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Universidade Federal de Santa Maria
Voluntas, Santa Maria, v. 13, n. 2, e5, 2022
Submissão: 30/09/2022 • Aprovação: 13/01/2023 • Publicação: 14/03/2023
Estudos Schopenhauerianos
Liberdade e neurociência: como a metafísica de Schopenhauer responderia ao determinismo neurológico?
Freedom and neuroscience: how would Schopenhauer's metaphysics respond to neurological determinism?
Rogério Moreira Orrutea FilhoI
I Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil
RESUMO
Experimentos realizados por neurocientistas como Benjamin Libet e Michael Gazzaniga, sugerem a impossibilidade de haver liberdade nas ações individuais. Embora os dois referidos cientistas tenham elaborado teorias e experimentos um tanto distintos entre si, o resultado geral é o de que o cérebro decide independentemente da consciência do agente. Neste artigo, mostramos que tais experimentos podem ser qualificados como a confirmação empírica daquilo que o filósofo Arthur Schopenhauer, já no século XIX, afirmava a partir de argumentos apriorísticos, baseando-se no princípio de razão suficiente. No entanto, Schopenhauer também sustentou uma teoria da liberdade a partir do caráter do agente, em lugar de sustentar o livre-arbítrio das ações. Veremos que esta teoria schopenhaueriana da liberdade não fora afetada pelos trabalhos de Libet e Gazzaniga, uma vez que, na melhor das hipóteses, os dois cientistas teriam comprovado a ausência de liberdade das decisões singulares, restando intocada a questão sobre a constituição moral do agente.
Palavras-chave: Liberdade; Determinismo; Neurociências
ABSTRACT
Keywords: Freedom; Determinsm; Neurosciences
Por outro lado, deve-se notar que o conhecimento da natureza mais perfeito é a exposição corrigida do problema da metafísica: por isso ninguém deveria aventurar-se nesta sem antes ter adquirido para si um conhecimento claro e coerente – ainda que geral, mas sólido – de todos os ramos das ciências naturais (W II, cap. 17, p. 109).
Esta coordenação, aliás, insere-se em um contexto argumentativo ainda mais amplo. A tese de Schopenhauer é no sentido de que a física (entendida aqui num sentido bastante lato) e a metafísica precisam trabalhar juntas, na medida em que, por um lado, o avanço das ciências empíricas coloca em risco e até invalida certas doutrinas metafísicas; por outro, justamente este avanço aprofunda nossa percepção do mistério que há na natureza e, por isso mesmo, exige-se novamente da física o retorno à metafísica, agora adaptada às novas descobertas alcançadas pelas ciências naturais. Consequentemente, as novidades proporcionadas pelas ciências naturais contribuem para a metafísica no sentido de “corrigir” os problemas que deverão ser nela tratados. Antigos problemas da metafísica podem revelar-se, após conclusões resultantes de experimentos empíricos, como falsos problemas. Porém, a outra parte do argumento de Schopenhauer é no sentido de que, longe de o avanço das ciências empíricas revogar a metafísica, tal avanço apenas desloca a investigação da mesma para novos problemas cuja solução aquelas mesmas ciências empíricas são incapazes de oferecer. As ciências empíricas não possuem a completude necessária para oferecer uma explicação total. Em última instância, elas sempre necessitarão de assumir pressupostos para os quais elas próprias não podem oferecer explicação, tais como as forças naturais fundamentais (pensemos, por exemplo, na força gravitacional), que simplesmente “estão aí”, e são o que são. Por isso, ao físico resta apenas supor a gravidade; ao biólogo evolucionista, resta apenas supor o impulso de sobrevivência. E nenhum dos dois pode explicar o que é a gravidade, ou o que é o impulso de sobrevivência, e muito menos podem imaginar que estas duas forças poderiam ser teoricamente unificadas sob o conceito de “vontade de vida”, como sugere Schopenhauer.
Mas retornemos ao nosso ponto principal. As ciências naturais necessitam encontrar seu complemento na metafísica, e a metafísica precisa ser submetida ao crivo das ciências naturais. Estas últimas jamais poderão ser simplesmente ignoradas pelo filósofo. E o que dizem as ciências naturais sobre a questão da liberdade, um problema que, a princípio, é metafísico por excelência?
Em um trabalho dedicado à relação entre Schopenhauer e neurofilosofia, Dieter Birnbacher aborda algumas conclusões sobre o tema a partir dos experimentos realizados pelo neurocientista Benjamin Libet, durante a década de 1980:
Estes [...] experimentos sugerem que a decisão de vontade consciente para o movimento corpóreo é antecedida por um processo neural – um potencial de prontidão [Bereitschaftspotential] – cujo conhecimento permite prognosticar com grande precisão a decisão de vontade e o movimento corpóreo que se segue à mesma. Aparentemente, é como se o cérebro já “soubesse”, em até meio segundo antes da consciência, quando será enviado o impulso ao músculo correspondente, ao passo que a decisão consciente de vontade simplesmente homologa um fait accompli. O ponto perturbador deste experimento é o fato de que o agente, apesar de tudo, tem a consciência de decidir livre e espontaneamente. [...] Em realidade, parece que a consciência sempre chega muito tarde. Ela está sempre correndo atrás do cérebro, que já tomou uma decisão (BIRNBACHER, 2005, p. 143).
De especial importância para o robustecimento deste aspecto da teoria de Libet são os experimentos realizados por Michael S. Gazzaniga. Sem negar estas conclusões obtidas por Libet, Gazzaniga ainda acrescenta que o lado direito do cérebro é encarregado de tomar decisões à revelia de nossa consciência, localizada na parte esquerda do cérebro. Esta parte esquerda do cérebro é chamada por Gazzaniga de “intérprete”, pois sua função é a de justificar discursivamente as decisões já tomadas pela parte direita (GAZZANIGA, 1998, p. 15). Na verdade, a parte esquerda nos iludiria quanto ao nosso poder de decisão: ela inventaria razões para as nossas decisões tomadas de antemão pela parte direita, que chega ao seu veredito antes de qualquer motivo racionalmente ponderado pela parte esquerda. Logo, segundo Gazzaniga, nossa consciência não decide coisa alguma: antes, ela apenas inventa justificativas para decisões que não seriam, estritamente falando, “nossas”1. É como se a parte esquerda advogasse em favor da parte direita, criando teses e argumentos que justificam a conduta de um cliente teimoso que ela própria não compreende. Sam Harris extraiu a consequência filosófica de experimentos como aquele de Libet e de outros neurocientistas (Haynes, Fried, Mukamel e Kreiman) que apontam para o mesmo fato:
Eu, enquanto testemunha consciente de minha experiência, não início eventos em meu córtex pré-frontal mais do que causo os batimentos do meu coração. Sempre haverá algum atraso entre os primeiros eventos neurofisiológicos que provocam meu próximo pensamento consciente e o pensamento em si. [...] Qual será meu próximo estado mental? Eu não sei – simplesmente acontece. Onde está a liberdade nisso? (HARRIS, 2012, p. 9).
Daí o veredito de Harris, apresentado logo na introdução de seu trabalho dedicado exclusivamente ao tema aqui discutido: “Free Will is an illusion”.
Antes de prosseguirmos, é necessário deixar claro qual o principal objetivo deste trabalho, para que o leitor não seja conduzido a conclusões apressadas e equivocadas. Este é um trabalho de filosofia, e, mais precisamente, é um trabalho de filosofia sobre a teoria schopenhaueriana da liberdade moral, entendida esta como aquela que se refere à responsabilidade humana por seus atos e decisões. Portanto, meu objetivo não é o de fornecer uma explicação detalhada e profunda sobre as mais recentes experiências e análises realizadas em neurociência baseadas nos modelos de experimentação executados por Benjamin Libet ou Michael Gazzaniga (seja para apoiar ou refutar os mencionados cientistas). Afinal, justamente por se tratarem de conclusões baseadas em experimentos, vale dizer, justamente por tais conclusões articularem-se no campo da empiria – o que significa haver aí espaço para uma série sem fim de possíveis equívocos e novas formulações por parte de outros pesquisadores exclusivamente dedicados ao assunto –, penso que escapa ao escopo de um trabalho de filosofia (e que teve de ser elaborado nos limites de um artigo) a exposição detalhada de pesquisas que ainda não encontraram sua palavra final. É neste contexto que julgo válido apresentar as conclusões de neurocientistas como Libet e Gazzaniga em detrimento de quaisquer outros, pois são dois dos mais notáveis e mencionados nomes quando o assunto é o determinismo de nossas ações a partir de modelos de explicação e experimentação articulados sob os padrões da neurociência. Farei abstração de possíveis controvérsias surgidas pela análise feita por outros cientistas sobre experiências executadas por Libet e Gazzaniga, pois o que realmente me interessa é o tipo de conclusão geral que podemos extrair de ambos e que representa uma “influente linha de pensamento” (FELTZ; MISSAL; SIMS, 2020, p. 1) nas neurociências desde os experimentos realizados por Libet através de eletroencefalograma: a conclusão de que muito possivelmente os seres humanos não são responsáveis por suas próprias ações, vale dizer, que as decisões cerebrais são processos neurológicos autônomos que ocorrem à revelia do próprio indivíduo, e este dado me interessa porque, ao excluir a possibilidade de responsabilização moral, semelhante conclusão colide com a teoria schopenhaueriana segundo a qual somos, sim, moralmente responsáveis por aquilo que fazemos, na medida em que somos diretamente responsáveis por nossa própria essência (que Schopenhauer denomina nosso “caráter inteligível”). Portanto, meu objetivo é o de “testar”, por assim dizer, a teoria de Schopenhauer, e não as teorias de Libet e Gazzaniga. Por isso, assumirei acriticamente os argumentos e experimentos de Libet e Gazzaniga. O problema que orienta este trabalho é: assumindo (mesmo que apenas hipoteticamente) que Libet e Gazzaniga tenham razão, como se sairia a teoria schopenhaueriana que afirma ser a vontade moralmente livre e responsável?
Agora retomemos aquela exigência do próprio Schopenhauer, e confrontemos sua explicação metafísica da liberdade e os referidos resultados alcançados no campo neurocientífico. Aparentemente, tais descobertas em nada agridem a teoria schopenhaueriana da “verdadeira liberdade moral” (cf. E, Freiheit des Willens, V, p. 133), uma vez que as mesmas se referem ao operari, e não ao esse, isto é, referem-se às ações e não ao caráter ou essência do agente. Como se sabe, Schopenhauer sustentava a tese de que o agente não era livre para agir indiferentemente deste ou daquele modo, e sim para ser desse ou daquele modo: escolhemos nosso caráter, e não nossas ações, pois estas são apenas um desdobramento necessário, no espaço e no tempo, daquilo que é nosso “caráter inteligível” fora do espaço e do tempo (cf. E, Freiheit des Willens, V, p. 134 e ss.; W I, p. 375 e ss.). Antes, aquelas descobertas científicas apenas confirmam o resultado alcançado pelo próprio Schopenhauer: no âmbito do operari, isto é, de nossas ações singulares materializadas no espaço e no tempo, prevalece o mais rigoroso determinismo, conforme exige a priori o princípio de razão suficiente. Consequentemente, neurocientistas como Libet e Gazzaniga apenas concederam a prova empírica daquilo que Schopenhauer já havia deduzido a priori. Afinal, as supostas decisões do cérebro ainda são atos singulares gradualmente manifestados no tempo (e no espaço, considerando que tais decisões estão localizadas em um hemisfério cerebral), e por isso não se referem à totalidade do esse do agente, vale dizer, não são o seu caráter em si, mas apenas uma manifestação espaço-temporal do mesmo. E que as manifestações ou fenômenos do caráter em si se dão no espaço e no tempo sob o princípio de razão suficiente, isso jamais fora contestado por Schopenhauer. Ao contrário: esta convicção fora afirmada e reafirmada com absoluta veemência ao longo de sua obra. Em função disso, Birnbacher (2005, p. 143) afirma que:
o debate público gerado sobre as consequências filosóficas destes experimentos parece ser um pouco antiquado, pois ele ignora a forte contribuição prestada por Schopenhauer (e também por David Hume) para o esclarecimento do assunto. Para os dois filósofos, compreende-se mais ou menos por si mesmo que a ordem causal, que nós encontramos realizada no mundo externo macroscópico, reencontra-se também no âmbito da psicologia, incluindo da vontade humana.
Porém, o que Birnbacher parece não notar, é que os mencionados experimentos teriam por consequência uma necessária retificação da teoria determinista de Schopenhauer. Se Libet e Gazzaniga estiverem corretos, e se Sam Harris realmente conseguiu extrair as conclusões mais acertadas a partir de outros experimentos do gênero, então disso se segue que a causalidade que determina predominantemente a conduta humana não pode ser a lei da motivação ou o princípio de razão suficiente de agir, conforme a nomenclatura empregada por Schopenhauer. Pois a lei da motivação supõe uma decisão consciente, uma avaliação racional dos motivos mais adequados ao caráter do agente. Segundo a definição de Schopenhauer, a motivação é a “causalidade que passa pelo conhecimento” (E, Freiheit des Willens, III, p. 70). Mas conforme Libet e Harris e, mais precisamente, Gazzaniga, o nosso conhecimento não influencia nosso comportamento. Antes, o conhecimento apenas justifica posteriormente uma decisão já tomada de antemão, em cujo processo ele sequer fora consultado. Schopenhauer também define a motivação como “a causalidade [Kausalität] vista por dentro” (G, §43, p. 162). Mas agora o que se conclui é que a verdadeira causalidade só pode ser vista a partir de fora. Consequentemente, se partirmos da hipótese de que os resultados obtidos no âmbito das neurociências são inatacáveis, teríamos de readaptar uma parte do determinismo de Schopenhauer, pois agora, considerando a tripartição schopenhaueriana da causalidade – causalidade em sentido estrito, estímulo e motivação (E, Freiheit des Willens, III, p. 68-71) – pareceria mais correto julgar que as ações humanas são fisiologicamente estimuladas, e não psicologicamente motivadas.
Isso afetaria a tese schopenhaueriana em favor da liberdade metafísica, isto é, da liberdade enquanto identidade transcendental entre Querer e Ser (cf. N, Hinweisung auf die Ethik, p. 338; P II, §116, p. 247; W I, §65, p. 467/I 433; HN 3, Foliant I, §113, p. 133; E, Freiheit des Willens, V, p. 137-139)? Parece-nos que não. Pois todas estas considerações, isto é, a discussão sobre se ações são motivadas ou estimuladas, ainda articulam-se sob o âmbito das ações, e estas não trazem consigo qualquer liberdade, o que inclusive já era evidenciado a priori. A grande contribuição de Schopenhauer para o assunto foi precisamente o deslocamento do lócus da liberdade, do operari para o esse, do agir para o ser, conforme ele próprio escreve nas últimas linhas do capítulo V de Sobre a liberdade da vontade. E que este deslocamento tem de ocorrer, seguiu-se de uma análise de um conteúdo moral de consciência, ou seja, do sentimento de responsabilidade por aquilo que somos, que por sua vez deve ser qualificado como a superfície da intuição de nossa liberdade metafísica. A intuição (Schopenhauer costumava empregar aqui a palavra “sentimento”, Gefühl, em lugar de “intuição”) que tenho de minha responsabilidade por aquilo que sou – a partir da qual devo concluir que eu poderia ser outro se assim quisesse – é um dado de minha consciência tão inegável quanto o entendimento que tenho da lei da causalidade, e é exclusivamente sob esta última que se articulam as citadas experiências neurocientíficas. Não fosse pela intuição de causalidade, todos os eventos relatados a partir dos experimentos de Benjamin Libet e Michael Gazzaniga seriam narrados como fatos que “se seguem uns aos outros”, conforme aquela fórmula recorrentemente utilizada por David Hume em Investigação acerca do entendimento humano. Somente o componente subjetivo da causalidade enquanto forma a priori do entendimento pode nos conduzir à interpretação causal daquilo que, considerado independentemente de nossa contribuição subjetivo-intelectual, apresentar-se-ia aos nossos sentidos como mera sucessão de eventos. É preciso acrescentar aqui um componente intelectual e, portanto, subjetivo, para que aquela sucessão de eventos adquira um significado causal, isto é, para que a mera sequência converta-se em consequência2. E considerando que o saber científico se refere à compreensão de relações de consequências, isto é, relações de causa e efeito, então, sem intuição de causalidade, não há ciência.
Mas a intuição de responsabilidade – à qual se associa a liberdade – é tão viva quanto a intuição de causalidade. Pode-se dizer que ela é tão “aderente” à consciência quanto a causalidade. E, ao mesmo tempo, estas duas modalidades de intuição (causalidade e responsabilidade) conflitam entre si, justamente porque uma afirma a causalidade natural, e a outra, nega-a. Logo, deve-se admitir que, em Schopenhauer, o mundo pode ser igualmente avaliado sob duas perspectivas: uma sob “orientação natural” (conforme expressão de Husserl), e outra sob orientação moral (tem-se ainda a orientação fenomenológico-transcendental, mas esta orientação não se refere ao mundo, e justamente porque ela é um pressuposto do mundo). Os experimentos e conclusões neurocientíficos articulam-se apenas sob orientação natural e, por isso, não possuem qualquer jurisdição, por assim dizer, sobre a orientação moral, sendo esta última referente àquilo que ultrapassa espaço, tempo e causalidade, uma vez que os juízos morais de louvor e censura tem por principal objeto não tanto as ações singulares ou as decisões manifestadas no espaço e tempo, mas o caráter do agente, que aparece no tempo sem estar no tempo (sem “residir” no tempo), pois é imutável; que é livre, pois nos sentimos responsáveis por ele; e, obviamente, destituído de contornos espaciais.
Claro, os neurocientistas podem acusar aqui uma desnecessária dualidade em nossas orientações constitutivas de nossos modos de viver e perceber o mundo. Eles podem alegar que a orientação natural é a única existente. Mas para alegar isso de maneira coerente, eles teriam de poder suspender a orientação moral e o sentimento de responsabilidade (ou intuição de liberdade) que jaz junto a ela, o que é impossível. O próprio Sam Harris nos oferece, inadvertidamente, um exemplo desta impossibilidade. Em sua obra aqui já referida, Sam Harris escreve:
O que significa dizer que estupradores e assassinos cometem seus crimes por sua própria livre vontade? Se esta afirmação significa algo, deve ser que eles poderiam ter agido diferentemente – não com base em influências aleatórias sobre as quais eles não possuem controle, mas porque eles, enquanto agente conscientes, eram livres para pensar e agir de outra maneira. Dizer que eles eram livres para não estuprar e matar é dizer que eles poderiam ter resistido ao impulso de fazê-lo (ou poderiam ter evitado sentir um tal impulso) – com o universo, incluindo seus cérebros, estando precisamente no mesmo estado em que se encontravam no momento em que cometeram seus crimes. Assumindo que criminosos violentos têm tal liberdade, nós reflexivamente os culpamos por suas ações. Mas sem isso, o local de nossa culpa desaparece repentinamente, e mesmo os mais terríveis sociopatas começam a parecer-se com vítimas. No momento em que tomamos noção da extensão de causas que precedem suas decisões conscientes, retrocedendo à infância e além, a culpabilidade dos mesmos começa a desaparecer (HARRIS, 2012. p. 17-18, destaque nosso).
Esta conclusão de Sam Harris, segundo a qual a culpabilidade de criminosos desaparece tão logo toma-se consciência das causas que provocam necessariamente o comportamento dos mesmos, só pode ser entendida no sentido de que a culpabilidade desaparece num contexto puramente teórico. Na prática, parece evidente que o senso de responsabilidade (do qual a culpabilidade é uma mera extensão) continua a prevalecer, o que é facilmente comprovado pelo fato de que mesmo o determinista Sam Harris, apesar de sua convicção teórica, na prática continua a assinar seus próprios livros, o que equivale a dizer que ele se julga o único e exclusivo responsável pelos mesmos. Quem está enganado? Harris ou o seu livro? Se considerarmos aquela lição de Edmund Burke, para quem o comportamento é “a única linguagem que raramente mente” (BURKE, 2017, p. 160), certamente seria mais prudente se confiássemos naquilo que está implicado no que Harris faz, e não naquilo que ele diz.
Em outras palavras, sem liberdade/responsabilidade é impossível explicar algo trivial como os direitos autorais sobre uma determinada obra. Sob tais direitos está a pressuposição de que o autor é o responsável pela sua própria obra, e responsável não somente em sentido intelectual, mas também moral. Afinal, elementos como iniciativa, trabalho, esforço e, por fim, mérito pessoal, também estão implicados na produção de um livro. Agora, caso reduzamos Sam Harris a um corpo dirigido por um amontoado de informações inconscientes, provavelmente transmitidas por herança genética, então já não faz mais sentido considerá-lo autor de seus atos, incluindo dos livros que escreve3. Afinal, a partir dos argumentos de Harris, tal como o sentimento de liberdade, também o sentimento de pessoalidade deveria ser revogado como uma ilusão.
Entretanto, não há contradição total aqui. Ao que tudo indica, Sam Harris pode ter razão quando afirma que criminosos não são diretamente responsáveis por suas ações. O erro de Harris teria sido o de buscar a liberdade nas ações e decisões singulares, quando na verdade a responsabilidade recai diretamente sobre aquilo que somos, e não sobre aquilo que fazemos. Nossos juízos de imputação parecem confirmar isso, uma vez que não punimos, não condenamos e nem absolvemos ações, decisões ou condutas singulares manifestadas no espaço e no tempo, e sim as pessoas a partir das quais as ações são projetadas. O juízo moral de imputação recai sobre o esse, não sobre o operari. Sim, as teorias e experimentos neurocientíficos parecem provar que nossas decisões são causadas a partir de processos neurais. Mas o elemento realmente espantoso é o fato de que há, afinal, uma decisão. Como observa John Maddox (1998, p. 279), “qualquer que seja o caso, o fato de que o cérebro [...] toma uma decisão e então executa uma sequência apropriada de movimentos é a essência do que precisa ser explicado”. Sabemos agora que o cérebro decide. Mas por que ele decide? De onde vem este impulso primordial de decisão? Por que, afinal de contas, há vontade? Schopenhauer estava ciente do abismo que comporta tais questionamentos. Ele estava ciente de que a liberdade não pode recair sobre os atos de vontade, mas sobre a vontade mesma, porque esta é em si inexplicável. Neste sentido, Schopenhauer estava mesmo inteiramente correto ao considerar a vontade como uma “coisa-em-si”, isto é, algo que não é representação. Pois se definirmos mais estritamente “representação” como aquilo que se manifesta para o entendimento do sujeito cognoscente, então, a vontade, não podendo ser de fato completamente entendida, não pode estar sob nosso entendimento; logo, não é representação. Por que, em primeiro lugar, contemos em nós este impulso a que chamamos de “vontade”? E por que nossa constituição volitiva total, isto é, nosso caráter – do qual nossas decisões singulares são apenas um desdobramento gradual, uma perífrase – é tal como é? Estas perguntas não comportam respostas, pois, para respondê-las, teríamos de explicar; e “explicar” significa atribuir uma causa ou razão suficiente para um fenômeno. Porém, conforme valiosa lição de Schopenhauer, a vontade transcende o princípio de toda explicação, o princípio de razão suficiente. É por isso que os neurocientistas não podem explicar a vontade mesma, mas apenas pressupor que há uma vontade a partir da qual desdobram-se atos singulares sob estas ou aquelas condições. Eles precisam resignar-se a dar explicações apenas sobre os atos de vontade, enquanto deixam de lado a vontade mesma. Pedir-lhes para que expliquem a vontade a partir da qual se manifestam atos singulares seria como pedir a um evolucionista que explique o impulso biológico para a permanência em vida, ou a um físico, que explique a gravidade. Neste ponto a explicação tem de cessar, e ceder espaço para a mera descrição de um pressuposto: “a vontade está aí... é tudo o que sabemos”. Não entendemos a vontade. E, espantosamente, nada se apresenta mais imediatamente à nossa consciência do que o querer.
A esta altura alguém poderia replicar: “mas aquelas reações neurais que conduzem nosso comportamento são impessoais; o Eu consciente não as controla, e é neste sentido que dizemos que não há liberdade. Liberdade tem relação com consciência, pessoalidade. Mas o cérebro e a vontade são impessoais”. Porém, a realidade desmente esta assertiva. Apesar de o cérebro supostamente decidir “inconscientemente” antes mesmo de nos darmos conta desta decisão, o conjunto dessas decisões deve formar um padrão, padrão este que denominamos precisamente de caráter. O resultado é bastante inusitado: se Gazzaniga e Harris estiverem corretos, o cérebro decide à nossa revelia e, no entanto, suas decisões ainda nos representam, isto é, correspondem a uma unidade volitiva, a um caráter. Dito de outro modo, se o cérebro fosse impessoal, então nossas ações teriam de ser totalmente aleatórias. Embora certamente exista algum nível de imprevisibilidade na conduta humana, o fato é que geralmente sabemos o que esperar de alguém que já conhecemos. Apesar de o cérebro decidir independentemente de mim, nem por isso ele deixa de ser o meu cérebro. O meu cérebro não me consulta e, no entanto, suas decisões não devem deixar de refletir a minha personalidade. Logo, as minhas decisões podem ser inconscientes, mas nem por isso deixam de ser pessoais. Consequentemente, tais decisões ainda podem ser imputadas a mim, ao meu caráter. Não fosse assim, seríamos incapazes de distinguir decisões nossas daquelas pelas quais nos recusamos a nos responsabilizarmos, como no caso dos comportamentos de reflexo, isto é, aqueles que decorrem de uma resposta imediata a estímulos externos que nos surpreendem, ou os comportamentos compulsivos provocados pela síndrome de Tourette, apenas para citar um exemplo.
Por essas razões, Dieter Birnbacher resgata nesse contexto a tese de Henrik Walter, para quem a liberdade pode ser conservada mesmo em meio ao determinismo fortalecido pelas neurociências. Segundo Birnbacher,
Henrik Walter, em seu livro Neurophilosophie der Willensfreiheit [...] propôs definir um “conceito sucessor” para o conceito de liberdade da vontade [...] exclusivamente a partir de componentes compatíveis com a suposição de um determinismo causal, a saber, o poder de agir diferente [Anderskönnen], a compreensibilidade [Verständlichkeit], e autoria [Urherberschaft]. Consequentemente, a decisão de uma pessoa pode ser sempre considerada livre, se ela preenche três condições: 1. se a pessoa, sob condições bastante parecidas, puder decidir de outro modo; 2. se a decisão é compreensível e fundamentada; 3. se a decisão é autêntica no sentido de que ela é coerente com as convicções, normas e atitudes de pessoa (BIRNBACHER, 2005, p. 145).
Das três condições, consideramos a terceira como a mais decisiva. Pois a condição “1” parece recair sob o conceito de “livre-arbítrio de indiferença”, e por isso não prova a liberdade moral. Além disso, as teorias neurocientíficas de Gazzaniga e Libet negam liberdade a ações singulares. O mesmo pode ser dito sobre a condição “2”. Ações compreensíveis e fundamentadas não são suficientes para afastar a incidência do princípio de razão suficiente. A condição “3”, por outro lado, opera o deslocamento da questão tal como sugerido por Schopenhauer: as decisões são livres quando dotadas de pessoalidade, isto é, ao refletirem o caráter do agente. Este é o último reduto da liberdade, na medida em que o princípio de razão suficiente não opera sobre o caráter do agente, apenas pressupõe-no – exatamente como o faz os experimentos neurocientíficos articulados nos limites do princípio de razão suficiente. Apenas pelo acréscimo da condição “3” é que as condições “1” e “2” podem ser reafirmadas em um contexto de compatibilização entre determinismo e liberdade. Se revogada a condição “3”, não vemos razão para ainda poder-se falar de liberdade compatibilizada ao determinismo, pois neste caso restaria apenas o determinismo.
Interessante notar que o próprio Benjamin Libet – geralmente citado como o primeiro grande responsável pela descoberta da antecipação de processos neurais sobre decisões conscientes no processo de gênese da ação – não acreditava que suas descobertas deveriam ser interpretadas como uma refutação da liberdade humana. Em seus experimentos, ele acusou uma brecha a partir da qual julgou poder conservar a ideia de liberdade. Conforme já explicado, Libet afirma que nossas ações têm por ponto de origem aquilo que ele chamou de “potencial de prontidão” (readiness potential, Bereitschaftspotential), que se refere ao processo neural e inconsciente que antecede a ação (LIBET, 1999, p. 47 e ss.). Este processo neural antecipa a ação em aproximadamente 500 milissegundos. Mas entre o processo neural inconsciente e a ação, tem-se como ponto intermediário a decisão consciente, que antecede a ação em 200 milissegundos (LIBET, 1999, p. 51). Deste modo, a vontade consciente pode atuar como um filtro, ou, mais precisamente, exercer um poder de veto sobre o estímulo iniciado inconscientemente:
Potencialmente disponível à função consciente é a possibilidade de parar ou vetar o progresso final do processo volitivo, de modo a não suceder-se qualquer atividade muscular. Portanto, o querer-consciente poderia afetar o desfecho do processo volitivo mesmo que o último fosse iniciado por processos cerebrais inconscientes. O querer-consciente poderia bloquear ou vetar o processo, de modo que nenhum ato ocorra.
A existência da possibilidade de veto é indubitável. Os sujeitos em nossos experimentos relataram algumas vezes que um desejo consciente ou impulso de agir surgiu, mas que eles o suprimiram ou o vetaram. Na ausência de sinais elétricos dos músculos ao serem ativados, não havia um gatilho para desencadear o registro do computador sobre qualquer RP [readiness potential/potencial de prontidão] que poderia preceder o veto; portanto, não havia registros de RPS com intenções de vetar o ato. No entanto, nós fomos capazes de mostrar que os sujeitos testados poderiam vetar um ato planejado para performance dentro de um tempo pré-arranjado. Eles foram capazes de exercer o veto dentro de um intervalo de 100 a 200 milissegundos antes do tempo pré-definido de agir. Um extenso RP precedeu o veto, significando que, sem dúvida, o sujeito estava preparando-se para agir, mesmo que a ação tenha sido abortada pelo sujeito (LIBET, 1999, p. 51-52).
Em poucas palavras: não há “potencial de prontidão” (RP) correspondente especificamente ao veto, apenas à ação. Somente à atividade muscular corresponderiam sinais elétricos que registram o RP. Disso deduz-se que não existem sinais elétricos correspondentes ao veto. Logo, a omissão parece ser livre. Além disso – e este é o ponto que nos parece crucial – mesmo nos casos em que se iniciou um processo de ação – e, consequentemente, registrou-se o potencial de prontidão – os indivíduos testados foram capazes de “vetar” conscientemente a decisão inconscientemente iniciada pelo cérebro. Convém relembrar aqui que o RP precede a ação em aproximadamente 500 milissegundos, e a atividade consciente de veto, precede-a entre 100 e 200 milissegundos. Logo, entre o RP e a ação externa, há a mediação da vontade consciente, que atua como um filtro. A partir disso, Libet conclui que a vontade consciente, embora não inicie a ação, tem a palavra final sobre a mesma. Aquilo que o cérebro decidiu sozinho só se efetuará se a vontade consciente permitir:
o papel da vontade livre consciente seria, então, não o de iniciar um ato voluntário, mas o de controlar se o ato toma lugar. […] A vontade consciente seleciona qual destas iniciativas prossegue para a ação ou qual vetar e abortar (LIBET, 1999, p. 54).
Portanto, a contra-argumentação de Harris a Libet não parece acertar o alvo:
Libet e outros argumentaram que o conceito de vontade livre poderia ainda ser salvo: talvez a mente consciente seja livre para “vetar”, em vez de iniciar, a ação complexa. Esta sugestão sempre pareceu absurda – pois certamente os eventos neurais que inibem uma ação planejada são igualmente inconscientes (HARRIS, 2012, p. 73).
Ora, o que os experimentos de Libet demonstram é que não há um potencial de prontidão correspondente ao veto; logo, não haveria prova empírica de que eventos neurais inibitórios sejam anteriores à decisão consciente de vetar. Mas não é de nosso interesse nos aprofundar nesta disputa entre Harris e Libet. Nossa intenção não é a de exercer uma apreciação crítica sobre estas teorias e experimentos de neurociência, mas de executar um trabalho crítico sobre Schopenhauer. E, para tanto, julgamos importante confrontá-lo diante das conclusões de Libet e Gazzaniga, para então sabermos como a teoria schopenhaueriana se sairia deste embate. Por isso, não ensaiaremos aqui um confronto entre Libet e Gazzaniga. Não nos questionaremos, por exemplo, como as conclusões de Gazzaniga, segundo as quais o hemisfério esquerdo do cérebro atua como um “intérprete”, afetaria a teoria libetiana da vontade consciente enquanto poder de “veto”. Nosso objetivo é o de compreender como a teoria schopenhaueriana responderia ao determinismo neurológico. Portanto, ao considerarmos a tese de Michael Gazzaniga – que, neste ponto, coincide em parte com os resultados de Benjamin Libet – tomamo-la acriticamente, isto é, assumimos que Gazzaniga tenha alcançado êxito e provado que as ações singulares não são conscientemente decididas4. Diante da hipótese mais favorável a Gazzaniga, concluímos que a teoria de Schopenhauer não fora afetada. No máximo, teríamos de substituir a causalidade por motivação pela causalidade por estímulo como razão suficiente das ações singulares. O primeiro aspecto da tese de Libet também havia recebido sua resposta neste ponto, pois Libet apenas demonstrara que ações singulares são antecedidas por processos neurais inconscientes. E isso não afeta em nada a liberdade do esse, mas apenas do operari, o que é precisamente aquilo que Schopenhauer afirma. Porém, ao aprofundarmo-nos na teoria da Libet, vimos que a mesma comporta um segundo aspecto, ao considerar os comportamentos omissivos. Aqui também iremos partir do melhor dos mundos possíveis para Libet: vamos supor que ele provou haver uma vontade consciente com poder de veto sobre os impulsos inconscientes e que, portanto, uma ação ou uma omissão só se materializam com a anuência da vontade consciente. Como isto afetaria a teoria de Schopenhauer?
Ao que parece, Libet não pode obter, com sucesso, uma prova da liberdade a partir de sua teoria da vontade como “poder de veto”. Pois se a vontade consciente, atuando como filtro entre o processo neural e o movimento corpóreo, decide pela ação ou inação, então podemos questionar: por que ela assim se decidiu? Tem de haver uma razão suficiente. Libet parece afirmar que a razão da decisão não é um mero estímulo vegetativo. O “potencial de prontidão” é estimulado, mas não a vontade consciente que atua com poder de veto. Mas se não é estimulada, então é motivada. Logo, Libet nada mais faz do que deslocar, novamente, a decisão consciente do estímulo fisiológico para a lei da motivação. Logo, ele apenas restaura a compreensão tradicional, inclusive já presente em Schopenhauer, de acordo com a qual a ação singular há de ser compreendida como um problema psicológico, em vez de neurológico. De qualquer forma, nenhuma liberdade é revelada por esta via.
Nos dois cenários, parece-nos que a teoria de Schopenhauer sai ilesa. Diante das teses de Gazzaniga e Harris, dizemos que não há prova de determinação sobre o caráter, apenas sobre as ações, com o que inclusive Schopenhauer concordaria em linhas gerais. Com relação à tentativa de Libet de readmitir a liberdade no âmbito das ações singulares, o argumento determinista de Schopenhauer continua a prevalecer: o poder de veto atribuído à vontade consciente apenas desloca o tipo de determinação, da fisiológica para a psicológica. E é realmente digno de nota que o argumento filosófico de Schopenhauer em favor da liberdade metafísica da vontade possa escapar incólume deste diálogo com a neurociência atual. Seria muito mais difícil dizer o mesmo de filósofos que pretenderam, ou que ainda pretendem, encontrar a liberdade nas ações singulares, em lugar de localizá-la no caráter inteligível do agente. A transição proposta por Schopenhauer na avaliação do problema da liberdade e da responsabilidade – a transição do operari para o esse – tem por consequência preservar o investigador de engajar-se em longas análises e digressões sobre pormenores concernentes àquelas experiências conduzidas por Libet5 e Gazzaniga (ou por outros cientistas mais ou menos fieis ao mesmo modelo de abordagem e experimentação). Se o verdadeiro problema não é sobre a causa do agir, mas sobre a causa do ser, então a neurociência só poderia dotar-nos de elementos pelos quais devêssemos qualificar a liberdade como uma “ilusão” (tal como faz Sam Harris) se os experimentos executados indicassem inequivocamente a determinação sobre o ser em vez de limitar-se a apontá-la sobre o agir.
Após estas considerações, resta ainda uma questão: aquela tese de Libet, de acordo com a qual há uma liberdade de veto, não poderia coincidir com a doutrina schopenhaueriana da liberdade fenomênica como negação de si? A liberdade de veto não poderia ser interpretada no sentido de que, ao dizermos “não” a nós mesmos, libertamo-nos? E não é precisamente isso o que diz Schopenhauer em sua doutrina da única liberdade passível de ser alcançada sob o mundo como representação, que nada mais é do que a liberdade dos ascetas que negam a si mesmos? Não haveria uma coincidência entre Schopenhauer e Libet no sentido de ambos acusarem na omissão o gesto definitivo da libertação, inclusive de si próprio (por mais paradoxal que isso possa parecer)?
Bem, não exatamente. Para não deixar dúvidas sobre este ponto, o que Libet diz é que a vontade consciente funciona como um filtro entre o “potencial de prontidão” e o movimento muscular. Logo, para Libet, a liberdade não é alcançada apenas na negação, embora seja exclusivamente o fenômeno de negação, isto é, de omissão, que mostrou-lhe a possibilidade de a vontade consciente filtrar qual estímulo emitido pelo cérebro irá acolher, e assim decidir se atua ou se omite-se. Portanto, isto não pode ser confundido com a doutrina schopenhaueriana de uma liberdade por meio da supressão gradual e, por fim, total, do próprio caráter, sustentada exclusivamente sobre a negação. No entanto, não nos parece exagerado acusar aqui ao menos um ponto de interseção, na medida em que, nas duas teorias, sublinha-se um enigmático poder de dizer “não” às disposições inconscientes do próprio caráter, e julga-se encontrar nisso uma expressão de liberdade. E se há uma interseção, então aquilo que sugerimos como argumento contrário à teoria da liberdade defendida por Libet pode ser reafirmado contra Schopenhauer (em exatamente qual proporção, não ousaremos dizer no momento): até que ponto a negação de si não é tão rigidamente motivada quanto a afirmação de si?
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Contribuição de autoria
1 – Rogério Moreira Orrutea Filho
Doutorado em andamento em Filosofia na Universidade Estadual de Londrina, Brasil
https://orcid.org/0000-0001-6756-9603 • rogeriomofilho@gmail.com
Contribuição: Escrita – Primeira Redação
Como citar este artigo
ORRUTEA FILHO, R. M. Liberdade e neurociência: como a metafísica de Schopenhauer responderia ao determinismo neurológico? Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 13, n. 2, e5, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378671865. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
1 Um dos experimentos realizados por Gazzaniga é assim por ele narrado: “A descoberta do intérprete no hemisfério esquerdo ocorreu durante um teste conceitual simultâneo durante o qual apresentamos duas imagens a pacientes com cérebro dividido, isto é, com seus dois hemisférios separados cirurgicamente. Mostramos uma imagem exclusivamente ao hemisfério esquerdo e outra ao direito. Logo apresentamos ao sujeito uma série de imagens e lhe pedimos que escolhesse aquelas que correspondessem às primeiras imagens. Em um exemplo, apresentamos a imagem de um pé de galinha ao hemisfério esquerdo e uma paisagem com neve ao direito. A associação correta era uma galinha para o pé e uma pá para a imagem da neve. Um paciente reagiu escolhendo uma pá com sua mão esquerda, e uma galinha com a direita. Quando perguntamos por que ele havia escolhido aqueles elementos, seu hemisfério esquerdo respondeu: ‘Muito fácil. O pé de galinha corresponde à galinha, e eu necessito de uma pá para limpar o galinheiro’. Neste caso, o hemisfério esquerdo, observando a resposta da mão esquerda, elaborou a réplica mais coerente dentro de seu âmbito de conhecimento, isto é, uma que não inclui nenhuma informação sobre a cena da neve. O que assombra é o fato de que o hemisfério esquerdo é perfeitamente capaz de dizer algo como ‘na verdade, não sei por que elegi a imagem da pá; meu cérebro está dividido, lembra? É provável que tenha sido mostrado algo à outra metade, o que ocorre a todo tempo. Sabes perfeitamente por que não posso explicar o motivo de ter escolhido a pá. Pare de perguntar tolices’. Mas ele não diz isso. O hemisfério esquerdo inventa uma história para se convencer e nos convencer de que temos o controle” (GAZZANIGA, 1998, p. 48).
2 Os §§ 21 e 23 de Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente são bastante elucidativos sobre a aprioridade da causalidade relativamente à experiência, e sobre como a simples sequência (Folge) de eventos se distingue da relação de consequência (Erfolg) entre os mesmos.
3 Como muito bem nota o psiquiatra Theodore Dalrymple (2017, p. 76-77): “’não fui eu, foi meu cérebro’ será o clamor de todas as pessoas com desvios de comportamento que têm uma noção mínima do Zeitgeist, que é o que elas costumam ter. Isso pode ser dito de todo e qualquer comportamento, mas disso ninguém se dá conta”.
4 Embora não seja nosso propósito avaliar a veracidade destas teorias, cremos que vale mencionar que as mesmas, como qualquer conhecimento obtido por empiria, não estão acima da crítica. Herbert Helmrich aponta insuficiências no experimento de Libet. Segundo Helmrich, o simples fato de os sujeitos testados terem plena ciência do que teriam de fazer durante o teste já prejudica o experimento: “nós sabemos, a partir de investigações do cérebro sobre o controle de atenção [Aufmerksamtkeitssteuerung] , que com a concentração engajada sobre uma tarefa imediatamente próxima que temos claramente diante dos olhos [...] o potencial de prontidão fica imediatamente pronto para a ação que há de ser executada” (HELMRICH, 2004, p. 117). Em suma, é apressado extrair uma conclusão sobre o significado moral de nossas decisões a partir de um experimento no qual ocorre “controle de atenção”. Arriscamos dizer que isto seria como deduzir que não decidimos conscientemente nossas ações baseando-nos no fato de que, durante uma partida de futebol, os atletas não decidem conscientemente todas as suas jogadas, ou que durante a execução de notas em um instrumento musical, o instrumentista não decide conscientemente executar cada nota da escala – atividades em que há o “controle de atenção”. Com relação a Gazzaniga, poderíamos dirigir nossas críticas – sob o risco de soarmos diletantes, e até pedantes – ao fato de que o mesmo teve de se contentar com poucos experimentos, afinal, ele dependia de sujeitos portadores de uma condição bastante especial: a divisão do corpus callosus (também chamado de corpus callosum) e comissura anterior, responsáveis pela comunicação entre os dois hemisférios do cérebro. Segundo, deve-se levar em conta que as reações do “intérprete” foram determinadas em uma situação de desconhecimento por parte do sujeito testado (o paciente não sabia que uma imagem de neve havia sido mostrada ao hemisfério direito de seu cérebro). É perfeitamente possível assumir que, numa situação de desconhecimento, o hemisfério esquerdo (ou “intérprete”) se esforce em atribuir sentido ao desconhecido. Fazemos isso o tempo todo, o que é comprovado pelo fenômeno psicológico da projeção, que constitui a base do famoso teste de Rorschach. Extrair a partir de uma situação de desconhecimento uma teoria segundo a qual podemos qualificar de modo idêntico todas as outras situações em que há conhecimento (como no caso de escolhas dotadas de significado moral), parece-nos um tanto extravagante.
5 Este é, por exemplo, o caso de Schurger, Sitt e Dehaene, que combatem como uma pressuposição a crença generalizada de que “the decision to move coincides with the onset of the RP”; certo seria que “we still lack a precise mechanistic account of what RP reflects, beyond descriptive phrases such as ‘planning and preparation for movement’”(SCHURGER et al, 2012, p. E2909; ver também MELE, 2020, p. 89 e ss.). Entretanto, este engajamento na refutação de aspectos específicos apresentados pelos experimentos do estilo de Libet, ou na refutação das interpretações deterministas dos resultados obtidos em experimentos do mesmo tipo, tem sua importância significativamente reduzida diante do deslocamento teórico (do operari para o esse) sugerido por Schopenhauer.