-termodinâmica inteiramente outra, na qual a entropia surge como medida e fator de ordem:

Como poderíamos expressar em termos da teoria estatística a maravilhosa faculdade do organismo vivo, pela qual ele atrasa o decaimento no equilíbrio termodinâmico (morte)? Dissemo-lo antes: “Ele se alimenta de entropia negativa”, como se atraísse um fluxo de entropia negativa. Daqui, a esquisita expressão “entropia negativa” pode ser substituída por uma melhor: entropia, tomada com o sinal negativo, é ela mesma uma medida de ordem. Assim, a forma pela qual um organismo se mantém estacionário em um nível razoavelmente alto de ordem (= nível razoavelmente baixo de entropia) realmente consiste em absorver ordem de seu meio ambiente. Essa conclusão é menos paradoxal do que parece à primeira vista; longe disso, poderia até ser criticada como trivialidade. Na verdade, no caso de animais superiores, conhecemos bem o tipo de ordem da qual se sustentam, ou seja, o estado extremamente bem ordenado da matéria em compostos orgânicos mais ou menos complexos que lhes servem de alimento. Depois de utilizá-lo, devolvem-no em uma forma muito degradada – mas não inteiramente degradada, pois plantas ainda podem usá-lo (estas, é claro, têm na luz solar seu fornecimento mais potente de “entropia negativa”) (Schrödinger, 1997, p. 85).

Ao comparar entre si combustão e respiração, interpretando organismos vivos como máquinas térmicas, Michael Faraday já argumentava em favor da dependência mútua entre os reinos animal e vegetal no processo neguentrópico da vida. O metabolismo possuiria, segundo ele, a virtude de transformar desordem em ordem:

É maravilhoso pensar que esta alteração produzida pela respiração, e que parece que nos é prejudicial (porque não podemos respirar o mesmo ar duas vezes), é a vida e o suporte das plantas e vegetais que crescem à superfície da terra. O mesmo acontece debaixo da superfície da terra, nos grandes lençóis de água: os peixes e outros animais respiram segundo o mesmo princípio, embora não exactamente pelo contato com a atmosfera. Esses peixes, como os que tenho aqui [apontando para um aquário de peixes dourados], respiram o oxigênio que se encontra dissolvido na água e produzem ácido carbônico; todos eles trabalham de modo a tornarem o reino animal e o reino vegetal dependentes um do outro. E todas as plantas que crescem à superfície da terra, tal como estas que vos trago como exemplo, absorvem carbono; estas folhas obtêm o seu carbono da atmosfera à qual o fornecemos na forma de ácido carbónico, e as plantas crescem e prosperam. Dêem-lhes um ar puro como o nosso e elas não conseguirão viver nele; dêem-lhes carbono com outras matérias e elas vivem e rejubilam. Este pedaço de madeira captou todo o seu carbono, tal como as árvores e as plantas, da atmosfera que, como vimos, transporta para longe de nós o que é mau para nós e ao mesmo tempo bom para eles – o que é doença para uns é saúde para outros. E por isso somos dependentes, não só das criaturas como nós, mas de todos os seres vivos, a Natureza reunida pelas leis que fazem com que uma parte se conduza para o bem da outra (Faraday, 2003, p. 113-114).

            Mas qual é a contrapartida da entropia positiva no processo metabólico? Aquilo que é devolvido metabolicamente “em uma forma muito degradada” se torna sempre, para outro organismo e para o próprio ambiente, um catalisador energético-material de ordem? Mas o que diríamos de motores térmicos cujo calor é produzido pela combustão dos mesmos seres vivos supostamente capazes de metabolizar o dispêndio energético-material que acarretam? Cabe contrapor à prodigiosa demonstração de Faraday a constatação do papel inegável da entropia positiva, particularmente antropogênica, na atual configuração do sistema Terra. Consideremos o testemunho sombrio de Sebald em Os anéis de Saturno:

Assim como antes as florestas haviam colonizado a Terra em padrões aleatórios, crescendo juntas gradualmente, assim também agora campos de cinzas devoram o mundo de folhagem verde de maneira igualmente aleatória. Quando hoje sobrevoamos de avião a Amazônia ou Bornéu e vemos as enormes montanhas de fumaça, aparentemente imóveis sobre a cobertura da floresta, que de cima parece um macio chão de musgo, temos então uma ideia mais clara dos possíveis efeitos de tais queimadas, que às vezes duram meses a fio. O que na Europa pré-histórica foi poupado ao fogo mais tarde foi abatido para a construção civil e naval, e para obter o carvão necessário à fundição do ferro em vastas quantidades. Já no século XVII existem apenas resquícios insignificantes das antigas florestas em todo o reino insular, a maioria delas negligenciadas. As grandes queimadas são agora feitas do outro lado do oceano. Não é à toa que o Brasil, país quase imensurável, deve seu nome à palavra francesa para carvão. Reduzir a carvão espécies vegetais elevadas e queimar de forma incessante toda substância combustível foram o impulso para nossa disseminação pela Terra. Da primeira lanterna até os revérberos do século XVIII e do brilho dos revérberos até o fulgor pálido das lâmpadas de arco voltaico sobre as rodovias belgas: tudo é combustão, e combustão é o princípio mais recôndito de cada objeto que produzimos. A fatura de um anzol, a manufatura de um xícara de porcelana e a produção de um programa de televisão fundam-se em última instância no mesmo processo de combustão. Tal como nossos corpos e nossos desejos, as máquinas que idealizamos têm um coração cujas brasas se extinguem lentamente. Desde o início, toda civilização humana não foi mais que uma incandescência que cresce hora a hora de intensidade, da qual ninguém sabe dizer até que grau aumentará e quando começará a minguar progressivamente (2010, p. 171-172).

Mesmo que contestemos a universalidade irrestrita que Sebald atribui ao “pecado termodinâmico” (2010, p. 178), não podemos deixar de reconhecer, em contrapartida a Schrödinger, a existência de máquinas entrópicas que produzem não só ordem a partir da desordem, mas também, e sobretudo, desordem a partir da ordem, operando contra as condições materiais, energéticas e ordinais que tornam possível o seu funcionamento. Diante disso, como fica a diferença entre as maneiras de produzir ordem? Será a combustão um tipo de metabolismo, ou será o metabolismo um tipo de combustão? Afinal, no que diferem um motor e um coração?

2 COZINHA E APOCALIPSE

Schrödinger, dizem Margulis & Sagan, “nunca concebeu a vida como um simples fenômeno mecânico” (2002, p. 17):

A manutenção energética da unidade, enquanto os componentes, em caráter contínuo ou intermitente, são rearranjados, destruídos e reconstruídos, partidos e consertados, é o metabolismo. De acordo com a 2a. lei da termodinâmica, a auto-sustentação, a autopoiese, só preserva ou aumenta a ordem interna mediante uma contribuição para a “desordem” do mundo externo, conforme os restos metabólicos vão sendo excretados, havendo uma emissão de calor. Todos os seres vivos têm que realizar o metabolismo e, por conseguinte, todos precisam criar uma desordem local: calor inútil, ruído e incerteza. A visão autopoética da vida difere dos ensinamentos padronizados da biologia. Em sua maioria, estes deixam implícito que o organismo existe independentemente do seu meio, e que o meio é sobretudo um pano de fundo estático e sem vida. Entretanto, os seres orgânicos e o meio ambiente acham-se entrelaçados. […] As interações ocorrem conforme os organismos se ligam pela água e pelo ar. […] É a soma dessas interações incontáveis que produz o mais amplo nível da vida: a biosfera azul, com toda a coerência holárquica e a misteriosa grandeza de sua evolução a partir do cosmos sombrio. […] A luminosidade do Sol teve um aumento de 30% ou mais desde o início da vida na Terra. Mas os seres vivos só podem crescer e se reproduzir numa faixa limitada de temperatura, dentro da qual a água é líquida. […] O aumento da luminosidade solar deveria ter elevado drasticamente a temperatura da superfície terrestre desde esses tempos imemoriais. Visto que não ocorreu nenhum aumento dramático – na verdade, a tendência talvez tenha sido para um resfriamento –, a temperatura de toda a biosfera veio se mantendo. Ao reagir, a vida parece ter conseguido esfriar a superfície planetária de maneira a contrabalançar, ou mais que isso, o superaquecimento do Sol. Sobretudo, ao retirar da atmosfera os gases de estufa (como o metano e o dióxido de carbono), que aprisionam o calor, mas também ao modificar sua cor e forma superficiais (retendo água e fazendo crescer o limo), a vida reagiu, prolongando sua própria sobrevivência. […] Portanto, o que é vida? […] É a matéria desenfreada, capaz de escolher sua própria direção para prevenir indefinidamente o momento inevitável do equilíbrio termodinâmico – a morte (2002, p. 33-35, 66).

Se os organismos vivos forem considerados independentes do seu ambiente, eles não seriam diferentes, no que diz respeito ao comportamento face à lei da entropia, de máquinas de combustão. Contra isso, Margulis & Sagan destacam o caráter “autopoiético” (Maturana & Varela, 1997) do metabolismo como razão da diferença de natureza entre eles. Os seres vivos organizam-se a si mesmos, autoproduzem-se, em reação espontânea ao equilíbrio termodinâmico. A energia e a matéria “inúteis” que os organismos vivos exportam a fim de manter a sua unidade autopoiética contra a morte térmica são, ao mesmo tempo, informação e alimento para os outros organismos com os quais se eles encontram em “simbiose” (Margulis, 1999). A autopoiese é “simpoiese” (Haraway, 2016). Um exemplo dessa capacidade é fornecido pela constituição da biosfera sob condições térmicas de origem extra-planetária radicalmente adversas à sua manutenção. Em sua origem, a vida fora capaz de contrabalançar, em escala cósmica, a morte térmica imposta pelo Sol. Isso significa que a vida “viola” por completo a 2a. lei da termodinâmica, instaurando ordem contra desordem, fazendo o calor fluir do frio para o quente? Margulis & Sagan sugerem que não: “a segunda lei continua válida, desde que se encare o sistema (a vida) em seu meio ambiente”, visto que os organismos de fato geram entropia positiva. Mas, graças ao seu caráter simpoiético, essa entropia não é inútil, ao propiciar condições favoráveis à autopoiese de outros organismos. Se a vida não cancela a lei, ela torna o seu cumprimento pelo menos problemático, pois é capaz de “escolher sua própria direção para prevenir indefinidamente o momento inevitável do equilíbrio termodinâmico”. De destino inexorável, a morte térmica torna-se um perigo a ser evitado, embora jamais eliminável.

            Trata-se, portanto, do problema da situação cósmica da vida. Concedamos que a biosfera terrestre seja um sistema termodinâmico neguentrópico – mas, e quanto ao seu efeito extra-terrestre? Não faz ela senão acelerar a entropia cósmica? “Quanto mais vida há no universo, mais depressa as várias formas de energia degradam-se em calor” (Margulis & Sagan, 2002, p. 30). Em Escolha a catástrofe, Asimov argumenta de maneira contundente contra a suposta excepcionalidade cosmológica da vida:

A própria vida, bastante independente da inteligência humana, parece desafiar a segunda lei da termodinâmica. Indivíduos morrem, mas novos indivíduos nascem e a juventude é, agora, tão predominante quanto sempre foi. A vegetação morre no inverno, mas cresce novamente na primavera. A vida tem existido na Terra por mais de 3 bilhões de anos e não mostra sinal de se esgotar. Na verdade, tudo denota um fortalecimento, dado que, em toda a sua história na Terra, a vida tem se tornado cada vez mais complexa, tanto no caso de organismos individuais como na teia ecológica que os liga uns aos outros. A história da evolução biológica representa um grande decréscimo de entropia. Por causa disso, algumas pessoas chegaram a definir a vida como um dispositivo de diminuição de entropia. Se isso fosse verdade, então o universo nunca experimentaria uma morte pelo calor, já que, onde quer que a vida exercesse influência, isso automaticamente agiria para diminuir a entropia. Verifica-se, contudo, que tudo isso é incorreto. A vida não é um dispositivo de diminuição de entropia e não pode, por si só, evitar a morte pelo calor. A descrença nessas afirmativas é fruto de compreensão falha e fantasias. […] toda a vida animal prospera e mantém sua entropia num nível baixo à custa de um grande aumento na entropia de sua comida que, em última análise, consiste na vegetação da Terra. Como, então, o mundo vegetal continua a existir? Afinal de contas, ele não pode existir por muito tempo se sua entropia cresce continuamente. O mundo vegetal produz a comida e o oxigênio (componente fundamental do ar) de que o mundo animal necessita, pelo processo chamado “fotossíntese”. Há bilhões de anos que o faz; mas, então, a vida vegetal e animal tomada como um todo não é também um sistema fechado. As plantas recebem a energia que estimula sua produção de comida e oxigênio da luz solar. É a luz solar, portanto, que faz a vida possível. Por conseguinte, o próprio Sol deve ser incluído como parte do sistema vital, antes de se aplicar as leis da termodinâmica à vida. E a entropia do Sol cresce regularmente, a uma proporção que ultrapassa de muito qualquer decréscimo entrópico possivelmente resultante da vida. A troca satisfatória na entropia do sistema que inclui a vida e o Sol é, assim, um crescimento constante e pronunciado. O grande decréscimo de entropia representado pela evolução biológica, então, é apenas uma gota no oceano do aumento de entropia representado pelo Sol; ater-se à gota em detrimento do oceano é interpretar os fatos da termodinâmica de modo completamente errôneo (1979, p. 31-33).

 

Asimov baseia a sua argumentação no pressuposto de que, enquanto os sistemas vivos são abertos, o universo que os engloba é “o único sistema verdadeiramente fechado” (1979, p. 21). Ademais, assume o ser humano como paradigma da vida, descrevendo a entropia cósmica como processo eminentemente antrópico, como se a vida humana (ou ainda, um certo modo humano de existência) pudesse representar a vida em geral quanto à sua situação no cosmos. O resultado é um diagnóstico oposto, no qual o Sol predomina sobre a Terra, e o homem sobre a vida, enquanto a entropia – positiva, pois Asimov sequer reconhece a legitimidade da hipótese neguentrópica de Schrödinger – se afirma como lei inviolável.

            Contra tal concepção helio-antropo-cêntrica da vida, Margulis & Sagan propõem que, quanto à sua origem, a vida é feita de “matéria estelar”: “A vida, fenômeno local da superfície terrestre, na verdade só pode ser compreendida em seu meio cósmico” (2002, p. 44). Mas o que devemos entender por “meio cósmico” da vida? De duas uma: ou a vida é intrinsecamente terrestre, estando submetida de todo à dinâmica local do planeta, ou constitui uma potência cósmica originária, a qual excede por princípio a sua situação na Terra. Nesta segunda hipótese, a vida não se reduz a um fenômeno cosmicamente circunstancial e efêmero, mas antes opera como condição da efetividade dinâmica da própria matéria. No mesmo sentido, ao propor a distinção entre entropia positiva (ordem a partir da desordem, com produção de desordem destrutiva) e entropia negativa (ordem a partir da ordem, com produção de desordem criativa), Schrödinger não faz menos que desvelar um outro princípio cósmico de dinâmica da matéria, princípio hiperfísico pelo qual se põe em questão a validade universal das leis da termodinâmica, em especial, o pressuposto, no qual elas se sustentam, de que o universo é um sistema fechado (primeira lei) e de que o seu colapso térmico é um fato inevitável (segunda lei). Ora, se a vida é “matéria desenfreada capaz de escolher sua própria direção para prevenir indefinidamente o momento inevitável do equilíbrio termodinâmico – a morte” (2002, p. 66), como se poderia manter sem mais, de acordo com as leis da termodinâmica, que ela não faz senão reagir à morte, consistindo em uma efêmera excepcionalidade terrestre? Não é ao menos possível que, onde a matéria resiste ao equilíbrio termodinâmico, haja vida enquanto potencialidade da “matéria estelar”? Assim concebida, a vida extrapolaria a biosfera terrestre e, mais ainda, a própria dimensão orgânica: a “organicidade”, isto é, a vida tal como a experimentamos e conhecemos dentro dos limites da biosfera, não seria senão uma das suas manifestações enquanto potência cósmica anti-entrópica.

            De um tal ponto de vista, metabolismo vital (entropia negativa) e combustão maquínica (entropia positiva) corresponderiam a variações qualitativas de energia como vida da matéria. De um lado, um fogo que alimenta; de outro, um fogo que aniquila. A variação é brilhantemente comentada por Bachelard, em A psicanálise do fogo, a partir da intuição “primitiva” de que, se vida é fogo, o fogo é “ultravivo”:

O fogo é íntimo e universal. Vive em nosso coração. Vive no céu. Sobe das profundezas da substância e se oferece como um amor. Torna a descer à matéria e se oculta, latente, contido como o ódio e a vingança. Dentre os fenômenos, é realmente o único capaz de receber tão nitidamente as duas valorizações contrárias: o bem e o mal. Ele brilha no Paraíso, abrasa no Inferno. É doçura e tortura. Cozinha e apocalipse. É prazer para a criança sentada ajuizadamente junto à lareira; castiga, no entanto, toda desobediência quando se quer brincar demasiado perto com suas chamas. O fogo é bem-estar e respeito. É um deus tutelar e terrível, bom e mau. Pode contradizer-se, por isso é um dos princípios de explicação universal (2008, p. 11-12).

Mas, se há um fogo da morte e um fogo da vida, trata-se do mesmo calor voltado contra si mesmo ou de calores qualitativamente diferentes? Se há transformação qualitativa do calor, qual é o papel do espírito nessa transformação? Há uma dimensão noética constitutiva dos processos termodinâmicos, ou o pensamento é apenas uma expressão acidental desses processos? Para corroborar a complexidade do nexo cósmico entre entre fogo, vida e espírito, temos o elo noético-ígneo “psicanalisado” por Bachelard:

A teoria desse fogo imanente à matéria determina um materialismo especial para o qual seria preciso criar uma palavra, pois representa uma nuance filosófica importante, intermediária entre materialismo e o animismo. Esse calorismo corresponde à materialização de uma alma ou à animação da matéria, é uma forma de passagem entre matéria e vida (2008, p. 111-112)

            “Cozinha e apocalipse”: metabolismo animal e combustão maquínica são instâncias de uma tensão imanente à natureza e ao espírito do fogo. Eis a hipótese.

3 FOGO INDUSTRIAL

Até aqui consideramos de perto somente uma dessas modalidades hipotéticas do calor, o metabolismo animal. O que dizer da modalidade oposta, a combustão maquínica? Como afirmam Ilya Prigogine & Isabelle Stengers, trata-se da “ciência do fogo industrial” (1984, p. 83). Em A nova aliança, eles demonstram como o fenômeno da combustão maquínica ensejou nada menos que uma revolução científica e política, na qual o poder do fogo para transmutar as coisas fora capturado para a produção de “máquinas de um gênero novo” (1984, p. 83). A partir da experiência de que “a combustão liberta calor, e [de que] o calor pode provocar uma variação de volume da matéria, produzindo um efeito mecânico”, inventaram-se as “máquinas térmicas que fazem surgir a sociedade industrial” (1984, p. 83). A “questão” da qual nasceu a ciência termodinâmica não foi a da natureza do calor, mas de sua “utilização” (1984, p. 83).

            As consequências resultantes tiveram enorme impacto cósmico e político: uma “nova concepção do homem como máquina energética”, uma “nova concepção da sociedade como motor térmico” e uma “nova concepção da própria natureza como ‘energia’, isto é, como poder de criação e produção de diferenças qualitativas” (Prigogine & Stengers, 1984, p. 90). Homem, sociedade e natureza foram reintegrados em um só sistema termodinâmico pautado pelo modelo anti-metabólico de combustão: “O mundo queima como uma fornalha” (1984, p. 91). A combustão maquínica é anti-metabólica porque passa a ser compreendida e performada na forma da “caldeira afogueada das locomotivas, onde o carvão queima sem recuperação para que seja produzido movimento” (1984, p. 90). A consequência fundamental é “sem recuperação”: “Máquina térmica nenhuma restituirá ao mundo o carvão que devorou” (1984, p. 91), pois “nenhuma diferença de energia pode ser criada sem destruição de uma diferença ao menos equivalente” (1984, p. 93). Esse seria o contexto da formulação das duas primeiras leis da termodinâmica por Clausius, em 1865, por via de uma extrapolação cosmológica da indústria: “A energia do mundo é constante. / A entropia do mundo tende ao máximo” (1984, p. 96). A cosmologia sombria que, ao invocar a morte térmica do universo como destino incontornável, conspira para a dissipação irrefreável do calor é própria da civilização industrial.

            Conceitualmente, a revolução comentada por Prigogine e Stengers é expressa pela “intrusão da irreversibilidade na física” (1984, p. 93) – evento que torna obsoleto o modelo mecanicista da reversibilidade dos processos físicos por contenção da energia produzida. Em vista da obra posterior de Stengers, o termo “intrusão” se destaca, pois é o mesmo que a filósofa empregará, em No tempo das catástrofes, para caracterizar a agência catastrófica de Gaia, a Terra viva, sobre o mundo humano “emancipado” da biosfera planetária. Segundo Stengers (2015), a “intrusão de Gaia” é o retorno negativo produzido pela máquina industrial da civilização mundial. Já em A nova aliança, Prigogine & Stengers discerniam os efeitos nefastos da cosmologia industrial:

Por um lado, como já assinalamos, admite-se geralmente que o tema do tempo tomou uma importância singular, no século XIX. Parece que em todos os campos se descobre o caráter essencial do tempo: evoluções das formações geológicas, das espécies, das sociedades, da moral, do gosto, das linguagens. Por outro lado, pode decerto afirmar-se que a forma específica pela qual o tempo se introduz na física, designadamente a evolução para a homogeneidade e a morte, ressoa com arquétipos míticos e religiosos muito antigos. As repercussões culturais da mutação social e econômica da época podem igualmente ser reveladas; a transformação rápida do modo técnico de inserção na natureza e o progresso que se acelera no século XIX levantam uma inquietação que ainda hoje é testemunhada pelo sucesso de proposições como “limites ao crescimento” ou “crescimento zero”. A obsessão do esgotamento dos estoques e da paragem dos motores e a idéia de um declínio irreversível traduzem certamente essa angústia própria do mundo moderno (1984, p. 94).

No conceito termodinâmico-clássico de entropia, irmanam-se ominosamente progresso e catástrofe: “O século abriu-se sobre a estabilidade real do sistema solar e está agora cheio de angústia, diante das degradações implacáveis do fogo” (Serres apud Prigogine & Stengers, 1984, p. 239, nota 118). Poder-se-ia até mesmo propor que a civilização moderna constitui a epifania do fogo subterrâneo: “A mansão das liberdades modernas repousa sobre uma base de uso de combustíveis fósseis em permanente expansão”; “a maior parte de nossas liberdades até hoje consumiu grandes quantidades de energia” (Chakrabarty, 2013, p. 11). Compreendida e performada como espontaneidade absoluta em meio ao ambiente cósmico, a liberdade consiste em um fator noético decisivo para a aceleração da degradação entrópica da biosfera planetária; ela coincide com a combustão catastrófica da Terra.

            Em Capitalismo e colapso ambiental, Luiz Marques assim comenta o efeito de retorno negativo provocado pela revolução da ciência termodinâmica:

Entre 1965 e 2010, o consumo global per capita de energia primária aumentou pouco mais de 50%. Esse aumento imenso em menos de meio século gerou um efeito de retorno negativo particularmente pronunciado porque quanto mais o homem contemporâneo anseia por deter ou mesmo acredita estar prestes a deter a chave que lhe dará acesso a recursos energéticos quase infinitos da natureza, mais se vê ameaçado seja pela escassez energética, seja pelos efeitos ainda mais destrutivos de sua abundância. Quanto mais se sofisticam as formas de extração de energia, mais energia é necessária para obter o mesmo montante de energia e para tentar “gerir” a desordem na natureza e na sociedade causada pelos processos de obtenção e dispêndio dessa energia (2016, p. 620-621).

Antes mesmo que o universo físico, o fogo industrial constitui provavelmente o maior exemplo conhecido de um sistema animado por entropia positiva, produção de ordem a partir de desordem, com exportação de máxima desordem. Se a questão permanece em aberto na escala macrocósmica, é certo que o sistema em isolamento que chamamos de civilização industrial tende irresistivelmente à morte térmica.

4 “NÃO HÁ COMBUSTÃO REAL”

Segundo Prigogine & Stengers, “a produção de entropia traduz uma evolução irreversível do sistema”:

As transformações reversíveis pertencem à ciência clássica, no sentido de que elas definem a possibilidade de agir sobre um sistema, de controlá-lo. […] O caráter reversível da evolução e a submissão ao controle pelas condições aos limites são inteiramente solidários. Neste quadro, a irreversibilidade é definida negativamente, e só aparece como uma evolução “incontrolada” que se produz cada vez que o sistema escapa ao domínio. Mas este ponto de vista pode ser invertido e ver-se, nos processos irreversíveis que fazem baixar o rendimento, o derradeiro traço que possa subsistir da atividade espontânea e intrínseca da matéria numa situação em que as manipulações conseguem canalizá-la. […] o objeto termodinâmico, contrariamente ao objeto dinâmico, nunca é controlado senão parcialmente; pode lhe acontecer “escapar-se” numa evolução espontânea porque, para ele, nem todas as evoluções se equivalem (1984, p. 96-97).

Os autores propõem assim que a irreversibilidade entrópica pode ser compreendida como equivalente a uma “atividade espontânea e intrínseca”, uma “evolução”, da matéria. Como que por inversão de perspectiva, a irreversibilidade passa a ser definida positivamente como espontaneidade, a partir do reconhecimento de que a matéria é criativa. A matéria não está fadada “irreversivelmente” – obrigatoriamente – ao equilíbrio termodinâmico. A pressuposição inquestionável do equilíbrio como télos dos processos físicos na termodinâmica clássica seria, portanto, um resquício do mesmo mecanicismo com que, sob outro aspecto, ela rompe em definitivo.

            Conclusivamente, Prigogine & Stengers argumentam de maneira prospectiva:

À reversibilidade inteiramente ideal da dinâmica clássica opõem-se dois estilos de devir que a irreversibilidade à qual a dinâmica alargada dá sentido permite pensar. Um, suspenso no passado, corre mais provavelmente para o equilíbrio; o outro está aberto a um futuro mais propriamente histórico: é o das estruturas dissipativas que constituem a chance das singularidades aleatórias. Mas nenhuma necessidade lógica impunha que, na natureza, existissem realmente estruturas dissipativas; foi preciso o “fato cosmológico” de um universo capaz de manter certos sistemas longe do equilíbrio para que o mundo fosse povoado de “observadores”, isto é, uma natureza (1984, p. 214).

É tal potencialidade constitutivamente imprevista e imprevisível, a “chance das singularidades aleatórias [‘observadoras’]”, que eles parecem ter em vista quando ensejam sutilmente, na última seção do livro, que as “metamorfoses da ciência” são acompanhadas por “metamorfoses da natureza”: “Que mundo é esse a propósito do qual reaprendemos a necessidade de respeito? […] Este mundo que parece renunciar à segurança de normas estáveis e permanentes é, sem dúvida, um mundo perigoso e inseguro” (Prigogine & Stengers, 1984, p. 215, 225-226).

            Veremos adiante como Prigogine & Stengers fundamentam filosófica e cientificamente a inversão de perspectiva pela qual a entropia negativa revela o seu caráter (o)positivo, a ponto de justificar-se a afirmação de algo como a espontaneidade criativa da natureza, evidente inclusive nas transformações que, por desígnio ou constrangimento, o conhecimento científico sofre. Mas, antes disso, consideremos ainda a questão que os autores colocam, no fim de A nova aliança, a partir da necessidade ontológica de compor, no conceito de natureza, dois pontos de vista que, tomados em separado, se mostram incompossíveis, o ponto de vista da “degradação e da morte” e o da vida e da criação:

A termodinâmica do equilíbrio constitui, na verdade, a primeira resposta dada pela física ao problema da complexidade da natureza. Essa resposta formula-se como dissipação da energia, esquecimento das condições iniciais, evolução para a desordem. Quando a dinâmica, ciência das trajetórias eternas e reversíveis, era estranha as preocupações do século XIX, a termodinâmica do equilíbrio foi capaz de opor ao ponto de vista das outras ciências o seu próprio ponto de vista acerca do tempo. E esse ponto de vista é o da degradação e da morte. Já Diderot colocava a questão: “Que somos nós, seres sensíveis e organizados, no mundo inerte e submisso da dinâmica?”. Há um século que nossa cultura é dilacerada por esta questão nova: o que é a evolução dos seres vivos, das suas sociedades, das suas espécies, no mundo em desordem crescente da termodinâmica? Que relação haverá entre o tempo termodinâmico da aproximação do equilíbrio e o tempo do devir complexo, esse tempo que Bergson dizia ser criação, ou absolutamente nada? (Prigogine & Stengers, 1984, p. 103).

            Testemunhamos a sobreposição tensa dos dois pontos de vista na narrativa do fluxo descontínuo de consciência por Louise Banks, protagonista de “História da sua vida”, de Ted Chiang:

Embora eu seja proficiente em heptápode B, sei que não experimento a realidade da mesma forma de um heptápode. Minha mente foi modelada na forma das linguagens sequenciais humanas, e nenhuma intensidade de imersão em uma língua alienígena pode reformulá-la completamente. Minha visão de mundo é um amálgama de humano e heptápode. Antes de aprender a pensar em heptápode B, minhas memórias cresciam como as cinzas de um cigarro queimando, em coluna, descarnadas pela linha infinitesimal de combustão que era minha consciência, que marcava o presente sequencial. Depois que aprendi heptápode B, novas memórias se encaixaram como blocos gigantes, cada um medindo anos de duração, e embora não tenham chegado na ordem nem aterrissado contiguamente, logo formaram um período de cinco décadas. É o período no qual eu conheço a língua heptápode B bem o suficiente para pensar a partir dela, começando com minhas entrevistas com Melindrosa e Framboesa e terminando com minha morte. Normalmente, o heptápode B afeta apenas minha memória: minha consciência segue rastejando como fazia antes, um estilhaço reluzente se arrastando adiante no tempo, a diferença residindo nessas cinzas de memória, que estão tanto à frente quanto atrás: não há uma combustão real. Contudo, às vezes, tenho vislumbres quando o heptápode B realmente predomina e vivencio passado e futuro ao mesmo tempo; minha consciência se transforma em uma brasa de meio século de duração queimando fora do tempo. Eu percebo, durante esses vislumbres, toda essa época como uma simultaneidade. É um período que abrange o resto de minha vida, e a totalidade da sua (2016, p. 186-187).

Trata-se de uma ruptura com a flecha do tempo: uma superação da irreversibilidade entrópica positiva na experiência da vida em sua totalidade parcial (“e a totalidade da sua”). “Não há combustão real”, pois nos havemos com um outro fogo, o da combustão noética, capaz de irreversibilidade negativa, ou seja, de espontaneidade criativa. Louise habita existencial e cosmologicamente dois mundos distintos, regidos por leis físicas divergentes. A multiplicidade da perspectiva vital – variação noética – é inseparável da complexidade da dinâmica cósmica – variação ígnea.

5 IRREVERSIBILIDADE E ESPONTANEIDADE

            Ao reformular a questão de Diderot, Prigogine & Stengers procuram articular, no conceito filosófico-científico de natureza, distintos pontos de vista que, sendo tomados isoladamente, se mostram incompossíveis: o “ponto de vista da degradação e da morte”, o do equilíbrio, e o ponto de vista da criação e da vida, o do “não-equilíbrio” (1984, p. 103). Ou melhor, estão em jogo três pontos de vista: o mecânico, que, identificando equilíbrio a reversibilidade, toma os processos físicos como instâncias de uma ordem plenamente inteligível – cosmos como máquina perfeita; o termodinâmico, que, identificando equilíbrio a irreversibilidade, os determina como instâncias de um colapso universal – cosmos como caldeirão entrópico; e o biológico, que, interpretando a irreversibilidade como criadora, considera os processos físicos-químicos como instâncias de “caos artístico controlado” (Margulis & Sagan, 2002, p. 44) – cosmos como organismo neguentrópico inteligente. Os autores procuram compor esses pontos de vista mediante a noção de não-equilíbrio, capaz de fundamentar uma cosmologia em que geração e degradação se combinam indiscernivelmente em uma dinâmica irreversível ao mesmo tempo criativa e destrutiva, sempre longe do equilíbrio (mecânico ou térmico).

            No prefácio à edição brasileira de Entre o tempo e a eternidade (1992), eles começam por criticar duas formas de alienação conhecimento científico em relação à natureza: uma que consiste na “submissão a leis que reduzem a invenção a uma aparência”, e outra, no “jogo arbitrário de acontecimentos aleatórios, ininteligíveis” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 9). No primeiro caso, trata-se da redução da entropia a um epifenômeno da matéria, efêmero e local, quando não apenas a uma ilusão resultante de compreensão pré-científica dos fenômenos físicos. No segundo caso, trata-se da identificação da entropia ao caos molecular ou mesmo à desordem total. Essas formas de alienação acham-se, segundo eles, ligadas a duas atitudes epistêmicas problemáticas: “profundo pessimismo”, de um lado, e “otimismo arrogante”, de outro. Ou ordem perfeita, ou caos absoluto. O título da obra, Entre o tempo e a eternidade, exprime a pretensão de resolver a antinomia cosmológica “entre o tempo irreversível das descrições fenomenológicas e a eternidade inteligível das leis que deviam permitir-nos interpretar essas descrições” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 19). A antinomia resulta de que as leis da física clássica ou não reconhecem ou não admitem o potencial generativo da irreversibilidade do tempo – e isso, justamente devido ao ideal de equilíbrio pressuposto tanto pela mecânica do século XVII quanto pela termodinâmica do século XIX. É contra a eternidade das leis da física que Prigogine & Stengers afirmam a irreversibilidade do tempo (“assimetria entre o antes e o depois”), a afetar inclusive essas mesmas leis, reconhecidas então como contingentes, sem prejuízo de sua validade relativa. Por outro lado, contra a interpretação escatológica da irreversibilidade, eles concebem a assimetria temporal como condição primordial para a “evolução criadora” dos processos físicos: um “eterno recomeçar” (Prigogine & stengers, 1992, p. 19) em escala micro- e macrocóspica. Graças à “potência criadora do tempo”, potência intrinsecamente material, a natureza é “historicamente” anterior à História (Prigogine & Stengers, 1992, p. 27). A temporalidade histórica consiste, antes de mais nada, na evolução irreversível, eminentemente generativa, da natureza.

            Por isso, em vez de distinguir entre duas modalidades de entropia, Prigogine & Stengers propõe um novo conceito de entropia segundo o qual ordem e desordem são indissociáveis, com a entropia positiva e a negativa sendo aspectos mutuamente constitutivos da mesma dinâmica cósmica. A proposição de Faraday – “O que é doença para uns é saúde para outros” (2003, p. 114) – é, com isso, levada ao limite: o que é ordem sob certo aspecto (por exemplo, do ponto de vista interior a um sistema físico) pode ser desordem de outro (por exemplo, do ponto de vista exterior ao mesmo sistema) – e vice-versa. Poderíamos supor que, ao zelar pela irreversibilidade entrópica e ratificar a validade da flecha do tempo em todos os níveis da realidade física, Prigogine & Stengers confirmassem também o “determinismo das trajetórias dinâmicas” (1992, p. 26). Mas eles objetam resolutamente contra toda espécie de determinismo, em especial contra o “profundo pessimismo” característico da termodinâmica industrial: “a ideia de definir uma atividade pela destruição que ela realiza das inomogeneidades que a geram, isto é, de suas próprias condições de existência” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 26). Guiada por essa ideia, é como se a termodinâmica herdasse o potencial entrópico que define o seu objeto privilegiado – a combustão maquínica, o fogo industrial. A rigor, talvez nem mesmo esse fogo fizesse exceção à produção entrópica de ordem e desordem: “A intensificação das relações sociais que vida urbana favorece, por exemplo, não foi ao mesmo tempo origem de desperdício, de poluição, e de invenções práticas, artísticas e intelectuais?” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 55). Eis um argumento semelhante à concepção de Lévi-Strauss a respeito das “sociedades quentes”, aquelas caracterizadas por alta produção de ordem pela cultura e alta produção de entropia social e ambiental (2012, p. 57-60). No entanto, será que uma coisa compensa a outra, como se a criação cultural dependesse justificadamente da degradação da sociedade e do ambiente?! Falta aqui, sem dúvida, uma visada antropológica comparativa, capaz de lidar com diferentes configurações concretas da cultura e da sociedade: no caso, o paralelo com as “sociedades frias”, as que produzem muita ordem por sua cultura, com baixa entropia socioambiental.

            Ainda assim, é preciso exaltar a virtude com que Prigogine & Stengers combinam as teorias de Boltzmann e Darwin para formar o conceito de evolução irreversível do cosmos, conferindo assim um sentido evolucionário – embora não teleológico, e sim estocástico – à irreversibilidade entrópica (Prigogine & Stengers, 1992, p. 28). Não se trata de compreender a termodinâmica em função da biologia, mas de transformá-la a fim de que as leis científicas possam “dar um sentido à história” e à vida como dinâmicas cosmogênicas: “O surgimento dos seres vivos é um fato que sem dúvida não contradiz as leis da física, mas que estas não podem tornar inteligível” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 49), na medida em que elas tendem a reduzir a irreversibilidade evolucionária ao equilíbrio estacionário. O que explica essa tendência redutivista? “Metafisicamente”: o princípio de razão suficiente, pois com ele se postula, além da validade universal do princípio de causalidade, uma equivalência tautológica entre “causa plena” e “efeito completo”, com “a reversibilidade das relações entre o que se perde e o que se cria” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 30). “Foi contra esse princípio que Boltzmann se chocou” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 31), sem conseguir suplantá-lo, por fidelidade a um ideal científico que o próprio Einstein teria “encarnado”, o de “um conhecimento que despoja nossa concepção do mundo do que seria apenas a marca da subjetividade humana” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 35), cedendo a uma “opção metafísica” irracional. Para Prigogine & Stengers, um deus “que não joga dados” só pode ser princípio de desrazão:

Por que afirmar ser necessária essa perigosa proximidade entre razão e desrazão que leva a física a identificar como ideal de conhecimento o fantasma de um saber cortado de suas raízes? […] A objetividade científica não tem sentido se terminar tornando ilusórias as relações que mantemos com o mundo, se terminar condenando como “apenas subjetivos”, “apenas empíricos” ou “apenas instrumentais” os saberes que nos permitem tornar inteligíveis os fenômenos que interrogamos (1992, p. 43-44).

            Contra tal forma de “objetividade”, Prigogine & Stengers propõem que “nenhum progresso do conhecimento físico pode esvaziar o sentido da experiência prática de nossa liberdade” (1992, p. 45). A experiência científica requer um “novo ideal de inteligibilidade” (Prigogine & stengers, 1992, p. 46), no qual o imprevisível seja “libertado da ideia de uma ignorância contingente que um melhor conhecimento seria suficiente para superar”; com isso, a imprevisibilidade da natureza recebe “um sentido intrínseco” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 85). Para ultrapassar de vez a antinomia clássica entre o determinismo das leis e a aleatoriedade dos fenômenos, é então preciso, contra a revolução cosmológica exaltada por Kant, reconhecer à natureza a capacidade de evoluir espontânea e irreversivelmente a partir de sua contingência irredutível: “O lance de dados quebra então a simetria do tempo e define o futuro comum a ele mesmo e a nós que aguardamos seu resultado” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 46). É a natureza, e não Deus, que joga dados, desafiando o ideal científico de previsibilidade estatística e suficiência racional.

6 A ÚLTIMA PERGUNTA E O FIM DA MORTE

É notável a maneira pela qual Prigogine & Stengers interpretam o célebre conto de Asimov (1986). Contestando, em desacordo com o desenlace da história, a assimilação do universo a “um acontecimento antientrópico, ‘antinatural’”, eles sugerem que a “insuficiência” dos dados coletados por AC Universal seja compreendida como evidência positiva da irreversibilidade entrópica como “evolução autêntica” do universo (Prigogine & Stengers, 1992, p. 50). Espontânea e imprevisível, a sua irreversibilidade é dissimulada, sob a figura negativa da finitude computacional, pela expectativa humana de que a entropia cósmica possa ser efetivamente revertida:

A narrativa de Asimov pertence, porém, ao passado. […] Atualmente não é mais necessário pensar que os acontecimentos a que devemos nossa existência se situam fora das “leis” da natureza, pois essas leis […] mostram-se capazes de responder às exigências mínimas necessárias para pensar tal evolução (Prigogine & Stengers, 1992, p. 50).

Com isso, o propósito principal de Prigogine & Stengers é tornar inteligível a historicidade da natureza, postulando para tanto o cumprimento de exigências que “a termodinâmica definida no século XIX em torno da noção de evolução irresistível em direção ao equilíbrio não preenche” (1992, p. 52). A primeira exigência consiste em ressignificar o conceito de irreversibilidade; a segunda e a terceira, em introduzir em física termodinâmica os conceitos de acontecimento e coerência. Trata-se de discernir na quebra da simetria temporal a irrupção de uma contingência capaz de “transformar o sentido” da sua própria dinâmica evolucionária:

A primeira das exigências, quase uma tautologia, é certamente a irreversibilidade, a quebra de simetria entre o antes e o depois. […] Uma segunda exigência é que possamos dar um sentido à noção de acontecimento. […] Toda história, toda narrativa implica acontecimentos, implica que isto que aconteceu teria podido não ocorrer, mas ela só tem interesse se esses acontecimentos forem portadores de sentido. Não se conta uma sequência de lances de dados, a não ser se certos lances tiverem consequências significativas: o dado só é o instrumento de um jogo de azar se o jogo tiver uma aposta. […] A terceira exigência mínima é, portanto, que certos acontecimentos sejam capazes de transformar o sentido da evolução que escandem, isto é, reciprocamente, que essa evolução seja caracterizada por mecanismos ou relações capazes de dar um sentido ao acontecimento, de gerar a partir dele novas coerências (Prigogine & Stengers, 1992, p. 50-51).

            Prigogine & Stengers performam exemplarmente o cumprimento das exigências mínimas elucidando justamente a suposta evidência contrária. No caso, trata-se de demonstrar que sistemas de equilíbrio são eles mesmos afetados pela irreversibilidade “coerente” do acontecimento. O equilíbrio pode consistir no “estado estacionário” de um sistema em evolução irreversível, sem se confundir com o estado de entropia máxima como degradação total, morte térmica, do sistema. De um tal ponto de vista hiperdinâmico, o equilíbrio coexiste com o aumento de entropia, pois, no estado estacionário, o aumento é “permanentemente compensado” pela entrada exterior de mais entropia: “O estado de equilíbrio corresponde ao caso particular em que as trocas com o meio não fazem variar a entropia e em que a produção de entropia é, portanto, também nula” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 53). A virtude mais notável dessa ideia é que ela permite “dissociar o segundo princípio [a segunda lei da termodinâmica] da ideia de evolução rumo à ‘desordem’, à inércia, à uniformidade” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 53). Graças à abertura a fontes exteriores, o sistema mantém-se provisoriamente equilibrado e, não obstante, vivo – possibilidade de antemão descartada pela compreensão ortodoxa do segundo princípio da termodinâmica.

            Os autores exemplificam a interpretação do equilíbrio como estado estacionário de um sistema dinâmico instável considerando um experimento de termodifusão no qual o equilíbro térmico (homogeneidade de temperatura) é compensado pela produção de diferença qualitativa entre os elementos que constituem o sistema (separação dos gases):

Quando o sistema tiver atingido seu estado estacionário, tal que, para um dado fluxo de calor, a diferença de temperatura não mais varie ao longo do tempo, haverá mais hidrogênio no recinto aquecido e mais nitrogênio no recinto frio, sendo a diferença de concentração proporcional à diferença de temperatura (Prigogine & Stengers, 1992, p. 53-54).

Assim, o aumento de entropia não coincide com o nivelamento total das diferenças; ele mesmo é um processo de produção de diferenças, ou seja, de “mais ordem”. Temos assim um outro conceito de entropia, no qual se problematiza a conotação degradante dos processos dinâmicos:

É necessário libertar-nos da ideia de que a atividade produtora de entropia é sinônima de degradação, de nivelamento das diferenças. Pois, se é verdade que temos de pagar um preço entrópico para manter em seu estado estacionário o processo de termodifusão, também é verdade que esse estado corresponde a uma criação de ordem. Torna-se então possível um novo olhar: podemos ver a “desordem” produzida pela manutenção do estado estacionário como o que nos permite criar uma ordem. A ordem e a desordem mostram-se aqui não como opostas entre si, e sim como indissociáveis (Prigogine & Stengers, 1992, p. 54).

            “O que chamamos de ordem? O que chamamos de desordem?”: as respostas a tais perguntas se revelam contextuais, a depender do foco, da escala e da perspectiva em que o fenômeno é considerado. Ordem e desordem não são somente relativas, mas mesmas relacionais. Trata-se da “dualidade dos processos irreversíveis, criadora e destruidora” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 55). Uma turbulência, “exemplo por excelência de desordem”, é um tipo de ordem, se forem levadas em conta “correlações de longo alcance” entre moléculas; e um cristal, “imagem da ordem”, como um tipo de desordem aperiódica (Prigogine & Stengers, 1992, p. 55). É assim também que, em uma “sociedade quente” (mais uma vez, no sentido de Lévi-Strauss), a desordem, sob a forma da desigualdade social e da destruição ambiental, pode mesclar-se à ordem, na figura da invenção tecnológica e da criação cultural (Prigogine & Stengers, 1992, p. 55). Outro exemplo é dado pela atividade cerebral, cujo funcionamento “normal” pressupõe “desordem”:

No estado de sono profundo, a atividade do cérebro teria os traços do caos determinista e seria caracterizada por um atrator fractal de cinco variáveis independentes. Em compensação, no estado de vigília, nenhum atrator pôde ser descoberto: quando participa de um regime de existência aberto para o ambiente, a atividade cerebral parece não poder mais ser representada como um sistema dinamicamente auto-engendrado. Por fim, durante as crises de epilepsia, um atrator fractal pode novamente ser observado, mas num espaço que poderia ser definido por apenas duas variáveis independentes! Longe de poder ser assimilada a um comportamento irregular, a epilepsia caracteriza-se, pelo contrário, por uma “regularidade” grande demais da atividade cerebral… A “desordem mental” apareceria, deste ponto de vista, como a situação fisiologicamente normal (Prigogine & stengers, 1992, p. 88).

Resta saber qual seria o comportamento cerebral durante um transe xamânico, no qual, em lugar do sono, o sistema mental se abre a um ambiente cósmico ainda mais amplo que o experimentado fora do transe, na “vigília”… Seja como for, o ponto comum aos exemplos é que, “longe do equilíbrio, os processos irreversíveis são fonte de coerência”, sendo que “o estado estacionário corresponde à atividade mínima compatível com o vínculo que mantém o sistema fora do equilíbrio” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 62-63). Com isso, o estado de equilíbrio dos sistemas consiste no grau mínimo de uma dinâmica fundamental de desequilíbrio.

            Mas o que, afinal de contas, significa “fora” ou “longe do equilíbrio”? Trata-se das “leis do caos” (Prigogine, 2002). Um sistema fora do equilíbrio é caracterizado por: (i) “sensibilidade” às condições externas dispostas segundo uma causalidade complexa; (ii) “instabilidade” como sensibilidade às suas próprias flutuações; (iii) “bifurcação” como imprevisibilidade da trajetória evolutiva do sistema (Prigogine & Stengers, 1992, p. 63-64). Eis a dupla conclusão de Prigogine & Stengers em sua argumentação em defesa da vigência irrestrita da flecha do tempo, isto é, da irreversibilidade entrópica como fator principal da evolução cósmica da matéria: “Podemos, portanto, concluir que a diferença entre passado e futuro persiste mesmo em um sistema em equilíbrio” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 122). Essa tese é acompanhada por uma segunda: “Não é o não-equilíbrio que cria a flecha do tempo, mas o equilíbrio que impede a flecha do tempo, sempre presente no nível microscópico, de ter efeitos macroscópicos” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 122). A irreversibilidade pode assumir ambas as formas, a do equilíbrio e a do não-equilíbrio, simultaneamente: caos como produção concomitante de ordem e desordem. O traço definidor dos regimes caóticos não reside na “desordem indiferente que reina no equilíbrio”, um “caos determinista”, mas em seu reverso, espécie de caosmos: “Todos os possíveis se atualizam, coexistem e interferem, o sistema é ‘ao mesmo tempo’ tudo o que pode ser” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 68). O caos é ato puro; a entropia, “criação” de ordem (Prigogine & Stengers, 1992, p. 54).

            Logo, seria preciso inverter a questão colocada por Diderot (Prigogine & Stengers, 1984, p. 103): o que é inércia em um mundo intrinsecamente ativo? Qual o lugar da morte no mundo vivo da dinâmica? Animado por uma “instabilidade que conduz à criação simultânea de matéria e entropia” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 18), o caosmos pode colapsar? Ou será que, “longe de pertencer ao nosso futuro, a morte térmica remontaria às nossas origens” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 55-56), de modo que o ideal nefasto da “morte térmica do universo” não seria senão uma ilusão, com efeitos termodinâmicos ecologicamente catastróficos? Que sentido o ponto de vista da degradação e da morte resguarda na termodinâmica do não-equilíbrio? Ao seu favor, não é verdade que “nosso mundo está condenado à morte térmica” precisamente na medida em que “nossas sociedades esgotam seus recursos” (Prigogine & Stengers, 1992, p. 26)? Ainda assim, trata-se de uma contingência histórico-geológica, não de uma necessidade física a priori. Em todo caso, uma cosmologia bastante diversa projeta-se a partir da ideia da evolução irreversível da matéria: se a entropia não é equivalente a colapso, é porque consiste na aposta da vida contra o “fim da morte” (LIU, 2019).

            No último volume da trilogia O problema dos três corpos, intitulado O fim da morte, Cixin Liu narra o momento em que a cosmóloga Yang Dong – filha de Ye Wenjie, inventora da “sociologia cósmica” que fundamenta a imagem do universo como uma “floresta sombria” – concebe sob forma de uma hipótese científica a potência cosmogênica da vida, a qual alterará drasticamente o curso dos acontecimentos, por uma espécie de convolução noética do tempo termodinâmico. O “fim da morte” designa o acontecimento pelo qual, devido à expansão sem limites proporcionada pela conquista da imortalidade (“hibernação”), a humanidade provoca um colapso socioambiental em escala cósmica, verdadeira transfiguração distópica da utopia de “A última pergunta”. Se, para Asimov, o fim da morte coincide com a apoteose cibernética da humanidade, para Liu, ele corresponderia à destruição bélica do cosmos pela própria humanidade. Uma profunda divergência cosmológica justifica a oposição entre essas projeções especulativas. Enquanto para Asimov, a vida é um fenômeno local, restrito à Terra, e a vida inteligente, o apanágio de uma única espécie terrestre, para Liu, a vida, por natureza inteligente, se acha disseminada por toda a “floresta sombria” do universo, a ponto de constituir a sua própria paisagem cósmica. “Yang Dong fez a segunda pergunta assustadora”:

            

— E o universo?

             — O universo?

             — Se usarmos um modelo matemático semelhante para simular o universo inteiro e desmarcarmos a opção de vida, qual seria o resultado para a aparência do universo?

             Óculos Verdes pensou por um instante.

             — Seria igual. Quando falei dos efeitos da vida no ambiente, eram limitados à Terra. Mas, falando do universo, a vida é excepcionalmente rara, e seu impacto na evolução do universo não é significativo.

             Yang Dong se conteve. Ela se despediu de novo e se esforçou para abrir um sorriso educado. Saiu do edifício e levantou a cabeça para observar o céu noturno cravejado de estrelas.

             Por causa dos documentos secretos de sua mãe, ela sabia que a vida não era tão rara no universo. Na verdade, o universo estava abarrotado.

             Quanto o universo foi transformado pela vida?

             Uma onda de terror ameaçou tomar conta dela.

             Yang Dong sabia que não podia mais se salvar. Ela tentou parar de pensar, tentou dirigir a mente para uma escuridão vazia, mas uma nova pergunta insistia em atormentá-la: A Natureza é mesmo natural? (Liu, 2019, p. 30).

            Tomadas à parte da saga de Liu, as duas perguntas de Yang Dong – “Quanto o universo foi transformado pela vida?”, “A Natureza é mesmo natural?” – podem ser integralmente mantidas em vista de uma outra “entropologia” (Lévi-Strauss, 1996, p. 391): em vez da cosmologia do fogo industrial, a do fogo ultravivo. Da variação noético-ígnea depende o destino político-cósmico dos humanos e dos outros viventes na Terra. A vida pode, de forma não menos espontânea, criativa e imprevisível, abolir, em proveito da sua evolução sempre fora do equilíbrio, a entropia civilizacional que atualmente a arruína em escala planetária. E, não obstante, lançando-se sem desígnio soberano, movendo-se em “desequilíbrio perpétuo” (Lévi-Strauss, 1993, p.  204-217), os dados jamais serão previsíveis nem suficientes. Não há resposta cabal à última pergunta; isso, sim, seria o fim da morte.

REFERÊNCIAS

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Contribuição de autoria

1 – Marco Antonio Valentim

Professor Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná

https://orcid.org/0000-0001-7950-1673 • mavalentim@gmail.com

Contribuição: Escrita e primeira redação

Como citar este artigo

VALENTIM, M. A. Ignis mutat res. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 14, n. 2, e84836, p. 1-28, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378684836. Acesso em: dia mês abreviado. ano.