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Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 14, n. 1, e71798, 2023

DOI: 10.5902/2179378671798

ISSN 2179-3786

Submissão: 27/09/2022 Aprovação: 09/07/2023 Publicação: 21/08/2023

1 INTRODUÇÃO.. 2

2 IDEIAS E A HIERARQUIA DAS ARTES. 6

3 A ARTE DE KANDINSKY. 11

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS. 18

REFERÊNCIAS. 19

 

Estudos Schopenhauerianos

Kandinsky e a relação entre música e pintura na metafísica do belo de Schopenhauer

Kandinsky and the relationship between music and painting in Schopenhauer's metaphysics of the beauty

Eduardo Ribeiro da FonsecaIÍcone

Descrição gerada automaticamente

Gabriel do Carmo AguiarIÍcone

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I Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR, Brasil

RESUMO

O presente texto tem por objetivo compreender a pintura de Wassily Kandinsky a partir da metafísica do belo de Arthur Schopenhauer, especialmente a partir da relação entre pintura e música estabelecida pelo pintor.

Palavras-chave: Schopenhauer; Kandinsky; Arte abstrata; Música

ABSTRACT

This text aims to comprehend the painting of Wassily Kandinsky from the metaphysics of the beautiful by Arthur Schopenhauer, especially from the relationship between painting and music established by the painter.

Keywords: Schopenhauer; Kandinsky; Abstract art; Music

1 INTRODUÇÃO

Para Arthur Schopenhauer, a contemplação estética vai além de uma mera apreciação das obras de arte. Para ele, trata-se de um peculiar modo de conhecimento. Em contato com a arte, o indivíduo entra em um estado de excepcionalidade em relação ao querer-viver, e consegue, mesmo que por um breve instante, livrar-se das cadeias da vontade individual, ainda que permaneça ativo o impulso ao conhecimento, tendo acesso, dessa forma, às representações de modo independente do princípio de razão suficiente. A esse indivíduo que na experiência estética deixa de conhecer as coisas somente a partir do querer-viver, o filósofo irá denominar de puro sujeito de conhecimento.

Segundo Schopenhauer, o conhecimento estético é objetivo, visto que se apresenta a partir da contemplação das Ideias perenes, e se encontra livre de referências subjetivas a objetos que se associam uns aos outros no contexto “interessado” (expressão que se refere ao egoísmo individual ou coletivo) da vontade, seja no que tange ao senso comum, seja no que concerne ao conhecimento científico, a partir das modalidades do princípio de razão, como o filósofo mesmo explica:

A arte repete as Ideias eternas apreendidas por pura contemplação, o essencial e permanente de todas as aparências do mundo; de acordo com o estofo em que ela o repete, tem-se a arte plástica, poesia ou música. Sua única origem é o conhecimento das Ideias; seu único fim, a comunicação desse conhecimento (W I, p. 213).

No contexto do conceito de “Ideias platônicas”, o filósofo desenvolveu uma noção de hierarquia das artes, que parte dos diferentes graus de perfeição na apreensão e apresentação das Ideias que as expressões artísticas determinadas podem atingir. Por causa das artes, em função de não terem referência no que é útil, “elevamo-nos acima da pesada atmosfera terrena da necessidade e do querer” (WII, p. 47). O filósofo parte da arquitetura, que expressa as Ideias mais básicas como a das forças da natureza, até atingir a música, que, separada das demais artes, se destaca por apreender e apresentar diretamente a Vontade metafísica, sendo então uma verdadeira correlata dela.

O modo como Schopenhauer hierarquiza as artes, por outro lado, expressa a sua experiência do ponto de vista de uma apreciação clássica das artes, tal como Freud, e, nesse contexto, criticava o grotesco e o excitante que prenunciam, desde o barroco com, por exemplo, José de Ribera, Caravaggio, o gosto moderno em arte, bem diferente daquilo que Schopenhauer admirava (exatamente o oposto de Nietzsche, que, sendo contemporâneo dos modernos foi um entusiasta dos elementos excitantes presentes no contexto da arte).

Historicamente, também o maneirismo, que reage ao renascimento e antecede ao barroco, sendo admirado pelos libertinos franceses, tende ao artificialismo extravagante e ao desvio dos instintos enquanto busca revelar o lado oculto, diríamos também reprimido, da experiência cotidiana, enquanto o classicismo apreciado por Schopenhauer busca expor e valorizar a natureza, porém, em seu aspecto apolíneo. Segundo Hocke (2005, p. 305), o desvio do mundo impulsional perpetrado pelo maneirismo provém justamente de um impulso que quer satisfazer a libido não apenas na e pela natureza, mas muitas vezes fora dela e contra ela. É interessante pensar não apenas o poeta Lautréamont, mas também o filósofo libertino Sade e também o surrealismo de Breton e Dali como contradições e, portanto, como contrapontos a esse modelo clássico que é valorizado por Schopenhauer e Freud e que remonta à Renascença. A tendência ao artificialismo e ao subjetivismo que expressa o querer-viver veemente, tanto nas artes visuais como na literatura, na poesia, na dança e na música, corresponde a uma “inspiração que não se alimenta da natureza” (Hocke, 2005, p. 305) tomada como modelo objetivo, mas, pelo contrário, parte de percepções interiores, que são, de alguma forma, preferencialmente narcísicas, expressando o princípio de prazer, ou, em linguagem schopenhaueriana, afirmando diretamente a vontade individual, a singularidade. Leonardo criticava os maneiristas, segundo Hocke, dizendo que eles não encontravam a plenitude “senão na própria imaginação” (Hocke, 2005, p. 305). Seriam, portanto, artistas, como El Greco, cujo comprazimento está na contemplação de suas próprias imagens íntimas, que expressam nesse caso os anseios de um imaginário peculiar, no qual o mundo dos sonhos e da imaginação, bem como os seus vícios e perversidades podem coincidir.

Um exemplo mais radical dessa perspectiva, no entanto, talvez inclassificável para os padrões da época, seja Hieronymus Bosch, chamado de o “criador de demônios”. Isso pode ser evidenciado, por exemplo, por suas célebres telas “O sonho dos enamorados” e “O jardim das delícias terrenas”. Nessas telas precursoras do surrealismo, a imaginação e a realidade se equiparam, se considerarmos que a realidade em questão seja justamente o mundo subjetivo humano, coisa que, evidentemente, não é admitida no modelo clássico. Schopenhauer, já idoso, foi contemporâneo das mudanças que resultaram no que chamamos de arte moderna. Poe, Delacroix e Baudelaire já estavam atuando e a arte criada por eles era de uma concepção diametralmente oposta à admitida por Schopenhauer. No entanto, ele não parece ter tomado conhecimento desse tipo de expressão artística moderna que mais tarde resultaram em manifestações abstratas, não podendo, portanto, por si mesmo, avaliar essas formas expressivas em toda a sua potência e plenitude tal como ocorreu após as dissenções do final do século XIX e início do século XX.

Nesse período, as artes passaram por grandes mudanças, e, dentre essas estão aquelas protagonizadas pelo artista russo Wassily Kandinsky. O pintor russo foi um dos pioneiros do que ficou conhecido como arte abstrata, um estilo de pintura, que, diferente das artes pictóricas, quis expressar sentimentos e emoções a partir de cores e formas que, pensadas a partir dos conceitos de Schopenhauer, não são cópias das Ideias do mundo. Esse formato de pintura está mais próximo da música, visto que, para Schopenhauer, até então é a única expressão artística que não se caracteriza por ser uma cópia das Ideias, mas sim expressa a Vontade mesma. Com isso é possível pôr em questão o que poderia ser dito da arte abstrata do ponto de vista da hierarquia das artes do filósofo da Vontade.

No prefácio do seu ensaio Sobre o Espiritual na arte, Kandinsky afirma que “Toda obra de arte é filha de seu tempo” (Kandinsky, 1997, p. 27). Desse modo, é natural que a arte do século XX seja diferente da arte do tempo de Schopenhauer, mas, apesar disso, seria possível questionar se os conceitos estéticos pensados por Schopenhauer no século XIX ainda são relevantes para pensar a arte do século XX? Em caso positivo, em que medida os novos parâmetros artísticos poderiam hipoteticamente influenciar o modo como Schopenhauer organizou o seu pensamento, talvez possibilitando novas formas de perceber a arte e, no nosso caso, a partir da obra de Kandinsky?

2 Ideias e a hierarquia das artes

Para compreender por que somente a música interage diretamente com a vontade de viver, e avaliar a possibilidade de a pintura abstrata atingir o mesmo patamar na hierarquia das artes, é necessário primeiramente entender a importância das Ideias platônicas na metafísica do belo de Schopenhauer.

Crítico às interpretações escolásticas das Ideias[1], que eram então entendidas como produções abstratas da razão, Schopenhauer compreende por Ideia[2] “cada fixo e determinado grau de objetivação da vontade, na medida em que está é coisa em si, e, portanto, é alheia à pluralidade.” (W I, p. 151). Ou seja, sendo a Vontade a coisa em si, e, logo, desprovida de pluralidade, as Ideias são os seus atos originários que se relacionam com a efetividade, logo, com a pluralidade.

Portanto, para Schopenhauer, Ideia e Vontade, por mais próximas que sejam, não são a mesma coisa, já que a Ideia é a Vontade quando ela se efetiva, torna-se objeto, porém, ainda sem entrar no âmbito do espaço, tempo e causalidade, referências para o princípio de razão. No entendimento do filósofo, espaço, tempo e causalidade não atingem a Ideia e nem a Vontade, no entanto, a Ideia é o ponto de conexão da Ideia com a pluralidade que caracteriza o mundo como representação. Como ele mesmo afirma: “A Ideia já é objeto; a coisa em si, por seu turno, não é objeto. A Ideia, ao contrário, é necessariamente objeto, algo conhecido, uma representação: essa determinação é a única mediante a qual as duas se diferenciam.” (V III, p. 39).

Para Schopenhauer, a pluralidade infensa ao mundo como representação não é a objetividade adequada da Vontade, já que ela se encontra turvada pelas formas que são comumente expressas pelo princípio de razão, mas que são suas condições de conhecimento. Por conta disso, o conhecimento dos objetos que servem à Vontade só pode conhecer as suas relações efetivas no âmbito da representação, ou seja, “conhece os objetos apenas na medida em que eles existem neste tempo, neste lugar, sob estas circunstâncias, a partir destas causas, sob estes efeitos, numa palavra, como coisas isoladas” (V III, p. 43). Para ele, caso todas essas relações fossem eliminadas, os objetos desapareceriam para o conhecimento, já que nada mais poderia ser reconhecido neles.

            Esse conhecimento é capaz de se libertar das cadeias da Vontade, visto que a partir dele, o sujeito deixa de ser indivíduo, pondo de lado o conhecimento de simples relações em conformidade com o princípio de razão, deixando de conhecer nas coisas apenas os interesses de sua Vontade, tornando-se assim puro sujeito de conhecimento de certa forma destituído de Vontade[3], e desse modo, alcança o objeto que lhe é oferecido em uma fixa contemplação, alheia aos demais objetos. Schopenhauer chama essa contemplação de intuição estética das coisas, em relação à qual o “onde”, o “quando” e o “porquê” não são mais considerados, mas somente o seu “o quê”, ou seja, a Ideia, como Schopenhauer afirma:

Se, portanto, em tal concepção, o objeto aparece isento de toda relação com algo exterior a ele, e o sujeito de toda relação com uma vontade individual, então o que é conhecido não é mais a coisa isolada, mas a Ideia, a forma eterna, a objetividade imediata da Vontade nesse grau (V III, p. 46).

É importante que fique claro a concepção de Ideia para Schopenhauer, pois, é a partir dela em que ele fundamentou a hierarquia das artes. O filósofo classifica as expressões artísticas a partir de seu grau de objetivação da Vontade na Ideia, visto que quanto mais elevada é a Ideia representada pela expressão artística, maior o seu grau de objetivação da Vontade na Ideia.

A pintura para Schopenhauer atinge alguns graus de objetivação da Vontade na Ideia, sendo o mais baixo a pintura paisagística, que junto com a jardinagem, representam as Ideias do mundo vegetal, estando acima somente da arquitetura, intuindo o que para o filósofo são os graus mais baixos de objetividade da vontade, ou seja, “gravidade, coesão e rigidez, dureza, as qualidades gerais da pedra, essas primeiras, mais elementares, mais abafadas visibilidades da vontade, tons graves da natureza, e, entre elas, a luz” (W I, p. 248).

A pintura de paisagem, para Schopenhauer, por expressar Ideias de um grau mais elevado de objetividade da Vontade em relação a arquitetura, expõe também o lado mais objetivo da satisfação estética, contrabalanceando o lado subjetivo. Por sua vez, a pintura de animais expressa Ideias de caráter mais elevado que a de paisagem, visto que a sua satisfação estética se encontra completamente no lado objetivo. O interesse humano por animais se encontra no mesmo querer que estabelece o sujeito humano, e que aparece aos olhos do indivíduo em imagens em que sua aparição não é dominada, nem controlada pela consciência, mas se exibe em traços mais intensos, em uma clareza que entra em contato com o grotesco e monstruoso, tudo, segundo Schopenhauer, sem dissimulação, de uma forma ingênua.

Se, para Schopenhauer, os animais possuem somente o caráter da espécie, na pintura histórica, se encontra o caráter da espécie separado do caráter do indivíduo. “O primeiro [caráter da espécie], então, se chama beleza (em sentido inteiramente objetivo), enquanto o segundo [caráter do indivíduo] conserva o nome “caráter” ou “expressão”” (W I, p. 255). A dificuldade encontrada na pintura de seres humanos está em expor perfeitamente os dois ao mesmo tempo, num mesmo indivíduo. Segundo o filósofo da Vontade, nenhum outro objeto atrai tão depressa para a intuição estética quanto a figura e o rosto humano, que remete ao indivíduo que comtempla uma satisfação imediata e inexprimível, elevando-o sobre si mesmo, e tudo o que o atormenta. O que, segundo o filósofo, só é possível graças a cognoscibilidade mais clara e pura da vontade, colocando os contempladores de forma mais rápida ao estado de puro conhecer.

A música, por sua vez, se diferencia de todas as demais expressões artísticas dentro da filosofia de Schopenhauer, justamente por, ao invés de representar a cópia e a repetição das Ideias, representa diretamente a Vontade, sendo para ele uma linguagem universal. Inclusive, se não houvesse representação, ainda assim haveria música, como ele mesmo afirma:

Ora, como o nosso mundo nada é senão o aparecimento das Ideias na pluralidade, por meio de sua entrada no principium individuations (a forma de conhecimento possível ao indivíduo enquanto tal), segue-se que a música, visto que ultrapasse as Ideias e é completamente independente do mundo aparente, ignorando-o por inteiro, poderia em certa medida existir ainda que o mundo não existisse – algo que não se pode dizer das outras artes (W I, p. 298).

A música, sendo uma imediata objetivação e cópia de toda Vontade, assim como o mundo e as Ideias são (no qual sua manifestação constitui o mundo das coisas singulares, e, desse modo, distinta das outras artes que são cópias das Ideias), tem seu efeito muito mais influente, já que para Schopenhauer, fala da essência, como ele mesmo afirma:

Do mesmo modo que a música não exibe as ideias ou graus de objetivação da vontade, como todas as outras artes fazem, mas sim exibe diretamente a própria Vontade, podemos também entender que ela age diretamente sobre a vontade, ou seja, age sobre os sentimentos, as paixões e as emoções do ouvinte, de maneira que ela rapidamente os aumenta ou, senão, altera-os (W II, p. 130).

É possível observar que as artes plásticas descritas por Schopenhauer são unicamente concretas e representativas, vale dizer, figurativas, e dependem nesse sentido da representação da objetivação da Vontade na Ideia para intuir o conhecimento estético. Como já dissemos, é natural que isso ocorra, já que, falecido em 1860, Schopenhauer não teve tempo para conviver e absorver os primeiros passos da arte moderna em sua época, que trouxeram gradativamente através de várias rupturas, as dissenções ou novas concepções e teorias da arte. Mesmo sendo contemporâneo de movimentos como o impressionismo, que por sua vez influenciaria o modernismo, seria improvável que Schopenhauer concebesse uma pintura abstrata, que pudesse pôr em xeque a forma como hierarquizou os diferentes graus de exposição de Ideias tais como descrito por ele em suas obras. Mais improvável ainda seria conceber em seu contexto que alguma expressão artística além da música fosse capaz de apresentar a própria Vontade, ao invés de somente sua objetivação da Ideia.

3 A ARTE DE KANDINSKY

O século XX trouxe inovações nas artes de um modo geral, e, nas artes plásticas, não seria diferente. Grandes mudanças como a dos modernistas não ocorrem do dia para a noite, e, de fato, o rompimento com as artes clássicas iniciou ainda no século XIX. Porém, no século XX essas mudanças ficaram mais evidentes. Gombrich, ao falar sobre o modernismo, menciona que “a arte perdeu o rumo porque os artistas descobriram que a simples exigência de “pintar o que veem” é contraditória” (Gombrich, 2019). Segundo o historiador da arte, por mais aprimorada que fosse a técnica utilizada ao representar um objeto, trata-se somente de uma meia-verdade.

Com os movimentos ligados às vanguardas dos anos 10 e ao modernismo, conforme Gombrich (2019), os artistas tornaram-se inventores, empenhando-se mais na originalidade da obra do que pela técnica em representar a perfeita cópia da natureza. Em contraste com isso, Schopenhauer menciona que:

Quando o pintor nos deixa ver as coisas através de seus olhos, alcançamos aí ao mesmo tempo uma simpatia e o sentimento posterior de profunda tranquilidade espiritual e de completo silêncio da Vontade, necessários para imergir tão profundamente o conhecimento naqueles objetos inanimados e, assim, apreendê-los com um tal afeto, isto é, com um tal grau de objetividade (W I, p. 253).

No modernismo, diferente do que o filósofo menciona, os pintores já não deixavam o público enxergar o mundo como eles o viam, mas como eles o sentiam. Isso, como dissemos, já existia no contexto da pintura, se considerarmos o barroco e o maneirismo, mas agora havia uma consciência maior no mundo da arte e teorias mais sólidas que defendiam esse abandono relativo da arte figurativa e que, em alguns casos, radicalizavam desse ponto de vista. Faziam uso intenso de cores e formas que impunham à realidade um viés expressivo, fugindo de uma cópia fiel das Ideias do mundo de acordo com uma concepção figurativa.

Foi com o pintor russo Wassily Kandinsky que a suspensão da cópia fiel das Ideias atingiu seu ponto máximo nesse período. Sendo um dos pioneiros do que ficou conhecido pelo público como arte abstrata, Kandinsky começou sua vida artística com a música cromática, conforme menciona Gombrich (2019). Esse fato em especial é relevante, pois, como será visto adiante, o efeito das obras de Kandinsky se assemelham em vários pontos com o efeito causado pela música na perspectiva da metafísica da música de Schopenhauer.

Válido ressaltar que abstração, neste sentido, se diverge da compreensão que Schopenhauer faz do conceito. Para o filósofo, a abstração diz respeito as representações abstratas, um tipo de conhecimento exclusivamente humano, que para o filósofo, é caracterizado pela “aparência refletida, algo derivado do conhecimento intuitivo e que, todavia, assumiu natureza e índole fundamentalmente diferentes” (W I, p. 82). Ou seja, conforme Cacciola (2014), abstração é o conjunto de caracteres gerais das representações singulares, isto é, somente uma generalização, e que deve ser rejeitada. Em seu texto, a comentadora afirma que, segundo Mondrian:

O pintor abstrato-realista não deve abs­trair, ou seja, buscar conceitos genéricos, no sentido schopenhaueriano, mas buscar o universal, a essência. Tomada assim no sentido do pintor abstrato-realista, abstração não seria mais generalização e corresponderia em Schopenhauer à Ideia como apresentação do real. A abstração em tal sentido compactua com a Metafísica do Belo de Schopenhauer, pois nela a arte não é cópia, nem muito menos simulacro do real como em Platão. A abstração para Mondrian é expressão do universal, tal como a Ideia em Schopenhauer, um universal “ante rem”, e não o simplesmente deixar de lado alguma particularidade da coisa (Cacciola, 2014, p. 95).

A abstração para Kandinsky também busca o universal, sem partir de conceitos genéricos, como ele mesmo afirmou: “revelem a penetração das experiências coletadas por formas que sejam livres de toda irrelevância, para expressar com força o que é essencial” (Kandinsky, 1997). Porém, como será visto adiante, no caso do pintor russo, essa busca pela essência segue uma influência da música.

            Em sua obra intitulada Do Espiritual na Arte, Kandinsky afirma que “as expressões artísticas nunca antes estiveram tão próximas como nesses últimos tempos” (Kandinsky, 1997, p. 34), e logo após, afirma que com a música é o que mais se pode aprender. Para o pintor russo, a música não serve, exceto em raras exceções, para reproduzir a natureza, mas sim para dar vida em cada nota musical.

Para o pintor que não encontra satisfação na mera representação de fenômenos naturais, por mais artísticos que sejam, que se esforça para criar sua vida interior, sente inveja ao observar a simplicidade e facilidade com que a música, a arte mais imaterial de todas, alcança esse fim. É natural que ele se voltará para essa arte e tente encontrar seu próprio meio. Daí que deriva um pouca das buscas modernas na pintura por ritmo, construção matemática abstrata, repetição de cores e movimento (Kandinsky, 1997, p. 35).

       É possível observar uma ponte entre a pintura e a música que Kandinsky constrói. No trecho citado acima, a concepção de música elaborada pelo pintor russo se assemelha pelo menos em algum grau com a de Schopenhauer, ressaltando a sua capacidade extraordinária de intuir a Vontade mesma. Maria Lucía Cacciola afirma que:

Ao expormos a concepção que Schopenhauer tem da música, como a arte por excelência, totalmente liberta da representação, pode-se arriscar dizer que a arte plástica abstrata não infirma a estética schopenhaueriana, mas apenas a subverte sua hierarquia, fazendo com que as artes plásticas alcancem o mesmo patamar que a música (Cacciola, 2014, p. 99).

            No caso de Kandinsky, essa relativa subversão da hierarquia das artes proposta por Schopenhauer também é perceptível, justamente devido à sua experiência na música a sua tentativa de aproximá-la da pintura, o que influenciou o próprio mundo da música através de Schönberg.

            Reciprocamente, em uma carta trocada com o compositor austríaco Arnold Schönberg, Kandinsky faz um elogio àquele compositor; menciona que “esse caminhar independente dos próprios destinos, da vida própria das distintas vozes que há em suas composições, é exatamente o que tento encontrar na pintura” (Kandinsky, 1993, p. 17). O pintor se queixa da tendência de sua época de construir ritmos geométricos, e da falta de construção nas pinturas. Sobre isso, Kandinsky afirma que “a harmonia nos nossos dias não tem que buscar pela via do “geométrico”, e sim diretamente pelo “antigeométrico”, ilógico[4]. Este é o caminho das “dissonâncias na arte”, tanto na pintura quanto na música.” (Kandinsky, 1993, p. 17).

Schopenhauer também foi crítico do que Kandinsky denominou de busca pelo geométrico nas harmonias, defendendo a expressão musical de ser uma mera satisfação aritmética. Segundo o filósofo da Vontade, caso a música não fosse um tanto mais, a satisfação que ela proporciona, deveria ser parecida com a qual é sentida ao solucionar corretamente uma soma aritmética, não podendo ser a alegria interior no qual o íntimo mais profundo do ser é levado à linguagem. Nas palavras do filósofo:

Conhecemos nela [a música] não a cópia, a repetição no mundo de alguma Ideia dos seres; no entanto é uma arte tão elevada e majestosa, faz efeito tão poderosamente sobre o mais Íntimo do homem, é aí tão inteira e profundamente compreendida por ele, como se fora uma linguagem universal, cuja distinção ultrapassa até mesmo a do mundo intuitivo - por isso, decerto temos de procurar nela mais do que um "exercício oculto de aritmética no qual a alma não sabe que conta" na qualificação acertada de Leibniz, apesar de ter considerado só a sua significação imediata e exterior, a sua casca (W I, p. 296).

      Essa satisfação aritmética descrita por Schopenhauer, a qual para Kandinsky é descrita como um geometrismo, não está somente na música, mas também na pintura, como foi dito nas cartas a Schönberg. Para o pintor, a forma deve poder representar algo além da geometria pura, e acima de tudo, além da cópia da natureza. Pode-se arriscar a interpretação de que, para Kandinsky, a forma vai além da intuição das Ideias do mundo.

Assim sendo, a forma, conforme Kandinsky: “Nada mais é do que a linha divisória entre superfícies. Esse é o seu significado exterior. Como tudo o que é externo também tem um significado interno (mais ou menos perceptível), toda forma também possui seu significado interno.” (Kandinsky, 1997, p. 47). Apesar disso, para Kandinsky, a forma nunca poderá ultrapassar dois limites exteriores: ou a forma, como delimitação, é utilizada para recortar um objeto material na superfície, ou seja, desenhar um objeto material, ou a forma se mantem abstrata, sem representar num objeto real, ou, como Schopenhauer afirmaria, sem ser uma cópia das Ideias do mundo. A arte de Kandinsky se diferencia das pinturas pictóricas descritas por Schopenhauer justamente por não intuir a objeção da Vontade nas Ideias. É válido questionar, fundamentando-se nos conceitos do filósofo da Vontade, se nas buscas pelo ilógico a partir de cores[5] e formas, o pintor russo atinge a eliminação da Vontade consciente, alcança o não querer, torna-se o mais puro sujeito do conhecimento destituído de Vontade. Como Schopenhauer menciona:

Somente quando a vontade com os seus interesses abandona a consciência e o intelecto livremente segue suas próprias leis, e como puro sujeito espelha o mundo objetivo — ainda que a partir de seus próprios impulsos esteja no mais alto estado de tensão e de atividade, instigado pelo não querer —, é que a cor e a forma das coisas se destacam em seu verdadeiro e pleno significado (W II, p. 28).

Na obra Amarelo-Vermelho-Azul, de 1925 (figura 1), período em que Kandinsky lecionava em Bauhaus[6], é possível perceber o uso da cor e da forma para expressar o universal. Tratando-se de uma obra assimétrica, é composta a partir de dois planos, sendo o plano do fundo, que parte da esquerda com tons mais frios indo para a direta com tons mais quentes, e o primeiro plano, comporto de formas geométricas. Dentro da tela, predomina as cores primárias que compõe seu título, criando um contraste entre o frio do azul e o quente do amarelo e do vermelho. As formas geométricas no primeiro plano, em conjunto com as cores, alinhados com as teorias do pintor que foram elucidadas, dão à obra um tom musical, como se Kandinsky buscasse compor uma música a partir do arranjo da tela. Assim como na música, não há nas cores e formas nenhuma representação, há somente o imaterial.

Figura 1 – Wassily Kandinsky, Amarelo-Vermelho-Azul (1925)

Yellow-Red-Blue, 1925 by Wassily Kandinsky

Fonte: Wassily-Kandinsky.org (acessado em 05 de fevereiro de 2023)

Legenda: óleo sobre tela, 127 X 200; Musée National d'Art Moderne, Centro Georges Pompidou, Paris, França

Essa assimilação da contemplação estética conforme descrita por Schopenhauer, pensada a partir de um pintor moderno, auxilia na melhor compreensão da concepção da arte como conhecimento do verdadeiramente real, ao invés do apenas ilusório, como indaga Cacciola (2014). Assim sendo, a pintura de Kandinsky pode ser interpretada como um desvelamento do real superior ao atingido pelas artes pictóricas, já que com a ausência de Ideias do mundo, o pintor atingiu um nível mais elevado de desinteresse pelo mundo ilusório.

4 Considerações Finais

Como foi dito no já citado artigo de Maria Lúcia Cacciola, é válido assumir o risco de afirmar que a arte abstrata se encontra no mesmo patamar da música na hierarquia das artes de Schopenhauer, já que, ambas, ao invés de intuírem a objetidade da Vontade nas Ideias, são a livre expressão da própria Vontade.

Apesar disso, em outros aspectos, a pintura de Kandinsky não entra em conflitos conceituais com a metafísica do belo, podendo ser inclusive uma demonstração da importância dos conceitos de Schopenhauer no estudo da estética e seus impactos na arte moderna.

Essas influências do pensamento sobre a arte de Schopenhauer são particularmente especiais nas obras de Kandinsky, já que, na tentativa de aproximar a pintura da música, ou melhor, de transmitir os efeitos que a música causa ao indivíduo na pintura, o artista russo desenvolveu indiretamente um novo olhar na hierarquia das artes propostas pelo filósofo da Vontade. Ao fazer uso de cores e formas puras, o pintor desenvolve uma pintura livre da cópia das Ideias do mundo, atingindo um novo patamar no desvelamento da realidade, se distanciando de uma pintura que expresse somente o ilusório.

O presente artigo buscou demonstrar que as obras do artista russo não são somente uma cópia da música nas artes visuais, mas sim um novo olhar na pintura, que diferentemente das pinturas pictóricas, está no mesmo grau da música na filosofia de Schopenhauer. Assim sendo, as pinturas de Kandinsky podem ser compreendidas como a cor e forma na expressão mais adequada da própria Vontade e não a sua representação de um ponto de vista figurativo. Isto é, elas expressam nas artes visuais algo que poderia talvez ser considerado de um ponto de vista analógico como a própria vontade em ação, tal como Platão concebeu em seu tempo uma pintura que melhor expressasse as ideias como uma pintura de pura luz. Poderíamos pensar nisso uma provocação para refletirmos sobre o papel da arte abstrata de Kandinsky como livre expressão das emoções e, tal como a música, expressar também diretamente a experiência do querer-viver.

REFERÊNCIAS

CACCIOLA, Maria Lucia Mello e Oliveira. A contemplação estética: Schopenhauer e Mondrian. Dois pontos, Curitiba, São Carlos, v. 11, n. 1, p. 91-103, abril, 2014.

GOMBRICH, Ernst Hans Josef. A história da arte. 16. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2019.

HOCKE, Gustav René. Maneirismo: O mundo como labirinto. São Paulo: Perspectiva, 2005.

KANDINSKY, Wassily Wassilyevich; SCHOENBERG, Arnold Franz Walter. Cartas, cuadros y documentos de un encuentro extraordinário. 1. ed. Marid: Alianza Editorial, S. A., 1993.

KANDINSKY, Wassily. Concerning the spiritual in art. 1. ed. Mineola: Dover Publications, 1997.

BALLESTÊ, Romulo; PORTUGAL, Francisco Teixeira. Visualidade Moderna: Reflexões acerca da Obra de Goethe e Schopenhauer. Psicologia em Pesquisa, Juiz de Fora, v. 8, n. 1, p. 30-40, jun. 2014.

SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do belo. Tradução de Jair Barboza. 1. ed. São Paulo: editora UNESP, 2003.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Tradução de Jair Barboza. 2. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2015. t. 1.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação: Complementos. Tradução de Eduardo Ribeiro da Fonseca. v. 1 e 2. 1 ed. Curitiba: ed. UFPR, 2014.

Contribuição de autoria

1 – Eduardo Ribeiro da Fonseca

Professor do PPGF da PUCPR, Doutor em Filosofia Moderna e Contemporânea pela USP

https://orcid.org/0000-0003-4753-1864eduardo.fonseca@grupomarista.org.br

Contribuição: Escrita – Primeira Redação

2 – Gabriel do Carmo Aguiar

Mestrando em Filosofia pela PPGD da PUCPR

https://orcid.org/0000-0002-3899-0199 • gabriel.carmo.aguiar@hotmail.com

Contribuição: Escrita – Primeira Redação

Como citar este artigo

FONSECA, E. R.; AGUIAR, G. C. Kandinsky e a relação entre música e pintura na metafísica do belo de Schopenhauer. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 14, n. 1, e71798, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378671798. Acesso em: dia mês abreviado. ano.



[1] Inclusive, Schopenhauer é crítico ao uso dessa descrição por Kant.

[2] Apesar de Schopenhauer afirmar que em sua obra utiliza do conceito “autêntico e original” de Ideia, conforme    W I, § 25, a sua concepção de Ideia diverge ligeiramente da concepção de Platão. Neste, as Ideias se conservam de forma autônoma em um local “supra-celeste”, sendo então universais e reais, enquanto para Schopenhauer, as Ideias estão fundamentalmente relacionadas ao sujeito, pois para ele “as ideias são essencialmente algo da intuição” (W II, p. 74).

[3] O que Schopenhauer denominará de gênio. A marca distintiva do gênio é, pois, a possibilidade do desinteresse, isto é, de separar decididamente seu conhecimento da multiplicidade de objetos que constitui o mundo das aparências, alcançando o conhecimento da Ideia.

[4] É válido mencionar a resposta de Schönberg à Kandinsky: “no que você chama de ilógico, eu denomino de eliminação da vontade consciente na arte”. (SCHOENBERG, 1993, p. 19. Tradução nossa.)

[5] Em relação as cores, Schopenhauer publica em 1816 o tratado Sobre a visão e as cores. O texto, que foi notoriamente influenciado pela obra Doutrina das cores, de Goethe, publicada 6 anos antes, que, por sua vez, foi influenciado pelas doutrinas newtonianas, conforme mencionam Ballestê e Portugal (2014), mantêm a concepção do poeta em estabelecer as cores como produção orgânica da retina, mantendo a noção da visão subjetiva, porém, complementando-a com uma teoria sistemática.

[6] É difícil avaliar o quanto a conexão de Kandinsky com a Bauhaus possa ter tido uma influência direta em seu processo artístico, mas é certo que esse período alemão (1922-1933) lhe proporcionou ao menos um ambiente favorável para o desenvolvimento de sua arte, pois somente em 1925, quando a escola mudou de Weimar para Dessau, ele ofereceu aulas de pintura dita livre, isto é, não aplicada. Nesse período, Kandinsky deu sequência à sua evolução na direção geral da abstração geométrica, mas com um dinamismo e um gosto pelo espaço pictórico repleto de detalhes que lembram sua técnica anterior de gestos de varredura. Kandinsky continuou bastante interessado em teoria nesse período, pois em 1926 surge seu segundo tratado importante “Punkt und Linie zu Fläche” (“Ponto e linha para plano”), no qual faz interpretações de elementos abstratos do desenho, por exemplo, uma linha horizontal como sendo fria, e uma linha vertical como quente. Isso nos chama a atenção. Ainda que estejamos associando Kandinsky a um possível desenvolvimento da pintura na metafísica do belo no rumo da abstração, esse tratado parece evidenciar uma tendência oposta da teoria da arte do pintor, já que ele pretende de alguma forma promover a ancoragem do abstrato em determinadas representações (às quais as abstrações supostamente fariam referência).