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Universidade Federal de Santa Maria

Voluntas, Santa Maria, v.12, e24, Ed. Especial: Schopenhauer e o pensamento universal, 2021

DOI: 10.5902/2179378667567

ISSN 2179-3786

Submissão: 08/09/2021 Aprovação: 27/09/2021 Publicação: 28/12/2021

1 PERMANÊNCIA E TRANSITORIEDADE. 3

1.1 UM PÊNDULO ENTRE VIDA E MORTE. 6

1.1.1 A VIDA É PREPARAÇÃO E PRELÚDIO PARA A MORTE. 8

1.1.1.1 RECORRÊNCIA COM VARIAÇÃO.. 10

2 RECORRÊNCIA, SONHO E HISTÓRIA.. 12

2.1 TEATRO E REPETIÇÃO: RECORRÊNCIA COM VARIAÇÕES. 15

3 CONCLUSÃO: DIE WILLE ALS WELT UND LABYRINTH.. 21

REFERÊNCIAS. 27

 

Schopenhauer e o pensamento universal

O Transcorrer do Tempo em Schopenhauer: Recorrência, Lembrança, Memória e História

The passage of the time in Schopenhauer: Recurrence, Remembrance, Memory and History

Eduardo Ribeiro da FonsecaIÍcone

Descrição gerada automaticamente

IPontifícia Universidade Católica do Paraná, Departamento de Filosofia (PPGF), Curitiba, PR, Brasil

RESUMO

Este artigo é uma reflexão acerca dos sentidos da transitoriedade em Schopenhauer, na medida em que conhecemos as conclusões da metafísica imanente sobre o Nunc Stans ao fundo do transcorrer do tempo, a roda da Vontade Cósmica girando fora do tempo, do espaço e da causalidade. O diálogo que aparece ao fundo do texto será estabelecido a partir do contraste das concepções de eterno retorno em Schopenhauer e Nietzsche, mas abrange noções da Psicanálise de Freud e os comentários literários de Jorge Luiz Borges.  Em sentido específico, o eterno retorno em Schopenhauer se caracteriza pela recorrência do sofrimento e das formas efetivas, consideradas por Schopenhauer a partir do dogma de Plotino, o das ideias platônicas. Tais ideias, como atos originários da vontade, continuamente reinstauram o mundo, ainda que as formas específicas expressem as ideias já no âmbito da representação submetida ao princípio de razão, ou, em outras palavras, no âmbito da causalidade. A pergunta sobre os lugares correspondentes à lembrança, à memória e à História nos instiga justamente pelo caráter imanente da filosofia de Schopenhauer, para quem a pergunta sobre o mundo deveria ser respondida a partir do próprio mundo.

Palavras-chave: Transitoriedade; Recorrência; Variação

 

ABSTRACT

This article is a reflection on the meanings of transitoriness in Schopenhauer, as we know the conclusions of the immanent metaphysics about the Nunc Stans in the background of the passing of time, the wheel of Cosmic Will spinning outside of time, space and causality. The dialogue that appears at the bottom of the text will be established based on the contrast between the conceptions of eternal return in Schopenhauer and Nietzsche, but encompasses notions of Freud's Psychoanalysis and the literary comments of Jorge Luiz Borges. In a specific sense, the eternal return in Schopenhauer is characterized by the recurrence of suffering and effective forms, considered by Schopenhauer based on Plotinus' dogma, that of Platonic ideas. Such ideas, as original acts of will, continually reinstate the world, even though the specific forms express the ideas already in the scope of representation submitted to the principle of reason, or, in other words, in the scope of causality. Such ideas, as original acts of the will, continually reinstate the world, even though the specific forms express the ideas already in the scope of representation submitted to the principle of reason, or, in other words, in the scope of causality. The question about the places corresponding to remembrance, memory and history instigates us precisely because of the immanent character of Schopenhauer's philosophy, for whom the question about the world should be answered starting from the world itself.

Keywords: Transitoriness; Recurrence; Variation

1 permanência e transitoriedade

«El hoy fugaz es tenue y es eterno;

otro Cielo no esperes, ni otro Infierno.»

(Jorge Luiz Borges, 1980, p. 44)

Meu propósito com este artigo é refletir acerca dos sentidos da noção de transitoriedade em Schopenhauer, em contraste com aquilo que permanece. Minha intenção é estender também a minha análise ao contexto de um diálogo com outros autores, especialmente Freud, mas também Borges e Nietzsche, na medida em que conhecemos as reflexões da metafísica imanente de Schopenhauer sobre o eterno presente, o Nunc Stans, ao fundo do transcorrer do tempo, a roda da Vontade Cósmica girando fora do tempo, do espaço e da causalidade. Para o filósofo, no capítulo 50 de “O Mundo como Vontade e Representação: Complementos”[1], não há maior contraste do que o que existente “entre a incessante fuga do tempo” (que carrega em si mesmo todo o seu conteúdo e que continuamente se perde e se renova) e a “imobilidade rígida do que é efetivamente existente, que existe e em todos os tempos é apenas um e sempre o mesmo”. (WII, 2, §50, p. 174.) O filósofo de Frankfurt escreve, a partir dessa perspectiva, que se fixamos nosso olhar de modo realmente objetivo sobre os acontecimentos imediatos de vida, o “Nunc stans” se torna claro e visível para nós no centro da roda do tempo. (WII, 2, §50, p. 175.) Schopenhauer emprega uma imagem que reaparece de modo semelhante em outros pontos de sua obra:

Para o olho de um ser que vivesse uma vida incomparavelmente mais extensa e que abarcasse em um único olhar a humanidade em toda a sua duração, a alternância constante entre o nascimento e a morte iria se apresentar [darstellen] apenas como uma vibração contínua. Por isso, não lhe ocorreria ver nisto um devir constante vindo do nada e voltando ao nada, mas, assim como o nosso olhar para a faísca rapidamente movida aparece como um círculo contínuo, a mola vibrando rapidamente como um triângulo permanente, a corda vibrando como uma haste, de modo que, à sua vista as espécies apareceriam como o que é e o que continua a ser, e o nascimento e a morte como vibrações.  (WII, 2, §50, p. 174.)

Para Schopenhauer, “o círculo é o autêntico símbolo da natureza, porque ele é o esquema da recorrência”, Wiederkehr. (WII, 2, § 41, p.169.) Por uma rápida inflexão de sentidos se pode ou bem considerar a permanência ao fundo do inconstante mundo fenomênico, ou simplesmente o encontro entre o instante e a eternidade, como na imagem do arco-íris sobre a cachoeira rumorejante (que representa a vontade na figura de um ímpeto, Drang, selvagem e impetuoso que pode ser comparado à força d’água) ou a do caleidoscópio que a cada giro nos mostra uma nova configuração enquanto é de fato sempre a mesma coisa diante de nossos olhos. (WII, 2, § 41, p. 171-2.) Na metafísica do amor sexual, também vai se referir diretamente a isto, dizendo que:

A morte e a geração parecem ser a pulsação da forma [Gestalt] (idea, eidos, species) que persiste ao longo de todo o tempo. Podemos compará-los com as forças de atração e repulsão, sob cujo antagonismo a matéria [Materie] continua a existir. — O que está aqui demonstrado no animal se aplica também ao homem, pois embora com ele o ato de procriação seja acompanhado por completo do conhecimento de sua causa final, não é, no entanto, guiado por este conhecimento, mas procede imediatamente da Vontade de viver como a sua concentração. (WII, 2, §44, p. 214)

No mesmo sentido, o filósofo admite que o homem e o animal de fato perecem através da morte, mas apenas aparentemente. A morte está para o ser da espécie como a noite de sono está para o ser do indivíduo. Ao fundo da identidade pessoal que perece, o verdadeiro ser interior imperturbavelmente persiste. Dito de outro modo, aquilo que aparece no tempo é uma forma que expressa o atemporal. É nesse sentido que, olhando o conjunto dos nascimentos e das mortes humanas, a alternância entre nascimento e morte aparece como as vibrações infinitamente rápidas mencionadas acima, imagem conjunta da objetivação persistente e duradoura da Vontade, através das Ideias permanentes dos seres, as espécies, que aparecem (em contraste com a transitória individualidade) como um análogo da imortalidade no âmbito temporal. (WII, 2, §50, p. 172.)

O que tem de vertiginoso nisso é termos consciência de nossa condição como seres para a morte, tal como condenados que pagam o preço pela existência com as suas próprias vidas. Isso ocorre, naturalmente, porque estamos enredados em nossa ilusória, porém inelutável e vivíssima condição como seres individuais ligados pelo nascimento e pela morte.

Dito de outro modo, o grande mistério de nosso ser e de nosso não ser reside no fato de que a mesma coisa que objetivamente constitui um intervalo de tempo infinito é subjetivamente um ponto, algo indivisível, um sempre atual momento presente. Isso é uma coisa extraordinária que Schopenhauer diz e disso resulta que o que é realmente essencial nas coisas, no homem e no mundo, encontra-se de forma permanente e duradoura em um eterno presente, no “Nunc stans”, de maneira firme e inabalável, e que a mudança dos fenômenos e dos eventos é uma mera consequência da nossa apreensão disto por meio de nossa forma de percepção através do tempo. (WII, 2, §50, p. 185) Nesse sentido, nosso entendimento é o escultor da realidade, sujeito a todos os terrores e tremores de um Pigmalião apaixonado pela existência, dada a força gravitacional do querer viver, que nos atrai para si, ainda que esta mesma existência nos faça loucos, depressivos ou simplesmente problemáticos.

1.1 Um pêndulo entre vida e morte

Caso ressaltemos essa relação através do tempo e a pensemos do ponto de vista inessencial ligado à individuação, portanto, de acordo com a nossa relação subjetiva e atada às noções de vida e de morte, vemos que também nela encontramos duas coisas que não se modificam. Uma delas é a nossa própria condição metafísica percebida na autoconsciência. O que é sempre encontrado em toda consciência animal, mesmo nas mais imperfeitas e mais fracas, isto é, o que é sempre o seu fulcro, o seu fundamento, a sua essência, é a consciência imediata de um desejo e da alternância de sua satisfação e não satisfação em graus tão variados como muito diferentes dependendo das condições enfrentadas na vida, ligadas aos fenômenos do corpo atuante no tempo e no espaço. A impossibilidade da satisfação está presente e esta é também uma condição permanente ligada ao querer-viver. Trata-se, com todas as letras, do sofrimento inerente ao simples existir e, de modo mais específico, no contexto humano, do sofrimento existencial, dado que cada pessoa é capaz de antecipar o seu próprio fim, o que vai acarretar em angústia, uma angústia que nem sempre é percebida pelo que ela de fato representa: que a existência é, de um ponto de vista atado à representação, um beco sem saída, e, do ponto de vista da vontade metafísica, um ponto de retorno à sua originária inconsciência. Pelo viés da representação, Schopenhauer menciona que a maior de todas as dores e o maior de todos os temores é a morte, cunhando a frase que mais tarde será citada por Freud, expondo assim o caminho de sua leitura na preparação de Além do princípio de prazer: “A morte deve ser considerada, certamente, como o verdadeiro propósito da vida”. (W II, § 49, p. 378.)

Schopenhauer nos chama a atenção para o fato de que as dores do parto e a amargura pela morte são as duas condições constantes sob as quais a vontade de viver se mantém em sua objetivação. Sexualidade e morte como as portas de entrada e saída da vida. Mas não existem apenas como simples limites, mas se caracterizam pelo modo como anunciam e encerram as dores e sofrimentos atados ao cordão da existência, que como o cordão umbilical dos fetos, nos mantém ligados ao fenômeno.

Freud, por outro lado, na mesma direção, considerou que ao fundo da neurose está um pêndulo que oscila entre vida e morte; a primeira ressoa no diapasão da sexualidade, alcançando notas altíssimas, em tom maior; a segunda, quando vibra, alcança em tom menor a nota do baixo profundo do desamparo frente à perda das pessoas queridas, e já que o eu é o grande reservatório da libido, e que, portanto, o narcisismo é o complemento libidinal do egoísmo, nós sofremos muito também, nessas profundidades, com a antecipação da perda de nossa própria vida, com a necessidade de nos conformarmos, contrariando a vontade de viver, com o envelhecimento e com a morte. Mas sofremos também com a expressão de nossa sexualidade, que não pode vir a luz tal como é, mas apenas como é possível nos encontros e frente à moralidade repressiva. E aqui surge cristalina diante de nós, iluminada pelo sol que banha a barca de Caronte, as questões da afirmação e da negação da existência, que permanecem em aberto para Freud (no texto Transitoriedade), que Schopenhauer responde com a negação filosófica do valor da existência, e que Nietzsche respondeu de modo claramente afirmativo, ainda que reconhecesse todas as dores e sofrimentos ligados ao existir e suas consequências.

1.1.1 A vida é preparação e prelúdio para a morte

Em certo sentido, para Schopenhauer, a vida pode ser definida como a “preparação” e o “prelúdio” dessa morte que nos expõe o sentido ético da existência. (W II, 2, § 49, p. 378.) Para o moribundo, o curso completo da vida equivale à presença do motivo na conduta humana comum, pelo que, em uma visão psicanalítica, a libido vai se conectar à percepção do conjunto da existência como objeto de interesse final, o que proporcionaria, para Schopenhauer, a visão do resultado essencial e moral da evanescente vida do indivíduo. Desse modo, toda a libido é direcionada à representação de nossa própria história e a toma como objeto de satisfação sublimada e um tanto paradoxal, pois o saldo final da existência é o reconhecimento de que a vontade humana na totalidade de seu trajeto empírico é uma narrativa de grandes e pequenos esforços e sofrimentos, que resultam precisa e invariavelmente no ocaso da vida individual que se perde no labirinto dos caminhos seculares e, simultaneamente, sustenta em sua efêmera possibilidade a própria eternidade.

Schopenhauer, o apaixonado e lúcido Schopenhauer, como escreve Borges,[2]  sugere que a visão da morte faz do homem um ser único na natureza. Essa (die) Einsicht e a concepção consequente acerca do conjunto da vida a que se chega a partir da constatação inicial, e, além disso, essa peculiar constatação quando aliada à experiência do envelhecimento natural produz um efeito que refina, vergeistigt, e sublima, sublimiert, o querer, o que equivale à conversão da vontade. (W II, § 49, p. 380.) Desse modo, Schopenhauer surpreende a experiência da sublimação nos momentos finais da vida, tornada essencial para a conversão e liberação da vontade humana de todas as suas máscaras, das quais a derradeira é a própria consciência que precisará ser também abandonada. (W II, § 49, p. 382.) Ressalte-se o aspecto espontâneo dessa sutilização ética na consideração da morte individual, pois ela expõe o vazio dos alvos que o querer-viver visa atingir e também a inútil recorrência do sofrimento sob o aguilhão do desejo que ao final resulta na falta incontornável. Segundo Schopenhauer, o que expõe o caráter equívoco da vida é a presença simultânea de duas tendências diametralmente opostas, uma a da vontade individual dirigida aos seus alvos e destinos particulares, naturalmente enganosos, e a outra, a do destino, uma tendência dirigida contra a nossa felicidade e voltada para o aniquilamento da vontade individual e da ilusão que nos mantêm encadeados à corrente tormentosa do mundo efetivo. (W II, § 49, p. 381.)

É interessante vermos anunciados nessas duas tendências os impulsos de vida e de morte freudianos. Do confronto máximo entre as tendências surge a necessidade mais premente e inevitável de sublimação, pois mesmo os homens práticos, sem arte, sublimam, ainda que a contragosto, de acordo com suas capacidades individuais, por força da dor, do envelhecimento e da morte. Isso indica que há sempre uma centelha de gênio em cada um, que permite a identificação à humanidade e um sentimento de pertença, ainda que apenas através da dor compartilhada.

1.1.1.1 Recorrência com variação

Devo agora ressaltar um aspecto importante do pensamento de Schopenhauer acerca de sua concepção de recorrência, que apresenta a circularidade da existência através de círculos análogos, porém não idênticos. O eterno retorno em Schopenhauer é caracterizado, nesse sentido, pela recorrência das mesmas características humanas e, especialmente, das mesmas formas, consideradas por Schopenhauer a partir do dogma de Plotino, o das ideias platônicas, mas há toda uma amplitude de possibilidades de exposição dessas formas idealmente fixadas. Tais ideias, como atos originários da vontade, continuamente reinstauram o mundo, ainda que as formas específicas sejam especificamente aquelas que expressam as ideias já no âmbito da representação submetida ao princípio de razão, ou, em outras palavras, no âmbito da causalidade e da mudança, admitindo nessa expressão toda sorte de variações.

A pergunta sobre os lugares correspondentes à lembrança, à memória e à História é respondida por Schopenhauer a partir da inessencialidade delas e, consequentemente, da sua derivação e subordinação à vontade. A história, malgrado a mudança dos personagens, é tal como o teatro farsesco com seus personagens característicos que sempre se repetem, apesar da mudança dos atores que os representam. A lembrança é tingida pelas cores das emoções às quais estão associadas e a memória é lacunar e criativa. Elas são, por assim dizer, epifenômenos em contraste com a vontade, que é efetivamente o núcleo de todos os fenômenos que aparecem, pelo que a sua força gravitacional deforma as representações tal como um corpo de densa gravidade deforma o espaço e o tempo. Isso nos instiga a pensar acerca da inessencialidade do tempo e do espaço, tomados como formas de nosso entendimento e nos faz pensar também em outros dois autores, Friedrich Nietzsche e Jorge Luiz Borges. Borges escreve sobre o tempo e estabelece uma comparação entre as visões de Schopenhauer e Nietzsche acerca do eterno retorno, a partir da qual sugere que a de Schopenhauer lhe parece mais consequente. E sugere o de Nietzsche como algo que beira ao patético, o algébrico, pelo que um número x de objetos é incapaz de um número infinito de variações. Em uma duração eterna tudo o que já existiu existirá de novo, será elaborado e destruído, reelaborado e novamente destruído, inúmeras vezes, ainda que o que ocorra não seja nunca a mesma coisa, pois não é postulado um sistema cronológico, mas ainda assim seria algo próximo de um homem que dá a volta ao mundo e chega ao mesmo lugar. Borges não chega a se dedicar à análise do aspecto provocativo da hipótese nietzschiana do eterno retorno, a saber, a pergunta pela afirmação da existência. Mas, o adjetivo que usa para descrever a hipótese (que considera pavorosa!) nos dá uma ideia de que responderia à pergunta negativamente, se ficarmos atentos ao que ele escreve em outros lugares sobre a sexualidade e os espelhos serem odiosos porque reproduzem a Humanidade.

A hipótese de Schopenhauer parece a Borges menos assombrosa e melodramática, pois o filósofo da vontade a concebe como recorrência do mesmo, não de modo idêntico, mas com variações. E vê nisso semelhança com o Eclesiastes, na medida em que é negado que exista qualquer novidade na experiência, ainda que o que aparece ressurja sempre como novidade.

O que ambos os filósofos têm em comum, para Borges, guardadas as devidas diferenças? Uma mesma posição de recusa ao tempo, bem como também ao progresso e à história.

Borges, que se apresentou certa vez como um argentino extraviado na metafísica, convida-nos a ver nas filosofias desses autores, especialmente nas suas diferentes noções de eterno retorno, um prolongamento da literatura fantástica, apreciando-as não pelo que elas teriam de verdadeiro, mas sim por aquilo que sugerem à nossa imaginação. É nesse sentido que o tema do eterno retorno lhe suscita profundo interesse. Do mesmo modo, o seu interesse na ideia platônica de acordo com as hipóteses de Schopenhauer lhe serve para pensar uma poética da existência, na qual a imagem do labirinto de caminhos que se bifurcam nos conduz à eternidade das formas que transitam no mundo, portanto, além de sua individualidade, mas recorrentes, o que lhe parece verdadeiro até mesmo na relação do leitor com a obra literária, pelo que cada leitor de Shakespeare é Shakespeare. Nesse labirinto que é também a própria linguagem em sua circularidade arruinada, o existir expressa a própria eternidade, pelo que a figura do sofrimento é afirmada, tal como vemos em Schopenhauer e Nietzsche, ainda que com resultados diferentes, um que o recusa, o de Schopenhauer, e outro que o coloca do ponto de vista da vida, o de Nietzsche.

2 Recorrência, Sonho e história

“Skias onar anthropos”

(O homem é o sonho de uma sombra.)

(Pythica, 8, 135. Píndaro)

Para Schopenhauer, o que a história relata é “de fato apenas o que corresponde ao longo, pesado e confuso sonho da humanidade”. (W II, 2, §38, p. 122.) Nesse sentido, a pluralidade é o fenômeno, o que aparece, Erscheinung, e eventos externos são configurações simples do mundo fenomenal, pelo que não têm nem realidade nem significado diretamente, mas apenas indiretamente, através de sua relação com a vontade dos indivíduos, que é essencialmente intemporal tal como o inconsciente freudiano da metapsicologia (1915).  Todo o mundo intuitivo é um sonho efêmero, um teatro onírico, também um labirinto, diria Borges, ainda que conectado ao imóvel umbigo da vontade, que lhe dá realidade e o impulsiona de dentro para fora. No §25 dos Tomo II de “O Mundo como vontade e representação”, intitulado Considerações transcendentes sobre a vontade como coisa em si, Schopenhauer repete o que já dissera antes em “Sobre a vontade na natureza”, quando escreve que a nossa consciência é tão mais brilhante e mais distinta, quanto mais ela alcança o exterior, de tal modo que a sua maior clareza reside na intuição sensível. Por outro lado, ela se torna mais obscura quando nos dirigimos para dentro, para o íntimo de nosso ser no torvelinho do nosso mundo psíquico que se abisma. Seguindo rumo aos nossos recônditos mais íntimos, chega-se a uma escuridão na qual todo conhecimento cessa, porque essa treva assim o é por já não estar mais condicionada às relações causais, portanto, à individualidade e ao fenômeno. Por outro lado, a natureza íntima tem a sua raiz na coisa em si, a vontade, a qual, por conseguinte, não é atingida pelas formas fenomênicas, pelo que cessa a consciência distinta e nada podemos discernir com clareza. Schopenhauer escreve que nesse ponto radical da existência, “a diferença entre os seres cessa, assim como os raios no ponto central de uma esfera. Como a esfera da superfície é produzida pelo fim e interrupção dos raios, “assim também a consciência só é possível quando o verdadeiro ser íntimo encontra o fenômeno”. (W II, 2, § 25, p. 472.) Esse encontro torna a individualidade possível, e sobre esta individualidade repousa a consciência confinada aos fenômenos. Portanto, tudo o que é distinto e realmente inteligível em nossa consciência sempre reside na superfície exterior desta esfera, onde ocorre o mundo, sua memória e, consequentemente, sua história. No sentido inverso, quando nos aproximamos do umbigo do psiquismo, a consciência nos abandona, no sono, na morte, na hipnose, pois todos estes nos conduzem ao centro e nos afastam das relações exteriores pelas quais a consciência é responsável. No mesmo capítulo, Schopenhauer escreve que a imortalidade do indivíduo poderia ser comparada “à tangente que corta um ponto da superfície”, enquanto a imortalidade, em virtude da eternidade do ser íntimo verdadeiro de todo fenômeno, é comparável “à volta do referido ponto sobre o raio do centro, cuja mera extensão é a superfície”.  (W II, 2, § 25, p. 473.) Outra imagem semelhante é a da roda de uma bicicleta. No centro da roda, a Vontade como coisa em si é uma parte integrante de cada raio da circunferência e permanece imóvel em um eterno presente. Enquanto a superfície exterior, o pneu, está na revolução mais rápida com a superfície que representa o tempo e o seu conteúdo vertiginoso e labiríntico. A outra extremidade, no centro da roda, onde se encontra a eternidade, permanece em profunda paz, representando o substrato onipresente de toda a natureza e a fonte da qual brota o poder criador da vontade que tem feito o seu trabalho nas atuais formas da natureza e nelas se manifesta especialmente pela produção e conservação do organismo, de acordo com o ciclo perene no qual se sucedem os nascimentos e as mortes. É o teatro da existência. Mudam os figurinos, os atores e a casa de espetáculos, mas a peça é sempre a mesma.

2.1 Teatro e repetição: recorrência com variações

A imagem do que permanece em relação ao que é ao mesmo tempo perene e efêmero, da recorrência em relação ao que se cria e se concebe, isto é, a relação entre vontade e representação, aparece em Schopenhauer através da metáfora do teatro. Este, na obra do filósofo, apresenta-nos a imagem da recorrência sob outro aspecto. A Humanidade poderia desaparecer mil vezes, assim como o mundo, e, dadas as mesmas condições, tudo potencialmente reapareceria. É assim que o querer-viver se objetiva, tal é a sua natureza e também a do mundo. Porém, ninguém sabe a razão pela qual toda essa tragicomédia existe, pois ela não tem espectadores, já que não existem deuses na filosofia de Schopenhauer, e os atores em si mesmos passam por preocupações intermináveis e problemas, usufruindo pouco e de modo meramente negativo. O ser humano torna a peça mais complicada, mas, o caráter fundamental do drama da existência permanece inalterado. Aqui a vida também não se apresenta de maneira nenhuma como um presente a ser desfrutado, mas como “um problema, uma tarefa a ser cumprida e, em geral, portanto, como uma luta constante contra a necessidade”. (W II, 2, p. 290) O teatro humano é pleno de atividade, mas esse acontecer no tempo e no espaço ainda lembra em tudo o que já existe na natureza em geral, pois, ao fundo de toda a agitação da existência, ainda subsiste o mesmo ímpeto cego, o mesmo impulso constante e sem finalidade que nos impele à vida. Neste espetáculo de marionetes dos impulsos, os bonecos humanos não são fundamentalmente puxados por cordões externos, pelos motivos da efetividade.  Ao contrário, deste ponto de vista, apresentam-se como marionetes que são postos em movimento por um mecanismo interno, pela motivação, que reside no caráter individual e nos confere efetiva realidade. Desse caráter provém o ímpeto inquebrantável que fundamenta a atividade inquieta das pessoas, os seus esforços incansáveis e, segundo Schopenhauer, os resultados pífios que obtêm. Para o filósofo a atividade humana não pode ser explicada, caso procuremos as causas motoras fora das personagens, Figuren, e concebamos que a raça humana atua em consequência de uma reflexão racional “ou de algo análogo à mesma (como fios que fossem puxados de fora), após as coisas boas serem apresentadas a ele e cuja realização seria uma recompensa adequada por seus tormentos e lutas incansáveis”. (W II, 2, p. 290) Para ele, a explicação verdadeira estaria na “vontade de viver, que se manifesta como um mecanismo propulsor incansável, como um impulso irracional.” (W II, 2, p. 290) Desse modo, o determinismo permanece firme, mas o mecanismo, em Schopenhauer, deixa de ser algo externo e determinado por motivos, mas, pelo contrário, em sua filosofia é a necessidade cega quem dirige a peça, necessidade essa que ao fundo das causas aparentes submerge no torvelinho da vontade sem fundamento em razão suficiente, sendo, pelo contrário, um mero ímpeto cego. Mas, reforcemos o aspecto fisiopsicológico dessa relação. O ímpeto cego do querer-viver se configura de acordo com formas que existem na medida em que possibilitam a descarga dos impulsos, e, de um ponto de vista psíquico, sustentam a direção concreta do impulso em relação ao alvo de satisfação, que vai depender de o quanto esse ímpeto em certa direção potencializa e desenvolve o sistema psíquico através da possibilidade de antecipar a reação ao fenômeno conhecido. A memória e a associação de ideias funcionam de acordo com a lei de motivação, pois o que rege as capacidades de recordar e de associar é o querer-viver, que impulsiona o intelecto de acordo com os seus fins. (W II, § 14, p. 217) Portanto, a capacidade de recordar fielmente depende das comoções da vontade, de seus impulsos inconscientes, bem como as associações de ideias também seguem esse mesmo fluxo inconsciente de interesses. Do mesmo modo, assim como aqui as leis da conexão entre as ideias existem apenas com base na vontade, no mundo real o nexo causal dos corpos só existe com base nessa mesma vontade, que se manifesta no fenômeno completo do mundo. Por esta razão, escreve Schopenhauer, a explicação das causas “nunca é absoluta ou exaustiva, pois sempre se refere às forças naturais como sua condição; e o ser interior disto é justamente a vontade como coisa em si”. (W II, § 14, p. 218) Há, nesse sentido, para o filósofo de Frankfurt, um vertiginoso e recorrente caleidoscópio do mundo, sempre reorganizando suas peças em novas formas na pluralidade dos fenômenos; mas, tudo está firmemente atado ao núcleo comum a todo fenômeno que se dá no tempo, na história e enlaçado na teia de recordações de cada um de nós, que é a vontade em si, que, fora da representação permanece alheia ao tempo em seu trono ancestral.

Nesse sentido, a representação correta de um objeto é originariamente apenas um meio com a finalidade de apreender e se apoderar cegamente da existência. O quantum determina a dinâmica das forças envolvidas e a configuração das formas que podem ser intuídas como representação. É apenas em um segundo momento (lógico e não histórico) que essa eficácia das forças e afetos se desenvolve e se torna mais complexa a ponto de se reconfigurar como causa e consequência, já que a memória se constrói justamente sobre esse fio de Ariadne das forças e dos afetos. Há uma memória das coisas, que configura a realidade por aquilo que nela se efetiva como efetivo e atuante, e só por isso se repete, e há uma memória propriamente dita, um instável acontecimento psíquico. Essa capacidade de lembrar se torna cada vez mais complexa na escala animal, até resultar naquilo que psiquicamente conhecemos efetivamente por memória humana, que é, em Schopenhauer, um mecanismo secundário ligado à representação, enquanto o fundamental, o essencial, permanece sempre o mesmo no eterno presente de uma vontade essencial e que desconhece (em si mesma) o tempo, o espaço e a causalidade. É justamente isso o que se transfere ao inconsciente do psiquismo schopenhaueriano como um mecanismo interno que controla os fios das marionetes humanas. Por essa razão os fios da necessidade não controlam efetivamente as pessoas, já que elas, devido ao mecanismo interno, são capazes de ações que seriam inexplicáveis pelo conhecimento causal da realidade. A realidade psíquica, nesse sentido, é um teatro subjetivo e nos lança diretamente ao serviço da vontade e à perseguição de seus alvos que ultrapassam em muito o interesse do indivíduo. É enredado no acaso e no erro que subsiste o personagem que protagoniza a tragédia humana, já que ela está dividida entre as polaridades de um conhecimento antecipatório autodivergente (pretende servir ao indivíduo, mas serve à sultana Vontade) vinculado ao querer-viver. Tal conhecimento prático não é suficiente para entender o sentido da existência, pois este ultrapassa em muito a possibilidade de previsão do sentido íntimo dos impulsos produzidos na secreta oficina da vontade, já que essa impetuosidade, o verdadeiro agente ao fundo da consciência, não depende de um regime causal e, portanto, não pode ser corretamente antecipada na experiência, mas apenas conhecida em retrospectiva por seus atos efetivos. Essa impotência humana diante de nossa própria excisão íntima resulta no caráter trágico da vida que é a marca d’água do pessimismo schopenhaueriano. Nas “Considerações transcendentes sobre a Vontade como coisa em si”, o filósofo menciona que o que está fora de nós apresenta uma determinação exclusivamente espacial, e o espaço é apenas uma forma de nossa intuição, ou seja, uma função de nosso cérebro. Portanto, para ele, o que parece estar fora de nós resulta de uma projeção dos objetos no exterior depois de ocorrida a sensação visual, que em si mesma reside em nossa cabeça, porque nela está o verdadeiro cenário da ação. “É como um palco no qual vemos montanhas, floresta e mar”, e, no entanto, tudo permanece no interior do teatro de nossas cabeças:

As coisas não estão no espaço, e, por conseguinte, fora de nós, mas existem para nós como representações. Portanto, essas coisas que vemos diretamente (e não a sua simples imagem) são apenas as nossas representações e, como tais, existem apenas em nossas cabeças. Não é que, como dizia Euler, percebamos imediatamente as mesmas coisas situadas no exterior. Pelo contrário, as coisas percebidas por nós como estando situadas em nosso exterior são, na verdade, apenas nossas representações e, consequentemente, elas são o que nós percebemos imediatamente. (W II, 1, p. 467.)

 Nossa cabeça é, então, uma casa de espetáculos no interior da qual é encenado o drama inteiro do universo, do planeta, da natureza, das culturas e das sociedades, bem como de nossa própria presença temporal e das formas de subjetividade em meio a tudo isso. O mundo efetivo é efêmero e, nesse sentido, ilusório. A noção de tempo sucessivo, nesse sentido, forma de nossa subjetividade, é a própria cena onde ocorre a ilusão, e é também a forma pela qual a vontade se depara com a nulidade de todos os seus esforços.

A compreensão profunda do sistema schopenhaueriano que envolve vontade, ideia (representação independente do princípio de razão) e representação (de acordo com o princípio de razão suficiente), permite uma compreensão do sentido da História, na qual se contempla o irromper incessante do permanente ao fundo do efêmero. Nesse sentido, os arquétipos humanos são encarnados e reencarnados na sucessão de indivíduos contingentes. O significado dessas vidas é simplesmente este: podermos ver através delas o que nelas persiste. O teatro é então uma metáfora que expõe a doutrina da palingenesia, que pode ser compreendida como uma repetição das características humanas em indivíduos diferentes, (HORKHEIMER, 2008, p. 124) cujos caracteres apresentam sempre peculiaridades, mas que tomados em conjunto expõe as formas imutáveis, a unidade fora do tempo. De fato, Schopenhauer sugere que o termo palingenesia é mais adequado do que metempsicose, já que os constantes renascimentos admitidos pelo filósofo não dizem respeito ao Eu consciente, mas correspondem, isso sim, à sucessão dos “sonhos de vida” da própria Vontade, “que é em si mesma indestrutível”, até que, “instruída e melhorada mediante conhecimentos tão variados e sucessivos, sempre sob novas formas, ela suprima a si mesma”. (W II, II, p. 202.)

A sucessão dos sonhos tragicômicos das vidas individuais tem como pano de fundo uma vontade inelutável. A cena do mundo é controlada intimamente por essa vontade, que é essencialmente inconsciente:

O intelecto do homem normal, estritamente vinculado ao serviço de sua vontade e, portanto, na realidade, ocupado apenas com a recepção dos motivos, pode ser comparado ao complexo sistema de fios pelo qual as marionetes que são exibidas no palco do teatro do mundo são postas em movimento. A partir disto, surge a seriedade seca e grave da maioria das pessoas, que só é superada por aquela dos animais, que nunca riem. Por outro lado, o gênio, com o seu intelecto sem restrições, pode ser comparado a uma pessoa viva atuando entre os grandes fantoches do famoso espetáculo de marionetes de Milão. (W II, 2, p. 46.)

A julgar pela consciência, que se move no labirinto das representações, o Eu é um mistério. O filósofo compara nossa consciência a uma lanterna mágica, pois diante de seu foco pode aparecer apenas uma imagem de cada vez, apesar da ilusão do movimento e cada uma dessas imagens precisa desaparecer rapidamente para dar lugar a outras, o que torna a nossa consciência instável. A julgar por esse estar consciente no labirinto das representações, o Eu é de fato misterioso. O que lhe fornece a sua unidade? Esta será dada não pelo que constantemente se modifica na superfície, mas sim pelo seu substrato, inalterável e idêntico a si mesmo, que é a Vontade.

O nexo das ações é fornecido não pelo que constantemente se altera e que ergue a paliçada do tempo e da memória, mas sim pelo substrato inalterável do tempo, a vontade. Ela existe em um eterno instante. Se, segundo Jorge Luiz Borges, e também de acordo com Schopenhauer, a sucessão e o engano são a rotina dos relógios, o tempo da vontade é a atualidade, um hoje tão tênue quanto eterno.

3 CONCLUSão: die wille als welt und labYrinth

Espelhos e labirintos são metáforas para a condição humana diante da angústia do devir. Schopenhauer contempla o mundo através de um espelho infinito, pois a representação, simulacro da ideia platônica, é também substrato da morte e do tempo. O espelho é também um mestre que organiza as imagens da representação em relação à profusão labiríntica do querer-viver, que se abisma em rizomas de possibilidades em relação às quais nos angustiamos entre o que se pode representar e o irrepresentável, que permanece imóvel e perene no centro do círculo metafísico da vontade cósmica. Em Borges, essa percepção é bastante aguda e Schopenhauer é incluído como elemento poético e narrativo dessa angústia do existir diante da reprodução infinita das formas que, bem o sabemos, apresenta como significado latente a própria angústia humana diante da sexualidade e da morte, portanto, da transitoriedade. Em Nietzsche, por sua vez, os espelhos e os labirintos são os desafiadores mestres do devir, nos quais a transitoriedade se afirma em toda a sua profunda exuberância de formas e alternativas, lâminas, camadas de um querer-poder que se rearranja em variações ilimitadas, ainda que sobre todas essas formas em expansão persista a inquietante sentença do retorno, signo da afirmação incondicional da vida em labirinto; portanto, ao invés de pesadelos, apresentam-se novas metas, novos labirintos e espelhos, mas também novas pernas, para caminhar ou até mesmo dançar com pés ligeiros em torno de sua base, o centro que gira em torno de si mesmo, entrópico e que retorna. É interessante notar como Borges e Nietzsche extraem consequências das profundidades em que se abisma a representação em Schopenhauer, na qual a angústia da recorrência das variações das formas perenes se soluciona em contemplação estética e compaixão, em contraste com a cega e vibrante vontade que esporeia as formas rumo à vastidão, à profundidade e incompreensibilidade que estão além delas mesmas, de volta à fonte comum, silenciosa e imóvel ao fundo do turbilhão de sentidos que é mais profundo que o poço de Demócrito.

Em Schopenhauer, a base para a compreensão do problema do tempo e da transitoriedade é, paradoxalmente, o instante, pois o presente é a forma da existência efetiva, enquanto o passado só existe para a nossa recordação e o futuro ainda não chegou. Por essa razão, o tempo como forma subjetiva é vão como a própria História que ele engole incessantemente no sem-fundo tempestuoso de todas as consequências que se sucedem, sempre a causa de outra causa, todas se chocando umas contra as outras em seu puro atuar. A História em Schopenhauer tende a ser uma visão momentânea da configuração dos casos individuais em sua particularidade e contingência. Nada pode permanecer muito tempo à superfície dessa correnteza, pois tudo o que é singular existe apenas uma vez e depois desaparece da face da Terra. O material da história é considerado pelo filósofo “o entrelaçamento transitório de um mundo humano se movendo como as nuvens ao vento, as quais muitas vezes são totalmente modificadas pelo acidente mais insignificante”. (W II, § 35, p. 121.) A partir deste ponto de vista, o material da história aparece diante do filósofo da vontade como um objeto pouco digno de consideração se considerada a fonte subjacente da qual tudo brota, essa sim digna de toda a atenção.

A história mostra a cada vez apenas a mesma coisa sob suas diferentes formas, mas aquele que não reconhece alguma coisa sob uma ou algumas formas dificilmente vai alcançar o conhecimento dela através da execução de todas as formas. Os capítulos da história das nações são diferentes apenas no que concerne aos nomes e datas, pois o conteúdo realmente essencial é em toda parte o mesmo. (WII, § 35, p. 121.)

A recorrência do que é essencial às formas é o que aparece diante de Schopenhauer como um espelho no qual se mira a vontade, portanto, a representação independente do princípio de razão, a vibração das sempre mesmas formas ao fundo da contingência e na mudança. Nesse sentido, a História é, para este filósofo, o oposto da Filosofia. Enquanto a História se orienta ao particular, a filosofia se orienta ao universal, o que se esconde no fundo do espelho. Nesse sentido, a Filosofia apresenta a vantagem de que o universal pode ser conhecido a partir de um único caso, enquanto a mera coleção de fatos históricos não nos apresenta algo essencial, a não ser que acompanhada de uma apreciação e compreensão do universal em cada uma dessas particularidades ou em seu conjunto.

Transitoriedade, memória e História, são expressões da singularidade conectada à individuação, à consciência e aos desgastados espelhos que reproduzem os instantes em rápida sucessão, no espaço ilimitado e de acordo com as miríades de cadeias causais interconectadas segundo uma ordem aparente dada para o entendimento como epifenômeno e de acordo também com o estado de disputa e devoração mútua que é inerente ao mundo natural. Torna-se inclusive perigoso aproximar-se desse sem-fundo guardado pelo minotauro de nossa fantasia, escuridão povoada por espíritos e demônios.

Do ponto de vista fenomênico, a Vontade “despertada para a vida que existe fora da noite da inconsciência, depara-se consigo mesma como um indivíduo em um mundo infinito e sem limites, entre inúmeros outros indivíduos, todos lutando, sofrendo e vagando”. (W II, 2, p. 295) Nessa vertigem da existência, “como se atravessasse um sonho conturbado, ela corre de volta rumo à velha inconsciência”, (Idem) isto é, ao seu estado originário, semelhante ao do sono, ao da vida vegetativa do organismo ou ao inorgânico.  Do mesmo modo, Schopenhauer escreve no § 38 dos Ergänzungen que “em cada classe e espécie de coisas, os fatos são inumeráveis, os seres individuais existem em número infinito, assim como a multiplicidade e a variedade de suas diferenças estão além do nosso alcance”. (W II, 2, § 35, p. 117.) Com um olhar para tudo isso, “a mente curiosa cai em um turbilhão, e por mais que investigue, vê-se condenada à ignorância.” (W II, 2, § 35, p. 117.)  Em verdade, para o filósofo da vontade, nós somos apenas semiconscientes e é assim que “nós marchamos pelo labirinto da nossa vida e na obscuridade de nossas investigações”. (W II, § 15, p. 222.) Cada um de nós penetra em seu espelho como um morto na sepultura aberta. Essa é a raiz do inquietante círculo que sonha os nosso sonhos por nós.

Se a história fala de indivíduos, sendo, portanto, um conhecimento das coisas individuais no tempo e no espaço, é também uma espécie de sonho recorrente, ou mesmo um pesadelo repleto de sofrimentos, no qual os caminhos, como nos contos de Borges, bifurcam-se em novos caminhos que por sua vez também se bifurcam, num jogo de espelhos infindável dentro do qual vivemos no contexto da representação.

Também em Borges o mundo representado é semelhante ao mundo onírico, e, convertido em labirinto ficcional, contém, em um de seus caminhos possíveis, a realidade. Para o escritor argentino, espelho e labirinto são motivos fundamentais que se interpolam e a partir dos quais grande parte de sua obra se desenvolve quando tematiza o tempo e a perplexidade da existência humana:

Os meus [pesadelos] são sempre os mesmos. Eu diria que tenho dois que que podem chegar a confundir-se. Tenho o pesadelo do labirinto. [...] O labirinto era um anfiteatro muito grande e alto – fato que ficava evidente porque suas paredes ultrapassavam a altura dos ciprestes e dos homens ao seu redor. [...] Outro pesadelo que tenho é o do espelho, que não me parece muito diferente, já que bastam dois espelhos opostos para construir um labirinto. (BORGES, 1983, p. 55).

Essa imagem do labirinto a partir da oposição entre dois espelhos nos evoca a visão da representação em Schopenhauer. Para o filósofo de Frankfurt, nosso pensamento é inevitavelmente disperso e fragmentado e nele se misturam as mais heterogêneas representações, pelo que seríamos seres apenas semiconscientes: “Com isso nós marchamos pelo labirinto da nossa vida e na obscuridade de nossas investigações”. (W II, 1, p. 222). Schopenhauer se pergunta: “O que se pode esperar de cabeças dentre as quais mesmo as mais inteligentes se tornam todas as noites a arena dos mais estranhos e insensatos sonhos, e que precisam retomar suas meditações novamente ao emergir desses sonhos?” (W II, 1, § 15, p. 222) Para o filósofo, é uma maravilha que nós não fiquemos completamente confusos pela extremamente heterogênea mistura de representações e de fragmentos de pensamentos de todos os tipos, que estão sempre apagando uns aos outros em nossas cabeças, mas que sejamos sempre capazes de encontrar nosso caminho novamente, adaptando e ajustando tudo isto, especialmente considerando os fenômenos do sono, das interrupções, ou mesmo da tormentosa sobrecarga de representações. Para manter tudo isso unido, o fio não poderia ser dado pela simples memória, que é imperfeita e infiel. O que dá unidade e coerência à consciência, pois permeia todas as suas representações, é o seu fundo e sustentáculo constante, o qual não pode ser em si mesmo condicionado pela consciência, e, portanto, não pode ser uma representação, mas sim a vontade. Ela é o fio de Ariadne que mantém todas essa representações e pensamentos juntos e os acompanha permanentemente, como um leito pelo qual a torrente das representações flui e reflui. Sem ela “o intelecto não teria mais unidade de consciência do que um espelho”, no qual ora uma coisa, ora outra, apresentam-se em sucessão. É ela quem dirige a atenção e “segura o fio dos motivos em sua mão”. (W II, 1, § 15, p. 223.)

É nesse sentido que os pesadelos de Borges podem ser interpretados, considerando-se freudianamente a estranheza do inconsciente ao fundo da existência e do inorgânico ao fundo da vida que se agita como que tomada na armadilha de seu ciclo que jamais se encerra. Podemos verdadeiramente comparar o que acabamos de ver em Schopenhauer com a recorrente imagem dos labirintos na obra de Jorge Luiz Borges, especialmente os labirintos da própria linguagem. Estes também são tais como rumorejantes cachoeiras que expressam a própria experiência humana fragmentária. Também minotauros vivem nesses labirintos feitos de linguagem e o próprio minotauro é um labirinto para si mesmo e para os outros, o que é uma imagem relativa à própria condição da vida humana em um mundo igualmente labiríntico. É como o Dioniso do poema de Nietzsche que diz a Ariadne: “Ich bin dein Labyrinth...”, “eu sou seu labirinto”. (NIETZSCHE, 1988, p. 398.) Também poderia dizer, tal minotauro, que há um labirinto no abismo do seu peito, onde as proteiformes correntes pulsionais inundam o coração com as diferentes figuras da História, elas mesmas sintomas “de ajustamentos e subversões de relações de poder vigentes entre as mais vigorosas correntes pulsionais.” (NIETZSCHE, KSA XII, p. 654.) Para esse minotauro que interroga a si mesmo diante do espelho, estimativas de valor e pensamentos expressam os apetites ou os impulsos que imperam ao fundo deles, realidades ao fundo de realidades, aparências ao fundo de aparências. Nossa percepção consciente e racionalidade não constituem fatos internos ou externos, portanto, nenhuma realidade em si, mas apenas signos da atividade fisiopsicológica. No entanto, apesar disso, já existe neste modo de conceber o mundo interno ao sujeito a consideração de uma verdade profunda, inconsciente, enquanto superfície de profundidades mais abissais ainda. Labirintos dentro de labirintos.

Referências

BORGES, J. L. Nueva antologia personal. Barcelona: Bruguera, 1980.

BORGES, J. L. Sete noites. São Paulo: Max Limonad, 1983.

CACCIOLA, M. L. Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo: EDUSP, 1994.

NIETZSCHE, F. Kritische Studienausgabe. COLLI, G.; MONTINARI, M. (org.), 15 vols., Munique, DTV/ de Gruyter, 2ª ed., 1999.

NIETZSCHE, F. Klage der Ariadne. In: Dionysos-Dithiramben. Kritische Studienausgabe 6. Berlim: De Gruyter, 1988.

SCHOPENHAUER, A. (1986). Sämtliche Werke, ed. Wolfgang Frhr. von Löhneysen, Frankfurt, 5 vols.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação: Complementos, vol. 1. Curitiba: Editora UFPR, 2014a.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação: Complementos, vol. 2. Curitiba: Editora UFPR, 2014b.

HORKHEIMER, M. O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, nº 12, p. 115-128, jul./dez. 2008. Disponível em: https://ficem.fflch.usp.br/sites/ficem.fflch.usp.br/files/OpensamentodeSchopenhauer.pdf. Acesso em: 05 set. 2021. DOI https://doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v0i12p99-113.

Contribuição de autoria

1 – Eduardo Ribeiro da Fonseca:

Professor do PPGF da PUCPR, Doutor em Filosofia Moderna e Contemporânea pela USP

https://orcid.org/0000-0003-4753-1864eduardo.fonseca@grupomarista.org.br

Contribuição: Escrita – Primeira Redação

Como citar este artigo

FONSECA, Eduardo Ribeiro da. O Transcorrer do Tempo em Schopenhauer: Recorrência, Lembrança, Memória e História. Voluntas Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v. 12, e24, 2021. DOI 10.5902/2179378667567. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2179378667567. Acesso em: dia mês abreviado. ano.



[1] O termo original alemão Ergänzungen pode ser traduzido no Idioma Português utilizando os termos “complementos” ou “suplementos”, palavras que no mais das vezes se interpolam em seus usos. A tradução por suplementos é mais usada, e carrega fortemente o sentido de algo que se acrescenta a um todo para ampliá-lo ou aperfeiçoá-lo, algo que supre uma falta, que completa. O termo complementos carrega, além desses sentidos, o de um oposto necessário para completar algo, ou o sentido de interdependência entre dois fenômenos, ou pontos de vista, pelo que, a meu ver, apresenta uma riqueza maior no contexto da filosofia de Schopenhauer, pois a adoção de diferentes pontos de vista sobre a vontade e a representação implica, por vezes, na sustentação paradoxal, aporética, de verdades igualmente necessárias, mas que, ao menos sob certos aspectos, contestam-se mutuamente, expressando, nesse sentido, sempre um dos aspectos da autodiscórdia da vontade no oceano imaginário-simbólico da representação. A vontade, assim como a linguagem, crava as garras na própria carne. É nesse contexto de interpretação que ele foi utilizado por mim em minha tradução publicada pela Editora UFPR em 2014.

[2] BORGES, Nueva antologia personal, p. 107.