Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 2, e84563, 2023
Submissão: 26/07/2023 • Aprovação: 10/01/2024 • Publicação: 30/07/2024
2 MONISMO: CIÊNCIA E SOCIEDADE
Dossiê Catástrofe
Ciência e sociedade: uma abordagem socioconstrutivista
Science and society: a social constructivist approach
IUniversidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil
IIUniversidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
RESUMO
De acordo com a concepção socioconstrutivista, uma compreensão da ciência deve levar em conta não apenas a própria ciência, mas também uma compreensão da sociedade. Contemporaneamente, isto se torna mais claro quando se leva em conta exemplos reais, tal como o problema da tragédia (futura ou já em andamento) do aquecimento global. O objetivo deste artigo é mostrar que situações como a do aquecimento global não são compreendidas apenas a partir da ciência ou da sociedade isoladamente, senão que por meio da relação entre ambas.
Palavras-chave: Ciência; Sociedade; Socioconstrutivismo
ABSTRACT
According to the social constructivist approach, an understanding of science must take into account not only science itself but also an understanding of society. Contemporarily, this becomes clearer once we face actual instances, such as the problem of the (future or ongoing) tragedy of global warming. The aim of this paper is to show that state of affairs such as global warming cannot be understood only from science or society but through the relationship between them.
Keywords: Science; Society; Social Constructivism
Tendo sido inaugurada em 1976 com os trabalhos de David Bloor, a concepção socioconstrutivista pode ser enunciada, de um modo geral, com certa simplicidade: uma compreensão da atividade científica deve empregar tanto os clássicos recursos epistemológicos das concepções tradicionais de filosofia da ciência, quanto fatores sociais (Bloor, 2009). Sua novidade foi exatamente a inserção de tais fatores sociais na análise da natureza, produção e limites do conhecimento e prática científica.
Como acontece com qualquer escola filosófica, o socioconstrutivismo não aparece em uma única forma, visto que há debates internos a respeito de fundamentos, princípios, conceitos etc. Um destes debates foi promovido pelo filósofo socioconstrutivista Bruno Latour, que sofisticou a discussão com sua inovadora posição de que os elementos puramente científicos e sócio institucionais são profundamente relacionados, inerentes entre si. Em outras palavras, Latour quer dizer que seria um equívoco empregar um vocabulário dualista no qual, de um lado, temos os fatores cognitivos e, de outro, os fatores sociais; ou ainda: de um lado, temos a ciência, e, de outro, a sociedade. Para esse filósofo, tudo se funde em uma mesma dimensão: ciência e sociedade são indissociáveis.
Ocorre que tal fusão, que em que pese sua força teórica, nem sempre é devidamente compreendida, tanto por escolas tradicionais em filosofia da ciência (concepções positivas, falseacionismo popperiano, abordagens analíticas de ciência etc.) quanto pelo público de modo geral. Vejamos um aspecto desta incompreensão a partir da noção de “catástrofe”.
Um dos sentidos de catástrofe remete a fenômenos naturais que, em geral, atingem populações humanas. A prevenção contra catástrofes, quando pode ser efetivada, depende tanto de aportes científicos (pelo fato de lidar com a realidade natural) quanto de aportes sociopolíticos (recursos públicos para evitar tais acontecimentos).
De acordo com Latour, como veremos, esses dois aspectos não estão separados: não se trata de a ciência apontar uma catástrofe eminente e a política posteriormente alocar recursos; pois, ainda de acordo com o autor, há uma interdependência entre os dois aspectos. O objetivo principal deste artigo é o de mostrar tal interdependência.
A primeira seção do artigo apresenta a posição de Bruno Latour a favor daquilo que denominaremos de “monismo metodológico”: a interdependência entre ciência e sociedade.
Na segunda seção argumentamos que o monismo metodológico tem algumas implicações, e uma delas interessa ao presente artigo. A implicação é a de que cientistas não estão apenas resolvendo problemas científicos, mas igualmente atendendo demandas sociopolíticas – e isto é feito de modo integrado (daí o termo “monismo”). A questão que interessa à seção é a de que tais demandas, embora sugeridas pelos cientistas, precisam alcançar a sociedade
Na conclusão retomamos o tema do monismo metodológico mostrando como ele reflete a atividade científica de um modo que ela se caracterize como um empreendimento com interesses não apenas científicos, mas também políticos; ou seja: os cientistas não apenas desejam resolver (ou atenuar) o problema, por exemplo, do aquecimento global, mas igualmente se legitimar socialmente por meio de tal solução.
2 monismo: ciência e sociedade
Tome-se um objeto científico qualquer que esteja sendo examinado por um cientista que usa um instrumento científico no interior de um laboratório financiado por recursos públicos. A filosofia da ciência nos oferece duas opções de análise: a) analisar o objeto (normalmente por meio da teoria científica no qual o objeto está inserido); b) analisar a situação como um todo e não apenas o objeto de forma isolada.
A filosofia da ciência de matriz empirista, desde George Berkeley com seu De Motu, apresentou problemas para a compreensão de objetos científicos. Um dos mais célebres destes problemas é denominado de “subdeterminação da teoria pelos dados empíricos” (Newton-Smith, 1985): o objeto pode ser explicado de várias formas, uma vez que pode haver várias teorias que o explique. O problema se desenvolve e alcança uma conclusão relativamente cética: a natureza é incapaz de oferecer vereditos explicativos acerca de por que os objetos se comportam do modo como se comportam.
Deixando-se de lado as soluções que diversos filósofos de diferentes escolas filosóficas tradicionais ofereceram para tentar contornar o problema, uma solução foi oferecida pela concepção socioconstrutivista: objetos científicos estão inseridos em dinâmicas socioinstitucionais e sociocomunitárias; explicá-los demanda entender igualmente seus ambientes institucionais. Ademais, se os próprios cientistas apresentam limites a suas explicações, então é porque os objetos científicos colocam esses limites.
Deste modo, se a dupla hélice do DNA, de acordo com seus próprios proponentes, não possuía, na época de seu surgimento (abril de 1953), sustentação teórico-experimental (Watson e Crick, 1953a; 1953b), mas mesmo assim foi aceita pela comunidade dos biólogos, então algum outro fator deve ter agido. Neste caso específico, houve sim um fator sociocomunitário agindo: a aceitação comunitária da dupla hélice do DNA em um célebre congresso de genética em junho de 1953 (Mcelheny, 2003; Judson, 1979).
Temos então dois fatores que explicam a emergência da dupla hélice do DNA: o objeto em si (mesmo com suas limitações) e a atuação comunitária. Ou ainda: ciência e sociedade (científica). Em síntese este seria o padrão geral de uma explicação socioconstrutivista.
Não foi assim, porém que muitos filósofos da ciência críticos do socioconstrutivismo receberam a posição socioconstrutivista. Para esses autores a concepção socioconstrutivista, em sua análise, deixaria de lado a sustentação teórico-experimental e se centraria apenas na aceitação comunitária. Com isso o que entendemos por “ciência” não passa de uma dinâmica interna acionada apenas por interesses, sem relação com a natureza.
Muitos filósofos socioconstrutivistas se esforçaram em mostrar – em geral por meio da história da ciência – que tanto o trabalho teórico-experimental quanto os fatores sociocomunitários foram decisivos. Bruno Latour foi além e buscou oferecer uma fundamentação filosófica para essa tese socioconstrutivista.
Retomemos a cena abstrata inicial desta seção: tome-se um objeto científico qualquer que esteja sendo examinado por um cientista que usa um instrumento científico no interior de um laboratório financiado por recursos públicos. De acordo com Bruno Latour, nenhum dos elementos da lista é estático. Vejamos, separadamente, alguns deles: o objeto, o cientista e os instrumento científicos.
O objeto não é exatamente uma coisa, mas um agregado empírico-teórico reunido a partir das possibilidades simultaneamente oferecidas ao e criadas pelo cientista e criadas por ele (Latour, 2001). Assim, para Latour, antes da consolidação da substância conhecida como “fermento” (proposta por Louis Pasteur), ela é uma possibilidade que precisa ser articulada de forma experimental e teórica. Como o autor argumenta:
Talvez, se agitarmos o frasco, o fenômeno despareça. Talvez, se o expusermos, o ar o destrua. Antes que a entidade seja, com toda a segurança, subscrita por uma substância ontológica consagrada, Pasteur terá de tomar precauções (...). Não sabendo ainda o que é aquilo, ele precisa (...) investigar todas as facetas dos limites vagos que traçou ao redor da entidade a fim de determinar seus contornos exatos” (Lator, 2001, p. 140).
O cientista é também um ser indefinido. Quantas múltiplas linhas investigativas se abrem para um cientista durante sua carreira? Thomas Hunt Morgan, o grande geneticista vencedor do Prêmio Nobel de 1934 poderia ter seguido o caminho dos estudos da hereditariedade do século XIX e, ao invés de estudar os mecanismos de transmissão da informação hereditária, ter apostado em investigações sobre geração e desenvolvimento dos organismos (Bowler, 1989). A Drosophila de Morgan poderia não ter ocupado o papel que ocupou no nascimento da genética clássica se o cientista não tivesse escolhido o caminho que escolheu seguir. Escreve o historiador Peter Bowler:
Morgan e seus colaboradores também reconheceram que um único caractere poderia ser controlado por vários genes diferentes, ao passo que um único gene poderia ter um efeito em mais de um caractere. Eles também descobriram que a posição de um gene nos cromossomos era importante, pois seus efeitos poderiam às vezes ser modificados por genes próximos (o ‘efeito de posição’). Entretanto, a natureza exata da mutação permaneceu um enigma durante algum tempo” (Bowler, 1989, p. 134).
Quanto aos instrumentos, também não estão parados esperando que algum técnico os empregue: eles precisam ser confiáveis. Galileu Galilei precisa convencer seus contemporâneos de que a luneta não é apenas um instrumento para enxergar coisas que estão distantes do nosso campo de visão na Terra, mas é também fundamental para entender o que se passa nos movimentos celestes e, portanto, pode ser empregada para compreender o movimento dos planetas (Feyerabend, 1993). Paul Feyerabend discorre acerca desse ponto:
O telescópio é um ‘sentido melhor e superior’ e fornece uma evidência nova e mais confiável para considerar as questões de astronomia. Como esta hipótese é examinada, e quais argumentos são apresentados em sua defesa? (Feyerabend, 1993, p. 81).
Apresentada a lista, poderia ser argumentado que tudo está sendo reduzido relacionado a interações sociocomunitárias: objetos dependem do que os seres sociais conhecidos como cientistas fazem com eles; cientistas fazem escolhas não determinadas pelos objetos e convencem seus colegas de que certos instrumentos são confiáveis, desde que esses colegas aceitem sua orientação geral. Isso só corrobora a crença que “a construção de fatos e máquinas é um processo coletivo” (Latour, 2011, p. 43) que oscila entre as camadas social e epistêmica simultaneamente, sendo a prática e o conhecimento científico um constructo híbrido entre natureza e cultura.
É importante frisar que Latour rejeita a ideia simplista de que o conhecimento científico, bem como sua prática, pode ser meramente reduzido a convenções de ordem social. O que o filósofo defende é que a ciência é um empreendimento que engloba tanto aspectos epistemológicos quanto sociais de forma indissociável.
Os estudos científicos certamente rejeitam a ideia de uma ciência desvinculada do resto da sociedade, mas tal rejeição não signifique que adote a postura contrária, a de uma ‘construção social’ da realidade, ou que estaque em uma posição intermediária tentando extrair fatores ‘puramente’ científicos de fatores ‘meramente’ sociais” (Latour, 2017, p. 102).
Como posto, Latour também não compactua com a tese de que as ciências são desprovidas de realidade por causa de sua inerente dimensão social; pelo contrário, é graças ao fato de ter que lidar com um âmbito social, que podemos ter uma crença muito mais sensata, madura e fortalecida no realismo do conhecimento científico. Também pontua o autor
[...] realidade, como indica a palavra latina res, é aquilo que resiste. Mas resiste a quê? Ao teste de força. Se, em dada situação, nenhum discordante é capaz de modificar a forma de um objeto novo, então sim, ele é realidade, pelo menos enquanto os testes de força não forem modificados” (Latour, 2011, pp. 143-144).
Com isso alcançamos o monismo metodológico: ciências e práticas comunitárias estão amplamente interligadas – e isso não significa que a ciência pode ser meramente reduzida ao social).
Mas e quanto à sociedade? Este é o objetivo da discussão da próxima seção.
Não é necessário mais do que uma consulta a um jornal ou internet para saber que estamos diante de uma possível catástrofe (ou, para alguns, estamos diante de uma catástrofe já em curso): o aquecimento global. Cientistas apontam tal situações em seus relatórios de pesquisa e o tema é de conhecimento público desde de, pelo menos, a década de 1970. Segundo os pesquisadores, “o sistema Terra está atualmente em um estado de rápido aquecimento, sem precedentes mesmo nos registros geológicos”(Aengenheyster, 2018) e isso culmina em consequências catastróficas nunca antes vistas, tal como aumento de mortalidade, escassez de água potável, aumento no nível do mar, infertilidade na agricultura etc. – atingindo, sobretudo, países mais pobres, com excesso populacional e localizados no cinturão equatorial (Marques, 2022, p. 14) e, também, o próprio Brasil, sobretudo no aspecto energético (Zaluaga et. al., 2022).
Não é implausível pensar que nenhuma pessoa deseje as consequências de um aquecimento global. Porém a questão aqui não se trata propriamente de desejos, mas de ação; e isto não depende apenas de cientistas apontando objetos, eventos e situações (como vimos na primeira seção). Neste caso (talvez até mais do que os exemplos da primeira seção), a sociedade precisa atuar, de alguma forma.
Ora, com o perdão da obviedade, em uma sociedade, somente cientistas produzem ciência e lidam diretamente com problemas científicos. Assim somente os cientistas poderão fazer alguma coisa (resolver os problemas das geleiras). O problema é que cientistas não agem sozinhos (monismo metodológico). Eles precisam da sociedade.
A sociedade, porém, como argumentou Latour (2000), não é estática. Ela se movimenta e, mais do que isso, percebe ou não percebe demandas que, embora científicas, possuem implicações para a própria sociedade.
Acontece, também, que não podemos usar o termo “sociedade” para nos referirmos, simultaneamente, a pessoas de bom senso e sensíveis ao aquecimento global e pessoas que adotam práticas totalmente contrárias ao fenômeno natural do aquecimento.
No caso do aquecimento global, não se pode negar a existência de mobilização social por parte de coletivos organizados para defender a ciência como uma forma de evitar uma futura catástrofe. Mas qual a força desses coletivos?
Latour fornece um exemplo (abstrato) interessante (2000). Imaginemos uma reivindicação salarial de uma classe de trabalhadores, uma assembleia sindical, um líder desta assembleia e o diretor de uma empresa. O diretor não lida com todos os membros da assembleia sindical, senão que apenas com o líder. Durante o processo de negociação com o diretor, o líder não pode voltar a todo momento para a assembleia. Assim (ainda no exemplo abstrato), se as reivindicações são A, B e C, e o líder conseguiu A e B, quando ele volta para a assembleia, ele volta com a ideia de que reter A e B resolve o problema temporariamente e obtém a aprovação.
O que o exemplo pretende sugerir é que o líder da assembleia possui uma força maior do que seus associados. Apliquemos agora o exemplo ao aquecimento global.
A mobilização social, mesmo “desorganizada”, é fundamental. Mas os bilhões que os governos (pressionados em parte por mobilizações sociais “desorganizadas”) podem investir para resolver o problema são mais importantes. Assim, é necessária a presença de agentes sociais decisivos (como o líder da assembleia) para que um assunto como o aquecimento global receba financiamentos para evitar a catástrofe.
Em última análise, é este financiamento que tornará o problema do aquecimento global um verdadeiro problema científico (e social). Antes disso acontecer o que temos é indignação, consciência social etc. – todos elementos importantes, mas sem a força necessária para um processo de real mobilização.
Vejamos o seguinte exemplo, citado pelo próprio Latour, de como os elementos sociais se misturam com algumas questões técnicas e científicas sobre o aquecimento global e como atuam na maneira de como essas questões serão tratadas e desenvolvidas de forma comum:
Na página quatro do jornal, leio que as campanhas de medidas sobre a Antártida vão mal este ano: o buraco na cama de ozônio aumentou perigosamente. Lendo um pouco mais adiante, passo dos químicos que lidam com a alta atmosfera para os executivos da Atochem e Monsanto, que estão modificando suas linhas de produção para substituir os inocentes clorofluorcarbonetos, acusados de crime contra a ecosfera. Alguns parágrafos à frente, é a vez dos chefes de Estado dos grandes países industrializados se meterem com química, refrigeradores, aerossóis e gases inertes. Contudo, na parte de baixo da coluna, vejo que os meteorologistas não concordam mais com os químicos e falam de variações cíclicas. Subitamente os industriais não sabem o que fazer. Será preciso esperar? Já é tarde demais? Mais abaixo, os países do Terceiro Mundo e os ecologistas metem sua colher e falam de tratados internacionais, direito das gerações futuras, direito ao desenvolvimento e moratórias. O mesmo artigo mistura, assim, reações químicas e reações políticas. Um mesmo fio conecta a mais esotérica das ciências e a mais baixa política, o céu mais longínquo e uma certa usina no subúrbio de Lyon, o perigo mais global e as próximas eleições ou o próximo conselho administrativo. As proporções, as questões, as durações, os atores não são compatíveis e, no entanto, estão todos envolvidos na mesma história (Latour, 2013, p. 07).
Todos os elementos envoltos na trama, embora pareçam diametralmente dissonantes, pois alguns aparentam ser extremamente científicos e outros radicalmente políticos, exercem uma força na forma de como a questão é tratada e desenvolvida. Todos esses elementos são atores que se articulam em uma mesma rede.[1] Essas articulações se dão através de modalizações positivas ou negativas, que nada mais são do que sentenças e atitudes que qualificam e mobilizam outras sentenças e posições, viabilizando ou não o desenvolvimento de um fato para que se torne um objeto científico consolidado e digno de atenção por parte de toda a sociedade – tornando-se, assim, um objeto ou problema científico e social.
A intenção da obra do autor é clarificar que o “status de uma afirmação depende das afirmações ulteriores. Seu grau de certeza aumenta ou diminui, dependendo da sentença seguinte que a retomar” (Latour, 2011, p. 40). É dessa forma, portanto, que os elementos sociais estão imbricados nas questões científicas, pois há uma influência de forças de ambas as partes, culminando no produto final da rede: a prática e o conhecimento científico.
Nesse sentido, para a compreensão do fenômeno “aquecimento global” e para que medidas sejam tomadas a fim de sanar ou reduzir os impactos dessa catástrofe, a sociedade deve ser participante e atuante na busca e fortalecimento de soluções hipotéticas, juntamente à comunidade científica, conferindo força e peso às sentenças dos pesquisadores, modalizando positivamente suas asserções. Mas para isso acontecer, não seria exagero dizer, há um grande desafio pela frente, pois toda uma grande parcela da sociedade deve ser convencida a atuar para o desenvolvimento da ciência, modalizando positivamente as redes teóricas que buscam dirimir os problemas decorrentes de tal catástrofe. Todavia, nem sempre muitos atores sociais estão interessados em colaborar nessa empreitada, posto que, além da existência de interesses escusos que vão de encontro à tais medidas, há problemas de ordem cultural e educacional que devem ser resolvidos simultaneamente.[2]
Os limites deste artigo nos impedem de oferecer exemplos substantivos de cientistas e instituições que trabalharam ativamente em conjunto com agências governamentais para o desenvolvimento de pesquisas com impacto social. O que podemos dizer é que, ao obter recursos para uma pesquisa com repercussões sociais bastante visíveis, o cientista se envolve com a sociedade não apenas no sentido de oferecer uma solução para um problema social, mas igualmente se torna um agente social que possui maior credibilidade.
Assim, cientistas não fazem (em casos como estes, e quem sabe em nenhum caso) pesquisas desinteressadas e apenas para a obtenção de conhecimento mais aprofundado da natureza.
É neste sentido que defendemos o que denominamos de “monismo metodológico”: a interrelação entre ciência e sociedade e sua complexidade (ou seja: apenas apontando que há e como se dá essa profunda e íntima relação entre ciência e sociedade para que um fato ou fenômeno se torne científico na prática).[3]
E, se uma catástrofe como o aquecimento global for resolvida, isto é melhor para a sociedade, para a ciência, e para os cientistas envolvidos. Mas, antes de mais nada, deve haver uma conscientização social sobre o aquecimento global como catástrofe, para que, enfim, tenhamos uma saída sócio-científica.
AENGENHEYSTER, M.; FENG, Q.Y.; PLOEG F. van der; DIJKSTRA, H.A. The point of no return for climate action: effects of climate uncertainty and risk tolerance. Earth System Dynamics, 9, 2018, pp. 1085-1095.
LATOUR, B. A esperança de Pandora. Tradução: Gilson César Cardoso de Sousa. São Paulo: Editora Unesp, 2017.
LATOUR, B. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. Tradução: de Ivone C. Benedettí. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Tradução: Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 2013.
MARQUES, L. O Antropoceno como aceleração do aquecimento global. Liinc em Revista, [S. l.], v. 18, n. 1, p. e5968, 2022.
ZALUAGA, C. F. et al. The climate change perspective of photovoltaic power potential in Brazil. Renewable Energy, v. 193, pp. 1019-1031, 2022.
Contribuição de autoria
1 – Marcos Rodrigues da Silva
Doutor em Filosofia
https://orcid.org/0000-0003-3388-6381 • mrs.marcos@uel.br
Contribuição: Escrita e primeira redação
2 – Gabriel Chiarotti Sardi
Doutorando no programa de pós graduação em Filosofia da USP
https://orcid.org/0000-0002-6320-0400 • gabrielchi@hotmail.com
Contribuição: Escrita e primeira redação
Como citar este artigo
SILVA, M. R.; SARDI, G. C. Ciência e sociedade: uma abordagem socioconstrutivista. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 14, n. 2, e84563, p. 1-13, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378684563. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
[1] Latour nos propõe a Teoria Ator-Rede (Actor-Network Theory – ANT), a qual pode ser brevemente descrita como uma proposta teórica que considera atores humanos e não humanos como partes de uma rede de integração que se ramifica, relaciona e interage na construção do conhecimento.
[2] “São muitas e bem conhecidas as resistências políticas e econômicas à ciência e às rápidas e radicais transformações por ela preconizadas no sistema econômico globalizado. Mas mesmo nas sociedades como um todo constata-se uma baixa reatividade aos alertas científicos. Ao lado do bloqueio ideológico, da desinformação patrocinada e dos interesses em jogo, esse descompasso entre a alta voltagem da informação qualificada e a baixa percepção social das crises que se avolumam reside na dificuldade de apreender intuitivamente as implicações da ‘Grande Aceleração’. O senso comum tende, compreensivelmente, a prefigurar o futuro a partir das experiências e das métricas do passado. Nada, contudo, pode ser mais enganoso numa dinâmica de aceleração, sobretudo quando se levam em conta as respostas não lineares do sistema Terra ao acúmulo de estímulos e perturbações” (Marques, 2022, p. 03).
[3] “Em suma, o projeto dos estudos científicos [...] não é estabelecer a priori que existe ‘alguma conexão’ entre ciência e sociedade, pois a existência dessa conexão depende daquilo que os atores fizeram ou deixaram de fazer para estabelecê-la. Os estudos científicos apenas fornecem os meios de traçar essa conexão quando ela existe” (Latour, 2017, p. 104).