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Descrição gerada automaticamente

Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 13, n. 1, e9, 2022

DOI: 10.5902/2179378671026

ISSN 2179-3786

Submissão: 15/07/2022 Aprovação: 17/04/2023 Publicação: 10/05/2023

I 2

II 8

III 14

IV.. 23

V.. 27

VI 31

REFERÊNCIAS. 37

 

Teoria de John Rawls

Por que uma teoria ideal da justiça?

Why an ideal theory of justice?

Álvaro de VitaIÍcone

Descrição gerada automaticamente

I Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

Por que a teoria política normativa voltada para questões de justiça social e política deveria se ocupar de princípios no âmbito daquilo que John Rawls denominou “teoria ideal”, em contraste com a “teoria não ideal” da justiça? Será que necessitamos desenvolver e refinar uma teoria ideal da justiça para determinar o que a justiça requer nas condições não ideais com as quais no defrontamos? Será que a “teoria ideal” da justiça é capaz de orientar a ação – decisões políticas e escolhas institucionais – em condições não ideais? Se a resposta para essas duas perguntas for “não”, então deveríamos acima de tudo nos empenhar em desenvolver uma teoria não ideal da justiça. Nas versões mais fortes dessa objeção, como a de Amartya Sen em The Ideia of Justice, podemos dispensar inteiramente a teoria ideal da justiça. Contra essa linha de objeção, que também é sustentada, de formas distintas, por autores como Onora O’Neill, Colin Farrelly e Charles Mills, este artigo desenvolve uma argumentação em duas etapas. Em primeiro lugar, sustenta-se que há razões para valorizar a teorização ideal que são independentes da relação que possa ter com a teoria não ideal. Em uma segunda etapa, sustenta-se que a teoria ideal da justiça, embora deixe enorme quantidade de trabalho empírico e normativo a ser feito, é imprescindível para determinar o que a justiça requer de nós aqui e agora.

Palavras-chave: Teoria política normativa; Justiça rawlsiana; Teoria ideal; Teoria não ideal

ABSTRACT

Why the normative political theory focused on questions of social and political justice should devote itself to principles in the ambit which John Rawls denominated “ideal theory”, in contrast to “non-ideal theory” of justice? If what we want is to specify what justice require from us in the non-ideal circumstances we face, are we to develop and refine an ideal theory of justice? Is the “ideal theory” of justice capable to offer guidance to action – political decisions and institutional choices – in non-ideal conditions? If the answer to these questions is “no”, then we should above all devote our efforts to the formulation of a non-ideal theory of justice. In the strongest versions of this objection, such as Amartya Sen’s in The Idea of Justice, we may entirely do without an ideal theory of justice. To rebut Sen’s objection, which is also shared, in different ways, by authors such as Onora O’Neill, Colin Farrelly, and Charles Mills, this article develops a two-step argument. Firstly, it is argued that there are reasons to value ideal theorization that are independent to the relations it may have to non-ideal theory. Secondly, it is argued that the ideal theory of justice, notwithstanding all the normative and empirical work that remains to be done, is essential to determinate what justice requires from us here and now.

Keywords: Normative political theory; Rawlsian justice; Ideal theory; Non-ideal theory

I

Este trabalho examina uma linha de objeção frontal ao modo de praticar a teoria política normativa em sua vertente rawlsiana.[1] Meu ponto de partida, para introduzi-la, é uma referência à já bem conhecida tese de Thomas Piketty (2014). A desigualdade econômica cresce de forma acelerada nas democracias maduras do mundo, não só nos Estados Unidos mas também na Grã-Bretanha e na Europa Continental, tornando “quase inevitável que a fortuna herdada supere a riqueza constituída durante uma vida de trabalho e que a concentração do capital atinja níveis muito altos, potencialmente incompatíveis com os valores meritocráticos e os princípios de justiça social que estão na base de nossas sociedades democráticas modernas” (PIKETTY, 2014, p. 33). Uma questão que essa tendência suscita, extremamente relevante da ótica da reflexão normativa sobre a justiça social, mas que se encontra além de seu escopo, é a de explicar por que os eleitorados das democracias avançadas vieram a aceitar políticas que aumentam a desigualdade de renda e riqueza, com a expectativa de identificar estratégias para reverter essa aceitação. Outra questão, para aqueles que se preocupam com essa tendência, é a de determinar se a justiça requer a igualdade em uma sociedade democrática e, se sim, de que tipo, em contraposição a argumentos, formulados por posições normativas anti-igualitárias ou não igualitárias, que justificam a desigualdade econômica. Essa segunda questão ocupou – e ainda ocupa – um lugar central no debate teórico na teoria política normativa dos últimos pouco mais de 40 anos.[2]

Mas, a despeito dessa tendência de crescimento da desigualdade econômica, poderia ocorrer de que todo esse debate filosófico sobre se a justiça requer a igualdade fosse um empreendimento teórico ocioso? Embora um balanço da discussão teórica (VITA, 2017) já ofereça razões para responder essa questão pela negativa – ao menos, assim o espero –, Amartya Sen (2009) parece supor que sim. Criticando o enfoque à justiça que denomina “institucionalismo transcendental” – do qual a justiça rawlsiana seria o exemplo paradigmático, embora não o único –, Sen afirma que “a caracterização de instituições perfeitamente justas tornou-se o exercício central das teorias contemporâneas da justiça” (SEN, 2009, p. 8).[3] Não necessitamos, segundo Sen, de uma teoria da “justiça perfeita” para saber que seria melhor que menos pessoas sofressem de desnutrição severa, morbidade prematura ou analfabetismo. Mais ainda, teorias da “justiça perfeita” não oferecem orientação para as escolhas com as quais realmente nos defrontamos, que envolvem o problema de comparação entre duas alternativas “não transcendentais” (SEN, 2009, p. 17; p. 96-105). Para mencionar uma das analogias das quais Sen se vale para expressar essa objeção, “podemos efetivamente nos dispor a aceitar”, diz ele, “que o Monte Evereste é a montanha mais alta do mundo, totalmente imbatível por qualquer outro pico no que se refere à altitude, mas esse entendimento não é nem necessário, nem particularmente proveitoso, para comparar as altitudes dos picos, digamos, do Monte Kilimanjaro e do Monte McKinley” (SEN, 2009, p. 102).

Essa objeção, que não é formulada somente por Sen na teoria política contemporânea, faz eco à impaciência daqueles que se empenham na causa da justiça social, de várias maneiras, e que não se dispõem a esperar pelas conclusões de uma teorização infindável sobre a justiça ideal para decidir que reformas defender ou que linhas de ação adotar no mundo injusto no qual nos encontramos. A questão tem relevância não só teórica, mas também pública. Por que a filosofia política deveria principiar pela defesa de princípios no âmbito daquilo que Rawls (1999a, p. 8; p. 212; 343) denominou “teoria ideal” em contraste com a “teoria não ideal” da justiça? Uma ideia que está presente em todas as obras de Rawls é a aquela a que ele se referiu, em seu último texto importante, O direito dos povos, como a de “utopia realista” (RAWLS, 1999b, p. 6-7), ou de um ideal realista de justiça.

É uma concepção ideal, já que os princípios de justiça são concebidos inicialmente como aqueles que deveriam se aplicar à estrutura básica de uma “sociedade bem-ordenada”, na qual se supõe que todos têm as capacidades de racionalidade e de razoabilidade (ou de um senso de justiça) necessárias à cooperação social e que haverá “obediência estrita”. As duas idealizações centrais da “teoria ideal” são a de que os princípios são escolhidos para uma “sociedade bem-ordenada”, isto é, uma sociedade cuja moldura institucional básica implementasse de forma efetiva esses princípios[4], e a de que os cidadãos, sob essa estrutura institucional, em geral se disporiam a conformar sua conduta às exigências de uma concepção pública de justiça a fazer sua parte para cumprir as exigências de instituições justas. Rawls entende que essas idealizações permitem tornar o problema da escolha de princípios fundamentais de justiça social mais tratável do que se condições não ideais (em que há injustiças nas instituições ou na conduta de cidadãos e agentes políticos) fossem levadas em conta, o que tornaria impossível impedir que desigualdades arbitrárias, poder de barganha e capacidade desigual de ameaça contaminassem os termos do contrato social. Constitui uma questão distinta, como veremos, a de como conceber a aplicação de uma concepção de justiça justificada com base nessas duas idealizações a circunstâncias que estão (muito) aquém das ideais, como, por exemplo, circunstâncias nas quais há pobreza e desigualdades em larga escala e nas quais há obediência parcial, ou, de outro modo, se se trata de como conceber essa aplicação para tratar do caso especial daqueles que têm deficiências físicas ou mentais severas.

E é uma concepção realista, já que é formulada, para se aplicar não a pessoas que tenham disposições morais muito elevadas, ou que sejam motivadas pelo altruísmo ou pela benevolência, e sim a pessoas que têm as faculdades morais e racionais – entendendo-se, por esta última, a faculdade de se empenhar na realização do próprio bem – que lhes capacitam a fazer sua parte sob condições normais da vida social e que só se dispõem a isso de forma condicional, isto é, desde que a grande maioria de seus concidadãos mostrem ter uma disposição similar. A ideia é que se uma concepção de justiça não é praticável nem mesmo em uma “sociedade bem-ordenada”, sob condições de “obediência estrita”, então certamente não vale a pena tentar realizá-la. Ela é utópica em um sentido negativo. Outras condições permanecendo constantes, devemos considerar mais justificada, para regular a estrutura básica de uma sociedade democrática, uma concepção de justiça que não gere ônus motivacionais excessivos (RAWLS, 1999a, p. 153-154) e que, por isso, seja capaz, caso seja colocada em prática, de gerar seu próprio apoio. “Um sistema justo”, afirma Rawls (1999a, p. 230-231), “deve gerar sua própria sustentação. Isso quer dizer que deve se organizar de modo a fomentar em seus membros o senso de justiça correspondente, um desejo efetivo de agir em conformidade com as normas desse sistema por razões de justiça”. [5] A justiça rawlsiana incorpora, desse modo, exigências de exequibilidade a seu projeto de teoria ideal, mas se trata de uma exequibilidade moral, não de uma exequibilidade política que só leva em conta as alternativas que são praticáveis considerando-se as restrições e motivações políticas existentes sob circunstâncias injustas. É crucial aos princípios da teoria ideal de Rawls que suas exigências possam ser realizadas pela estrutura básica de uma sociedade democrática sem que isso implique suposições motivacionais heroicas por parte dos cidadãos dessa sociedade. Esse sentido de exequibilidade moral aceita o princípio de que um agente só está sujeito às exigências morais que é capaz de cumprir (“ought implies can”), mas isso não é o mesmo que aceitar, como observa David Estlund (2008) ao criticar o que denomina “utopofobia”, “o princípio muito diferente e perverso de que se algo é improvável de ocorrer, por mais possível ou fácil que possa ser, então não é exigido. Não é verdade que só se está sujeito à obrigação de fazer o que é razoavelmente provável”.[6]

II

Os esclarecimentos que foram feitos até aqui, no entanto, não afastam a linha de objeção antes mencionada. Será que necessitamos desenvolver e refinar uma teoria ideal da justiça, ou uma “utopia realista” como propõe Rawls, para determinar o que a justiça requer nas condições não ideais com as quais no defrontamos? Será que a “teoria ideal” da justiça é capaz de orientar a ação – decisões políticas e escolhas institucionais – em condições não ideais? Se a resposta para essas duas perguntas for “não”, como sustentam, nem sempre com os mesmos argumentos ou com argumentos similares, autores como O’Neill (1996), Mills (2005), Farrelly (2007), além, é claro, de Sen (2009), então deveríamos nos concentrar nas questões de justiça no domínio da teoria não ideal antes de nos envolvermos na formulação e justificação de princípios para uma sociedade justa. Nas versões mais fortes dessa objeção, como são as de Mills, Farrelly e de Sen (embora nada menos que 150 páginas de A ideia de justiça sejam devotadas à discussão de uma teorização “redundante”), podemos dispensar totalmente a teoria ideal da justiça. Essa linha de objeção tem o mérito de forçar a filosofia política rawlsiana a enfrentar o problema de como caracterizar a relação entre filosofia política e política prática.[7] Esse é objeto de pesquisa e reflexão que aqui se propõe – não é possível ir além disso no momento – como desdobramento de trabalhos anteriores sobre a natureza da justiça na sociedade.

Um primeiro ponto a enfatizar é o de que há razões para se concentrar nesse nível da teoria ideal e na especificação de uma “utopia realista” que são independentes da relação que isso possa ter com a teoria não ideal. Uma delas é mencionada por Rawls. “Restringimo-nos à teoria ideal”, diz Rawls (2003, p. 18), “porque o atual conflito no pensamento democrático é em boa parte um conflito sobre qual concepção de justiça é mais condizente com uma sociedade democrática sob condições razoavelmente favoráveis.” Como observam Stemplowska e Swift (2014, p. 116) a esse respeito, como os debates sobre justiça nas democracias liberais muitas vezes envolvem concepções de justiça ideal, desenvolver uma teoria ideal nos possibilita intervir nesses debates. Uma concepção de justiça ideal, na vertente rawlsiana, não é exatamente uma interpretação de um valor político específico, a saber, a justiça social; essa concepção é mais bem entendida como uma configuração de valores políticos, ou como uma forma específica, e por isso eminentemente controversa, de arbitrar as exigências conflitantes dos valores políticos mais importantes da tradição de pensamento democrático. Pouco supreendentemente, esses valores são a liberdade, a igualdade e a fraternidade (e, possivelmente, também a eficiência econômica). A concepção de justiça que Rawls sustentou, em Uma teoria da justiça, ser a mais apropriada para a estrutura básica de uma sociedade democrática bem-ordenada, tem a ambição de oferecer não somente uma interpretação desses três valores políticos como também uma forma de arbitrar as exigências conflitantes que esses valores podem fazer às instituições básicas da sociedade (VITA, 2008b, p. XXII-XXIII). Sobre isso, é proveitoso fazer menção a um ponto enfatizado por Alan Hamlin e Zofia Stemplowska (HAMLIN e STEMPLOWSKA: 2012). Eles empregam o termo “teoria de ideais” para se referir à interpretação e arbitragem das exigências de princípios e valores políticos que acabo de mencionar como um dos papéis desempenhados por uma concepção de justiça, reservando a distinção teoria ideal-teoria não ideal à identificação dos arranjos sociais e das reformas que cumpririam as exigências desses ideais (dos princípios e valores políticos articulados pela concepção de justiça). Mesmo que não aceitemos que se trata de dois empreendimentos inteiramente distintos, Hamlin e Stemplowska (2012, p. 52-53) estão certos ao sustentar que muitas das objeções à idealização excessiva têm por alvo a teoria ideal entendida como um empreendimento de identificação de arranjos sociais perfeitamente justos, não a teoria ideal entendida como “teoria de ideais”, isto é, como um esforço de identificar e priorizar os valores políticos de uma sociedade democrática. Como eles dizem, “são arranjos sociais, e não ideais, que estão sujeitos a considerações de praticabilidade. O mero fato de um ideal não ser perfeitamente realizável não é suficiente para desqualificá-lo” (HAMLIN e STEMPLOWSKA, p. 53). Mais adiante, ao discutir a crítica de Sen mencionada acima, retornarei à questão de como entender a relação entre a teoria ideal da justiça e a recomendação de arranjos institucionais e reformas.

Uma outra razão para nos concentrarmos na teoria ideal, independentemente da relação que isso tenha com a teoria não ideal, é apontada por Debra Satz (2011, p. 2015). Esse tipo de teorização que Sen denomina “transcendental” pode nos levar a pressionar os limites do que é politicamente possível. Ao levantarmos, digamos, a questão da distribuição da educação do ponto de vista do que uma sociedade justa exigiria de seus cidadãos, isso poderia colocar em primeiro plano considerações que não seriam levadas em conta caso simplesmente contrastássemos duas distribuições possíveis de recursos educacionais entre si. Não precisamos chegar ao ponto de nos perguntar, como Satz (2011) o faz, se a existência de escola privadas de elite é compatível com uma distribuição equitativa de oportunidades educacionais. Mas isso ajuda a não perder de vista o objetivo de que, em uma sociedade justa, e quer isso seja ou não politicamente exequível nas circunstâncias que se apresentam aqui e agora, a opção por escolas privadas e por seguros de saúde e hospitais privados caros seria equivalente à satisfação de outros gostos dispendiosos que alguns poucos podem se permitir, como o consumo de bens ou a realização de viagens de férias luxuosos, mas que não afeta o status social e a igualdade de tratamento garantido a todos os cidadãos (VITA, 2011, p. 578). Como afirma Satz corretamente (e abusando das referências a posições dela nesse debate), “um papel importante para a teorização ‘transcendental’ resume-se a isso: é um convite para que imaginemos que o nosso contexto político e social existente é menos dado do que tendemos a supor. A alternativa consiste em supor que só podemos considerar as opções que são correntemente ofertadas, avaliando-as por seus efeitos imediatos ou de curto prazo” (SATZ, 2015, p. 285). Considere-se, por exemplo, o pequeno grupo de médicos sanitaristas, como Sérgio Arouca, representantes de movimentos sociais e sindicalistas e (poucos) políticos de esquerda que foram os responsáveis pela criação do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, nas décadas de 1970 e 1980, motivados pelo ideal de criar um sistema público de saúde no Brasil fundado nos princípios da “universalidade, equidade e integralidade”.[8] Esse ideal foi incorporado pela Constituição de 1988 e institucionalizado, de 1990 em diante, com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Não é minha intenção aqui fazer nenhuma análise precisa da trajetória claudicante do SUS entre um modelo de proteção social segmentada, característica do que Wanderley Guilherme dos Santos denominou “cidadania regulada” (SANTOS, 1979) e um modelo de proteção social próprio de um estado de bem-estar social equitativo.[9] O que quero ressaltar é que considerar o que seria justo, em matéria de distribuição de oportunidades de acesso a serviços de saúde, mesmo que isso tivesse (como teve) pouca relação com o que era politicamente exequível nas circunstâncias dos anos 1980, teve efeitos significativos na criação do SUS e para fortalecer a posição daqueles que defendem reformas que o aproximem do modelo de um estado de bem-estar social universal.

Mas a consideração mais decisiva é a de que a teoria ideal desempenha um papel central na teorização não ideal sobre a justiça. Rawls expressa essa posição em inúmeras passagens de suas obras (RAWLS, 1999a, p. 8, 343; 2003, p. 18, 92-93; 2011, p. 337-338). Consideremos, a seguir, uma passagem em que a ideia é expressa de forma clara. Embora apareça no contexto de uma discussão sobre a teoria não ideal da justiça no âmbito internacional, em uma versão preliminar de O direito dos povos (RAWLS 1999b), é a forma de conceber a relação entre a teoria ideal e a teoria não ideal que aqui nos importa:

A teoria não ideal pergunta como a concepção ideal de uma sociedade bem-ordenada de povos pode ser alcançada, ou ao menos como se pode caminhar em direção a ela, em geral por meio de passos graduais. Ela [a teoria não ideal] se volta para políticas e cursos de ação que provavelmente serão efetivos e politicamente possíveis, bem como moralmente permissíveis, para esse propósito. Concebendo-a dessa forma, a teoria não ideal pressupõe que a teoria ideal já está à mão, pois até que o ideal esteja identificado, ao menos em linhas gerais, a teoria não ideal não dispõe de um objetivo por referência ao qual suas questões possam ser respondidas (RAWLS, 1993, p. 71-72).

Essa é a posição, segundo a qual a teoria ideal identifica o objetivo último da teoria não ideal, que requer um esforço maior de argumentação. A ideia é desenvolver o argumento de que a teoria ideal da justiça, embora deixe grande quantidade de trabalho (empírico e normativo) a ser feito, é imprescindível para determinar o que a justiça requer de nós aqui e agora. Para substanciar essa posição, pode-se pensar em duas linhas argumentativas, que serão examinadas a seguir.

III

A primeira dessas linhas de argumentação é a de que o contraste entre o que Sen denomina “justiça transcendental” e a avaliação de justiça ou injustiça, ao se compararem duas alternativas não transcendentais, é exagerado. Podemos não necessitar de uma teoria ideal da justiça para condenar a pobreza severa, a desnutrição endêmica e o analfabetismo. Mas se nós, os cidadãos e seus representantes, defrontamo-nos com injustiças mais complexas dos que essas, como as que dizem respeito à distribuição de oportunidades educacionais, à distribuição de cuidados médicos e de assistência à saúde e à distribuição de renda e riqueza na sociedade, temos necessariamente de recorrer a concepções mais abstratas de justiça social para avaliar argumentos e decidir o que devemos fazer no nosso mundo não ideal (SATZ, 2011, 2015; FREEMAN, 2012, p. 180-186; SHELBY, 2016, p. 13). Quando se trata da distribuição de um bem social como a educação, por exemplo, as coisas já não se apresentam de forma tão clara. Há quem defenda que a distribuição da educação deve satisfazer um critério de necessidades básicas, ou de suficiência, de acordo com o qual certo nível de competência educacional básica deve ser garantido a todos os cidadãos; outros podem achar que a distribuição desse bem social só deve ser governada pelas capacidades dos educandos, o que implica recorrer a um critério distributivo baseado no mérito; e outros ainda não veriam nada de errado em a educação (de qualidade) ser distribuída de acordo com o poder de compra dos pais; e, por fim, há quem defenda a distribuição desse bem com base em uma noção forte de igualdade de oportunidades (como o princípio de igualdade equitativa de oportunidades da justiça rawlsiana[10]).

Se questões controversas dessa natureza emergem, não somente como filósofos políticos, mas como cidadãos comuns, representantes políticos e policy makers, somos levados a fazer referência ao que entendemos ser os ideais mais defensáveis de equidade. Se injustiças como essas estão em questão, nossos juízos comparativos, entre um status quo e uma alternativa a ele que é realisticamente possível nas condições políticas existentes (entre duas “alternativas não transcendentais”, portanto), não podem prescindir de princípios ideais de justiça. Ao debater esses diferentes critérios, e justamente porque as percepções de senso comum, ou aquilo que Michael Walzer (1983) denomina “significados compartilhados” sobre o bem social em questão (no caso, a educação), conflitam entre si, somos levados a travar a discussão política em um nível mais elevado de abstração. Esse é o ponto enfatizado por Rawls em O liberalismo político (RAWLS, 2011, p. 53-55) ao explicar, contrapondo-se a Walzer, por que a teoria política normativa tem de recorrer a concepções abstratas (como a concepção de sociedade bem-ordenada e a ideia de pessoa na condição de cidadão livre e igual). Após afirmar que, “na filosofia política, a atividade da abstração é desencadeada por conflitos políticos profundos”, Rawls prossegue afirmando que

 A atividade da abstração, portanto, não é gratuita, não se trata somente de abstração pela abstração. Em vez disso, é uma forma de levar adiante a discussão pública quando entendimentos compartilhados de menor generalidade colapsam. Devemos estar preparados para descobrir que, quanto maior o conflito, maior o nível de abstração a que devemos chegar para ter uma visão clara e ordenada de suas raízes (RAWLS, 2011, p. 54).

A não ser que consideremos que tudo o que a justiça requer de nós é a abolição de formas gritantes de injustiça, como a pobreza extrema, a exigência de formular e refinar uma teoria ideal da justiça social, da perspectiva da justiça rawlsiana, é uma decorrência de “conflitos políticos profundos”. Algo similar se passa quando se examinam os méritos relativos de “preceitos de justiça de senso comum” (RAWLS, 1999a, §§ 47 e 48; 31) como possíveis candidatos a princípios para regular ou justificar as desigualdades econômicas produzidas por uma economia de mercado. O que Rawls tem em mente são preceitos de índole meritocrática como “a cada um segundo seu mérito”, “a cada um segundo seu esforço consciencioso”, “a cada um segundo seu treinamento e formação” ou “a cada um segundo sua contribuição marginal ao produto do trabalho (ou ao excedente cooperativo)”. Se permanecemos no nível desses preceitos – que se qualificam como critérios distributivos associados a diferentes significados sociais compartilhados, nos termos de Walzer – não temos, sustenta Rawls, como arbitrar suas exigências conflitantes ou os pesos relativos que devem ter na determinação de quinhões distributivos de renda e riqueza. Preceitos meritocráticos de senso comum, mesmo se qualificando como juízos ponderados de justiça que podem ter ampla difusão e aceitação em sociedades liberais, não se prestam a justificar princípios fundamentais de justiça. Para isso, é preciso mover a discussão para o nível mais elevado (e abstrato) de princípios de justiça que se aplicam à estrutura institucional sob a qual esses preceitos podem encontrar um reconhecimento apropriado e subordinado.

A segunda linha de argumentação é a de que a formulação de uma teoria ideal não se presta somente à avaliação de injustiças existentes. Outro propósito central dessa teorização é o de especificar um ideal político praticável – a “utopia realista” – com base no qual seja possível constituir um juízo sobre se programas e políticas para fazer frente a injustiças de vários tipos, tanto no longo como no curto prazo, de fato constituem um progresso em direção a uma estrutura básica justa. Como afirma Rawls na passagem citada acima (RAWLS, 1993, p. 72), “até que o ideal esteja identificado, ao menos em linhas gerais, a teoria não ideal não dispõe de um objetivo por referência ao qual suas questões possam ser respondidas”.

Para formular, ao menos de forma sumária, essa linha de argumentação, retomemos a afirmação de Sen antes mencionada: “a caracterização de instituições perfeitamente justas tornou-se o exercício central das teorias contemporâneas da justiça”. Mas, sustenta Sen, “pode não haver nenhum arranjo social perfeitamente justo identificável com base no qual um acordo imparcial [como o que seria alcançado na posição original da teoria de Rawls ou que satisfizesse o critério de Scanlon de ‘não rejeição razoável’[11]]” poderia emergir” (SEN, 2009, p. 15). O que se poderia dizer sobre essas afirmações de Sen? (Deixemos de lado a estranha inversão que parece haver nesta formulação de Sen, já que o correto, ao que parece, seria: “pode não haver nenhum acordo imparcial com base no qual um arranjo social perfeitamente justo identificável poderia emergir”.)

Em primeiro lugar, que identificam erroneamente o propósito de teorias ideais da justiça. Teorias normativas da justiça social, e especialmente a justiça rawlsiana, não objetivam especificar “instituições perfeitamente justas” ou uma “sociedade perfeitamente justa” (SEN, 2009, p. 98), e sim justificar princípios para uma sociedade justa. Teorias como a de Rawls e a de Dworkin (2002: cap. 2) objetivam justificar princípios de justiça igualitária para uma sociedade democrática. A objeção de Sen – e o mesmo se aplica à defesa muito parcial que Gerald Gaus (2016) faz da teoria ideal, ou de certo tipo de teoria ideal, em The Tyranny of the Ideal – envolve um entendimento equivocado do papel que a ideia de “sociedade bem-ordenada” desempenha na teoria de Rawls. Essa noção, com as duas suposições idealizadoras centrais que foram mencionadas antes, não tem o propósito de identificar um estado de justiça máxima a ser alcançado (o pico do Everest em matéria de justiça social, na imagem empregada por Sen), contra o qual a injustiça do status quo deverá ser confrontada e os passos na direção da justiça máxima, especificados. O papel das duas idealizações da noção de sociedade bem-ordenada – a suposição de que se trata de uma sociedade cuja estrutura básica é efetivamente regulada por uma concepção pública de justiça e a suposição de obediência estrita – limita-se à justificação de princípios de justiça, e à comparação dos méritos relativos de diferentes concepções de justiça[12], não desempenhando nenhum papel na aplicação dos princípios que se mostrarem ser mais justificados (FREEMAN, 2018, p. 274). Como sustenta Laura Valentini (2009, p. 351-355), idealizações feitas no estágio de construção e justificação da teoria (ideal) não implicam necessariamente nenhuma idealização nos princípios adotados e no objeto da justiça – nenhuma idealização na aplicação dos princípios à estrutura básica de sociedades caracterizadas por diferentes tipos de desigualdade e que manifestam graus variáveis de injustiça social. Ademais, é importante ter em mente a crítica de David Estlund (2020), antes mencionada, a posições “realistas” na filosofia política que expressam o que denomina “utopofobia”. Essas posições (como as de Maquiavel e Marx, entre os autores clássicos, ou as de Raymond Geuss ou de Bernard Williams, na filosofia política contemporânea), ao criticarem o “utopismo” de teorias ideais da justiça, não levam em conta a distinção crucial entre a recomendação de princípios de justiça e a recomendação de propostas políticas ou de modelos institucionais específicos. Mostrar que determinadas propostas são utópicas em circunstâncias em que são irrealizáveis, dadas as motivações políticas prevalentes entre agentes relevantes, não mostra nenhuma deficiência nos princípios gerais de justiça, em si mesmos, aos quais recorrem. Supondo-se, como aqui se está supondo, que a teoria ideal da justiça satisfaça as exigências, antes mencionadas, que a qualificam como uma “utopia realista”, “o irrealismo (...) é um vício de propostas, não um vício de princípios” (ESTLUND, 2020, p. 11). Nenhuma proposta de reforma social ou arranjo institucional específico decorre de forma imediata e direta da teoria ideal da justiça de Rawls.

É verdade que Rawls supôs que a realização das exigências combinadas dos princípios de justiça de sua teoria só seria plenamente possível em um regime socioeconômico alternativo – uma property-owning democracy na qual há ampla difusão da propriedade dos recursos produtivos e do capital humano na sociedade ou um socialismo liberal – a um “capitalismo de welfare state” (RAWLS, 2003, p. 191-229). Essa discussão sobre alternativas de reformas institucionais de larga escala merece mais atenção (ao menos, daqueles que têm convicções igualitárias) do que Sen parece disposto a admitir e vem sendo retomada com renovado vigor na literatura recente da teoria da justiça da vertente rawlsiana (O’NEILL e WILLIAMSON, 2012; FREEMAN 2018: cap. 4; O’NEILL, 2017). Mas mesmo que, da ótica da justiça social, a discussão sobre alternativas ao capitalismo não fizesse nenhum sentido, ainda assim poderíamos nos perguntar o que princípios propostos para a estrutura básica de uma sociedade justa requerem de nós, aqui e agora, sob condições não ideais. A justificação dos princípios de uma concepção de justiça ideal não fornece, como Sen parece supor, nenhuma receita de “sociedade perfeitamente justa”.

Podemos reformular a objeção de Sen e dizer que a teoria ideal da justiça não tem como contribuir para a teoria não ideal porque os princípios da primeira não são aplicáveis de forma imediata a decisões políticas correntes ou porque não têm como especificar suas implicações institucionais de forma precisa. Uma primeira réplica a essa reformulação da objeção é a de que nenhuma teoria da justiça e, de resto, nenhum princípio considerado em si mesmo, tem como predeterminar sua aplicação a decisões políticas e a forma de sua realização institucional em dada sociedade. Como sustenta Laura Valentini (2009, p. 341), “para se tornar relevante em termos práticos, é preciso que uma teoria seja aplicada a casos específicos mediante um exercício de juízo, o que envolve uma cuidadosa avaliação dos fatos em questão. (...) o papel dos princípios é o de nos ajudar a discriminar os fatos relevantes e suas implicações para a ação – implicações essas que não têm como já estarem contidas nos próprios princípios”. Isso vale para um princípio considerado separadamente como a liberdade de expressão, por exemplo, tanto quanto para os princípios da teoria de Rawls da justiça. Mesmo que haja concordância sobre determinado princípio, isso não garante que haverá convergência de juízo na forma de interpretá-lo. Podemos estar de acordo com a liberdade de expressão como um ideal político, tanto como um valor em si mesmo como por seu valor instrumental, como sustentou John Stuart Mill no capítulo 3 de Sobre a liberdade, para propiciar uma discussão pública vigorosa sobre as “questões práticas da vida”[13], e, a despeito disso, divergir sobre se certas formas de expressão – como as que se qualificam como “discurso de ódio” – deveriam ser criminalizadas e suprimidas. Essa divergência, no entanto, não desqualifica a liberdade de expressão como um dos componentes de uma “base pública de justificação” – o termo é de Rawls (2011, p. XVII ss., p. XXII, p. 10-11, p. 22) – apropriada a uma sociedade democrática.

À parte esse ponto geral de que nenhum ideal político ou princípio moral tem como predeterminar sua forma de aplicação, e mais fundamentalmente, considerando-se os dois princípios da teoria de Rawls em si mesmos, e não um “modelo de sociedade perfeitamente justa”, é difícil pensar em razões pelas quais não poderiam se aplicar a circunstâncias não ideais. Isso não se diz respeito somente ao princípio das liberdades fundamentais iguais, que com frequência é constitucionalmente protegido – quando não especifica a “constituição dentro da constituição”, o núcleo duro da constituição – e é regularmente invocado para justificar decisões judiciais e legislativas nas democracias liberais. Tampouco Sen afirma que o princípio das liberdades fundamentais, e a prioridade que lhe é atribuída na justiça rawlsiana, é “irrelevante”. Ele está basicamente de acordo com a precedência que as liberdades pessoais, como direitos civis e políticos fundamentais, devem ter sobre outros tipos de vantagens pessoais, como renda e utilidade. Não podemos, segundo Sen, colocar as liberdades fundamentais no mesmo pé que outras formas de vantagem individual, como unidades extras de renda ou de utilidade (SEN, 1999, p. 65).

O que Sen às vezes coloca em questão é a prioridade atribuída às liberdades fundamentais naquilo que Rawls denomina “concepção especial de justiça”, segundo a qual os dois princípios estão dispostos em ordem serial, se essa concepção é aplicada a circunstâncias de privações econômicas intensas. “Se a ‘prioridade da liberdade’ deve se tornar plausível mesmo no contexto de países que são intensamente pobres”, diz Sen, “o conteúdo dessa prioridade teria de ser, eu sustentaria, consideravelmente qualificado. Isso, no entanto, não equivale a dizer que a liberdade não deve ter prioridade, e sim que a forma dessa exigência não deve ter o efeito de fazer com que necessidades econômicas sejam facilmente negligenciadas.” (SEN, 1999, p. 64). Mas mesmo essa qualificação que está propondo à prioridade às liberdades fundamentais não constitui, como veremos logo a seguir, uma divergência genuína.

IV

Antes de prosseguir, consideremos uma divergência genuína sobre a forma de interpretar a prioridade atribuída às liberdades fundamentais. Isso se mostra na crítica de Colin Farrelly à teorização ideal de Rawls (a teoria ideal de Dworkin também é objeto de crítica). Valendo-se da distinção de Onora O’Neill (1996, p. 41) entre “abstração” e “idealização”, Colin Farrelly (2007) sustenta que são as idealizações da teoria ideal que a incapacitam a fazer recomendações prescritivas para sociedades reais. Como objeção geral à teoria ideal rawlsiana, essa posição é objeto de exame neste ensaio. Aqui só acrescento que a crítica de Farrelly baseia-se, em grande medida, na imputação de uma idealização que claramente não é uma suposição da teoria ideal de Rawls. Farrelly (2007, p. 848-854) supõe que só é possível justificar a prioridade atribuída às liberdades fundamentais na concepção especial de justiça com base na premissa de que os direitos a liberdades fundamentais são direitos “negativos”, que só impõem ao Estado deveres de não interferência, e com base na idealização de que direitos, entendidos dessa forma, são “destituídos de custo” (isto é, não fazem exigências a recursos públicos que, mesmo em uma sociedade liberal afluente, são escassos em termos relativos). Tanto a premissa quanto a idealização em questão podem legitimamente ser imputadas à concepção de Nozick (1974, cap. 3) dos direitos individuais como “restrições laterais” (side-constraints) à ação, mas não a uma posição normativa para a qual a prioridade de direitos e liberdades fundamentais justifica-se, não com base em uma ideia de direitos negativos e de liberdade negativa, e sim pelo papel que desempenha para estruturar nossas relações como cidadãos e cidadãs livres e iguais. A ideia central dessa visão relacional dos direitos e liberdades fundamentais não é a de direitos negativos, e tampouco é uma noção de “direitos como trunfos”, como sustenta Dworkin (1977, cap. 7; 1986, p. 223-224), que os indivíduos podem fazer valer contra a busca coletiva do bem, e sim a de preservar a liberdade e o respeito iguais para as pessoas em sua capacidade de cidadãos democráticos.[14]

Voltemos à crítica de Sen, que coloca em questão não o status especial, e sim a “precedência decisiva” (SEN, 1999, p. 64) de direitos e liberdades fundamentais na teoria ideal de Rawls. “Por que”, pergunta Sen, “o status de necessidades econômicas agudas, que podem representar questões de vida e morte, deveria ser menor do que o de liberdades pessoais?” Mas sob as condições socioeconômicas desfavoráveis que Sen tem em mente, que não são propícias à realização da “justiça perfeita” (isto é, a teoria ideal da justiça), Rawls supõe que aquilo que se aplica é a “concepção geral de justiça”, segundo a qual, “todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais do autorrespeito – devem ser distribuídos de forma igual, a menos que uma distribuição desigual de qualquer um ou de todos esses valores se estabeleça em benefício de todos” (RAWLS, 1999a, p. 54). Sob “circunstâncias extremas” (RAWLS, 1999a, p. 55), em princípio a concepção geral não exclui um trade-off entre certos direitos e liberdades fundamentais (direitos políticos, por exemplo) e benefícios econômicos e sociais, que é precisamente o tipo de trade-off que a concepção especial tem por propósito excluir, desde que se possa plausivelmente sustentar que a desigualdade de direitos ou de autoridade em questão seja estabelecida em benefício de todos. E “mesmo assim”, diz Rawls (1999a, p. 132) em outra passagem, “essas restrições só podem ser admitidas na medida em que são necessárias para preparar o terreno para o momento em que não mais se justifiquem. A negação das liberdades fundamentais só pode ser defendida se isso é essencial para mudar as condições de civilização de modo que, no devido tempo, seja possível usufruir dessas liberdades”.[15] A posição de Rawls não pode ser caracterizada, portanto, como a de uma defesa inflexível da prioridade das liberdades fundamentais em quaisquer circunstâncias. Dito isso, é difícil apontar circunstâncias realistas em que o trade-off a que Rawls faz menção na passagem citada acima poderia se apresentar. É o próprio Sen (1999, p. 15-17; p. 148-159) que se encarrega, no melhor espírito da “concepção especial de justiça”, de demolir um exemplo proeminente disso que às vezes é invocado (especialmente por líderes políticos autoritários) na forma da chamada “tese de Lee”[16], segundo a qual sistemas políticos autoritários, que negam liberdades civis e políticas fundamentais, são melhores (do que democracias) para promover o desenvolvimento econômico. Sen (1999, p. 148-149) também rejeita a variante da “tese de Lee” – similar ao trade-off que, em teoria, a concepção geral de justiça poderia admitir – segundo a qual as pessoas pobres, se lhes fosse dado escolher entre a satisfação de necessidades econômicas e ter liberdades políticas, sempre prefeririam a primeira alternativa.[17]

Note-se que mesmo sob condições socioeconômicas que não permitem a realização de uma sociedade justa, em conformidade com as recomendações da concepção especial de justiça, continua sendo válido que a teoria ideal “é a parte mais fundamental da teoria da justiça e que é essencial também para a parte não ideal” (RAWLS, 1999, p. 343). Além de estabelecer o alvo da teoria não ideal, Rawls supõe que a teoria ideal contribui para a teoria não ideal estabelecendo que injustiças são mais graves e deveriam ser enfrentadas primeiro, como fica patente na seguinte passagem:

 A ordenação léxica dos princípios determina que elementos do ideal são relativamente mais urgentes, e as regras de prioridade que essa ordenação sugere devem também se aplicar a casos não ideais. Desse modo, tanto quanto as circunstâncias o permitam, temos um dever natural de remover quaisquer injustiças, começando pelas mais graves tal como identificadas pelo grau de afastamento da justiça perfeita. É claro que essa ideia é extremamente genérica. A avaliação dos afastamentos em relação ao ideal dependerá em grande medida da intuição. Mesmo assim, nosso julgamento é guiado pela ordenação léxica (RAWLS, 1999a, p. 216).

V

Consideremos agora, de forma breve, os dois componentes do segundo princípio de justiça da teoria de Rawls.[18] Se passamos para a igualdade equitativa de oportunidades, esse princípio recomenda oportunidades educacionais amplas e iguais e um sistema público de saúde que possibilitem às pessoas desenvolverem seus talentos e aptidões, para competir em pé de igualdade pelas posições ocupacionais e de autoridade mais valorizadas, para tirar proveito dos benefícios da cultura e para enriquecer sua vida pessoal e social. Esse princípio, ademais, estabelece limites rígidos à possibilidade de os mais ricos legarem ou doarem riqueza para seus herdeiros. No que se refere ao princípio de diferença, especialmente se suas exigências são combinadas às dos dois outros componentes da justiça social rawlsiana,[19] como foi mencionado antes, Rawls concebe, como uma descrição institucional ideal alternativa a um capitalismo de bem-estar social que garante um mínimo social, uma property-owning democracy ou um socialismo liberal[20]. O ponto essencial da “democracia dos cidadãos proprietários”, como uma “descrição institucional ideal”[21] dos arranjos sociais que satisfazem as exigências combinadas dos três componentes da “justiça como equidade”, é que, mais do que uma distribuição equitativa da renda ou a garantia de um mínimo social decente para todos, as instituições e políticas igualitárias devem ter por objetivo uma distribuição equitativa do capital físico e humano entre todos os cidadãos. Ao confrontar os méritos relativos dos dois regimes socioeconômicos – de duas descrições institucionais ideais – que se apoiam em uma economia de mercado e na propriedade privada dos meios de produção, o capitalismo de bem-estar social e a democracia dos cidadãos proprietários, Rawls afirma que

Uma das principais diferenças é a seguinte: as instituições de fundo da democracia de cidadãos proprietários operam no sentido de dispersar a posse de riqueza e capital, impedindo assim que uma pequena parte da sociedade controle a economia e, indiretamente, também a vida política. Em contraposição, o capitalismo de bem-estar social permite que uma pequena classe tenha praticamente o monopólio dos meios de produção.

A democracia de cidadãos-proprietários evita isso, não pela redistribuição de renda àqueles com menos ao fim de cada período, por assim dizer, mas sim garantindo a difusão da propriedade de recursos produtivos e de capital humano (isto é, educação e treinamento de capacidades) no início de cada período, tudo isso tendo como pano de fundo a igualdade equitativa de oportunidades. A ideia não é simplesmente a de dar assistência àqueles que levam a pior em razão do acaso ou da má sorte (embora isso tenha de ser feito), mas antes a de colocar todos os cidadãos em condições de conduzir seus próprios assuntos em pé de igualdade social e econômica apropriada (RAWLS, 2003, p. 196-197).[22]

O mais sério defeito do capitalismo de bem-estar social está em seu sistema de tributação e de transferências ser organizado para corrigir ex post – “ao fim de cada período”, como diz Rawls na passagem acima – as desigualdades econômicas geradas por uma economia capitalista de mercado.[23] Esse arranjo social vai de encontro à ideia de que deveríamos conceber uma estrutura básica justa como uma modalidade de “justiça procedimental pura” (RAWLS, 1999a, p. 74-77). A redistribuição ex post exige precisamente aquilo que deveria estar ausente de um arranjo institucional justo, isto é, “levar em conta a infindável variedade de circunstâncias e as posições relativas de pessoas específicas” (RAWLS, 1999a, p. 76). “Ao fim de cada período” é preciso apurar a renda de cada uma e averiguar as circunstâncias de vida de cada um dos candidatos aos benefícios condicionais (à realização de “testes de meios” e de “testes de trabalho”) do welfare state. Isso pode envolver, se essa averiguação envolve uma distinção moralmente problemática entre pobres “merecedores” e pobres “não merecedores”, a estigmatização dos beneficiários que se veem, não como pessoas colocadas em pé de igualdade econômica e social, e como igualmente capazes de perseguir uma concepção do próprio bem, e sim como pessoas de status social inferior, às quais se deve (alguma) compensação em virtude dos infortúnios a que estão sujeitas. Em contraste, a democracia de cidadãos-proprietários objetiva organizar as instituições de propriedade, tributação e transferências de forma que operem, em conjunção com as instituições necessárias para garantir o maior grau possível de igualdade equitativa de oportunidades, como mecanismos de “pré-distribuição” – no “início de cada período” – de capital físico e humano na sociedade, em vez de se limitarem à redistribuição dos fluxos de renda produzidos sob uma economia capitalista de mercado.[24]

VI

Não é o momento de se estender na discussão do modelo da democracia dos cidadãos-proprietários.[25] Mas resta um último ponto a ser ressaltado, no presente contexto, recorrendo à discussão de Martin O’Neill (2017) sobre o impacto do livro de Thomas Piketty (2014), O capital no século XXI, mencionado no início deste artigo, para a filosofia política. Suponhamos que seja correta a argumentação empírica de Piketty sobre a tendência de longo prazo de crescimento da desigualdade econômica nos países capitalistas ricos. Isso resulta de uma tendência de crescimento da participação do capital na renda nacional anual[26] dos países ricos – que passou de 15% a 25% em 1975  para de 25% a 35% no período 2000-2010, podendo retornar, ao longo do século XXI, aos patamares de 35% a 40% da Europa do século XIX (PIKETTY, 2014, p. 219) – combinada à acentuada elevação na desigualdade de riqueza que, mantidas certas tendências que hoje se observam[27] e se nenhuma estratégia for adotada para impedir isso, poderia retornar aos níveis da Europa da Belle Époque, em que os 1% mais ricos detinham de 50% a 60% da riqueza. Como O’Neill observa, sobre essa análise de Piketty, não haveria nada de especialmente problemático no aumento da proporção da renda nacional que vai para o capital, e não para o trabalho, se a distribuição da riqueza não fosse tão desigual. “Em uma sociedade na qual a maioria ou todos os cidadãos obtivessem sua renda tanto do trabalho como do capital, com as posses de capital amplamente distribuídas pela sociedade, uma elevação na participação do capital na renda nacional teria a implicação bem-vinda de que os indivíduos poderiam de bom grado deixar de ficar tão inteiramente à mercê de sua renda de trabalho  do que estariam em um mundo que tem um estoque menos valioso de capital, no qual todos tivessem de trabalhar para viver ao longo da melhor parte de suas vidas” (O’NEILL, 2017, p. 346).

Diante do cenário que Piketty nos apresenta como bastante plausível para o futuro do capitalismo, caracterizado por níveis de desigualdade econômica “potencialmente incompatíveis com os valores meritocráticos e os princípios de justiça social que estão na base de nossas sociedades democráticas modernas” (PIKETTY, 2014, p. 33), O’Neill (2017, p. 365-371) identifica duas estratégias igualitárias que, embora possam ser combinadas de alguma forma, devem ser distinguidas entre si. Uma delas consiste em resistir à tendência ao crescimento da participação do capital, em detrimento do trabalho, na renda nacional. Isso pode se fazer mediante normas de governança corporativa que promovem a participação de representantes dos trabalhadores nos conselhos de administração das empresas[28]; mediante o fortalecimento da ação e do papel dos sindicatos, “que historicamente foram os atores mais importantes para garantir que o trabalho recebesse sua parcela do produto social (...) e, valendo-se de suas conexões com partidos políticos, para domesticar o capitalismo por meios democráticos” (O’NEILL, 2017, p. 366); e sobretudo mediante a tributação redistributiva dos ganhos de capital e de tributação pesada de heranças e de transferências de capital. A segunda estratégia, cuja desejabilidade de uma perspectiva igualitária é esboçada na passagem citada no parágrafo anterior, consiste em “abraçar o crescimento da participação do capital” adotando-se reformas institucionais de “pré-distribuição de capital” (O’NEILL, 2017, p. 369), seja na forma de uma democracia dos cidadãos-proprietários ou de um socialismo liberal. Embora no curto e no médio prazos possa ser politicamente mais acertado para os igualitários adotar a primeira estratégia, somente a segunda, sustenta O’Neill, possibilitará ao igualitarismo fazer frente às tendências do capitalismo de gerar crescimento da participação do capital na renda e elevação da desigualdade econômica. O propósito de mencionar as implicações radicais que O’Neill retira da análise de Piketty das tendências de longo prazo do capitalismo – na breve discussão disso nos dois últimos parágrafos – é meramente enfatizar que, embora a preocupação de Rawls (e Meade) com a “descrição institucional ideal” que melhor realizaria as exigências combinadas dos dois princípios de justiça tenha por objeto, sem dúvida nenhuma, o componente mais utópico da “utopia realista”, não há nenhuma razão para supormos que esse esforço possa ser considerado uma forma de “teorização ociosa”. O contrário disso é verdadeiro: o igualitarismo não poderá prescindir dessa forma de teorização no âmbito da teoria ideal.

Mas admitamos, como é inevitável fazê-lo, que reformas institucionais de larga escala, como as que são recomendadas pela democracia dos cidadãos-proprietários, ou por algum outro regime socioeconômico de distribuição ex ante do capital e da riqueza, não fazem parte da agenda política em parte alguma (e nem mesmo da agenda da esquerda política). Isso significa que o princípio de diferença não tem aplicação? Como Freeman (2012, p. 181) observa, “ao considerarem propostas tributárias distintas ou ao estabelecerem o nível de tributação, ou ao decidirem se é o caso de instituir um substancial imposto de renda negativo ou complementos de renda garantida, os legisladores devem levar em conta agora os efeitos de longo prazo dessas medidas, não somente para o produto econômico bruto, mas também para o bem-estar econômico dos menos privilegiados. Eles devem escolher as alternativas que, em conjunção com as instituições e políticas existentes e que sejam praticáveis em futuro próximo, melhor se prestem aos interesses dos membros mais pobres da sociedade”. Mesmo se medidas como essas ainda nos deixam longe da justiça perfeita, elas representam ganhos de justiça, em circunstâncias caracterizadas por injustiças, da ótica de um princípio da teoria ideal.

Se temos em mente que a teoria ideal especifica, não um modelo de sociedade perfeitamente justa, e sim princípios formulados e justificados para uma sociedade democrática justa, como se mostrou nos parágrafos precedentes, fica patente que a teoria não ideal, na justiça rawlsiana, não é algo radicalmente distinto da teoria ideal (FREEMAN, 2012, p. 183). É a aplicação da teoria ideal a condições não ideais. Temos de recorrer à teoria ideal para decidir o que a justiça requer em circunstâncias não ideais. Perder isso de vista pode criar um problema de “dependência de trajetória” na avaliação de melhorias graduais, que podem ou não estar de acordo com o objetivo a ser alcançado no prazo mais longo (SATZ, 2015, p. 285). Limitar-se a fazer comparações entre dois estados de mundo possíveis pode nos levar a perder de vista para onde queremos ir. Como saber se melhorias graduais ou soluções parciais – as políticas no âmbito da teoria não ideal – podem ser endossadas pela teoria da justiça (que aqui está em questão) se não temos uma ideia razoavelmente precisa do objetivo final a ser alcançado? Como afirma John Simmons (2010, p. 36), “mesmo os mais não filosóficos dentre os que são ativos na causa da justiça de fato têm em mente, por mais vago que isso seja, um ideal de justiça em direção ao qual consideram que suas campanhas por fim estão voltadas”. Uma ideia similar a essa, e essa é a posição que se pretende sustentar mediante a segunda linha argumentativa exposta na seção III, ocupa um lugar central na distinção entre teoria ideal e teoria não ideal na teoria política rawlsiana. Recorrer a uma concepção ideal de justiça social é necessário se a ideia é a de que uma teoria da justiça tem de enfrentar injustiças sistêmicas, que não se reduzem (por mais importantes e urgentes que sejam) à subjugação das mulheres (às formas mais gritantes de desigualdade de gênero), à pobreza extrema, à fome endêmica e à morbidade prematura e evitável. Essa é uma preocupação – isto é, com a injustiça sistêmica – notavelmente ausente de uma perspectiva sobre a justiça como a de Sen e Nussbaum (2007) que, como se poderia sustentar, é uma forma de consequencialismo moral “orientado para o beneficiário”, mas que não pode estar ausente de uma visão sobre a justiça “baseada na estrutura” (FORST, 2014). Esta última afirmação requer mais discussão.[29]

Sustentei, em outro trabalho (VITA, 2017), que uma característica metodológica central da teoria política normativa de orientação rawlsiana é a de ser fortemente “orientada por problemas”. Mas, para repetir a objeção examinada acima, formular e refinar uma concepção de justiça social que é igualitária e que especifique princípios que são capazes de obter estabilidade, no sentido de que as pessoas podem ser motivadas por seu senso de justiça a cumprir com as exigências de instituições que os realizam, poderia ser um empreendimento teórico fadado a ser irrelevante, por ser incapaz de oferecer orientações claras para o que devemos fazer, aqui e agora, diante das injustiças com as quais nos defrontamos? Um dos objetivos que se apresentam à pesquisa e à reflexão normativas, da ótica aqui adotada, é o de enfrentar de forma sistemática essa objeção que examinei de forma preliminar. A discussão da distinção entre teoria ideal e teoria não ideal da justiça e sobre como é possível conectá-las, ou sobre como é possível conectar uma filosofia política de certo tipo à política prática perpassa os todos os problemas que discuti em trabalhos anteriores.[30] Além do desenvolvimento dessa agenda intelectual, minha expectativa é que isso tenha um interesse mais amplo. Há uma dimensão pública nesse esforço de mostrar como uma filosofia política altamente abstrata responde a questões que emergem na política prática. Como diz Dworkin (2002, p. 4) na Introdução a seu Sovereign Virtue, os teóricos políticos não devemos evitar desenvolver um argumento “até as nuvens” de abstração se isso for necessário para encontrar uma solução que nos pareça intelectualmente satisfatória para um problema que emerge na política prática. Um dos propósitos da discussão aqui desenvolvida é o de mostrar que, a não ser no que se refere a casos gritantes de destituição e injustiça, sem uma concepção de justiça social não é possível dizer nada de mais substancial, não importa que compilação de “fatos” tenha sido feita, sobre a equidade ou a iniquidade de arranjos institucionais e políticas ou sobre as propostas para alterá-los.

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Contribuição de autoria

1 – Álvaro de Vita

Professor Titular Aposentado e Professor Sênior do Departamento de Ciência Política/USP

https://orcid.org/0000-0002-4363-0358 • alvaro_vita@uol.com.br
Contribuição: Escrita – Primeira Redação

Como citar este artigo

VITA, Á. Por que uma teoria ideal da justiça? Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 13, n. 1, e9, 2022. DOI 10.5902/2179378671026. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378671026. Acesso em: dia mês abreviado. ano.



[1] Este artigo, que expande uma seção com o mesmo título em um artigo publicado em Lua Nova (Vita, 2017), foi apresentado e debatido na Conferência de Encerramento da Cátedra Serras de Minas 2019, promovida pela Associação Serras de Minas da Teoria da Justiça e do Direito, em 7 e 8 de dezembro de 2019. Agradeço os comentários que na ocasião foram feitos por David F. L. Gomes, Denilson Werle, Leandro Zanitelli, Renato Francisquini Teixeira, Saulo de Matos e por vários dos presentes à Conferência.

[2] Scanlon (2018) é uma contribuição recente para esse debate na teoria normativa. Discuto a questão em Vita (2011, p. 577-584). Pedro Henrique Ferreira de Souza (SOUZA, 2018, cap. 1-3) faz uma excelente reconstrução do debate intelectual sobre a desigualdade, especialmente na sociologia e na economia, abarcando o período de 1880 a 2015. Souza (2018, p. 144-158) mostra que o interesse pela temática da desigualdade, como objeto legítimo de pesquisa acadêmica nesses campos do conhecimento, voltou a crescer (depois de um período de ostracismo intelectual entre meados dos anos 1970 e as décadas de 1990 e 2000) graças a pesquisas quantitativas que mostraram o forte crescimento da desigualdade econômica, especialmente nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha a partir de 1980, que ganharam ressonância nos trabalhos de economistas como Branko Milanovic, Anthony Atkinson e, de forma mais notável, nos trabalhos de Piketty e seus colaboradores. De acordo com Alvaredo, Chancel, Piketty, Saez e Zucman (2018, p.  5-6), a desigualdade de renda (considerando as estatísticas disponíveis para rendimentos do trabalho e do capital) cresceu fortemente na América do Norte, China, Índia e Rússia, moderadamente na Europa, e permaneceu relativamente estável, “em níveis extremamente elevados”, no Oriente Médio, África Subsaariana e Brasil. Os efeitos nocivos (nesse caso, tóxicos para a saúde) da desigualdade econômica foram documentados em trabalhos dos economistas Anne Case e Angus Deaton (CASE & DEATON 2015), que mostraram uma abrupta elevação das “mortes por desespero” (causadas por suicídio ou por intoxicação causada por alcoolismo ou por ingestão abusiva de medicamentos), entre 1999 e 2013, entre brancos de meia idade sem nível superior de escolarização. De acordo com Case e Deaton (2015: 15081), “com a ampliação da desigualdade econômica, muitos da geração ‘baby boom’ são os primeiros a descobrir, na meia idade, que não conseguirão chegar a condições melhores do que aquelas que seus pais haviam alcançado. O crescimento dos rendimentos médios foi lento para esse grupo, especialmente para aqueles que só têm o ensino médio”. Samuel Scheffler (2019) levanta a hipótese de que o aumento da desigualdade econômica e as violações à reciprocidade (no sentido rawlsiano do termo) na estrutura básica da sociedade estadunidense podem explicar, em grande medida, a ascensão política do populismo de direita de Donald Trump, nas eleições de 2016, nos Estados Unidos.

[3] A teoria de Dworkin (2002, cap. 1 e 2) da justiça distributiva constitui outro exemplo proeminente, para Sen (2009, p. 8; p. 264-268), de “institucionalismo transcendental” e de “fundamentalismo institucional”.

[4] O que supõe a existência de “condições razoavelmente favoráveis”, isto é, “as circunstâncias sociais que, desde que exista vontade política para isso, permitem a instituição efetiva e o pleno exercício dessas liberdades [das liberdades fundamentais às quais a justiça rawlsiana atribui prioridade na ‘concepção especial de justiça’, à qual se fará menção adiante]. Essas condições são determinadas pela cultura de uma sociedade, por suas tradições e capacidades adquiridas de gerir instituições, por seu nível de desenvolvimento econômico (que não precisa ser necessariamente alto) e, sem dúvida, também por outros fatores” (RAWLS, 2011, p. 352).

[5] Examino essa questão de forma mais pormenorizada na seção “Alcance da justiça igualitária e senso de justiça” de Vita (2017).

[6] Talvez seja preferível citar a última frase no original: “It is not the case that ought implies reasonably likely” (ESTLUND, 2008, p. 265). O propósito de Estund é o de rebater críticas a teorias políticas normativas que estabelecem padrões morais de justiça ou de legitimidade política que, embora sejam impraticáveis nas circunstâncias atuais, porque exigem que as instituições e as disposições dos cidadãos sejam outras que não as prevalentes, nem por isso são equivocados ou injustificados. Em um livro recente, intitulado Utopophobia. On the Limits (If Any) of Political Philosophy, Estlund realizou um esforço notável (é difícil exagerar no qualificativo) para detalhar essa crítica à “utopofobia” e rebater as posições, na filosofia política, que expressam um “medo irrazoável do pecado do utopismo, que pode levar à marginalização de investigações e insights sem demonstrar a existência de nenhum defeito neles” (ESTLUND, 2020, p. 6).

[7] Outra linha de crítica à idealização excessiva da justiça rawlsiana é aquela formulada por autores como Raymond Geuss (2008) e Bernard Williams (2005). Para essa posição, a justiça rawlsiana (e outras teorias normativas que Williams vê como variantes de “moralismo político”) não leva em conta adequadamente a natureza do desacordo e de conflitos políticos que nem sempre, sustenta Williams (2005, p. 12-13), resultam de desacordo moral ou são passíveis de solução mediante argumentação moral. Essa posição dos realistas políticos, que no caso de Williams vem associada à defesa do que Judith Shklar (1989) denominou “liberalismo do medo”, exige uma discussão à parte.

[8] Essa história é relatada em Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (2006).

[9] Sobre isso, ver, por exemplo, Kerstenetzky (2012: cap. 8).

[10] Para uma interpretação das exigências desse princípio, ver Vita (2011: 578-582).

[11] Scanlon (1982). Ver discussão sobre o critério de Scanlon em Barry (1989, p. 283-284; p. 346) e Vita (2007, p. 175-179).

[12] É o que Rawls faz na seção 29 de Uma teoria da justiça (RAWLS, 1999a, p. 153-159), em que formula aquela que possivelmente é sua objeção decisiva ao utilitarismo como uma teoria ideal da justiça. Ao se converter na carta fundamental de uma sociedade bem-ordenada, o princípio de utilidade geraria ônus motivacionais (“strains of commitment”) excessivos para os que viessem a se encontrar na posição mais desprivilegiada dessa sociedade, porque, em sentido oposto ao do princípio de diferença da teoria de Rawls, recomendaria o sacrifício de baixo para cima. Seria exigido dos que se encontrassem na posição mais desfavorável que se dispusessem, motivados pela benevolência, a aceitar a “exigência extrema” de renunciar a suas próprias perspectivas de vida para maximizar a utilidade total ou média na sociedade. Isso é implausível, do ponto de vista motivacional, e incompatível com o que Rawls denomina “cláusula de publicidade”. Por essa razão, uma sociedade utilitarista bem-ordenada seria incapaz de gerar entre os mais desprivilegiados o senso de justiça e um sentido de autorrespeito que são requisitos para que dessem um apoio continuado às instituições justas e se dispusessem a cumprir com suas exigências. Esse argumento tem força independente, ao se confrontarem os méritos relativos da “justiça como equidade” e do utilitarismo, mesmo que a escolha mais racional para as partes na posição original da teoria de Rawls pudesse ser, como sustentou John Harsanyi (1975), não o princípio de diferença da teoria de Rawls, e sim um princípio de maximização da utilidade média.

[13] Mesmo que a opinião que se poderia querer suprimir acabasse se mostrando falsa, aquilo que para Mill se perderia, ao se tentar suprimi-la, é uma percepção mais vívida e menos dogmática da verdade sobre as “questões práticas da vida”, algo que só pode resultar de um confronto com o erro. “Tão essencial é essa disciplina para um entendimento real dos assuntos humanos e morais que, se não existissem oponentes a todas as verdades mais importantes, seria necessário criá-los com os argumentos mais fortes que o mais hábil dos advogados do diabo seria capaz de maquinar” (MILL 1961 [1859], p. 228).

[14] Examinei de forma pormenorizada a concepção de Nozick de direitos como “restrições laterais” em Vita (2007, p. 34-58) e discuti a idealização que Farrelly atribui à teoria ideal de Rawls (a de que os direitos a liberdades civis e políticas fundamentais, porque são “direitos negativos”, são “destituídos de custos”) em Vita (2007, p. 228-234).

[15] Em O liberalismo político, Rawls prefere dizer que a “concepção especial de justiça”, com os dois princípios em ordem serial, é precedida por um princípio “lexicamente anterior” de satisfação das necessidades básicas dos cidadãos: “o primeiro princípio, que trata dos direitos e liberdades fundamentais, pode sem muitos problemas ser precedido de um princípio lexicamente anterior que preserva a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos, ao menos na medida em que satisfazê-las seja necessário para que eles entendam e tenham condições de exercer esses direitos e liberdades de forma efetiva. Não há dúvida de que algum princípio desse tipo tem de estar pressuposto na aplicação do primeiro princípio” (RAWLS, 2011, p. 8).

[16] A referência é a Lee Kuan Yew, que foi o líder político de Cingapura de 1959 a 1990.

[17] No capítulo 10 de Desenvolvimento como liberdade, intitulado “Democracia e direitos humanos”, Sen (1999, p. 227-248) refuta, nessa mesma linha, a tese de que a ênfase na democracia e nos direitos e liberdades políticos seja uma prioridade “ocidental” que vai de encontro aos “valores asiáticos”.

[18] Apoio-me aqui em Freeman (2012, p. 180-182), que expressa uma posição com a qual estou de acordo.

[19] Refiro-me à igualdade equitativa de oportunidades e à garantia do “valor equitativo das liberdades políticas”. Esta última noção é parte da formulação definitiva que Rawls deu ao primeiro princípio de justiça: “Cada pessoa tem um direito igual a um sistema plenamente adequado de direitos e liberdades iguais, sistema esse que deve ser compatível com um sistema similar para todos. E, neste sistema, as liberdades políticas, e somente estas liberdades, devem ter seu valor equitativo garantido” (RAWLS, 2011, p. 6). Esta noção requer uma discussão à parte. A ideia fundamental é a de que a igualdade política efetiva entre os cidadãos de uma sociedade democrática requer arranjos institucionais que garantam uma ampla distribuição da riqueza e da propriedade e que ofereçam um antídoto para a “maldição do dinheiro” na política democrática. Sem isso, “o processo político democrático é no melhor dos casos uma rivalidade regulada; ele não tem, nem mesmo em teoria, as propriedades desejáveis que a teoria dos preços atribui a mercados genuinamente competitivos” (RAWLS, 1999a, p. 199).

[20] Um “socialismo liberal” é contraposto a um socialismo de comando central ou de estado (que é rejeitado, este último, como incompatível com os princípios de justiça). Para Rawls (1999a, p. 247-248), “pelo menos em teoria, um regime socialista liberal também pode satisfazer os dois princípios de justiça. Precisamos apenas supor que os meios de produção são de propriedade pública e que as empresas são geridas por conselhos de trabalhadores, por exemplo, ou por agentes indicados por eles. Decisões coletivas tomadas democraticamente, com base na constituição, definem as características gerais da economia, tais como o índice de poupança e a proporção da produção da sociedade que é destinada a bens públicos essenciais (...). A teoria da justiça, por si mesma, não favorece qualquer uma dessas formas de regime [a democracia dos cidadãos-proprietários ou o socialismo liberal]”.

[21] Ao comparar sistemas socioeconômicos da ótica da teoria ideal da justiça, o propósito de Rawls não é oferecer uma descrição institucional precisa desses sistemas, mas sim oferecer “descrições institucionais ideais” (RAWLS, 2003, p. 194) que expressam certas metas públicas e princípios no design das instituições. A ênfase recai no exame dessas metas públicas e princípios, mais do em que descrições institucionais precisas e pormenorizadas.

[22] A tradução foi ligeiramente alterada.

[23] Aqui estou me valendo, com adaptações, de uma passagem do meu Vita (2007, p. 258-259).

[24] Como esclarece O’Neill (2012, p. 90), o que se pretende com essa contraposição entre “redistribuição ex ante (“no início de cada período”), ou “pré-distribuição”, e redistribuição ex post (“no fim de cada período”) é somente enfatizar o contraste entre uma (re)distribuição que leva em conta os recursos produtivos que os indivíduos são capazes de trazer para o mercado com a redistribuição que se ocupa exclusivamente de transferências em dinheiro ou em espécie.

[25] Além das obras de Rawls e Meade (1993) mencionadas, mais discussão, como já foi dito, pode ser encontrada em Vita (2007, p. 254-271), O’Neill e Williamson (2014), O’Neill (2017) e Freeman (2018, cap. 4).

[26] Piketty (2014, p. 49-51) define a “renda nacional” como o somatório das rendas do capital (na forma de lucros, dividendos, juros, aluguéis e royalties) e das rendas do trabalho (na forma de salários, honorários, gratificações e outros pagamentos ao trabalho de pessoas que contribuíram para a produção).

[27] Que, na análise de Piketty, contribuem para aumentar a distância entre a taxa de retorno do capital (“r”) e a taxa de crescimento da economia (“g”), exprimindo-se na já célebre proposição segundo a qual r>g.

[28] Piketty (2014, p. 145) faz referência ao stakeholder model da Alemanha, “um modelo econômico no qual a propriedade das empresas pertence não somente aos acionistas, mas também a outras partes interessadas, a começar pelos representantes dos funcionários (...), bem como certos representantes de governos regionais, associações de consumidores, agências de defesa do meio ambiente, etc.”.

[29] Ver a seção “A métrica da justiça social” em Vita (2017).

[30] Vita (2007; 2008; 2011; 2014a; 2014b; 2017).