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Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v. 13, n. 1, e10, 2022

DOI: 10.5902/2179378667793

ISSN 2179-3786

Submissão: 23/09/2021 Aprovação: 29/05/2023 Publicação: 03/07/2023

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS. 2

2 A RAZÃO PÚBLICA RAWLSIANA E A DEMOCRACIA DELIBERATIVA.. 7

3 O DEVER DE CIVILIDADE. 10

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS. 34

REFERÊNCIAS. 36

 

Teoria de John Rawls

Democracia deliberativa e o dever de civilidade em John Rawls: do singular ao plural e do subjetivo ao objetivo

Deliberative democracy and the duty of civility in John Rawls: from singular to plural and from subjective to objective

Diogo Rodrigues ManassésIÍcone

Descrição gerada automaticamente

I Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil

RESUMO

Dentre os vários modelos normativos de democracia elaborados na Filosofia Política, um dos mais influentes é o da democracia deliberativa, cuja característica mais essencial é a exigência de justificação pública. John Rawls, ao estabelecer as bases do que ele chamou de razão pública, tornou-se um dos principais marcos teóricos desse modelo democrático. Atrelado à razão pública, Rawls tratou do dever de civilidade, um dever moral coerente com ela e com a sua ideia de democracia. O cidadão que o cumpre colabora com a construção e manutenção da própria democracia. O escopo do presente artigo é, à luz da teoria rawlsiana, estabelecer quatro componentes de naturezas distintas e aparentemente contraditórias (singular, plural, subjetivo e objetivo) que, somados, completam o dever de civilidade, tornando-o essencial para o regime democrático.

Palavras-chave: Democracia deliberativa; John Rawls; Dever de civilidade

ABSTRACT

Among the various normative models of democracy elaborated in Political Philosophy, one of the most influential is that of deliberative democracy, whose most essential feature is the demand for public justification. John Rawls, by laying the foundations of what he called public reason, became one of the main theoretical frameworks of this democratic model. Linked to public reason, Rawls talked about the duty of civility, a moral duty consistent with it and with his idea of ​​democracy. The citizen who fulfills it collaborates with the construction and maintenance of the democracy itself. The scope of this article is, in light of the rawlsian theory, to establish four components of distinct and apparently contradictory natures (singular, plural, subjective and objective) which, together, complete the duty of civility, making it essential for the democratic regime.

Keywords: Deliberative democracy; John Rawls; Duty of civility

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A complexidade da democracia faz com que ela seja interpretada de diferentes formas. A expressão é naturalmente polissêmica, fato que, por si só, faz com que ela seja objeto de inúmeras controvérsias. Da mesma forma, suas características definidoras são bastante variáveis e a flexibilidade do termo fez com que fossem elaborados modelos a seu respeito, cada um com suas idiossincrasias e realçando virtudes distintas.

Em sua obra Models of Democracy, David Held (2009) elenca, após abordar os que qualifica como clássicos (da Grécia antiga ao século XX), cinco paradigmas de democracia criados no século XXI: competitivo elitista, pluralista, legal, participativo e deliberativo. O presente texto é pautado na democracia deliberativa, modelo que encontra nas obras de John Rawls e Jürgen Habermas suas maiores referências (FAIRFIELD, 2008). A concepção rawlsiana da democracia deliberativa difere da habermasiana

em importantes aspectos, dentre os quais está sua rejeição à visão procedimental de Habermas em favor de uma concepção substantiva de democracia constitucional liberal na tradição do contrato social, na qual direitos humanos servem como restrições invioláveis no processo democrático. (FAIRFIELD, 2008, p. 38)[1].

Há diversos autores filiados à corrente deliberativista[2] da democracia, como Joshua Cohen e Seyla Benhabib. Alguns deles se aproximam de Habermas no olhar procedimental, outros acolhem a perspectiva substancialista rawlsiana.

Outra diferença entre Rawls e Habermas consiste no modo como eles encaram o próprio significado de deliberar. Explica Avritzer (2000) que, em sua origem etimológica, deliberar pode denotar tanto arrazoar quanto decidir, o que implica uma divisão na literatura entre as duas compreensões deliberativistas. Na primeira visão – decisionística, prevalente na primeira metade do século XX a partir das obras de Max Weber e Anthony Downs, e com inspiração rousseauniana –, a deliberação democrática seria reduzida exclusivamente ao voto, através do qual os cidadãos escolhem seus representantes, não havendo elemento argumentativo. A segunda visão – argumentativa, que surgiu nos anos 1970 a partir dos escritos de Rawls e Habermas –, por sua vez, entende que a deliberação democrática não exclui o momento decisório (que ocorre sobretudo através do voto), mas deve incluir um debate argumentativo prévio.

Nesse ínterim, Avritzer encara Rawls como “um autor de transição” entre as duas concepções de deliberação porque "em algumas de suas obras, especialmente em sua Uma teoria da justiça, ele opera com um consenso decisionístico”, ao passo que, “em outras, ele supõe que as diferenças culturais são parte de uma condição de pluralismo que supõe a argumentação e a deliberação”, como se vislumbra em O liberalismo político. Habermas, diversamente, tem na esfera pública um dos primeiros conceitos de sua obra, conceito que “tem, desde a sua origem, algumas das suas características centrais ligadas ao debate democrático contemporâneo”, uma vez que “os indivíduos no interior de uma esfera pública democrática discutem e deliberam sobre questões políticas, adotam estratégias para tornar a autoridade política sensível às suas deliberações” (Ibid., p. 32-36), deixando clara a sua filiação à corrente argumentativa.

Nesse leque de interpretações, Fairfield (2008) encontra duas características que, de acordo com ele, seriam consenso no deliberativismo argumentativo: um ideal de aceitabilidade e justificabilidade das políticas públicas em relação às pessoas por elas afetadas e um objetivo geral de formar uma esfera pública adequadamente organizada.

Percebe-se que a democracia deliberativa tem um alto grau de normatividade e encontra na justificação pública seu ponto de partida. Logo, do ponto de vista do modelo deliberativista, não há democracia sem justificação pública. Por extensão, as decisões democráticas não prescindem da apresentação de seus fundamentos, o que significa que a ideia de deliberação alia tanto a justificação da decisão quanto a decisão em si.

Não por outra razão, Gutmann e Thompson elencam a justificação como a primeira e mais relevante característica da democracia deliberativa. A definição fornecida por eles para a expressão é a seguinte:

forma de governo na qual cidadãos livres e iguais (e seus representantes) justificam suas decisões em um processo no qual eles dão uns aos outros razões que são mutualmente aceitáveis e geralmente acessíveis, com o objetivo de chegar a conclusões que são obrigatórias no presente para todos os cidadãos, mas abertas ao desafio no futuro. (GUTMANN; THOMPSON, 2004, p. 7).

Trata-se de uma definição que vai ao encontro da teoria elaborada por John Rawls, sobretudo acerca da razão pública. A expressão surgiu pela primeira vez em seus textos em 1993, ano em que ele lançou a obra Political liberalism (O liberalismo político, doravante, PL), um livro dividido em conferências, sendo uma delas intitulada The idea of public reason (A ideia de razão pública).

Em PL, Rawls não apenas revisitou noções elaboradas em seu livro mais célebre, A theory of justice (Uma teoria da justiça, doravante, TJ), como também apresentou e explorou ideias e concepções inovadoras em seu pensamento. Exemplo disso é o fato do pluralismo razoável, que é a constatação de que a existência de doutrinas religiosas, filosóficas e morais abrangentes diversas e razoáveis “não é mera contingência histórica fadada a logo desaparecer, e sim um traço permanente da cultura pública da democracia” (RAWLS, 2011, p. 43).

Na comparação entre TJ e PL[3], Nussbaum (2015) considera que as questões centrais das obras são diferentes, com uma fundamentação no mesmo campo. No primeiro livro, Rawls tentaria justificar um arcabouço principiológico básico, na seara política, capaz de representar o compromisso da sociedade com a inviolabilidade e a igualdade entre as pessoas que dela fazem parte. No segundo, o autor estaria enfrentando a hipótese de uma sociedade alcançar a estabilidade, a despeito das diferentes concepções religiosas e éticas adotadas pelos seus integrantes, sem o uso opressivo do poder estatal.

Fato é que a intenção de aprimorar a justiça como equidade, nome dado à sua teoria, é uma constante nos escritos rawlsianos[4]; não por outra razão, posteriormente, em 1997, o filósofo escreveu The idea of public reason revisited (A ideia de razão pública revisitada), artigo no qual, como indica o título, ele retomou o conceito de razão pública, com modificações que são fruto de novas reflexões sobre a matéria.

O escopo desta primeira seção foi apresentar de maneira introdutória o cenário em que o objeto central deste artigo – o dever de civilidade segundo Rawls – se encontra. A literatura a respeito do tema é escassa (ao menos nessa ótica), podendo ele ser entendido a partir de quatro componentes, conforme será desenvolvido. Antes, porém, a próxima seção prosseguirá apresentando os contornos do deliberativismo e o associará à razão pública rawlsiana, uma contextualização necessária para depois se debruçar especificamente sobre o assunto principal.

2 A RAZÃO PÚBLICA RAWLSIANA E A DEMOCRACIA DELIBERATIVA

Rawls (1997a, p. 94) entende que, “em uma sociedade democrática, razão pública é a razão de cidadãos iguais que, como um corpo coletivo, exercitam (o) poder político final e coercitivo uns sobre os outros ao promulgar leis e emendar sua constituição”. Portanto, para ele, não há razão pública sem uma sociedade democrática, tampouco sociedade democrática sem, em primeiro lugar, o reconhecimento de igual cidadania, e, em segundo lugar, o exercício do poder político de maneira coletiva.

Em termos conceituais, a razão pública é a “razão que cidadãos de uma sociedade pluralista democrática devem usar quando decidirem elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica” (NEUFELD, 2015, p. 666). Inviável desassociar, por conseguinte, a razão pública de dois ideais, um de cidadania (e seu exercício), outro de sociedade (democrática). Os elementos constitucionais essenciais se dividem em, primeiro, princípios estruturantes do governo e do processo político (os três poderes e o modo de aplicação da regra da maioria) e, segundo, um núcleo de direitos e liberdades básicos e iguais garantidos aos cidadãos independentemente das decisões das maiorias, como, por exemplo, o direito ao sufrágio e a liberdade de consciência (RAWLS, 1997a). Quanto às questões de justiça básica, elas se referem à estrutura básica da sociedade, como assuntos de economia e de justiça social (id., 1997b).

Seguindo o raciocínio rawlsiano, a razão pública não é aplicável a quaisquer discussões públicas, mas apenas àquelas concernentes a elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica. A publicidade da razão é enxergada pelo filósofo a partir de três ângulos. Primeiro, a razão pública é a razão do público, ou seja, cidadãos livres e iguais que a exercitam. Segundo, a matéria da razão pública está nas questões de justiça política fundamental, subdivididas em elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica. Terceiro, a natureza e o conteúdo da razão pública são públicos, apresentando-se nas discussões públicas e seus respectivos argumentos publicizados (RAWLS, 1997b).

Parte-se da premissa segundo a qual o pensamento rawlsiano iniciado em PL (e mantido nos textos posteriores) é de uma deliberação de viés argumentativo – sem prescindir também, enquanto tal, do fator decisório. Se a característica mais importante da democracia deliberativa é a justificação, esta constitui o elo entre a argumentação e a decisão[5]. A argumentação funciona no primeiro momento da deliberação, que é quando os cidadãos ponderam suas razões sobre determinada matéria (é aqui que, por excelência, aplica-se a razão pública); a decisão, no segundo, quando o que foi deliberado se torna obrigatório aos cidadãos (após o emprego da razão pública para deliberar)[6].

É relevante ressaltar que, embora Rawls não estabeleça essa distinção no processo deliberativo, ela é feita por Charles Larmore ao comentar a razão pública rawlsiana (ou seja, a lacuna deixada pelo primeiro é suprida pelos escritos do segundo). Para Larmore (2003), haveria duas formas de debate público: discussão aberta e tomada de decisão. Na discussão ocorre a argumentação, ou seja, é a etapa em que as pessoas argumentam entre si sobre o assunto debatido; na decisão, elas efetivamente deliberam (definem o resultado prático do debate) sobre o caminho a ser seguido a respeito da matéria, que será, ao final, legalmente impositivo.

O afunilamento apresentado por Rawls (1997b) para o ideal de razão pública é ainda maior do que parece: não se aplica a todas as discussões políticas, nem mesmo sobre todas as questões fundamentais, mas apenas àquelas que ocorrem no que ele chama de fórum político público. Ele é dividido pelo autor em três partes, que seriam, em termos singelos, o Poder Judiciário, o Poder Executivo e o Poder Legislativo[7], e os candidatos a cargos públicos (juntamente com aqueles que coordenam suas campanhas).

Nos três casos, o autor se refere ao discurso dos agentes envolvidos – integrantes do Judiciário, do Executivo e do Legislativo e os candidatos –, o que enfatiza o caráter eminentemente argumentativo da razão pública. As pessoas, sejam agentes públicos, aspirantes a cargos públicos, ou mesmo cidadãos comuns, estão submetidas a um dever conectado à razão pública. A dimensão deontológica da razão pública não apenas reforça a essência normativa da teoria rawlsiana como também lhe empresta uma propriedade moral.

A moralidade da razão pública está no que Rawls considera seu ideal (e não sua ideia, de contornos mais concretos). Para ele,

este ideal é realizado, ou satisfeito, quando juízes, legisladores, administradores públicos e outros representantes do governo, assim como candidatos a cargos públicos, agem a partir e seguem a ideia da razão pública e explicam aos outros cidadãos suas razões para apoiar posições políticas fundamentais da concepção política de justiça que consideram a mais razoável. (RAWLS, 1997b, p. 768-769).

É desse modo (leia-se, satisfazendo o ideal de razão pública) que eles (juízes, legisladores, administradores públicos e outros representantes do governo) cumprem seu dever de civilidade, que será detalhado na próxima seção.

3 O DEVER DE CIVILIDADE

A ideia de civilidade é ampla e controversa na Filosofia, ganhando contornos específicos na obra de Rawls. Não se tem a pretensão de estabelecer aqui as diversas visões a respeito do tema, porém a elaboração de Bonotti e Zech (2021) é ferramenta útil para adentrar no assunto.

Para os autores, a civilidade é composta de duas dimensões distintas, porém interconectadas: a civilidade como cortesia (civility as politeness), visão segundo a qual ela seria reflexo do cumprimento das normas de etiqueta da vida em sociedade; e a civilidade como espírito público (civility as public-mindedness), que implica tratar os outros como pessoas livres e iguais e comportar-se de acordo com o bem comum (ao invés de interesses privados). A civilidade como espírito público constitui sua natureza política[8], encarando os indivíduos não apenas como pessoas que cotidianamente interagem socialmente, mas como cidadãos com deveres e responsabilidades no bojo de uma democracia. Ela possui duas subdimensões. A primeira é a civilidade moral, que considera o modo como os cidadãos interagem uns com os outros, do ponto de vista discursivo e comportamental, em uma sociedade marcada pela discordância e pela diversidade. Sua preocupação é com o respeito aos direitos que todos, enquanto pessoas livres e iguais, possuem (como a não deflagração de atos de violência ou discriminação, por exemplo). A segunda é a civilidade justificatória, preocupada com a justificação pública das normas políticas em democracias liberais. O tratamento dirigido pelos cidadãos e pelos representantes do Poder Público aos demais, como pessoas livres e iguais, depende da justificação das decisões políticas, o que, em uma sociedade diversificada, deve ser feito mediante o apelo a razões públicas, que seriam aceitas por todos, independentemente de suas visões de mundo. Nesse contexto, entendem que “talvez a elaboração mais influente da civilidade justificatória seja a fornecida por John Rawls, para quem o dever de recorrer apenas a razões públicas durante o processo de justificação pública é um ‘dever de civilidade” (Ibid., p. 49).

Na obra do filósofo, o dever de civilidade constitui “um conjunto de requisitos morais que são associados à ideia de razão pública em Rawls e sua visão correspondente de legitimidade política liberal-democrática” (BOETTCHER, 2015, p. 229). É imprescindível perceber a conexão entre a razão pública e o dever de civilidade – satisfazendo o ideal daquela é que este é cumprido –, assim como a intimidade guardada entre ele e a legitimidade política. Entretanto, impõe-se o reconhecimento da complexidade e da autonomia do conceito, com novas reflexões que o esmiuçam, sem desnaturar a obra rawlsiana. A partir dessa proposta, chega-se a uma somatória de quatro componentes de natureza aparentemente antagônica. Singularidade, pluralidade, subjetividade e objetividade se unem para formar este dever.

3.1 Singular e plural

“A quem se aplicam os requisitos da razão pública?” – questiona Quong (2014, p. 269). A resposta é: a todos que devem aderir ao dever (moral) de civilidade, ou seja, “o dever de apoiar apenas as políticas e os princípios que são defensáveis por se referirem a valores políticos adequados e a concepções políticas de justiça, e de articular tais razões compartilhadas ao deliberar com os outros” (Ibid.).

É importante salientar que o dever de civilidade não se aplica somente a pessoas especificamente vinculadas ao poder público (magistrados, administradores públicos, parlamentares) ou que querem sê-lo (candidatos a cargos públicos). Mesmo os cidadãos comuns (sem vínculo específico com o poder público, salvo o da cidadania) estão a ele submetidos[9]. Não faria sentido excluí-los pelo simples fato de que o dever de civilidade, mesmo tendo um teor moral, tem na política o seu campo de aplicação, ao passo que a política envolve tanto os funcionários públicos[10] quanto as demais pessoas. Assim como os funcionários públicos têm condutas externas à política, pessoas que não são do funcionalismo público têm condutas internas à política.

No que se refere à sua natureza, a primeira questão preliminar que se coloca é: em que parte da razão prática se encontra o dever de civilidade? A questão é complexa, na medida em que esta concepção recebe um tratamento diferente em TJ quando comparado a PL. Naquele, o autor o relaciona à imposição do “dever de aceitar as falhas das instituições e certa moderação ao beneficiar-se delas” (RAWLS, 2016, p. 443); neste, há, como mencionado, uma associação com a razão pública, que sequer é assunto de TJ. A rigor, nessa ótica, o conceito não é o mesmo. Soma-se a isso a existência de uma classificação de princípios individuais em TJ, sobre a qual PL é silente, o que reforça a ambiguidade a seu respeito.

Em TJ, no âmbito do conceito de justo, que é uma das categorias da razão prática (junto do conceito de valor e do conceito de valor moral), há uma subdivisão entre princípios para sistemas e instituições sociais, para o direito das nações (preocupação de O direito dos povos) e para indivíduos. Enquanto o primeiro grupo constitui o foco da justiça como equidade (são os princípios voltados à estrutura básica da sociedade), o último é pouco tratado em seus textos. Os princípios individuais se subdividem em permissões ou exigências; as exigências podem ser obrigações ou deveres naturais (Ibid., p. 131).

O liberalismo político rawlsiano não tem por escopo conceber uma teoria individual da justiça; o autor é claro ao assentar que sua preocupação é com as instituições. Não é sem razão que Werle (2014, p. 68) assevera que “o objeto primário de uma teoria da justiça não são diretamente os indivíduos e suas capacidades, mas sim a estrutura básica da sociedade, formada pelas principais instituições sociais, econômicas e políticas”. Entretanto, Rawls (2016, p. 130) declara que os princípios individuais são “parte essencial de qualquer teoria da justiça”; seus escritos trazem contribuições a esse respeito, como as faculdades morais e o dever natural de justiça[11], o que não pode ser ignorado.

No que se refere especificamente ao dever de civilidade, diversamente dos princípios de justiça, ele não é um princípio institucional nem do direito das nações, mas individual. Pelo seu conceito já exposto, conclui-se que não se trata de uma permissão, mas de uma exigência – nesse sentido, “os cidadãos têm de tentar, por dever de civilidade, articular suas reivindicações recíprocas tomando como referência valores políticos, sempre que possível” (RAWLS, 2003, p. 58, grifo nosso). A dúvida é se o dever de civilidade, sendo uma exigência, seria uma obrigação ou um dever natural[12].

É verdade que, em TJ, o filósofo fala expressamente em “dever natural de civilidade” (id., 2016, p. 443). Entretanto, os contornos presentes na obra são, conforme mencionado, bastante distintos daqueles apresentados em PL. Além disso, no segundo livro, este dever não é rotulado da mesma forma. Deve ser considerada também a mudança parcial da gramática rawlsiana entre as duas obras: se é verdade que ambas são voltadas a princípios institucionais, não é menos verdade que apenas a primeira estabelece a dicotomia obrigações-deveres naturais, que não é sequer mencionada na segunda, uma omissão que não parece ter sido à toa (sobretudo porque a mera presença do dever de civilidade demonstra que princípios individuais não passaram a ser negligenciados). Assim como em relação às instituições, o léxico concernente aos indivíduos não é o mesmo, havendo um abandono da dicotomia que, a nosso ver, é proposital (do contrário, das diversas referências ao dever de civilidade posteriores a TJ, alguma seria com a qualificação de “natural”[13]).

Ademais, há idiossincrasias do dever de civilidade – leia-se, aquele apresentado em PL e nos textos posteriores – que dificultam o seu rótulo enquanto obrigação ou dever natural. Por exemplo, ainda que seja exigido de todos (o que o enquadraria na segunda espécie), há ênfase em relação àqueles que ocupam cargos públicos, com mais exigências no uso público da razão[14]; da mesma forma, se “vínculos de obrigação pressupõem instituições justas” (Ibid, p. 135), excluindo regimes autocráticos, o mesmo raciocínio se aplica ao dever de civilidade, mas não aos deveres naturais (o dever de não agredir o próximo, a que Rawls faz referência expressa, não depende de instituições justas). Em síntese, não é possível afirmar, inequivocamente, qual o rótulo que lhe cabe.

Com lógica similar, Tramontina (2011) enfrenta o argumento, que considera equivocado, segundo o qual sendo outro (em relação a TJ) o problema central de PL, não haveria razão para adentrar nos princípios individuais.

A razão para tal entendimento é a de que o problema da estabilidade preocupa-se com a relação entre doutrinas abrangentes profundamente opostas, embora razoáveis, e não com a relação dos indivíduos com suas instituições e entre eles mesmos. Isso parece ser equivocado. Primeiro, por mais que uma doutrina religiosa, filosófica ou moral possa influenciar o sistema de crenças e as ações de certos indivíduos, isso não implica que todo seu sistema de crenças seja um conjunto ordenado e homogêneo e imune às críticas e incoerências, nem que todas as suas ações sejam determinadas ou sugeridas por aquelas. Logo, há um espaço de liberdade para o indivíduo questionar e mesmo rever suas crenças e modo de agir. Segundo, se as doutrinas são razoáveis deve-se pressupor que elas podem aceitar uma distinção do tipo âmbito privado (religião e moral) do público (político). Assim, existe a possibilidade na esfera política de que os princípios que as regem valham para o indivíduo independente da concepção de bem que professa. Terceiro, as doutrinas abrangentes razoáveis são professadas por indivíduos, elas não podem existir sem estes. Indivíduos têm concepções do bem e precisam de justificativas para suas ações. Em termos políticos, eles têm dois tipos de relações: aquelas entre eles e aquelas com as instituições políticas. Quer dizer, mesmo o problema sendo a estabilidade da sociedade, cujo foco são as divergências entre concepções de bem e formas culturais, não se pode ignorar a dimensão individual. (TRAMONTINA, 2011, p. 80-81, grifo nosso).

Nesse sentido, inclusive, declara ser “possível afirmar, por ignorar a dimensão individual, que a abordagem proposta por Rawls, referente ao problema da estabilidade, apresenta um déficit teórico” (Ibid., p. 81)[15]. Independentemente dessa controvérsia, adotando ou não a dicotomia, é possível associar o dever de civilidade a termos como imposição e, sobretudo, exigência (afinal, obrigação e dever natural são espécies do gênero exigências). Para fins do presente texto, então, ele será encarado como um dever com força obrigacional. No mesmo sentido, Boettcher (2015) fala em obrigações decorrentes do dever de civilidade, emprestando-lhe, assim, força obrigacional. Ainda quanto à natureza do dever de civilidade, a segunda questão preliminar se refere ao seu caráter. Rawls (1997b) o reconhece expressamente como um dever moral, negando-lhe um aspecto legal, mas não necessariamente um conteúdo político. Quando aplicado no âmbito político, é imperioso reconhecer que o dever de civilidade tem não apenas natureza moral, mas também política[16]. Com efeito,

o dever de civilidade remete a um determinado tipo de comportamento que as pessoas devem prezar em suas relações. Agir com civilidade pressupõe respeito pelos outros, empatia e sacrifício. Assim caracterizado, parece ter apenas uma conotação moral. Contudo, se esta exigência comportamental for pensada nas relações políticas, ela não perde sua natureza moral, mas assume força política. O argumento que justifica o dever de civilidade não é moral, porém político. No argumento rawlsiano em favor do dever de civilidade, percebe-se claramente a vinculação deste com o princípio da legitimidade liberal e o ideal de cidadania. A partir dessa associação, pode-se argumentar que, quando se é cidadão e membro de uma sociedade, há certas expectativas comportamentais que decorrem de tal status. Expectativas que não se têm, por exemplo, em relação, a um estrangeiro. (...) A civilidade, assim entendida, não tem apenas natureza moral. (TRAMONTINA, op. cit., p. 121, grifo nosso).

O exemplo dado se refere não à obrigatoriedade jurídica de observância à legislação, o que se impõe também, é claro, ao estrangeiro, mas à expectativa, inexistente, de que aja como um cidadão daquele país. Os índices de criminalidade ou a condição sanitária do país não lhe dizem respeito, são assuntos que preocupam apenas os cidadãos, cujo comportamento decorre dessa preocupação (Ibid.).

Empregando o vocabulário rawlsiano, a aplicação do dever de civilidade no fórum político público o caracteriza enquanto político, o que é explicado pela razão pública. A ideia de razão pública e seu ideal não se confundem: a primeira é aquela aplicada no fórum político público – o discurso dos candidatos a cargos eletivos, legisladores, governantes e magistrados –; o segundo é aquele satisfeito quando os agentes que discursam no fórum político público ou os cidadãos cumprem o dever de civilidade consigo mesmos e com outros cidadãos (RAWLS, 2007, p. 146-149).

Isso significa que ainda que Rawls não declare expressamente que o dever de civilidade é exercido no fórum político público, esta conclusão é inafastável, sobretudo considerando a sua afirmação de que esse dever, assim como o ideal de razão pública, é cumprido sempre que representantes do Poder Público “agem a partir de e seguem a idéia de razão pública e explicam aos outros cidadãos suas razões para defender posições políticas fundamentais nos termos da concepção política de justiça que consideram como sendo a mais razoável” (Ibid., p. 149). Esse princípio individual se conecta ao ideal de razão pública e, consequentemente, à sua ideia, razão pela qual seu exercício é no fórum político público.

Reforça esse entendimento o nexo estabelecido entre os valores políticos e o dever de civilidade. Os valores da razão pública, que são espécie do gênero valores políticos, estão inscritos

nas diretrizes de discussão pública das etapas necessárias para garantir que a discussão seja livre e pública, bem como informada e razoável. Nisso se incluem não só o uso apropriado dos conceitos fundamentais de julgamento, inferência e evidência, mas também as virtudes da razoabilidade e da boa-fé demonstradas na adesão aos critérios e procedimentos do conhecimento comum e aos métodos e conclusões da ciência quando não controversos. Esses valores refletem um ideal de cidadania: nosso desejo de decidir as questões políticas fundamentais de uma maneira que os outros, livres e iguais, possam reconhecer como razoável e racional. Esse ideal dá lugar a um dever de civilidade pública (...), que nos leva, em um de seus aspectos, a argumentar dentro dos limites estabelecidos pelo princípio de legitimidade quando se trata de elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica. (RAWLS, 2003, p. 129-130).

Mais do que isso, o dever de civilidade se une aos valores do político, fornecendo um ideal de cidadania a partir do que cada um acredita ser razoavelmente passível de aceitação pelos demais (Id., 2011). Não é demais lembrar, ainda, que este dever ocupa um “lugar central (...) como um ideal de democracia” (RAWLS, 2011, p. 300).

É nesse balanço entre o lado político do dever de civilidade (exercício no fórum político público e união aos valores do político) e seu lado moral (já que sua natureza é também moral, dirigindo-se não às instituições, mas aos indivíduos) que repousam os seus componentes de singularidade e pluralidade. Como mencionado, a democracia deliberativa tem em seu núcleo a ideia de justificação, no sentido que as decisões tomadas na seara política devem ser fundamentadas prévia e publicamente, sob pena de não serem consideradas democráticas.

Do ponto de vista do dever de civilidade, a singularidade da democracia deliberativa reside, pois, na necessidade de justificação (que deve ser pública e prévia): cada cidadão, individualmente (singularmente), tem o dever de se justificar ao exercitar a sua parcela de poder político, apresentando as razões que o levaram a adotar determinado posicionamento a respeito do elemento constitucional essencial ou da questão de justiça básica em jogo.

“A principal obrigação do dever de civilidade”, explica Boettcher (2015, p. 229), ratificando a sua força obrigacional, “envolve a prática de justificação pública. Cidadãos e funcionários públicos devem identificar e às vezes comunicar publicamente razões justificativas adequadas para seu exercício do poder político coercitivo”. Seria insuficiente, pois, falar em justificação ou em publicidade, porquanto a justificação deve ser pública.

O componente singular do dever de civilidade, desse modo, é a justificação pública. Na sua prática da razão pública, o cidadão (na sua prática cidadã ou enquanto funcionário público) tem o dever de apresentar ao público (afinal, a razão pública é também a razão do público) os motivos que o levaram a determinada conclusão relativa ao poder político, na parcela que lhe cabe – desde que se trate, como dito, de questão política fundamental (elemento constitucional essencial ou matéria de justiça básica). A singularidade repousa na atuação individual (singular) do cidadão.

Trata-se da civilidade justificatória: na deliberação (em sentido argumentativo) que ocorre no fórum político público, as decisões políticas devem ser justificadas por razões públicas, que seriam aquelas que todos os demais, em uma sociedade marcada pelo fato do pluralismo razoável, poderiam não apenas compreender como também aceitar.  Agir com civilidade, na ótica justificatória, significa recorrer a valores políticos amplamente reconhecidos pela sociedade para fundamentar as políticas que se defende, ao invés de recorrer às doutrinas abrangentes (uma vez que elas não são compartilhadas pelos membros da sociedade, tal qual ocorre com os valores políticos).

Esse componente singular constitui uma responsabilidade do indivíduo perante os demais, à luz da cidadania democrática. Cohen e Fung (2021) afirmam que, com fundamento no modo como se encaram (pessoas livres e iguais) e no fato do pluralismo razoável, cabe a cada cidadão reconhecer a obrigação de justificar suas condutas e entendimentos através da concepção razoável de bem comum que adotam.

Portanto, os participantes [da deliberação] não enxergam argumentos políticos como simplesmente servindo ao propósito de afirmar pertencimento ou identidade de um grupo, menos ainda como estratégia retórica para exercer poder em vantagem pessoal ou de um grupo. Seguindo Rawls, chamamos esta obrigação de justificar o dever de civilidade. A civilidade, assim entendida, não é uma questão de educação ou respeito por normas convencionais, nem é um dever legal. Ao invés disso, civilidade é uma questão de estar preparado para explicar aos outros por que as leis e polícias que apoiamos podem ser apoiadas por valores e princípios fundamentais e democráticos – leia-se, valores de liberdade, igualdade e bem estar geral – e de estar preparado para ouvir os demais e estar aberto para acomodar suas visões razoáveis. Civilidade, assim entendida (...) expressa um senso de responsabilidade em relação aos outros como participantes iguais da discussão pública. (COHEN; FUNG, 2021, p. 32).

Essa responsabilidade não tem conteúdo legal (logo, não há consequências legais de seu descumprimento), mas, reitere-se, não por isso ela deixa de ter força obrigatória no contexto do uso público da razão quando da deliberação em uma sociedade democrática bem-ordenada. Há, pois, uma ligação encadeada entre dever de civilidade, razão pública e deliberação democrática. É com o mesmo raciocínio que Werle (2008, p. 97-98) afirma que “a razão pública expressa um ideal de cidadania democrática que se ancora no (...) dever de civilidade”, que “Rawls defende uma concepção republicana na razão pública” e que é “nesse sentido que se deve entender a afirmação de Rawls de que sua concepção política e moral da justiça como equidade faz parte de uma concepção deliberativa de democracia”.

Por exemplo, um parlamentar que propõe determinado projeto de lei tem o dever de apresentar os fundamentos da sua proposta, para que a deliberação, no bojo do processo legislativo, se revele democrática. Inversamente, se um parlamentar se limitar à apresentação de seu projeto de lei, sem fundamentá-lo, o conteúdo democrático da deliberação restará inevitavelmente abalado. Ainda que o parlamento vote sobre a proposta e ainda que a rejeite, a ausência de fundamentação, que pode ser lícita (a depender do regramento acerca da matéria), esvazia a capacidade democrática da votação em si. É importante que tanto os demais parlamentares quanto os cidadãos tomem conhecimento dos fundamentos da proposta, dando mais legitimidade à deliberação relativa ao tema da lei.  O que importa, nessa ótica, não é o que o ordenamento exige, mas que tenha havido a justificação pública por parte do parlamentar que propôs a lei; do contrário, o dever de civilidade não estará cumprido e o processo legislativo será menos democrático.

A prática da cidadania democrática não prescinde da justificação pública, pois o dever de civilidade, conforme esclarecido, a exige do cidadão. O aspecto moral ganha realce novamente, porquanto não é pertinente, aqui, pensar na legalidade democrática. No exemplo dado, se ao parlamentar forem legalmente exigidos os fundamentos de seu projeto, o descumprimento da norma tem consequências previstas na lei, ao passo que, silente a legislação, a ausência de fundamentação é lícita, mas ofende o dever de civilidade. Nesse último caso, há um desrespeito à democracia, mas apenas do ponto de vista moral (e não legal).

 Por outro lado, o dever de civilidade não pode ser reduzido ao seu componente singular, isto é, não basta a justificação de cada um perante os demais; deve ser considerado o critério da reciprocidade, que leva ao seu componente plural. O motivo é extraído do seu caráter político.

Rawls questiona de que modo os cidadãos, que compartilham igualmente o poder político, para exercê-lo, poderiam apresentar ideias e princípios que razoavelmente justificariam suas decisões políticas uns perante os outros (isto é, qual seu raciocínio para deliberar?). A resposta que ele fornece repousa no critério de reciprocidade, ao declarar que “nosso exercício de poder político é adequado apenas quando sinceramente acreditamos que as razões que oferecemos para [fundamentar] nossas ações políticas podem razoavelmente ser aceitas por outros cidadãos como justificativas para tais ações” (RAWLS, 1997a, p. 134). O autor explica que o papel do critério de reciprocidade “é especificar a natureza da relação política, em um regime constitucional democrático, como uma de amizade cívica” (Ibid., p. 135), noção que converge com o dever de civilidade, na medida em que este também subjaz, conforme esclarecido, de uma relação política.

Pelo componente singular do dever de civilidade, cabe ao cidadão apresentar as razões que fundamentam seu comportamento e seus entendimentos políticos (a justificação pública); pelo componente plural, cabe-lhe empregar o critério de reciprocidade para que as razões que apresenta sejam aquelas que razoavelmente poderiam ser aceitas pelos demais.

Vale dizer, para cumprir o dever de civilidade, não basta a justificação pública, sendo necessário que o cidadão considere a aceitabilidade das razões em relação aos demais. Através do critério de reciprocidade, o singular se torna também plural: o cidadão que se justifica publicamente na deliberação (uso público da razão) não pode, para fins de cumprimento do dever de civilidade, simplesmente apresentar as razões que ele, individualmente, considera válidas (isso seria limitá-lo ao componente singular), devendo expor os motivos que acredita, sinceramente, que os outros cidadãos acolherão (eis o componente plural).

É preciso atentar ainda ao elo entre reciprocidade e razoabilidade. Os cidadãos razoáveis “sabem que, na vida política, a unanimidade em uma questão básica raramente pode, se é que pode, ser esperada”, o que implica que “uma constituição democrática deve incluir procedimentos de votação plural, majoritária ou de outro tipo, para chegar a decisões” (RAWLS, 1995, p. 148).

Mais uma vez, apresenta-se a noção de pluralidade na democracia rawlsiana, associada aqui à de razoabilidade[17]. A cidadania razoável conduz a procedimentos de votação em razão da baixa probabilidade de unanimidade. Como uma cadeia de relações, a razoabilidade se conecta à reciprocidade, porquanto as “pessoas razoáveis (...) insistem em que a reciprocidade prevaleça nesse mundo, de modo que cada pessoa se beneficie juntamente com as demais” (RAWLS, 2011, p. 59).

“Aqueles que rejeitam a democracia constitucional com seu critério de reciprocidade”, diz Rawls, “vão, é claro, rejeitar a própria ideia de reciprocidade”, porém “o liberalismo político não envolve quem pensa desse modo” (RAWLS, 1997b, p. 766-767). O componente coletivo do dever de civilidade revela-se inevitável porque a relação política (não apenas democrática) é coletiva por excelência, de modo que seu conteúdo repousa no critério de reciprocidade porque o caminho democrático aqui proposto tem esse critério como premissa – uma premissa aplicável às pessoas razoáveis, não as que o rejeitam. Logo, não há razoabilidade sem reciprocidade, nem cidadania democrática sem razoabilidade.

Do que foi dito até aqui, conclui-se que o dever de civilidade possui um componente singular, concernente à justificação (pública e prévia à decisão), e um plural, resultante da aplicação do critério de reciprocidade no uso público da razão. Em outro espectro do mesmo conceito filosófico (o dever de civilidade), denota-se que ele é, também, subjetivo e objetivo (mas nem por isso contraditório).

3.2 Subjetivo e objetivo

Afirmar que o dever de civilidade é subjetivo significa admitir, de alguma forma, um aspecto subjetivo na própria democracia. Não se trata, contudo, de uma subjetividade no âmbito exclusivamente privado, mas também na seara pública (política), afinal o objeto aqui estudado é a democracia.

A subjetividade democrática se relaciona com a cidadania democrática, porquanto o cidadão é, antes de tudo, um sujeito cuja individualidade deve ser preservada dentro das balizas do jogo democrático. O exercício da cidadania é anterior, concomitante e posterior ao processo constitucional democrático.

A relação de cidadania representa uma interação entre cidadãos livres e iguais que compartilham o exercício do poder político como um corpo coletivo (RAWLS, 1997a). É essa a lógica, aliás, da própria razão pública. Essa teia de conceitos (cidadania, democracia, razão pública, dever de civilidade etc.) ganha complexidade quando considerado o fato do pluralismo razoável, que, assim como a relação de cidadania, leva à intrincada questão de como os cidadãos podem ser obrigados a honrar a estrutura de sua democracia constitucional e respeitar a legislação que lhes foi imposta (Ibid.).

A resposta direta dada por Rawls está no critério de reciprocidade. Existe, porém, outro ângulo do dever de civilidade, de caráter subjetivo[18], que permite compreender o comportamento do cidadão face ao regime em que se encontra. Mais uma vez, não se desconsidera que a normatividade rawlsiana seja essencialmente institucional (e não pessoal). Entretanto, cabe ponderar que a estrutura básica com a qual o filósofo se preocupa não pode ser dissociada das condutas individuais, sendo possível estender seu raciocínio para tal seara porque há contribuições da sua teoria nesse aspecto. Do contrário, ele sequer trataria do dever de civilidade, que, mesmo presente no contexto de uma filosofia institucional, é dirigido aos cidadãos quando deliberam. Não se trata de pensar no cidadão enquanto indivíduo isolado, mas inserido nas instituições sociais.

Para ele (RAWLS, 1997a), os limites da razão pública não são legais, mas restrições honradas quando também honrado um ideal de cidadania democrática. Trata-se de um ideal[19] em que os cidadãos tentam conduzir sua vida política em termos respaldados por valores públicos que razoavelmente esperam que os demais possam apoiar. Com base nesse ideal, um cidadão (razoável) manifesta a sua vontade de ouvir o que os outros expressam e se dispõe até mesmo a modificar sua visão.

É nessa esteira que Boettcher (2015) encontra outra exigência do dever de civilidade, a que chama de “atitude deliberativa” acerca das políticas democráticas. Para ele, “na busca de arranjos políticos publicamente justificáveis [do contrário, não estaria no campo da razão pública], cidadãos e funcionários públicos devem permanecer sinceros, equitativos e dispostos a ouvir os outros”. Além disso, “devem estar dispostos a fazer julgamentos sólidos e modificar suas próprias visões em um esforço para acomodar as alheias” (BOETTCHER, 2015, p. 230).

A ideia de Boettcher se conduz ao encontro da rawlsiana na medida em que reconhece uma vertente volitiva no dever de civilidade (e, por consequência, na própria democracia). Se os cidadãos exercitam a razão pública dentro dos seus limites para honrar um ideal em que devem dar atenção à posição política alheia, quiçá a ela aderindo, cabe ao sujeito nortear sua conduta com base nesse ideal. Por via de consequência, apenas a vontade do sujeito pode levá-lo a uma conduta que cumpra o dever de civilidade.

A atitude deliberativa do cidadão democrático o leva a construir a democracia deliberativa concebida por ele e pelos seus concidadãos. Nesse sentido, a democracia deliberativa rawlsiana é composta de três elementos essenciais:

O primeiro consiste numa idéia de razão pública, ainda que nem todas as idéias sejam a mesma. O segundo diz respeito a um quadro de instituições democráticas constitucionais que especifica o cenário em que atuarão os corpos legislativos deliberativos. O terceiro consiste no conhecimento e no desejo por parte dos cidadãos de seguir a razão pública e realizar seu ideal em sua conduta política. (RAWLS, 2007, p. 153, grifo nosso).

Torna-se evidente, então, que, nas palavras do filósofo, não basta a construção institucional para uma democracia, sendo necessário que os cidadãos, em sua conduta política, conheçam e desejem seguir a razão pública e realizar seu ideal, ideia compatível com a de atitude deliberativa mencionada por Boettcher.

Não há cumprimento do dever de civilidade se o indivíduo não manifestar uma disposição de cooperar com os demais; é preciso não apenas a sua vontade dirigida em tal direção, mas também que essa vontade seja expressada de alguma forma. Ao se manifestar, o sujeito deve ser sincero com os demais e deve ter um senso de equidade, sob pena de sua conduta não se configurar como democrática. Da mesma forma, ele precisa se mostrar disposto a ouvir os argumentos alheios e possivelmente mudar de entendimento, pois é dessa forma que os cidadãos, juntos, conseguem construir a fundamentação política pública almejada pela razão pública. Afinal, como mencionado, a razão pública é também a razão do público.

A atitude deliberativa é um componente subjetivo do dever de civilidade: cabe ao sujeito agir desse modo. Entretanto, o fórum político público não admite quaisquer argumentos, é necessário não apenas um filtro temático (elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica), mas também um filtro argumentativo. Esse filtro independe do sujeito que atua politicamente (seja ele um cidadão, seja um funcionário público), seu conteúdo, portanto, é objetivo.

O assunto, contudo, é complexo o suficiente para Rawls estabelecer três posições distintas a seu respeito (e adotar duas delas, em diferentes textos). A primeira, denominada “visão exclusiva”, é aquela segundo a qual as razões expressamente oriundas de doutrinas abrangentes não podem ser introduzidas na razão pública. A segunda, a “visão inclusiva”, é a que Rawls (1997a) considera a correta em The Idea of Public Reason, ao contrapor a anterior. Por essa perspectiva, os cidadãos podem, em certos casos, apresentar valores políticos embasados em suas doutrinas abrangentes, desde que o façam de maneiras capazes de fortalecer o próprio ideal de razão pública. Rawls a adota porque a considera como a que melhor estimula os cidadãos a honrar o ideal de razão pública e a que assegura o contexto necessário para a busca da sociedade bem-ordenada.

Em The Idea of Public Reason Revisited, contudo, ele revisa a adoção da visão inclusiva e adota a “visão ampla” da cultura política pública. Segundo esse olhar, as “doutrinas abrangentes razoáveis, religiosas ou não, podem ser introduzidas nas discussões políticas públicas a qualquer momento, desde que” cumprida a condição (the proviso) segundo a qual, “no devido tempo, sejam apresentadas razões políticas próprias – e não razões dadas somente por doutrinas abrangentes – suficientes para apoiar o que é dito que a doutrina abrangente introduzida apoia” (RAWLS, 1997b, p. 783-784).

Basicamente, portanto, Rawls rejeita a visão exclusiva e, inicialmente, adota a inclusiva[20], admitindo o ingresso das doutrinas abrangentes na razão pública, desde que sua entrada represente um fortalecimento da razão pública em si mesma. Um dos exemplos que ele fornece é o argumento dos abolicionistas de que a escravidão seria contrária à lei divina. Trata-se, evidentemente, de uma doutrina abrangente de caráter religioso, porém o resultado da inserção de tal fundamento na razão pública a reforçou, na medida em que corroborou a concepção política posteriormente adotada.

A visão ampla foi acolhida posteriormente por Rawls, o que evidencia o quão espinhosa a matéria pode ser. Larmore (2003) entende que a mudança em seu posicionamento foi para pior, sobretudo por duas razões: a vagueza da condição e a incerteza das vantagens de uma visão mais permissiva.

De fato, a condição é bastante vaga em razão do uso de expressões indeterminadas, tais como “no devido tempo” e “suficientes”. Quanto às vantagens da visão ampla, Rawls (1997b) sustenta que a fidelidade do cidadão à democracia está nas doutrinas abrangentes adotadas por ele, o que torna relevante que elas sejam de conhecimento de todos. Em sua crítica, Larmore não nega a importância do mútuo conhecimento das doutrinas abrangentes dos cidadãos. Entretanto, nas suas palavras,

o mútuo conhecimento (...) na realidade não tem lugar nas deliberações pelas quais eles [os cidadãos] decidem o que deve ter força de lei. Mas ele tem lugar no diferente tipo de debate público que chamei ‘discussão aberta’. Na verdade, a concepção ampla de Rawls parece motivada pelo desejo de abrir espaço para a livre argumentação sobre questões políticas que pertencem à vida pública de uma democracia enérgica. Tais argumentos são propriamente parte do que ele chama de ‘cultura de fundo’. Permiti-los na cultura política pública como Rawls agora propõe (cumprida a condição) é ser enganado pelo que o termo sugere como oposto ao modo que ele mesmo o definiu. No fórum onde os cidadãos oficialmente decidem os princípios básicos de sua associação política e onde os cânones da razão pública portanto se aplicam, apelar para as doutrinas abrangentes não pode deixar de ser fora de lugar – ao menos em uma sociedade bem-ordenada. A anterior, a concepção ‘inclusiva’, que permite sair da razão pública apenas quando seus ingredientes mais elementares estão em ampla disputa, parece ser a melhor visão. (LARMORE, 2003, p. 387).

São procedentes os apontamentos de Larmore, pois a aceitação de doutrinas abrangentes na razão pública precisa ter algum tipo de restrição (ou restrições) para o desenvolvimento sadio da democracia. Isso porque, dado o fato do pluralismo razoável, o amadurecimento (e a sustentação) de uma democracia precisa encontrar denominadores comuns entre os seus cidadãos, valores políticos que deem a ela uma base estável, de modo que quanto maior a penetração das doutrinas abrangentes, maior a probabilidade de dissenso fundado em argumentos subjetivos na razão pública.

Nesse sentido, é necessário encontrar balizas para o emprego de doutrinas abrangentes na razão pública, tarefa que cabe, como não poderia deixar de ser, ao cidadão que almeja cumprir seu dever de civilidade. Boettcher (2015) defende, de igual modo, um exercício de restrição no uso de doutrinas abrangentes na deliberação. De acordo com ele, o fato do pluralismo razoável indica uma maior probabilidade de os cidadãos adotarem doutrinas morais, religiosas e filosóficas distintas e até mesmo incompatíveis, que constituem uma forma de razão não pública que, enquanto tal, não pode legitimamente se tornar a base compartilhada dos termos da cooperação política.

A exigência da restrição, mesmo partindo do sujeito, tem caráter objetivo porque seu escopo é reduzir (mas não eliminar) a subjetividade da razão pública. Não se pode desconsiderar que uma relação política é uma relação humana, o que significa que se constitui de sujeitos (cidadãos livres e iguais). Entretanto, é necessário estabelecer um filtro através do qual os argumentos dos sujeitos possam legitimamente formar o ordenamento ao qual se submetem. Desse modo, embora a restrição fique a cargo dos indivíduos, ela é em si mesma objetiva, porquanto aplicada a todos, indistintamente, e destinada a reduzir a (potencialmente extrema) relatividade da justificação pública.

Não se trata de obstar por completo a comunicação entre a razão pública e as doutrinas abrangentes. A visão exclusiva, descartada por Rawls, merece a rejeição porque tenta, em vão, blindar a política da sua matéria-prima, as pessoas (e, por consequência, suas ideias morais, religiosas e filosóficas). Haveria, por outro lado, um dever (desdobramento do dever de civilidade) de não empregar doutrinas abrangentes na razão pública quando essa opção concretizar um bem maior.

Rawls (1997a) exemplifica a exigência da restrição pelo direito de uma pessoa acusada de crime a um julgamento justo, que justifica regras de evidência, buscas e apreensões indevidas e prisões ilegais. Em verdade, o exemplo configura uma analogia[21] na qual um conflito faz com que um valor precise prevalecer, restringindo, desse modo, o outro. Assim, por exemplo, uma busca e apreensão ilegal poderia, em tese, encontrar provas aptas a respaldar a acusação, porém prevalece o devido processo legal, ou seja, a licitude da persecução criminal é um valor que prepondera sobre os da busca da verdade e até mesmo da responsabilização pelo crime cometido.

Diante de tais considerações, conclui-se que os limites da razão pública são imprescindíveis para sua solidez, cabendo ao cidadão, em seu exercício do dever de civilidade, reconhecê-los por entender que uma barreira parcial às doutrinas abrangentes (que não podem ser apresentadas sozinhas) fortalece a própria razão pública e, por via de consequência, a democracia. Se é verdade que as doutrinas abrangentes podem afastar os cidadãos, não é menos verdade, de um lado, que elas não podem ser completamente barradas da seara política, e, de outro, que a razão pública não pode ter nelas justificação exclusiva.

O dever de civilidade, portanto, possui um componente subjetivo, relativo à atitude deliberativa do cidadão, assim como um componente objetivo, que é a restrição no uso das doutrinas abrangentes na razão pública – elas podem ser introduzidas, porém elas não podem ser o amparo exclusivo do fundamento das questões políticas.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O modelo da democracia deliberativa concede ao regime democrático um requisito especial, relativo à justificação pública da deliberação concernente às questões políticas. Antes de decidir politicamente, é necessário apresentar os fundamentos para o encaminhamento da decisão em determinado sentido. A teoria de John Rawls é considerada marco fundamental na corrente deliberativista da democracia, sobretudo pelo que ele apresenta como razão pública.

O conceito de razão pública é multidimensional, designando a expressão a ideia de uma racionalidade prática, a ser adotada na seara política, através da qual os cidadãos encontram o caminho para estabelecer os termos da cooperação social. Parte-se da premissa de uma sociedade em que os cidadãos são livres e iguais, mas também atuantes no campo político, do que decorre a noção de dever de civilidade. Razão pública e dever de civilidade são noções que, na teoria rawlsiana, se somam para constituir a democracia deliberativa.

 Nos termos expostos, o dever de civilidade tem natureza moral, o que significa que não constitui uma obrigação legal (razão pela qual seu descumprimento não tem consequências legais). Tal condição, contudo, não exclui seu caráter político, tratando-se de um dever com força obrigacional dirigido aos cidadãos na construção de uma democracia deliberativa. Logo, seu descumprimento tem consequências morais e políticas (no sentido aqui defendido), tornando a deliberação menos democrática.

O dever de civilidade possui quatro componentes, que seriam, em tese, antagônicos, mas que devem ser somados para a sua completude. O primeiro deles é de natureza singular e se refere à justificação pública: o elemento mais essencial da democracia deliberativa se apresenta no dever de civilidade como uma exigência de cada cidadão (seja ele um cidadão comum ou um funcionário público), singularmente. A ideia de singularidade está no indivíduo, mas também no argumento por ele apresentado, pois é necessário dar contornos concretos à deliberação. Nessa linha de raciocínio, é inviável deliberar (democraticamente) sem que os envolvidos apresentem as suas razões de deliberar de certa forma (ao invés de outra forma). Depende de cada um justificar, prévia e publicamente, a decisão política tomada sobre a questão política fundamental ou de justiça básica em jogo, após uma discussão em que os argumentos sejam devidamente examinados. A deliberação democrática é aquela em que os cidadãos agem em conformidade ao dever de civilidade.

Há também um componente plural no dever de civilidade, que consiste no critério de reciprocidade. Incumbe aos cidadãos razoáveis não apenas justificar publicamente o seu posicionamento sobre o tema político a ser deliberado, mas apresentar razões que acredita, razoavelmente, que os demais também poderão acolher. É preciso que os fundamentos que apresenta não sejam pensados pelo cidadão isoladamente, mas que sejam idealizados como argumentos que poderão ser acolhidos pela coletividade – daí a natureza coletiva do segundo componente do dever de civilidade.

Em seu outro espectro, o dever de civilidade tem um componente subjetivo e um objetivo. O primeiro é a atitude deliberativa sobre a matéria objeto da deliberação: cabe ao cidadão, para cumprir esse dever, manifestar-se como disposto a ouvir os demais, respeitar seus argumentos e talvez acolhê-los se entendê-los como os melhores a respeito de determinado assunto. O conteúdo subjetivo desse componente se refere à vontade do indivíduo, sem a qual não há uma atitude deliberativa, mas também à atitude em si, isto é, meios pelos quais exprime a sua vontade de encontrar termos equitativos de cooperação social.

Os cidadãos que desejam cumprir o dever de civilidade e, assim, construir a democracia deliberativa almejada pela sociedade democrática em que se encontram, precisam agir tendo em mente a limitação do ingresso das doutrinas abrangentes na razão pública. Adotando a visão inclusiva, entende-se que é possível introduzir doutrinas abrangentes razoáveis na deliberação, principalmente porque sua adoção faz parte da natureza humana. Entretanto, essa introdução é tolerada se não for isolada, o que significa que doutrinas abrangentes razoáveis podem ser incluídas na razão pública apenas se agregadas a outros fundamentos (não decorrentes delas), apresentados na justificação pública.

Os quatro componentes do dever de civilidade podem parecer antagônicos, porém apenas a sua somatória é capaz de torná-lo completo na construção e na consolidação de uma democracia deliberativa. Tratando-se de um dever moral, seu descumprimento não gera consequências legais, mas afeta a democracia como um todo. De outro vértice, o cidadão que cumpre o dever de civilidade colabora com os demais na constituição de uma sociedade que pretende ser democrática. É esse, pois, o caminho em direção a uma democracia deliberativa.

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Contribuição de autoria

1 – Diogo Rodrigues Manassés

Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (2023)

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (2012)

https://orcid.org/0000-0002-6781-9921 • diogorm@yahoo.com.br

Contribuição: Escrita – Primeira Redação

Como citar este artigo

MANASSÉS, D. R. Democracia deliberativa e o dever de civilidade em John Rawls: do singular ao plural e do subjetivo ao objetivo. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 13, n. 1, e10, 2022. DOI 10.5902/2179378667793. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378667793. Acesso em: dia mês abreviado. ano.



[1] Esta citação direta, assim como todas as que seguem, de obras estrangeiras, são de tradução nossa. Quando a referência for de obra estrangeira com tradução brasileira, o tradutor ficará expressamente indicado na seção das referências bibliográficas.

[2] Terminologicamente, é mais preciso falar em corrente deliberativista do que corrente deliberativa, por razões eminentemente gramaticais. Nesse sentido, a derivação sufixal com “ismo” (do qual sai “ista”) é de uso comum em doutrinas políticas (liberalismo, socialismo etc.) e filosóficas (platonismo, kantismo etc.). Conforme elucida BECHARA (2009, não p.), o sufixo “ivo” é empregado para formar adjetivos, ao passo que “ismo” (e “ista”, por via de consequência) é utilizado na formação de substantivos que designam maneira de pensar ou doutrina seguida por alguém.

[3] Na introdução de PL, o próprio Rawls compara esta obra com TJ. Nas suas palavras, “pode parecer que o objetivo e o conteúdo destas conferências [expressas em “O liberalismo político”] representam uma grande mudança em relação aos de [“Uma] Teoria [da Justiça”]. Certamente, como já enfatizei, existem diferenças importantes. Mas para entender a natureza e a extensão das diferenças é preciso vê-las como um esforço para resolver um grande problema interno à justiça como equidade, a saber, aquele que surge do fato de que a interpretação da estabilidade na parte III de Teoria não é coerente com a visão como um todo. Penso que a superação dessa inconsistência responde por todas as diferenças. De resto, estas conferências consideram que a estrutura e o conteúdo de Teoria permanecem substancialmente os mesmos” (RAWLS, 2011, p. XVI). Para o autor, portanto, a essência do que formulou em TJ foi mantida em LP, com o aprimoramento em alguns aspectos, notadamente relativos à estabilidade, para eliminar o que considerou inconsistências.

[4] Ferrara (1999, p. 13) declara que a justiça como equidade é um “trabalho em constante progresso”.

[5] Pensamento similar é o adotado por Dryzek et al. (2018, p. 2), que defendem que a “democracia deliberativa é baseada em um ideal no qual as pessoas se reúnem, com base em igual status e respeito mútuo, para discutir as questões políticas que enfrentam e, com base nessas discussões, decidir sobre as políticas que, então, vão afetar suas vidas”. Por outro lado, embora esse conceito de democracia deliberativa inclua discussão e decisão, os autores definem a própria deliberação de maneira minimalista, como a “mútua comunicação que envolve sopesar e refletir sobre preferências, valores e interesses acerca de matérias de preocupação comum”.

[6] O conceito elaborado por Gutmann e Thompson (2004) é resultado da somatória do que consideram ser as quatro características da democracia deliberativa. A primeira e mais importante é o mencionado requisito da fundamentação: questões políticas que demandem uma decisão precisam ser previamente fundamentadas. O motivo pelo qual determinada decisão é tomada se revela tão importante quanto a decisão em si. A segunda característica é a acessibilidade a todos os cidadãos, pois as razões expostas na fundamentação precisam ser públicas. Logo, devem não apenas ser expressas em público, como inteligíveis ao público. A terceira característica é a obrigatoriedade por certo período de tempo: o debate tem um objetivo, que é chegar a uma decisão em algum momento, que deverá ser impositiva aos cidadãos por determinado lapso temporal. A ideia de provisoriedade é o que leva à quarta característica: as decisões devem estar abertas a revisão e possível modificação no futuro, o que torna a democracia deliberativa dinâmica. Seguindo o raciocínio dos autores, portanto, a união entre fundamentação, acessibilidade, obrigatoriedade e dinamicidade (as quatro características) subdivide a democracia deliberativa em dois momentos, um anterior à decisão (aqui chamado argumentação) e outro posterior a ela. Ambos são, pois, igualmente importantes.

[7] O Poder Judiciário compõe de maneira solitária uma das partes porque é na suprema corte que ocorre a prática exemplar da razão pública. Os Poderes Executivo e Legislativo são colocados no mesmo patamar através da expressão “government officials” (oficiais do governo), que seria mais genérica para designar as funções administrativas e legislativas do poder público (RAWLS, 1997b).

[8] Não obstante, os autores preferem rotular esta dimensão enquanto pública ao invés de política, por uma razão bastante delimitada. “Enquanto esta segunda dimensão de civilidade é frequentemente referida como ‘civilidade política’, preferimos o termo ‘civilidade como espírito público’. O rótulo ‘civilidade política’ pode inadvertidamente sugerir que este tipo de civilidade é apenas relevante a aspectos limitados do reino político como instituições, partidos políticos ou campanhas eleitorais. Civilidade como espírito público tem um significado mais amplo, e envolve reconhecer os outros como membros livres e iguais da sociedade” (BONOTTI; ZECH, op. cit., p. 47-48).

[9] Nesse caso, Rawls (1997b) entende que devem atuar como se fossem legisladores e buscar as decisões que se revelem mais razoáveis a serem adotadas.

[10] A expressão será adotada para simplificar a designação das pessoas que têm vínculo específico com o Estado (e não em sentido técnico). Em sentido amplo, portanto, considerar-se-ão funcionários públicos: magistrados, administradores públicos, parlamentares, servidores públicos e quaisquer outros que tenham relação de trabalho (com vínculo empregatício ou mesmo eventual, mediante concurso público ou de qualquer outra forma, inclusive eleitoral) no âmbito público.

[11] Nesse sentido, ver Zelić (2012). Mesmo que pense no macro, a teoria rawlsiana tem considerações no micro, como é o caso do próprio conceito de pessoa, base do liberalismo político.

[12] Há três características específicas das obrigações: são resultantes de atos prévios de vontade, seja pela aceitação de benesses, seja pela assunção de compromissos; seu conteúdo é extraído de instituições ou do costume, às quais cabe delimitar as exigências; e são geralmente exigidas das pessoas que cooperam para manter um arranjo institucional. O exemplo dado por Rawls é o do indivíduo que concorre a um cargo público, ato que gera a obrigação de cumprir os deveres inerentes ao cargo, deveres que, por sua vez, completam o conteúdo da obrigação. Em princípio, as obrigações não se confundem com os deveres naturais na medida em que eles são exigidos independentemente de atos voluntários, não são conexos a instituições ou práticas sociais e são exigidos a todos (independentemente da relação tida com as instituições). São deveres naturais, dentre outros, os de justiça e de respeito mútuo (RAWLS, 2016).

[13] Há referências a ele como “dever moral”, o que, todavia, contrapõe-se à ideia de “dever legal”, não sendo sinônimo de “dever natural”. Isso ainda será explorado neste artigo.

[14] Quando indaga quem deve aderir ao dever de civilidade, Quong (2014, p. 269) responde que, “em um sentido, (...) todos os cidadãos devem respeitar o dever de civilidade quando deliberam ou votam em elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica”, ressalvando, porém, que “os requisitos da razão pública impõem deveres mais rígidos aos juízes, bem como a outros funcionários eleitos ou àqueles que concorrem a cargos públicos”. Os cidadãos comuns também devem aderir a ele, mas de maneira distinta. O dever de civilidade “apenas se aplica a indivíduos em sua capacidade enquanto cidadãos, é dizer, quando ingressam no fórum político público, e somente quando apoiam, ou votam em elementos constitucionais essenciais ou questões de justiça básica. Os cidadãos não estão em geral restritos pelo dever de civilidade na sua vida cotidiana, por exemplo, quando eles discutem questões com sua família, ou como membros de grupos religiosos ou universitários, ou em seus papéis como membros de quaisquer associações do que Rawls chama cultura de fundo da sociedade”.

[15] O próprio filósofo admite que os princípios individuais constituem “parte essencial de qualquer teoria da justiça” (2016, cit., p. 130).

[16] Da mesma forma, os valores de uma concepção política de justiça são morais tanto quanto políticos, no que divergem dos valores das doutrinas abrangentes, que são apenas morais (RAWLS, 1997a).

[17] O adjetivo “razoável”, para Rawls, não é o que Larmore (2020) entende como a habilidade geral de arrazoar (to reason) de boa-fé, consistindo em uma disposição moral (daí a ideia de adjetivação) que é, em si mesma, a resposta adequada aos desacordos éticos dos cidadãos relativos à sociedade do ponto de vista da sua organização política. Isso significa que o cidadão razoável busca na democracia adotar doutrinas abrangentes também razoáveis.

[18] O critério de reciprocidade é subjetivo, mas nem por isso singular. Acentua-se, como exposto anteriormente, sua qualidade plural, daí porque configura o componente plural do dever de civilidade.

[19] Mais uma vez é realçado o alto teor normativo da democracia deliberativa rawlsiana.

[20] Na verdade, em uma nota de rodapé, Rawls admite uma inclinação inicial para a adoção da visão exclusiva, o que se alterou após debates com Amy Gutmann e Lawrence Solum (que lhe forneceu o exemplo dos abolicionistas). O filósofo reconhece, ainda, não ter suprido as complexidades do tema (RAWLS, 1997a).

[21] O filósofo reconhece a possível objeção de que seus exemplos seriam distantes dos limites envolvidos na razão pública. Entretanto, a ideia seria similar (daí porque se enquadrariam na categoria de analogia), pois os casos seriam de reconhecimento de um dever de não decidir à luz da verdade para honrar um direito ou um dever, ou mesmo para preservar um bem maior (RAWLS, 1997a).